CASO JULGADO FORMAL
EFEITOS
Sumário

O caso julgado formal, previsto no artigo 620.º, n.º 1, do C. P. C. impede que o tribunal se pronuncie, de novo, sobre a mesma questão processual (no caso, pedido de dispensa de pagamento de taxa de justiça remanescente, nos termos do artigo 6.º, n.º 7, do R. C. P. formulado pela mesma parte, quanto aos mesmos valores).

Texto Integral

Processo n.º 220/12.2TBAMT-E.P1.
João Venade.
Álvaro Monteiro.
Isoleta Almeida Costa.

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1). Relatório.
Em 03/02/2011, A..., S. A., com sede na Travessa ..., ..., Amarante, propôs contra
B..., S. A., com sede na Avenida ..., Porto,
Ação declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, pedindo a condenação da Ré no pagamento de 3.497.778,17 EUR, acrescida de juros de mora vincendos, à taxa legal, sobre a quantia de capital de 3.443.778,17 EUR até efetivo e integral pagamento.
Foi apensada aos autos o processo n.º 234/11.2 TBAMT em que
B..., S. A., (ali Ré), intenta contra A..., S .A. (ali Autora)
Ação declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, pedindo que:
. seja declarado o direito da aqui Autora em receber da aqui Ré o valor de 11.393.146,93 EUR, relativos ao pagamento da multa pelo atraso na entrega da obra, à indemnização devida pelos danos que a autora terá que pagar à “C...”, à indemnização pelos lucros cessantes motivados pelo não recebimento de um ano de renda, à indemnização pela rescisão do contrato, ao custo de reparação dos defeitos e das omissões, ao custo da fiscalização da obra pelo período de 12 meses e ao pagamento de consumos de energia elétrica, água e gasóleo que a Autora pagou em substituição da Ré;
. seja declarado que este valor deve ser reduzido em 750.000 EUR, se a Autora receber das entidades bancárias que prestaram fiança à Ré;
. seja declarado que o crédito atual da Ré é de 1.813.255,95 EUR;
. desse montante a Autora tem o direito de reter a quantia de 86.655,54 EUR, para assegurar o pagamento das reparações que possam surgir no período da garantia do imóvel;
. seja declarado que, se a autora não conseguir receber os 750.000 EUR junto dos bancos, o valor da retenção será de 836.655,54 EUR;
. seja declarado que o crédito da Ré se considera pago por compensação dos créditos que a Autora detém sobre a Ré;
. por via disso, deve a Ré ser condenada a pagar a quantia de 9.666.546,48 EUR ou 10.416.546,48 EUR, se a Autora não conseguir receber os 750.000 EUR dos bancos;
. estas quantias devem ser acrescidas de juros de mora desde a citação até à data do integral pagamento.
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Foi deferida a intervenção acessória provocada da Companhia de Seguros D....
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Em 04/01/2022, foi proferida sentença nos seguintes termos:
«julgo
a) parcialmente procedente, por provado, o pedido da “A...” e, consequentemente, condeno a “B...” a pagar-lhe a quantia total de € 1.394.347,97 (um milhão, trezentos e noventa e quatro mil, trezentos e quarenta e sete euros e noventa e sete cêntimos), a que acresce o iva, à taxa legal de 21%, no montante de € 527.013,53 (quinhentos e vinte e sete mil e treze euros e cinquenta e três cêntimos).
A este valor acrescem juros vincendos, calculados à taxa de juros comerciais.
b) procedente o pedido formulado pela “B...”, condenando a “A...” a pagar-lhe o valor total de € 9.385.129,90 (nove milhões, trezentos e oitenta e cinco mil, cento e noventa e nove euros e noventa cêntimos), ou € 8.635.129,90 (oito milhões, seiscentos e trinta e cinco mil, cento e noventa e nove euros e noventa cêntimos), caso a “B...” não consiga receber os € 750.000 das garantias.
A estas quantias devem ser acrescidas de juros de mora à taxa legal desde a citação até à data do integral pagamento.
c) improcedente o pedido formulado pela “A...” de declarar a nulidade das multas e indemnizações peticionadas pela “B...”, por violação dos artigos 329º e 340º, do código dos contratos públicos;
d) em face do decidido nas alíneas procedentes, declaro a compensação dos créditos da “A...” pelos créditos que a “B...” detém sobre a mesma e, consequentemente, declaro extinto o direito da “A...”;
e) improcedente o pedido de condenação da interveniente companhia de seguros “D...”, absolvendo-a da totalidade do pedido.
A decisão foi integralmente confirmada por Acórdão da R. P. de 08/06/2022.
Por despacho de 20/09/2022, foi fixado como valor aos autos a soma dos valores constantes das duas - principal e a apensada -.
Em 10/10/2022 foram elaboradas contas para apurar a responsabilidade tributária de «A...…» e «B...…», tendo sido emitida guias de pagamento no valor de:
. 155.013,26 EUR - «A...…»;
. 107.228,74 EUR - «B...…» -.
Em 14/10/2022 veio «B...…» apresentar o que denominou de reclamação de conta mas que consistia no pedido de dispensa de pagamento de taxa de justiça remanescente nos termos do artigo 6.º, n.º 7, do R. C. P..
Em 07/11/2022 o tribunal indefere tal pedido.
Em 17/11/2022 a mesma requerente interpõe recurso.
Por Acórdão de 27/02/2023, proferido pelo Tribunal da Relação do Porto (apenso D), foi aquela decisão de 1.ª instância de 07/11/2022 confirmada.
Interposto recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, não foi o mesmo admitido nem como de revista normal nem como revista excecional (apenso E, decisões de 19/06/2023, 12/07/2023 e 12/02/2023).
Foi intentado recurso para o Tribunal Constitucional, o qual, por decisão de 15/10/2024, transitada em julgado em 31/10/2024, decidiu não tomar conhecimento do recurso.
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Em 23/01/2025 é elaborado termo de dispensa de conta por não existirem valores a pagar pela recorrente, tendo sido emitida nova guia para pagamento em relação a «B...…» pelo já referido valor de 107.228,74 EUR.
Em 03/02/2025 vem «B...…» solicitar, sob a formulação de reclamação de conta, o pedido de dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 7, do R. C. P..
Por despacho de 06/03/2025, ora sob recurso, o tribunal indefere esse pedido nos seguintes termos:
A questão já foi objeto de decisão através do despacho datado de 7/11/2022, com a referência 90274906, despacho este já transitado em julgado após a decisão do respetivo recurso.
Esgotou-se, assim, o poder jurisdicional do Tribunal sobre esta matéria, o qual sobre uma mesma questão só pode pronunciar-se uma vez.
De resto, não se entende a alegação de surpresa com a notificação recebida.
Pelo exposto, nada há mais a ordenar.».
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Recorre «B...…», formulando as seguintes conclusões que aqui se resumem, sem inclusão de referências jurisprudenciais ou doutrinárias que não sintetizam as alegações:
I – O despacho recorrido não se encontra devidamente fundamentado de facto e de direito, violando o dever geral de fundamentação consagrado nos artigos 205.º e 368.º, n.º 3, da C. R. P., bem como nos artigos 152.º a 154.º, do C. P. C.;
II – A conta de custas em apreço não corresponde à anteriormente analisada, conforme se verifica pela sua simples análise, o que impõe uma reavaliação judicial quanto à sua legalidade e adequação ao caso concreto.
III – Nos termos do artigo 6.º, n.º 7, do R. C. P., em conjugação com o artigo 530.º, n.º 7, do C. P. C., o remanescente da taxa de justiça apenas deve ser exigido se a complexidade da causa o justificar, com fundamentação expressa e adequada, o que não ocorreu nos presentes autos;
IV – A decisão recorrida adotou uma interpretação restritiva e mecanicista do artigo 6.º, n.º 7, do R. C. P., que viola a Constituição Fiscal ao tratar o remanescente da taxa de justiça como um verdadeiro imposto de justiça, sem atender à existência de uma justa causa material que impeça a restrição ilegítima do direito de propriedade.
V – A exigência do pagamento remanescente da taxa de justiça nos autos é manifestamente desproporcional, violando os princípios da proporcionalidade e tutela jurisdicional efetiva, consagrados nos artigos 18.º e 20.º, da C. R. P..
VI – A decisão recorrida não realizou qualquer ponderação sobre a complexidade da causa, a conduta processual das partes ou a desproporcionalidade do montante exigido, como determinado pelo n.º 6, do citado artigo 7.º, do R. C. P., em conjugação com o indicado 530.º, n.º 7, a) e c), do C. P. C..
VII – O T. C. tem reiterado que taxas de justiça excessivas podem restringir o direito de acesso à justiça…
VIII…
IX – O ordenamento jurídico português não pode ignorar as soluções adotadas noutros países da União Europeia, como a Alemanha, França e Espanha, que possuem mecanismos legais que evitam encargos desproporcionais, estabelecendo limites máximo para a taxa de justiça e escalonando os montantes a pagar consoante a complexidade da causa.
X – O Ac. 1/2022 de uniformização de jurisprudência é materialmente inconstitucional pois impede as partes de requererem a dispensa do remanescente da taxa de justiça após o trânsito em julgado da decisão final, sem que tenham sido previamente alertados para esta necessidade.
XI – Este entendimento gera uma decisão-surpresa, violando o princípio da previsibilidade e a equidade do sistema de custas, conforme reconhecido pelo T. C. em Ac. n.º 674/2014.
XII – A impossibilidade de requerer a dispensa de remanescente da taxa de justiça após o trânsito em julgado da decisão constitui uma restrição desproporcional ao direito de acesso aos tribunais, justificando a necessidade de intervenção judicial para correção desta ilegalidade.
XIII – O artigo 31.º, do R. C. P. expressamente prevê a possibilidade de reclamação da conta e sua reforma, o que demonstra que a preclusão invocada pelo tribunal a quo não encontra respaldo legal.
XIV – Os artigos 6.º, n.º 7, do R. C. P e 530.º, n.º 7, do C. P. C. estabelecem critérios objetivos para a dispensa do remanescente da taxa de justiça, os quais não foram devidamente ponderados na decisão recorrida, resultando numa aplicação errada do direito.
XV – Ocorre que, nos autos que deram origem à conta de custas em causa, a demandada foi condenada em montante avultado, sem que tenha recebido qualquer valor devido à atuação fraudulenta da «A...…», que se apresentou á insolvência, resultando na classificação da ora recorrente como credora comum sem qualquer pagamento efetivo.
XVI – No âmbito do processo n.º 1094/22.3T8AMT, juízo de comércio de Amarante, juiz 1, a reclamante reclamou crédito no valor de 17.152.931,93 EUR, sendo graduada como credora comum atrás do Estado, o que significa que não recebeu qualquer montante até ao momento.
XVII – caso este recurso seja improcedente, a recorrente manifesta desde já a sua aceitação de que a conta de custas possa ser paga através de dação em cumprimento do seu crédito na massa insolvente.
XVIII – O despacho recorrido revela-se nulo e inconstitucional, devendo ser analisada a reclamação apresentada à conta de custas, sob pena de violação dos princípios do contraditório e da proporcionalidade.
XIX – O de dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça pode ser requerido antes ou depois da elaboração da conta, sob pena de inconstitucionalidade material da norma que o impeça.
XX – Nestes termos, deve ser concedido provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida e reconhecendo-se a dispensa, total ou parcial, do pagamento do remanescente da taxa de justiça.
XXI – Subsidiariamente, deve ser declarada a nulidade da decisão recorrida por falta de fundamentação e incorreta aplicação dos artigos 6.º, n.º 7, do R. C. P e 530.º, n.º 7, do C. P. C..
XXII – Caso assim não se entenda, deve ser suscitada a inconstitucionalidade do artigo 6.º, n.º 7, do R. C. P., na interpretação que impede a dispensa de taxa de justiça após o trânsito em julgado, por violação do princípio da proporcionalidade e do direito fundamental de acesso á justiça.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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As questões a decidir são:
. nulidade da decisão;
. caso julgado formal impeditivo da análise do pedido pela recorrente.
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2). Fundamentação.
2.1). De facto.
Dá-se por reproduzido o teor do relatório que antecede.
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2.2). Do mérito do recurso.
A). Da nulidade da decisão.
A recorrente alega que a decisão é nula por não estar devidamente fundamentada – artigo 615.º, n.º 1, b), ex vi artigo 613.º, n.º 3, do C. P. C. -.
Não lhe assiste razão: a decisão fundamenta o motivo do indeferimento: esgotamento do poder jurisdicional por a questão já ter sido anteriormente apreciada, através de decisão já transitada em julgado.
Não havendo, é certo, menção expressa à base legal desse entendimento, o certo é que se fundamenta juridicamente a decisão – não se aprecia por haver decisão que já se pronunciou sobre a questão nos autos, decisão essa transitada em julgado -, o que, fácil e logicamente, permite entender que se está perante a figura do caso julgado formal (artigo 620.º, do C. P. C.). A decisão peca assim por não conter a referência à norma jurídica em concreto mas está, também, fundamentada do ponto de vista jurídico.
Por isso, tendo fundamentação, não existe a apontada nulidade, improcedendo esta argumentação.
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B). Do caso julgado.
Para nós, o que assume primordial relevância a analisar no recurso é saber se o pedido pela aqui recorrente em 03/02/2025 (dispensa de pagamento de taxa de justiça remanescente) já tinha sido anteriormente apreciado, de forma definitiva, pelo tribunal.
Ou seja, importa saber se, quando a recorrente solicita aquela dispensa, já a decisão sobre a dispensa de pagamento de taxa de justiça remanescente estava tomada, com trânsito em julgado.
E, na nossa visão, já está definitivamente decidido nos autos que a recorrente não tem direito a ser dispensada do pagamento do remanescente da taxa de justiça. Na verdade, desde logo, em 07/11/2022, o tribunal indeferiu esse pedido, decisão essa que foi confirmada pelo Tribunal da Relação do Porto e não mais foi apreciada por outro Tribunal Superior, apesar das tentativas nesse sentido da aqui recorrente.
Daí que, nos autos, está definitivamente assente, por decisão judicial, que a recorrente não tem direito a ser dispensada do pagamento da taxa de justiça remanescente como tinha pedido.
A circunstância de ter sido elaborada uma nova conta não permite que a recorrente venha, também de novo, suscitar essa mesma questão.
Desde logo porque o que está em causa nessa nova conta é unicamente aferir se a atividade processual da parte consistente em ter interposto vários recursos daquele indeferimento implicaria o pagamento de novas custas e não reformular qualquer contabilização anterior
E, por a recorrente «B...…» ter pago as taxas de justiça devidas pela interposição de recursos e inexistirem outros valores a atender que se possam enquadrar em custas, em 23/01/2025 foi dispensada a realização de conta por não existirem dívidas pela recorrente nos termos do artigo 29.º, n.º 1, a), do R. C. P. (ato de citius da mesma data).
Assim, foi a ora recorrente notificada que tinha de pagar a mesma quantia que já lhe tinha sido determinado pagar, antes de pedir a dispensa de pagamento do remanescente de taxa de justiça. E o motivo porque foi de novo notificada do mesmo valor para pagar foi porque a secção terá aguardado que o recurso que interpôs daquele indeferimento fosse definitivamente julgado pois o mesmo recurso foi admitido com efeito suspensivo - «admito o recurso interposto, o qual é de apelação, a subir imediatamente, em separado, com efeito suspensivo, uma vez que a imediata execução do despacho pode causar prejuízo ao recorrente (arts. 627º, 629º, n.º 1, 631º, 637º, 638º, 644º, n.º 2, al. g), 645º, n.º 1, al. a), e 647º, n.º 4, todos do CPC – conforme despacho de admissão desse recurso de 14/12/2022). Assim, transitada a decisão, a secção notifica o recorrente para pagar o valor em falta, agora com um prazo a correr de novo pois só então (após trânsito) a obrigação efetivamente passou a existir.
Deste modo, sempre estaria em causa a necessidade de pagamento de uma mesma quantia cuja dispensa tinha sido indeferida, não podendo o recorrente suscitar, com sucesso, a mesma questão da dispensa.
Estando em causa os mesmos valores atendidos na conta e o mesmo valor final a pagar, em relação à mesma parte, não há qualquer nova questão que não tenha sido decidida anteriormente, pelo que a recorrente pretendeu que o tribunal repetisse a pronúncia sobre uma questão já definitivamente decidida.
Deste modo, conclui-se que existe caso julgado formal sobre a questão de dispensa de pagamento de taxa de justiça remanescente, nos termos do artigo 620.º, n.º 1, do C. P. C: «As sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo.».
Mais do que estar em causa a não apreciação de uma questão por extinção do poder jurisdicional, conforme artigo 613.º, n.º 1, do C. P. C. (que está relacionada com uma anterior decisão já proferida sobre essa matéria e que agora não se pode contradizer, salvo em recurso ou outro meio processual legalmente previsto - (retificação, suprimento de nulidades e reforma de sentença, conforme artigo n.º 2, do mesmo artigo -), o que existe é caso julgado sobre uma questão que não é de mérito e, por isso, só com efeitos no respetivo processo.
Havendo caso julgado formal, não há que apreciar outras questões que teriam por base a possibilidade de apreciação do pedido de dispensa de pagamento da referida taxa e que, também, o tribunal recorrido não teve se apreciar face a esse mesmo caso julgado.
Conclui-se pela total improcedência do recurso.
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3). Decisão.
Pelo exposto, julga-se totalmente improcedente o presente recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas do recurso pela recorrente.
Registe e notifique.

Porto, 2025/05/22.
João Venade
Álvaro Monteiro
Isoleta de Almeida Costa