USUCAPIÃO
PROPRIEDADE HORIZONTAL
PARTE DE EDIFÍCIO
Sumário

I - O tribunal só pode alterar o título constitutivo da propriedade horizontal na presença de escritura publica ou documento particular autenticado que ateste que todos os condóminos deliberaram e aprovaram a alteração do mesmo título constitutivo e da junção de documento emanado da Câmara Municipal comprovativo que a alteração está de acordo com as leis e regulamentos em vigor (artigo 1419º C.Civil).
II - Não é possível constituir e adquirir por usucapião, através de decisão judicial, uma parcela de edifício para agregar a uma fração existente, já que isso imporia a alteração do título constitutivo da propriedade horizontal alteração que só é possível por acordo de todos os condóminos e formalizada nos modos legais, não podendo o tribunal impor a terceiros nem aos Condóminos uma decisão que a todos atinge, quando os condóminos e o Município não são sequer partes na ação.

Texto Integral

AP 10210/23.7T8PRT.P1
Sumário
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ACORDAM OS JUIZES DA 3ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

A..., Lda, AA, BB, CC, DD, E EE, demandaram FF, peticionando:
a) Que se declare que os Autores são os proprietários do prédio urbano destinado a habitação, sendo constituído por três pavimentos, com uma área total de 113 m2, sito no Largo ..., e Avenida ..., ..., Cód. Postal ..., da União das Freguesias ... e ..., Vila Nova de Gaia, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, sob a ficha n.º ..., sem licença de utilização, sendo de construção anterior à entrada em vigor do Regulamento Geral das Edificações Urbanas e inscrito na matriz predial urbana com o artigo n.º ... da União das Freguesias ... e ..., Vila Nova de Gaia;
b) Que se declare que desse mencionado prédio faz parte o espaço com a área de 6,5 metros quadrados identificado na planta anexa e identificada no art. 27º da petição inicial;
c) Que se declare que a Ré vem ocupando o espaço com a área de 6,5 metros quadrados identificado na planta anexa e identificada no art. 27º da petição inicial;
d) Que se declare que essa ocupação que a Ré vem fazendo desse sobredito espaço com a área 6,5 metros quadrados é ilegítima e abusiva e ocorre sem o consentimento e contra a vontade dos Autores.
e) A condenação da Ré a restituir aos Autores a identificada parte do prédio dos Autores, com a área de 6,5 metros quadrados, identificada na planta anexa e identificada no art.º 27 da petição inicial, livre e devoluta de pessoas e bens, conforme a mesma se encontrava antes da ilícita ocupação levada a cabo pela Ré, sem consentimento e contra a vontade dos Autores;
f) A condenação da Ré a pagar uma quantia pecuniária aos Autores por cada dia de atraso na entrega do espaço, no valor de €100,00/dia nos termos do art. 829.º-A, a título de sanção pecuniária compulsória e até efetiva entrega do espaço aqui reclamado;
g) A condenação da Ré no pagamento de uma indemnização aos Autores, pelos danos patrimoniais causados nos seguintes valores:
i) No valor de €1.200,00 anuais, desde a data interpelação (26.01.2018) para entregar o espaço até à data da citação para a presente ação.
ii) No valor de €1.000,00/mês, contados desde a citação até à entrega do espaço livre e devoluto de pessoas e bens;
Alegam, em síntese, que adquiriram, por compra, o prédio urbano descrito na CRP de Vila Nova de Gaia, sob a ficha n.º ..., e inscrito na matriz predial urbana com o artigo n.º ..., da União das Freguesias ... e ..., Vila Nova de Gaia, sito no Largo ... e Avenida ... n.ºs ..., ..., ..., na referida união de freguesias.
Articularam o trato sucessivo e a aquisição do mesmo direito de propriedade fundada na usucapião.
Sustentam que sem qualquer título a Ré ocupa uma área do rés de chão do prédio dos AA de aproximadamente de 6,5m2.
A Ré contestou e deduziu reconvenção peticionando:
a) Que se declare que a Ré é proprietária da fração “B” do prédio urbano afeto ao regime de propriedade horizontal, descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial sob o n.º ..., ..., inscrito na matriz sob o artigo ..., da qual faz parte integrante a dependência com aproximadamente 6,5m2, à qual se acede só através da fração, pelo n.º ...;
b) A condenação dos Autores a reconhecerem e a respeitarem esse direito de propriedade e a absterem-se da prática de qualquer ato que colida ou afete esse direito;
c) Subsidiariamente, que se reconheça que o contrato de arrendamento de 1949, que abrange todo o rés-do-chão formado não só pela loja do prédio com entrada pelo n.º ... como também pela dependência questionada, que é um anexo e parte integrante da mesma loja, com a qual comunica interiormente, a qual apenas passou a poder ser acedida através do prédio da Ré (fração “B”), pelo n.º ..., se mantém válido e vigente quanto a esta dependência ou espaço e tendo a Ré como inquilina e os Autores como senhorios, devendo fixar-se o valor de renda mensal a pagar no valor correspondente estando em vigência o contrato de arrendamento relativo e correspondente e proporcional que caberá à área de 6,5m2 relativamente à área total (que corresponde à soma da área do anexo, com a que consta da descrição e inscrição da fração “B”);
Sustenta-se a sua pretensão na posição de inquilina da respetiva dependência mercê de contrato de arrendamento que vinha de há mais de 60 anos relativo a parte do prédio (...) que por ser contíguo ao dos AA passou a ter acesso exclusivo à referida dependência pelo interior reclamando aqui a existência de posse conducente à usucapião articulando existir uma configuração real do imóvel diversa da que consta do titulo constitutivo da propriedade horizontal.
Os AA apresentaram réplica.
A final foi proferida sentença que decidiu:
a) Declarar que os Autores são os proprietários do prédio urbano destinado a habitação, sendo constituído por edifício de três pavimentos, com uma área total de 113 m2, sito no Largo ... e Avenida ..., ..., Cód. Postal ..., da União das Freguesias ... e ..., Vila Nova de Gaia, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, sob a ficha n.º ... e inscrito na matriz predial urbana com o artigo n.º ... da União das Freguesias ... e ..., Vila Nova de Gaia;
b) Declarar que do prédio identificado na anterior alínea faz parte o espaço com a área de 6,5 metros quadrados identificado na planta identificada no art. 27º da petição inicial;
c) Declarar que a Ré vem ocupando o espaço com a área de 6,5 metros quadrados identificada na planta anexa e identificada no art. 27 da petição inicial, de forma ilegítima e contra a vontade dos Autores;
d) Condenar a Ré a restituir aos Autores a área de 6,5 metros quadrados, identificada na planta anexa e identificada no art. 27º da petição inicial, livre e devoluta de pessoas e bens;
e) Absolver, no mais, a Ré do pedido;
f) Julgar improcedente a reconvenção deduzida e, em consequência, absolver os Autores dos pedidos formulados;
DESTA SENTENÇA APELOU A RÉ QUE FORMULOU AS SEGUINTES CONCLUSÕES:
Impugnação da matéria de facto:
São os seguintes factos dados como provados que deveriam ter sido dados como não provados: 11, 12, 13, 15, 16, 37
São os seguintes factos dados como não provados que deveriam ter sido dados como provados: c), j), k), l), m), n), o), p), q), r), s), t), u), v), w), x), y), z), aa), bb), cc), dd), ee), ff), gg), hh),
7. Estes concretos pontos da matéria de facto que tinham sido dados como não provados, encontram-se incorretamente julgados e ao contrário do decidido devem, respetivamente ser julgados como não provados e provados
Outros factos deveriam ter sido dados como provados, a que a sentença não faz qualquer referência e que são importantes para a decisão da causa:
A) Em três de julho de dois mil e sete, GG, por si e na qualidade de procurador de HH, II e JJ, prometeram vender à Autora A..., Lda., pelo preço de € 700.000,00, tendo logo recebido desta, nesse ato, a título de sinal e princípio de pagamento a verba de € 200.000,00 (duzentos mil euros), o prédio urbano composto de casa de três pavimentos, sito no Largo ... e Avenida ... n.ºs ..., ..., ..., freguesia ..., concelho de Vila Nova de Gaia, inscrito na matriz sob o artigo ..., com (…) (cfr. documento cópia de contrato promessa de compra e venda, junto pelos Autores através de requerimento de 23.04.2024)
B) No referido contrato promessa de compra e venda declararam os aí promitentes vendedores que: “se encontra no Largo ..., com entrada pelo n.º ..., 2.º andar esquerdo, do sobredito imóvel, a Senhora D. KK, a título de mero favor e tolerância”
C) Que “O piso térreo sito no Largo ..., com entrada pelo n.ºs... a ..., e Avenida ... n.ºs ..., ..., ..., e ainda o primeiro andar com entrada pelo n.º ... do Largo ..., encontra-se arrendado à empresa B... Unipessoal, Lda, NIPC ... e o primeiro piso encontra-se arrendado à empresa C..., Limitada, NIPC ..., que se comprometem, cada uma delas, em documento autónomo a restituir o local arrendado até ../../2007, sem qualquer contrapartida, renunciando a toda e qualquer indemnização ou compensação a que pudesse eventualmente ter direito, sob pena de ocorrer redução do preço do negócio prometido em 50%, a título de cláusula penal”
D) Do referido contrato promessa, nem do contrato definitivo consta qualquer declaração no sentido de dizer que a dependência com entrada pelo n.º ... se encontra ocupada (fosse a que título fosse) pela Ré
E) Não tendo sido feita qualquer reserva ou salvaguarda pelos Promitentes Vendedores da referida situação, por forma a poder obviar a que a Promitente Compradora fizesse operar a cláusula penal obtendo aí uma redução do preço do negócio prometido em 50%, ou seja, em vez de pagar € 700.000,00 pudesse pagar € 350.000,00
F) O contrato prometido concretizou-se, tendo os vendedores recebido o preço integral de € 700.000,00 (setecentos mil euros), sem que tenha havido qualquer redução do preço do negócio.
(…)
A sentença decidiu mal ao concluir que (…) “tem de considerar os Autores como titulares do direito de propriedade sobre o imóvel reivindicado, no que se inclui a área de cerca de 6,5m2 e a porta com o número de polícia ...“
17. Ora esta leitura da decisão recorrida vai contra a própria leitura a fazer-se do pedido reconvencional:
a) Que se declare que a Ré é proprietária da fração “B” do prédio urbano afeto ao regime de propriedade horizontal, descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial sob o n.º ..., (…),da qual faz parte integrante a dependência com aproximadamente 6,5m2, à qual se acede só através da fração, pelo n.º ...;
b) A condenação dos Autores a reconhecerem e a respeitarem esse direito de propriedade e a absterem-se da prática de qualquer ato que colida ou afete esse direito;
18. Ou seja, é claro que a Ré pede que a dependência seja considerada como sendo ou fazendo parte integrante da fração “B” do prédio ...
19. Como tal, o reconhecimento do direito de propriedade da Ré sobre a concreta área de 6,5m2 é-o no sentido de integrar a dependência na fração autónoma de que é proprietária, ou seja, em prédio com propriedade horizontal constituída.
20. E se passa a fazer parte integrante de fração autónoma “B” do prédio ..., não existe no prédio ....
21. Pelo que é o pedido legalmente admissível
22. Pelo que não deve a decisão manter-se
(…)
27. E a prova efetuada da aquisição pela Ré do direito de propriedade, fundada em usucapião, da dependência de 6,5m2, encontrando-se a mesma integrada na fração “B” do imóvel ..., resulta da análise conjugada da prova testemunhal produzida em audiência, e dos documentos juntos aos autos pelas partes.
28. Na prova documental, importam os documentos juntos com a contestação e reconvenção e com os requerimentos de 29.02.2024 e contrato-promessa anexo ao requerimento apresentado em 23.04.2024 e a escritura de compra e venda anexo ao requerimento apresentado em 20.05.2024
29. A convicção da Ré e Reconvinte de ter feito prova da aquisição do direito de propriedade, fundada em usucapião, da dependência de 6,5m2, encontrando-se a mesma integrada na fração “B” do imóvel ... resulta precisamente do depoimento das testemunhas dos Autores LL (…) e GG e do depoimento das testemunhas da Ré MM (…) e NN(…) concatenados com o teor dos documentos: (…)
(…)
55. Ora, nem do contrato promessa, nem do contrato definitivo consta qualquer declaração no sentido de dizer que a dependência com entrada pelo n.º ... se encontra ocupada (fosse a que título fosse) pela Ré
56. Tal contrato promessa de compra e venda institui uma série de ressalvas e obrigações para os promitentes vendedores que, se não se encontrassem cumpridas à data da venda implicariam uma drástica redução do valor do negócio (em 50% do seu preço).
57. Na referida data, o prédio ..., como aliás resulta da matéria dada como provada, não tinha fisicamente a dependência de 6,5m2 em causa, pelo que, caso as partes entendessem que tal dependência era parte integrante do prédio em negociação, não contemplassem numa ressalva no negócio (fosse no contrato promessa, fosse na escritura) que tal dependência se encontrava ocupada por terceiro.
(…)
59. Contrariamente ao afirmado na sentença recorrida, além do pagamento e recebimento de renda do estabelecimento, que abrangia a referida dependência, o que não podia conferir à Ré qualquer convicção quanto à propriedade do mesmo, demonstrou-se através do depoimento da testemunha MM (…), que a Ré estava convicta, convicção criada pela referida testemunha à Ré que estava a comprar a este, quando comprou a fração “B” do prédio ..., um prédio com a configuração material e fática e a área correspondentes à Fração “B” e a da dependência em causa, com os seus específicos limites.
60. A Ré, por si e seus antepossuidores nos últimos 5, 10, 15, 20 ou 25 anos, tem exercido poder de atuação sobre a identificada dependência, praticando todos os atos e agindo por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade na dependência sobre a qual exercem e sempre exerceram o seu poder de facto.
61.Praticando a Ré, por si e seus antepossuidores reiterada e ininterruptamente de forma pública, pacífica os atos materiais referidos.
62. Face à prova produzida terá de se concluir que a Ré e Reconvinte tem o direito de pedir que se declare que a Ré é proprietária da fração “B” do prédio urbano afeto ao regime da propriedade horizontal, descritona1.ªConservatória do registo Predial sob o n.º ..., ..., inscrito na matriz sob o artigo ..., da qual faz parte integrante a dependência com aproximadamente 6,5m2, à qual se acede só através da fração, pelo n.º ...
63. E a condenação dos Autores a reconhecerem e a respeitarem esse direito de propriedade e a absterem-se da prática de qualquer ato que colida ou afete esse direito.
(…)
66. Pois como resultará da reapreciação da prova, foi provada a aquisição do direito de propriedade da dependência em causa por usucapião
67. A decisão recorrida violou, por manifesto erro de interpretação e aplicação o disposto nos artigos 1287.º, 1288.º e 1269.º, todos do CC, devendo ser revogada e substituída por outra que, dando como provada a aquisição pela Ré do direito de propriedade, fundada em usucapião, da dependência de 6,5m2, encontrando-se a mesma integrada na fração “B” do imóvel ... justifica que devam os Autores ser condenados a que se declare que a Ré é proprietária da fração “B” do prédio urbano afeto ao regime de propriedade horizontal, descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial sob o n.º ..., ..., inscrito na matriz sob o artigo ..., da qual faz parte integrante a dependência com aproximadamente 6,5m2, à qual se acede só através da fração, pelo n.º ...; e a reconhecerem e a respeitarem esse direito de propriedade e a absterem-se da prática de qualquer ato que colida ou afete esse direito; e ainda que seja a Ré absolvida dos pedidos por não provados.
Responderam os AA a sustentar a inadmissibilidade do recurso de impugnação de facto por inobservância dos requisitos e em qualquer caso o acerto da sentença recorrida.

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Nada obsta ao mérito.
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O OBJETO DO RECURSO
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, ressalvadas as matérias que sejam de conhecimento oficioso (artigos 635º, n.º 3, e 639º, n.ºs 1 e 2, do código de processo civil).
Atentas as conclusões da recorrente as questões a decidir são as seguintes:
1- Recurso de impugnação da matéria de facto. Requisitos.
2- Direito de propriedade. Usucapião. Propriedade horizontal. Título constitutivo. Modificação. Requisitos.
O MÉRITO DO RECURSO:
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:
Dos factos convocados na sentença elencam-se por ordem cronológica mas respeitando a numeração da sentença para uma mais fácil leitura apenas os que relevam à apreciação do recurso:
1) Na 1ª CRP de Vila Nova de Gaia, sob o nº ..., da freguesia ..., está descrito no livro n.º ... do Livro n.º ..., e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo n.º ... da freguesia ..., o prédio urbano situado no Largo ... e Avenida ... n.ºs ..., ..., ..., composto de casa de três pavimentos com a área de 113 m2.
9) Pela Ap. ... OO registou a aquisição da propriedade do imóvel referido em 1 por doação de MM, casado com PP, na comunhão de adquiridos.
8)Pela Ap. ... foi registada a aquisição do direito de propriedade, por doação, a favor de MM
6) e 7) Pela Ap. ... GG, II e HH, registaram a aquisição do identificado prédio a MM por compra e venda, outorgada em 13 de julho 2001.
5)Por escritura outorgada em 5 de junho de 2008 GG, II e marido, JJ, e HH, declararam vender à primeira Autora o imóvel identificado no facto 1º
2)Pela Ap. ... de 29.05.2008 foi levada ao registo predial, a título provisório e convertido em definitivo pela Ap. ... de 20.06.2008, a aquisição, por compra, do direito de propriedade, do referido imóvel a favor da primeira Autora, A..., Lda .
3) Pela Ap. ... de 5.04.2022 foi levada ao registo predial, a aquisição, por compra à primeira Autora, a favor dos segunda a quinta Réus, das seguintes quotas-parte do direito de propriedade nas seguintes proporções:
a) AA, na proporção de 2.500/10.000;
b) BB, na proporção de 625/10.000;
c) CC, na proporção de 625/10.000;
d) DD, na proporção de 625/10.000;
e) EE, na proporção de 2.500/10.000;
4) Pela Ap. ... de 3.05.2023 foi levada ao registo predial a aquisição, por compra à primeira Autora, das quotas-parte do direito de propriedade nas seguintes proporções:
a) AA, na proporção de 209/10.000;
b) BB, na proporção de 208/10.000;
c) CC, na proporção de 208/10.000;
d) DD, na proporção de 208/10.000;
e) EE, na proporção de 833/10.000;
12) Os AA, por si e seus antepossuidores, têm sobre a totalidade do prédio a convicção de que se trata de coisa sua, na certeza e convicção de que não lesam direito alheio;
14) Os Autores vêm pagando taxas e impostos relativamente ao mencionado prédio;
15) Os Autores e seus antepossuidores mantiveram parte do aludido imóvel arrendado, recebendo, pelo menos até 2001, as rendas dos inquilinos respetivos;
23) e 24) MM, adquiriu por doação, com reserva de usufruto a favor de MM a propriedade do imóvel descrito sob o n.º ... que registou pela Ap. ...;
25) Pela Ap. ... de 25.01.2012 foi levado ao registo o cancelamento do usufruto identificado no facto anterior.
20) Por escritura pública outorgada no dia 26.01.2015, aquele MM constituiu em propriedade horizontal o prédio urbano constituído por três pisos, sito na Avenida ..., ..., da União das Freguesias ... e ..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ..., da freguesia ....
17 e 21)Por via dessa constituição de propriedade horizontal conforme registo da CRP o aludido prédio passou a ser constituído por frações autónomas, e, nomeadamente, pela fração “B” composta por ”restaurante no rés-do-chão direito com entrada pelo n.º ... da referida Avenida ..., compreendendo, uma zona ampla destinada à permanência do público, wc para apoio dos clientes do sexo masculino, wc para apoio dos clientes do sexo feminino, cozinha e una área compartimentada, no primeiro andar posterior, destinada a arrumos com trinta e oito virgula quarenta metros quadrados de área aberta. Possui setenta e três vírgula cinquenta metros quadrados de área coberta é-lhe atribuída a percentagem de vinte e sete vírgula oitenta e quatro por cento do valor total do prédio, à qual atribui o valor de trinta mil trezentos e noventa e oito euros e cinquenta cêntimos”
22) Segundo a escritura de constituição da propriedade horizontal, as zonas comuns às aludidas frações autónomas são as seguintes:
“um) Às frações "A" e, "B" - o hall. de distribuição no primeiro andar posterior, de acesso às áreas destinadas a arrumos destas frações, com quatro virgula quarenta metros quadrados d área coberta.
dois) Às frações "C" e "D" - a entrada pelo nº .... daquela Avenida ...; a escada interior de comunicação vertical com treze metros quadrados de área coberta no rés-do-chão, onze vírgula setenta metros quadrados no primeiro andar, treze metros quadrados no segundo andar e tudo o previsto no artigo 1.421 do Código Civil e demais legislação aplicável em vigor.” (cfr. teor do documento a que se alude no facto 20º);
18) Pela Ap. ... de 21.03.2016 a Ré registou a aquisição por compra a MM, do direito de propriedade sobre tal fração.
19) Tal aquisição foi titulada por escritura pública de compra e venda outorgada no dia 16. 03. 2016.
26)Os prédios identificados nos factos 1º e 17º/23º são contíguos.
28) Antes de 1949, o QQ, proprietário de ambos os prédios descritos nos autos arrendou a área correspondente à atual fração autónoma designada pela letra “B” para aí ser explorado um estabelecimento comercial;
29) O referido QQ, nessa qualidade de único proprietário de ambos os referidos prédios, autorizou que a então arrendatária, procedesse à demolição parcial da parede que separa o prédio descrito no facto 1º do prédio e correspondente à atual fração descrita no facto 17º, na parte encimada por um arco em pedra, e construiu uma nova parede no interior do prédio descrito no facto 1º, permitindo a ocupação de uma área vedada, com área de utilização de cerca de 6,5m2, prolongada para o interior do prédio descrito no facto 1º;
61 Tendo o posterior trespasse e arrendamento do estabelecimento abrangido todo o rés-do-chão formado não só pela loja do prédio n.º ... (hoje ...) como também pela dependência questionada que é um anexo situado dentro dos limites do prédio contíguo n.º .../..., pertencente ao mesmo dono QQ.
30 Ficando desde então tal dependência anexada à loja do estabelecimento instalado na área correspondente à fração autónoma designada pela letra “B”, passando o seu arrendatário a sê-lo do conjunto comercial constituído por estas duas dependências,
31) Passando, desde então, os sucessivos arrendatários do estabelecimento a que atualmente corresponde a fração “B” a ocupar essa área de 6,5m2 prolongada para o interior do prédio identificado no facto 1º, nos termos a que se alude no facto anterior;
44) E era essa a realidade física do estabelecimento, quando em 2015, MM o constituiu em propriedade horizontal;
45) E quando, em 16.03.2016, a Ré adquiriu a MM a fração “B” do prédio;
32) Essa área de 6,5m2 é constituída pelo espaço assinalado a carmim na planta anexa como documento n.º 8 anexo à petição inicial, localizada no rés-do-chão, com entrada pelo n.º ... da Avenida ...;
33) A. Ré acede a esse espaço de cerca de 6,5m2 através da fração autónoma designada pela letra “B”;
34) Sendo esse o único acesso à mesma;
35) Esse espaço de cerca de 6,5m2 serve de pequeno bar de apoio ao estabelecimento de restaurante instalado na aludida fração “B”;
36) Esse estabelecimento de restaurante, denominado “D...”, é explorado pela Ré;
46) A Ré, e antes dela o seu marido, enquanto manteve a qualidade de arrendatária, sempre, apenas e só pagou a renda a MM (…), e pelo menos desde 2012 a MM;
51) A Ré, desde 27.01.1982, e os anteriores arrendatários, nessa qualidade, aproveitaram todas as utilidades daquela dependência de 6,5m2, servindo-se dela para o comércio e nela efetuando obras de conservação e benfeitorias;
49) O referido MM, pelo menos desde 2012, pagou taxas e impostos sobre o prédio descrito sob o nº ...;
38) A Ré nunca efetuou qualquer tipo de contraprestação aos Autores por essa utilização da dependência com a área de 6,5 m2;
39) A primeira Autora comunicou à Ré a sua pretensão de obter a restituição dessa área de 6,5 m2, interpelando-a por carta registada com aviso de receção datada de 19.06.2018, que a Ré recebeu em 26.06.2018 para que esta desocupasse o referido espaço de 6,5 m2 e o restituísse aos Autores, livre e devoluta de pessoas e bens
Factos declarados não provados
(…)
A dependência de 6,5m2 tornou-se, em 1949, parte integrante do rés-do-chão hoje fração “B”;
k)Passando, desde tal data, a realidade material do prédio descrito sob o nº ... a incluir a referida dependência de aproximadamente 6,5m2, anexada ao rés-do-chão do prédio com entrada pelo n.º ..., que nessa configuração, composição, descrição e área corresponde à atual fração “B” do identificado prédio;
l)O ante proprietário dos prédios descritos sob os artigos ... e ..., QQ, então na qualidade de proprietário, ao ter atuado como descrito nos factos 29º e 30º, quis alterar e alterou efetivamente e de facto a configuração, composição, descrição e área quer do prédio descrito sob o nº ..., quer do prédio descrito sob o n.º ...;
m)O mesmo sucedendo em todas as transmissões subsequentes do direito de propriedade sobre os prédios descritos sob o n.º ... e ..., sem que tenha existido nunca qualquer oposição;
n)O MM recebeu reclamações dos arrendatários e deu resposta às mesmas;
o)O MM e, antes dele, MM, a partir de 2001, pagou taxas e impostos sobre o prédio descrito sob o nº ... com a sua atual configuração;
p)O MM e, antes dele, MM, a partir de 2001, em relação à área de 6,5m2; atuaram como sendo a coisa sua, na certeza e convicção de não lesar direito alheio;
q)Sem oposição de quem quer que fosse;
r)Em 2015, aquando da constituição da propriedade horizontal do prédio em que se integra a fração “B”, o prédio descrito sob o nº ..., (…) apresentava uma realidade física de configuração diversa e uma área superior em aproximadamente 6,5m2 relativamente às configurações e áreas descritas e inscritas, quer no título de constituição de propriedade horizontal, relativamente à fração “B”
s)O mesmo sucedendo com a escritura de compra e venda da fração “B”, que apresenta uma realidade física de uma área superior em 6,5m2 àquela que consta da mesma consta;
t) A planta que instruiu a constituição da propriedade horizontal, representa a dependência de cerca de 6,5m2 que se encontra integrada na fração “B” separada desta por um muro que na realidade não existe.
u)Em 1951, o prédio descrito sob o n.º ... e do então proprietário QQ, quando vendido a MM e mulher não tinha a configuração nem a área constante da descrição do prédio;
v)Em 1997 e 2001, esse mesmo prédio não tinha a configuração nem a área constante da descrição do prédio n.º ..., cuja sua realidade material, física e fática apresenta uma configuração diversa e uma área inferior em aproximadamente 6,5m2 relativamente às configurações e áreas descritas e inscritas,
w)A Ré, deu de arrendamento e recebeu rendas daquela dependência de 6,5m2;
x)A Ré usou a dependência como se coisa sua se tratasse, convicta de que exercia e exerce um direito próprio, como sua dona e proprietária, o que fez à vista de todos, com conhecimento geral e publicamente e de forma ininterrupta;
y)Praticando todos os atos e agindo por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade sobre aquela dependência de 6,5m2;
z)E sem qualquer oposição de quem quer que seja;
aa)Nunca ninguém, até 21 de junho 2018, colocou em causa a posse ou a propriedade sobre aquela dependência;
bb)O n.º ... da Avenida ... deixou de existir, tendo perdido a sua autonomia, tendo passado a ser parte integrante da fração autónoma designada pela letra “B”, correspondente ao R/C direito, com entrada pelo n.º ... do prédio urbano, da União das Freguesias ... e ..., concelho de Vila Nova de Gaia, descrito na Conservatória do registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o n.º ......;
cc) A realidade física dos prédios, a sua configuração, composição, descrição e área dos prédios descritos sob o n.º ... e ..., resultantes da alteração de facto referida, manteve-se e mantêm inalteradas desde 1949;
dd) E o mesmo sucedeu em todas as transmissões subsequentes do direito de propriedade sobre os prédios descritos sob o n.º ... e ...;
ee) A Ré, quando em 16.3.2016 comprou a MM, a fração “B” do prédio descrito sob o nº ..., entretanto constituído em propriedade horizontal por esse MM, comprou a fração correspondente ao restaurante com entrada pelo n.º ... do referido prédio, que era a que por si vinha detendo e pelos anteriores detentores vinham detendo (com a abrangência do arrendamento vigente de 1949), na qualidade de inquilina,
ff) Tendo sido a fração “B” correspondente a essa realidade fática e física que a Ré comprou e quis comprar, ou seja, com a configuração e a área superior correspondentes com a integração da dependência de aproximadamente 6,5m2, que naquela fração se encontra anexa e integrada fática, física e materialmente, dela fazendo parte.
gg) A Ré, por si e seus antepossuidores nos últimos 5, 10, 15, 20 ou 25 anos, tem exercido poder de atuação sobre a referida dependência, praticando todos os atos e agindo por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade na dependência sobre a qual exercem e sempre exerceram o seu poder de facto;
hh) Praticando a Ré por si e seus antepossuidores reiterada e ininterruptamente de forma pública, pacífica os atos materiais a que se alude no facto anterior;
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO:
I
A impugnação da matéria de facto.
Nesta sede, relembramos que a impugnação da matéria de facto só deve ser apreciada se da mesma se puder retirar consequência jurídica passível de alterar o decidido e no caso da sentença proferida.
Abrantes Geraldes, in “Recursos em Processo Civil, Novo Regime”, 2ª edição, 2008, pág. 297-298 a este respeito refere que: “a Relação deve (…) abster-se de conhecer da impugnação da decisão da matéria de facto quando os factos impugnados não interfiram de modo algum com a solução do caso, designadamente por não se visionar qualquer solução plausível da questão de direito que esteja dependente da modificação que o recorrente pretende operar no leque de factos provados ou não provados.”
É também este o entendimento uniforme da jurisprudência dos tribunais superiores, neste sentido, por todos, AC STJ de 17.05.2017, relator FERNANDA ISABEL PEREIRA, AC RC de 27.05.2014, relator MOREIRA do CARMO, AC RP de 19.05.2014, relator CARLOS GIL, AC RP de 7.05.2012, relator ANABELA CALAFATE e AC RC de 24.04.2012, relator A. BEÇA PEREIRA, TRG de 9.04.2015 (ANA CRISTINA DUARTE), 4649/11.8TBBRG.G; e deste Tribunal da Relação de 24-02-2022 (deste Coletivo de Juízes) 276/20.7T8AVR-A.P1, e 15.12.2021(JORGE SEABRA) pr 1442/20.0T8VNG.P1 todos disponíveis in www.dgsi.pt
Isto posto, sem cuidar dos pontos de facto que pela sua redação constituem asserções conclusivas e de direito, algumas até contraditórias, entre si e das regras do ónus da prova, a verdade é que o conhecimento da impugnação de facto neste recurso, esbarra com a inviabilidade jurídica da pretensão deduzida pela recorrente e por conseguinte na irrelevância jurídico-processual de tais asserções.
I.1
Com efeito, a presente ação é de reivindicação.
Funda-se na titularidade do direito de propriedade e situação de desconformidade na relação do proprietário com a coisa, a que a entrega deve pôr termo. Por outras palavras a causa de pedir é integrada: pelo direito de propriedade do reivindicante sobre a coisa reivindicada; e, pela violação desse direito pelo reivindicado (possuidor ou mero detentor da coisa reivindicada), por todos Acórdãos, do TRG de 09-03-2017 JOÃO DIOGO RODRIGUES 536/11.8TBPTL.G1, e do TRL16-05-2023 JOSÉ CAPACETE 14782/22.5T8LSB.L1-7, ambos in dgsi.
I.1.1
Por seu turno, na contestação/ reconvenção a Ré invoca a seu favor o direito de propriedade sobre a fração autónoma designada pela letra “B” correspondente ao R/C direito, com entrada pelo n.º ... do prédio urbano descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o n.º ..., que adquiriu por compra a MM, em 16.3.2016, prédio este contíguo ao prédio dos AA.
Mais, invoca a relação de arrendamento que detinha com os proprietários dos dois prédios (.../ (…) e .../(…) a qual por vontade dos antecessores desde tempos imemoriais, teve como objeto não só o espaço que hoje constitui a fração B mas ainda a dependência falada nos autos e aqui discutida, a qual foi anexada à mesma passando a ser acedida apenas pelo interior tendo-se tornado parte integrante do rés-do-chão, hoje fração “B”, propriedade da Ré, (&120 e seguintes da contestação).
Que com a extensão do contrato de arrendamento à referida dependência nos referidos termos por vontade do anterior proprietário, este, quis alterar e alterou efetivamente e de facto, a configuração, composição, descrição e área quer do prédio descrito sob o nº ..., quer do prédio descrito sob o n.º ...
Mais afirma que em 2015, aquando da constituição da propriedade horizontal do prédio em que se integra a fração “B” da Ré, o prédio do então proprietário MM, não tinha a configuração nem a área constante quer da descrição do prédio e concretamente da fração “B”, pois na realidade apresenta uma realidade física de configuração diversa e uma área superior em aproximadamente 6,5m2 relativamente às configurações e áreas descritas e inscritas, quer no título de constituição de propriedade horizontal, relativamente à fração “B”, (& 146 e &147).
Que relativamente à escritura de compra e venda da fração “B”, que apresenta uma realidade física de uma área superior em 6,5m2 àquela que consta da escritura (& 148).
Assim como se apresenta em divergência com a realidade fática a representação feita na planta que instruiu a constituição da propriedade horizontal, isto porque representa a dependência de cerca de 6,5m2 que se encontra integrada na fração “B” e da qual faz parte integrante, separada por um muro da fração “B”,muro esse que na realidade não existe, pois na referida dependência funciona a parte do restaurante afeta a bar.
Tudo isto, e não obstante (reconhecer que a posse da dependência era titulada por contrato de arrendamento- “Da qual a Ré foi, na qualidade de inquilina, detentora até 16.3.2016 “(&126) vem (!!!) descoladamente de tal alegação invocar ainda factos alegadamente tendentes a demonstrar que tal posse foi exercida com o animus de proprietário, para daqui retirar a usucapião.
Esta articulação factual está traduzida no essencial nos factos não provados e impugnados conforme (c), j), k), l), m), n), o), p), q), r), s), t), u), v), w), x), y), z), aa), bb), cc), dd), ee), ff), gg), hh).
No pedido reconvencional requer que:
Seja declarado que a Ré, é a legítima e exclusiva dona e proprietária da fração “B” do prédio urbano afeto ao regime de propriedade horizontal, descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial sob o n.º ..., ..., inscrito na matriz sob o artigo ..., da qual faz parte integrante a dependência com aproximadamente 6,5m2, à qual se acede só através da fração, pelo n.º ....
Esta pretensão é a reclamada no recurso interposto e reclamada na conclusão 67. ao se requerer (…) “devendo ser revogada e substituída por outra que, dando como provada a aquisição pela Ré do direito de propriedade, fundada em usucapião, da dependência de 6,5m2, encontrando-se a mesma integrada na fração “B” do imóvel ... justifica que devam os Autores ser condenados a que se declare que a Ré é proprietária da fração “B” do prédio urbano afeto ao regime de propriedade horizontal, descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial sob o n.º ..., ..., inscrito na matriz sob o artigo ..., da qual faz parte integrante a dependência com aproximadamente 6,5m2, à qual se acede só através da fração, pelo n.º ...; e a reconhecerem e a respeitarem esse direito de propriedade e a absterem-se da prática de qualquer ato que colida ou afete esse direito; e ainda que seja a Ré absolvida dos pedidos por não provados”
II
Em face de tais balizas factuais e jurídico-processuais e como questão prévia à impugnação de facto, consigna-se que, desde logo, é pretensão manifestamente improcedente porquanto inadmissível, a segunda parte deste pedido, a saber: “(...) da qual faz parte integrante a dependência com aproximadamente 6,5m2, à qual se acede só através da fração, pelo n.º ...” .
Com efeito, a pretensão da recorrente substanciada nos factos provados (17/21, 22, 18 e 19), convoca a aplicação do regime legal em vigor quanto ao direito de propriedade horizontal, este, que compreende poderes diversos, constituindo porém o seu conjunto um todo incindível, no qual se destacam os poderes que incidem sobre a fração autónoma que pertence a cada condómino e os que incidem sobre as partes comuns (daqui que não seja possível alienar separadamente qualquer um destes direitos ou renunciar ao direito às partes comuns para libertar dos correspondentes encargos).
III
Na verdade, a constituição da propriedade horizontal exige que do título constitutivo qualquer que ele seja, conste a especificação das partes correspondentes às várias frações por forma a que estas fiquem devidamente individualizadas e a fixação do valor relativo de cada fração, expresso na percentagem ou permilagem do valor total do prédio (artigo 1418º do CC).
Estas exigências obrigatórias impõem (i) a indicação das caraterísticas físicas de cada fração autónima o que envolve não só a referência à sua localização no prédio (numero e lado do andar, por exemplo) mas também uma descrição sumária da sua composição (numero de divisões e seu tipo).
A individualização das frações faz-se pela atribuição de uma letra diferente a cada uma delas, sendo que a indicação do seu valor em relação ao valor total do prédio, é aspeto relevante pois funciona como critério definidor de vários direitos e deveres dos condóminos. A lei manda que esse valor seja expresso conforme os casos por uma percentagem ou permilagem do valor total do prédio.
Tais menções são requisitos do objeto deste direito e constituem elementos decisivos e imprescindíveis na sua caracterização (artigo 1417º nº 2 do CC).
Estas menções obrigatórias (sem prejuízo de outras facultativas) devem constar do conteúdo da inscrição registral do ato constitutivo da inscrição registral da propriedade horizontal (artigo 95º nº 1 alínea p do CRegP).
III.1
Tais requisitos de natureza administrativa e legal a que está sujeita a constituição da propriedade horizontal estendem-se à modificação do título constitutivo.
A realidade respeitante tanto às frações autónomas como às partes comuns dos edifícios em regime de propriedade horizontal deverá estar em consonância quer com os requisitos legais, quer com os que resultam das regras constantes do Cód. Civil (máxime dos arts. 1415º, 1416º e 1418º), quer com os que decorrem da legislação que regula o licenciamento da construção e da utilização que serviu de base à fixação daquele regime jurídico.
A esta luz «o tribunal não pode alterar o título constitutivo da propriedade horizontal em violação das normas legais em vigor, designadamente sem aprovação de todos os condóminos e junção de documento emanado da Câmara Municipal comprovativo de que a alteração está de acordo com as leis e regulamentos em vigor na autarquia. (FERNANDO PEREIRA RODRIGUES, in “Usucapião”, Livª Almedina, 2008, a págs. 16-17(…)
Daí que a jurisprudência tenha vindo a negar a possibilidade de alteração do título constitutivo da propriedade horizontal sublinhando expressamente que «a modificação do título apenas pode ser efetuada por acordo de todos os condóminos». [Cf., inter alia, o acórdão do STJ de 15-11-2011, GABRIEL CATARINO, 718/03.6TBPNI.L1.S1, em www.dgsi
Este debate que a jurisprudência tem vindo a fazer sobre a matéria é bem ilustrado no Ac. do STJ de 13-12-07, MÁRIO CRUZ, 07A3023 (www.dgsi.pt), em cujo sumário se expressou que: “Não pode adquirir-se a propriedade de parte física de fração autónoma de prédio constituído em propriedade horizontal antes que haja alteração do título constitutivo que autonomize essa parte física da fração da outra em que estava inserida. O Tribunal não pode alterar o título constitutivo da propriedade horizontal em violação das normas legais em vigor, designadamente, sem a aprovação de todos os condóminos e junção de documento emanado da Câmara Municipal comprovativo que a alteração está de acordo com as leis e regulamentos em vigor na autarquia, porque não pode impor a terceiros nem aos Condóminos uma decisão que a todos atinge, quando os condóminos e o Município não são sequer partes na ação”.
Na respetiva fundamentação (ao que nos interessa) sustentou-se que: “Num prédio constituído em propriedade horizontal a posição jurídica dos respetivos titulares não é a mesma que a dos proprietários de prédios a ela não sujeitos, pois existem partes próprias e partes comuns; e, mesmo nas partes próprias, existem limitações sérias ao poder de alterar o seu conteúdo e objeto.
Na verdade, na propriedade horizontal há um interesse relevante plural que se sobrepõe aos interesses individuais, sendo aquele um interesse coletivo, manifestado num título constitutivo dessa forma específica de direito real.
No direito real de propriedade horizontal a questão do domínio encontra-se repartida entre vários sujeitos, os condóminos, entrelaçando-se os interesses individuais de uns, de forma inseparável, com os interesses dos demais condóminos, através de regras próprias, sendo de destacar que não está na disponibilidade de um ou de vários deles, conseguir(em), só por si, a alteração do título de constituição desse tipo de propriedade, a menos que o título assim o tenha previsto desde o início, anteriormente à primeira alienação. (arts. 1419º e 1422º-A, nº 3).
É indispensável, portanto, que o título de constituição o permita ou a assembleia de condóminos se pronuncie e aprove as alterações sem qualquer oposição”.
IV
Ora, na propriedade horizontal, o direito de propriedade exclusiva só se pode exercer sobre frações autónomas, perfeitamente individualizadas no título constitutivo (arts. 1414.º, 1415.º, 1418.º e 1420.º do CC.), e sem prejuízo, qualquer alteração ao título constitutivo da propriedade horizontal tem de ser autorizada por todos os condóminos ou pelo menos de 2/3 (artigoas 1419º nº 1, 1422º nº 3 e 4, 1422-A e 1425º nº 1 todos do CC.
No mesmo sentido o Acórdão do TRL 2022-12-20 AMÉLIA ALVES RIBEIRO 405/20.0T8MTA.L1-7:. “Está vedado ao Tribunal alterar o título constitutivo da propriedade horizontal, área em que coexistem interesses plurais que importa ter em conta, alguns de índole coletiva, os quais se sobrepõem aos interesses individuais”.
Daqui que, não podendo a modificação do título operar senão por acordo de todos os condóminos (cf. art. 1419º C.Civil), nunca seria possível constituir e adquirir por usucapião, através de decisão judicial, uma parcela de edifício para agregar a uma fração existente, já que isso imporia a alteração do título constitutivo da propriedade horizontal alteração que só é possível por acordo de todos os condóminos e formalizada nos modos legais.
O pedido reconvencional formulado, pela ré sob a alínea a) a proceder implicaria, obviamente, a alteração ao título constitutivo da propriedade horizontal de que resultou a fração B adquirida por compra pela ré, o que nos termos expostos é manifestamente inadmissível e por esta singela razão nunca poderia proceder.
V
Acresce e, sem prejuízo, que pretendendo a ré sustentar o domínio da dependência em questão na usucapião é inarredável que: “A usucapião não constitui um instituto jurídico isolado, pois que ela não pode ser desconectada nem muito menos funcionar de forma contrária ou conflituante com outras normas que a condicionam ou impedem. II – É por assim ser que o legislador na formulação expressa no art. 1287º do C.Civil, ao definir a usucapião, previu que esta forma de aquisição originária não pode ser invocada quando exista “disposição em contrário”, sendo que este efeito impeditivo se verifica no direito do urbanismo, nas regras sobre construções e edificações ou no regime jurídico-civilístico da propriedade horizontal”. (…) JTRC 10-10-2023 LUÍS CRAVO 4634/19.1T8CBR.C in dgsi.
Daqui também a inadmissibilidade legal da invocação da usucapião como fonte geradora da “modificação” do título preexistente ou a possibilidade de a mesma poder ser declarada por via judicial.
VI
Sem prejuízo, como se acentua no JTRC 07-04-2016 SÍLVIA PIRES 421/13.9TBOHP.C1: “I. Em face do regime geral do direito de propriedade sobre imóveis, qualquer edifício incorporado no solo só pode ser objeto de um único direito de domínio, o qual abrangerá toda a construção, o solo em que esta assenta e os terrenos que lhe servem de logradouro, como se infere das regras sobre acessão industrial imobiliária e do disposto no art.º 1344º do C. Civil, numa manifestação do princípio da especialidade ou da individualização que rege os direitos reais, na vertente segundo a qual, incidindo o direito de propriedade sobre a totalidade das coisas que constituem o seu objeto, não podem as suas partes integrantes ou componentes serem objeto de direito de propriedade de titular diferente, sendo o destino jurídico da coisa unitário. II - O regime da propriedade horizontal constitui uma das exceções a este princípio, uma vez que permite que sobre o mesmo edifício de estrutura unitária se constituam distintos direitos de propriedade, com diferentes titulares, que incidem sobre frações independentes desse prédio - art.º 1414º e seg. do C. Civil. III - Daí que, tendo em consideração, por um lado, as limitações impostas pelo princípio da individualização e, por outro lado, o regime excecional da propriedade horizontal, os tribunais têm vindo a afirmar que a posse, em termos de direito de propriedade, de parte de um prédio não sujeito ao regime da propriedade horizontal, não pode determinar a aquisição por usucapião dessa parte, sem a prévia ou, pelo menos, simultânea constituição do imóvel em propriedade horizontal, a qual pode ocorrer por usucapião. IV - Embora se admita que em determinados casos a simples posse de parte de um prédio possa conduzir à constituição indireta da propriedade horizontal sobre todo o edifício, por usucapião, para que tal suceda é necessário demonstrar que dessa situação possessória resultou a divisão do prédio em frações autónomas que sejam distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública e que cumpram os requisitos para a aprovação de tal divisão pela entidade pública competente”.
VI.1
Nos termos referidos, no que que respeita à dependência aqui identificada e discutida a mesma não tendo sido incorporada no titulo constitutivo da propriedade horizontal do prédio .../(…), constitui em relação ao prédio que integra (870/(…) uma parte não individualizável e como tal incindível e insuscetível de aquisição por usucapião, também por tal razão.
Acresce finalmente e sem prejuízo, que a própria alegação da ré _ e factos provados 28, 29, 61, 30, 46 e 51) _ de que se manteve a ocupar a dependência em discussão ao abrigo de contrato de arrendamento válido e em vigor até à data da compra da fração 16.03.2016 afasta qualquer pretensão ao reconhecimento da usucapião sobre a mesma.
É que, a posse que conduz à usucapião é uma posse composta de corpus e animus este traduzido na (detenção da coisa na convicção de que é o proprietário e como proprietário). Na medida em que a ré esteve ligada à dependência em causa ao abrigo de uma relação de inquilinato até ao momento da aquisição da fração B (16.03.2016) até, pelo menos, esta data não se pode reconhecer o animus domini.
E também, sem prejuízo, logo em 26.06.2018 a ré foi notificada pelos AA para restituir esta dependência, pelo que, ainda que não se aplicasse tudo quanto antes se referiu e aplica e obsta à posse aquisitiva, não há aqui sequer que falar aqui em inversão do titulo.
VII
Do regime exposto decorre manifestamente a falta de fundamento da pretensão da recorrente e ainda, por isso mesmo, que a reapreciação da matéria de facto, seja quanto aos factos provados, seja quanto aos factos não provados, jamais pudesse conduzir a um resultado passível de alterar o decidido na primeira instância, como se afirmou supra.
Posto isto,
Como se acentuou em I, a impugnação da decisão de facto é um meio ou um instrumento que a lei adjetiva coloca funcionalmente ao dispor do Recorrente destinando-se esta a atingir a alteração do sentido decisório acolhido pelo Tribunal de 1ª instância e a consequente procedência, total ou parcial, do recurso por si interposto.
Não pode ser vista de forma autónoma e independente face ao resultado que o Recorrente visa alcançar através do recurso e, nesse contexto, desligada do quadro jurídico aplicável ao concreto litígio em causa, sendo certo que o Tribunal não visa, através da sua atividade jurisdicional, resolver dúvidas ou problemas abstratos ou teóricos, mas, de forma pragmática, resolver um concreto litígio em face das específicas regras de direito que se lhe mostrem aplicáveis.
Por conseguinte, não há lugar à reapreciação da matéria de facto, nos casos em que aquela impugnação se dirige a factualidade irrelevante para a decisão a proferir, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente ou inútil, dando-se por reproduzido o que a tal respeito vem referido em I.
Dado que, o que se pretende é que, com o resultado da impugnação de facto, a parte que impugnou passe a ter ao seu dispor elementos capazes de influenciar a decisão de mérito, modificando-a, assim logrando obter um efeito juridicamente útil ou relevante, se tal se não verifica não há qualquer utilidade naquela impugnação da matéria de facto, pois o resultado a que se chegar (provado ou não provado) é sempre o mesmo: absolutamente inócuo.
Termos em que se não conhece da impugnação da matéria de facto, por prejudicada nos termos expostos, decai totalmente a recorrente na apelação.
SEGUE DELIBERAÇÃO:
NÃO PROVIDO O RECURSO. CONFIRMADA A SENTENÇA RECORRIDA
Custas pela Recorrente.

Porto, 22 de maio, de 2025
Isoleta de Almeida Costa
Aristides Rodrigues de Almeida
Manuela Machado