I - Avaliadas as benfeitorias relacionadas em inventário para partilha de bens comuns do casal, o requerimento do interessado em que este requer a retificação das suas áreas constantes do relatório de avaliação, com o fundamento de que não correspondem às áreas reais, pode ser visto de uma dupla perspetiva: (i) como reclamação contra a inexatidão do relacionamento das benfeitorias pela cabeça de casal; (ii) como reclamação contra o próprio relatório de avaliação.
II - Enquanto reclamação, e salvo verificação de superveniência objetiva ou subjetiva, impunha-se a sua dedução, sob pena de preclusão, na fase das oposições a que alude o art.º 1104.º do CPC e não a todo o tempo, pelo que tal não tendo ocorrido, perdeu o interessado o direito de o fazer depois.
III - Como reclamação contra o relatório pericial, impunha-se, também sob pena de preclusão, e atento o disposto nos n.ºs 1 e 2 do art.º 485.º do CPC, a sua dedução no prazo de 10 dias (v. art.º 149.º do CPC) contados da sua notificação, pelo que, tal também não se tendo verificado, perdeu o interessado a possibilidade de o fazer depois.
Tribunal recorrido: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro- Juízo de Família e Menores de Santa Maria da Feira, Juiz 1
Recorrente: AA
Recorrida: BB
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1.- BB, depois de, no processo apenso, ter sido decretado, por sentença de 04-10-2022, transitada em julgado em 03-11-2022, o divórcio e, consequentemente, a dissolução do seu casamento com AA, veio requerer, em 08-05-2023, inventário para partilha dos bens comuns do extinto casal.
2.- Juntamente com o requerimento inicial, a Requerente, no pressuposto de vir a ser nomeada cabeça de casal, juntou relação de bens, relacionando, além do mais, sob a verba n.º 1, o seguinte:
.- benfeitorias realizadas na casa de habitação pertença da cabeça-de-casal, sita na Rua ..., ..., Lugar ..., ... ..., inscrita na respetiva matriz predial urbana sob o artigo n.º ..., da freguesia ... e descrita na Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira, sob o n.º ..., com o valor patrimonial de € 47.482,33, sendo que o valor das benfeitorias é de € 150.000,00.
3.- Por despacho de 25-05-2023, foi admitido o requerimento inicial e nomeada cabeça de casal, enquanto cônjuge mais velho, a Requerente BB.
4.- Citado, reclamou, em 12-09-2023, o interessado Requerido, além do mais, impugnando o valor dado pela cabeça de casal às benfeitorias relacionadas sob a verba n.º 1, invocando que o valor destas ascendia a € 215.000,00.
Mais invocou o reclamante que, das benfeitorias realizadas pelo extinto casal, resultou um imóvel com as seguintes características:
.- tipologia T6 (2 quartos com casa de banho privativa + 4 quartos + 2 casas de banho);
.- área de construção de 389,50m2 (alpendre de aparcamento: 26m2; habitação nova: 219,50; habitação reconstruída: 134m2);
.- pavimento radiante com controlo de temperatura em todas as divisões, painéis solares, bomba de calor, estores elétricos, caixilharia com corte térmico, com vidro duplo e controlo solar.
5.- Notificado, respondeu, em 16-10-2023, a cabeça de casal, batendo-se, no que às benfeitorias relacionadas diz respeito, pela manutenção do valor que lhes atribuíra na relação de bens.
6.- Pedida por ambos os interessados, em diligência realizada em 11-01-2014, a avaliação das benfeitorias relacionadas, foi tal avaliação, juntamente com os quesitos entretanto apresentados por aqueles nos seus requerimentos de 15-02-2024 (da cabeça de casal) e de 20-02-2024 (do interessado), deferida por despacho de 25-03-2024.
7.- Realizada a avaliação por perito único, foi elaborado e, em 06-05-2024, junto aos autos, o relatório pericial correspondente, concluindo que o valor atual das benfeitorias era o de € 215.000,00.
No relatório pericial foi assim descrito o imóvel objeto da avaliação:
.- conjunto imobiliário implantado numa parcela de terreno com a área de 1.250m2, ocupada por uma edificação de dois pisos (r/chão + andar), constituindo uma moradia unifamiliar;
.- construção do tipo T5, com a seguinte compartimentação em planta:
.- r/chão: quarto, quarto, sala estar, sala de jantar/cozinha, quarto de banho, wc e átrio, com a área bruta privativa de 135 m². Adoçado, lavandaria e arrumos com a área de 45 m²;
.- r/chão: 4 quartos, escritório, sala comum, cozinha, 2 quartos de banho, wc e átrio, com a área bruta privativa de 180 m².
.- no logradouro anterior e em anexo à área habitacional anteriormente descrita, ainda se pode referenciar a seguinte construção: garagem/telheiro – espaço vazado, destinado a garagem, com a área de 25 m².
8.- Frustrando-se, depois de realizada a audiência prévia, a possibilidade de solução consensual do litígio, apresentou o interessado Requerido, em 30-10-2024, requerimento pedindo:
i.- a retificação das áreas que estiveram na base da avaliação das benfeitorias, por forma a que se considerasse na avaliação as áreas reais do imóvel, em conformidade com o por si exposto no art.º 11.º do requerimento;
ii.- a junção de dois documentos (processo de licenciamento camarário e foto retirada da aplicação google earth) para prova do requerido.
9.- Respondeu a cabeça de casal, pugnando pelo indeferimento do requerido e pela condenação do requerente como litigante de má fé, em indemnização a seu favor no valor de € 500,00, a título de despesas com mandatários.
10.- O requerimento do interessado referido em 8 foi apreciado na decisão final do incidente de reclamação à relação de bens, proferida em 12-12-2024, decisão essa que, quanto àquele requerimento, foi do seguinte teor:
“(…)
A cabeça-de-casal relacionou na verba 1 da relação de bens o seguinte: “Benfeitorias realizadas na casa de habitação pertença da cabeça-de-casal, sita na (…), descrito na Conservatória de Registo Predial de Santa Maria da Feira, sob o n.º ..., com o valor patrimonial de €47.482,33, sendo que o valor das benfeitorias é de €150.000,00. Juntou dois documentos - certidão matricial e documento referente a crédito a habitação no valor de €150.000,00.”.
O interessado reclamou alegando que não corresponde à verdade que o valor das benfeitorias corresponda a €150.000,00, pela realidade física do imóvel (juntou fotos) e do projeto camarário; alega que para realização das benfeitorias foi investido dinheiro aforrado pelo casal e doado pela mãe do requerido e considerando os preços atuais, os gastos inerentes as benfeitorias têm um valor que ascende a €215.000,00.
Conforme já referido, em sede de audiência prévia, ambos os interessados requereram a realização de avaliação pericial às benfeitorias relacionados e requereram ambos prazo para apresentar os quesitos para o objeto da perícia.
Não o fizeram no prazo de 10 dias concedido, e, por despacho de 5 de fevereiro de 2024 o Tribunal repetiu a notificação aos ilustres mandatários das partes para indicarem o objeto da perícia.
O interessado reclamante apresentou quesitos para objeto da perícia no requerimento datado de 20 de fevereiro de 2024, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido por razões de economia processual, consta de tal requerimento além do mais: Qual o valor das benfeitorias realizadas no imóvel?
Por despacho datado de 25 de março de 2024 foi ordenada a realização da perícia com o objeto indicado no referido despacho, que aqui se dá por reproduzido, também por razões de economia.
O relatório pericial foi junto aos autos em 6 de maio de 2024, relatório que foi notificado as partes por ofício da mesma data.
O interessado reclamante nada requereu nos termos e para os efeitos do artigo 485.º do Código de Processo Civil, no prazo legal que dispunha para o efeito.
Porém, o interessado/reclamante veio em 30 de outubro de 2024 invocar erro nas áreas que foram tomadas em consideração na dita avaliação, erro suscetível de afetar o valor da avaliação, requerendo a retificação das áreas que estiveram na base da avaliação.
Mais requereu a junção aos autos do processo de licenciamento camarário e foto do google earth.
Cumpre apreciar.
No que diz respeito à junção dos documentos, no atual regime de inventário os interessados devem concentrar numa única peça todos os meios de defesa que considerem oportunos. Como refere referido por Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, in Código Civil Anotado, vol II, anotação ao artigo 1104.º, «Tal corresponde a um verdadeiro ónus e não a um mera faculdade, já que o decurso do prazo de 30 dias, determina, por regra, efeitos preclusivos quanto a tais iniciativas. (…), efeito preclusivo justificado por razões de celeridade e de eficácia da resposta a um conflito de interesses».
A matéria de avaliação das benfeitorias foi suscitada pelo interessado reclamante no articulado de reclamação à relação de bens, pelo que era com esse articulado que devia juntar os meios de prova referentes à reclamação; aliás, conforme consta do artigo 3.ºdo articulado de reclamação à relação de bens o reclamante já dispunha do projeto camarário, cujo print de uma das páginas até juntou com o articulado, pelo que, se não juntou com tal articulado o documento cuja junção agora requerer, não o pode fazer posteriormente, por tal junção ser manifestamente extemporânea, à luz do disposto dos artigos 1091.º, 293.º e 423.º, todos do Código de Processo Civil.
Repita-se a discordância quanto ao valor da construção foi suscitada pelo reclamante no incidente de reclamação, incidente no qual deveria ter apresentado os meios de prova para fazer valer a sua pretensão, meios que estavam ao ser dispor e já sabia serem necessários para a avaliação em causa.
A acrescer que o Tribunal concedeu as partes prazo para indicação do objeto da perícia, podendo também nesse momento o reclamante indicar a concreta área da construção sujeita a avaliação, o que não fez. Área que até já era do conhecimento do reclamante quanto mais não fosse em virtude da notificação do articulado de resposta à reclamação no qual foi junto um outro relatório de avaliação com a menção das áreas do imóvel com fonte no processo camarário (cf. documento 1- junto com o articulado de 16 de outubro de 2023).
Por último, devidamente notificado do relatório pericial, no qual consta expressamente as áreas de construção consideradas e métodos de avaliação utilizados, também nada fez, apesar de, expressamente, notificado para os efeitos do disposto no artigo 485.º do Código de Processo Civil e estar patrocinado por advogado.
Nesta conformidade, por extemporânea, indefere-se a junção aos autos da prova documental cuja junção foi requerida em 30 de outubro de 2024, bem como o pedido de apreciação de retificação do relatório pericial.
Notifique.
Não obstante a decisão que antecede, entende-se que a litigância do cabeça-de-casal não integra a previsão do artigo 542.º do Código de Processo Civil.
A litigância de má-fé é um instituto processual que deve ser aplicado com o maior rigor, dada a sua repercussão, como expressão de uma censura sobre a atividade das partes na lide e tem a ver com o princípio de cooperação.
Os pressupostos da condenação de parte como litigante de má-fé estão plasmados no artigo 542.º do Código de Processo Civil, sendo necessário que a parte tenha agido dolosamente ou com negligência grave, assumindo qualquer dos comportamentos descritos nas alíneas do n.º 2 do art.º 542.º do Código do Processo Civil (CPC).
Pune-se o erro grosseiro ou culpa grave, o que abrange a negligência grave.
Assim se se deduz pretensão ou oposição cuja improcedência não poderia ser desconhecida age-se com dolo direto, se se alteram os factos ou se omite um elemento essencial age-se com dolo indireto e com negligência grave quando ocorra omissão de precauções exigidas pela mais elementar prudência.
Ora, no caso dos autos a litigância do requerido não integra a previsão da negligência grave, que justifique a condenação como litigante de má-fé.
Nesta conformidade, não se condena o requerido como litigante de má-fé.
(…)”
11.- Inconformado com tal decisão, na parte em que apreciou o seu requerimento referido em 8, dela interpôs o interessado AA o presente recurso, batendo-se pela sua revogação e substituição por outro que “admita a junção aos autos do processo de licenciamento camarário e da fotografia do google earths, de onde resultam as áreas do imóvel que têm correspondência à realidade física existente.”
Para o efeito, formulou as seguintes conclusões:
1. O nosso regime processual civil prevê a possibilidade de algumas decisões interlocutórias merecerem recurso de apelação imediata e autónomo (em exceção à regra do nº3 do art.º 644º do C.P.C.), as quais se encontram elencadas de modo típico e discriminado no nº2 do art.º 644º do C.P.C., à semelhança das decisões finais.
2. A decisão/despacho recorrido enquadra-se no âmbito da alínea h) do n.º 2 do art.º 644.º CPC., que prevê a subida em separado das decisões cuja impugnação com o recurso da decisão final seria absolutamente inútil.
3. A decisão recorrida foi proferida antes da decisão final sobre o mérito ação, decidindo pelo indeferimento da junção aos autos da prova documental cuja junção foi requerida em 30 de outubro de 2024, bem como o pedido de apreciação de retificação do relatório pericial.
4. Justifica-se, assim, a subida autónoma (imediata) do recurso em análise, porquanto a sua não subida de imediato e apenas a final em conjunto com o recurso da decisão final (art.º 644º, nº 3), pode provocar danos irreversíveis porquanto
5. A não subida em separado e imediata do recurso agora interposto poderá esvaziar de qualquer sentido e utilidade a sua apresentação, porquanto caso proceda como se espera já não terá qualquer utilidade depois que se mostre findo o presente processo de inventário com a adjudicação/venda do imóvel
6. Assim, o presente recurso é de Apelação, a subir de imediato e em separado e com efeito suspensivo, tudo nos termos e ao abrigo do disposto nos artigos 644º, Nº 2, alínea h), artigo 645º, nº2 e artigo 647,º todos do Código de Processo Civil.
7. O que pretende o Interessado não é reclamar da avaliação efetuada pelo Sr. Perito, mas antes a eliminação do erro em que aquele incorreu ao considerar áreas do imóvel em manifesta contradição com a realidade física existente.
8. No âmbito dos presentes autos de partilha por divórcio foi requerida pelas partes a avaliação, em comum, das benfeitorias descritas na relação de bens.
9. O relatório pericial junto aos autos em 6/5/2024, concluiu que o valor das referidas benfeitorias corresponde a 160.000,00€.
10. O resultado da avaliação adveio do cálculo aritmético obtido entre a área (em m2) e o valor atribuído pelo Sr. Perito/m2 (800€, 275€ e 450€).
11. O Interessado nunca pretendeu reclamar sobre a avaliação propriamente dita, ou seja, sobre a metodologia utilizada pelo Sr. Perito ou sobre o preço por m2.
12. Constatada a existência de erro das áreas que estiveram na base da avaliação e as áreas verdadeiras /reais do imóvel, o Interessado requereu a junção aos autos do processo de licenciamento camarário para a construção/melhoramento do imóvel objeto dos autos, com o propósito de indicar as áreas reais do imóvel e, consequentemente, sanar aquele erro.
13. Requereu ainda a junção de imagem obtida através do Google Earths para determinar a área dos anexos, os quais foram considerados pelo Sr. Perito na avaliação apresentada, mas que não constam do processo de licenciamento.
14. Da análise do referido processo camarário e da medição dos anexos obtida nos termos enunciados, é notória a discrepância de áreas consideradas pelo Sr. Perito na avaliação efetuada e as áreas reais do imóvel, conforme se demonstra no quadro comparativo infra Áreas avaliação (m2) Áreas Reais (m2) R/C 135,00 177,00 Andar 180,00 176,50 Garagem /Telheiro (alpendre) 25,00 51,00 Anexos 45,00 145,00 Logradouros 157,00
15. O erro em que incorreu o Sr. Perito é suscetível de viciar gravemente o objetivo que a partilha se propõe alcançar e a certeza jurídica.
16. O imóvel (ou as benfeitorias) sobre que recaiu a avaliação é uma realidade objetiva, pelo que a avaliação tem necessariamente de se traduzir numa verdade material/objetiva.
17. Assim, mantendo inalterados os critérios ou parâmetros utilizados pelo Sr. Perito (valor/m2, valor para conclusão da obra, valor da depreciação), mas corrigida a área que na realidade existe no local, o valor das benfeitorias corresponde ao montante de 245.927,00€, conforme discriminado nas alegações supra.
18. As benfeitorias, cuja avaliação foi efetuada, independentemente dos critérios em que se baseou o Sr. Perito, não correspondem à realidade física, pelo que a avaliação que daí adveio se mostra irremediavelmente comprometida ou desvirtuada.
19. O que as partes pretenderam aquando o pedido da avaliação, era a determinação da realidade existente - esse era, e é, o interesse de ambas as partes.
20. A cabeça de casal já havia junto aos autos “um outro relatório de avaliação com a menção das áreas do imóvel com fonte no processo camarário”
21. As áreas referidas na avaliação junta pela cabeça de casal são exatamente aquelas por cuja avaliação o Interessado pugna, por serem essas as que refletem a área real do imóvel.
22. O recorrente discorda, não do valor da construção per si, mas das áreas que estiveram na base da avaliação, porquanto as mesmas colidem grosseiramente com a realidade física.
23. Não se trata tão só de uma pretensão do reclamante/recorrente, conforme se lê no despacho recorrido, mas antes de uma vontade que ambos os interessados possuem de ver avaliado aquilo que realmente existe.
24. Quer isto dizer que a junção do projeto de licenciamento camarário e da fotografia do Google Earths pelo reclamante/recorrente, não compromete o princípio da igualdade das partes no processo, porquanto se desconhece a quem será adjudicado o imóvel cujas benfeitorias foram objeto de avaliação.
25. Determinar o prosseguimento dos autos, sem admitir a retificação das áreas por aquelas que ambos os interessados reconhecem ser as reais (e que encontram reflexo no licenciamento camarário), obstará a uma liquidação justa do património comum, que originará enriquecimento injusto ou infundado de um dos interessados à custa do outro e um prejuízo irreparável, impedindo que seja uma partilha séria e justa.
26. Preceitua o art.º 411.º CPC, que “incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.”
27. E estabelece o art.º 423.º CPC um limite temporal para serem apresentados os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da ação ou da defesa
28. Contudo, a jurisprudência evidencia a possibilidade da junção documental poder ser feita sem observância das regras do art.º 423.º CPC, quando outros princípios se impõem – nomeadamente a descoberta da verdade material.
29. Pode ler-se no Ac. TRC (Proc. n.º 852/20.8T8FIG-A.C1, que “desde a fase da instrução do processo (art.ºs 410º e seguintes) até à sentença (art.º 607º, n.º 1) - com a finalidade última de possibilitar toda a prova necessária à formação completa e esclarecida da convicção -, o juiz, salvaguardado o primordial dever de imparcialidade (equidistância), e norteado pelos princípios da verdade e da justiça material, poderá/deverá desenvolver a referida actividade de indagação e esclarecimento dos factos relevantes para o desfecho do litígio.
30. E continua aquele aresto: “o critério firmado no art.º 411º coloca a questão ao nível da necessidade das diligências probatórias para o apuramento da verdade e para a justa composição do litigo; verificado o pressuposto da necessidade (baseado na fundada convicção de que a diligência a promover é necessária ao esclarecimento dos factos), o juiz, nos termos da lei, tem o dever de agir.”
31. Ainda que a junção do licenciamento camarário vá para além do limite temporal previsto no art.º 423.º CPC, o certo é que a sua admissão se impõe, porquanto é necessário ao apuramento da verdade material (retificação das áreas sobre as quais foi calculado o valor m2), em total respeito pelo princípio da igualdade das partes.
32. O juiz a quo não pode ignorar que as áreas reais do imóvel são aquelas que efetivamente constam do processo de licenciamento, como aliás reconheceu o cabeça de casal aquando a junção aos autos da avaliação que tem por base exatamente as mesmas áreas que constam do processo licenciamento.
33. Ao indeferir a junção aos autos do processo de licenciamento camarário e da fotografia de onde resultam as áreas reais do imóvel, o douto despacho recorrido violou o disposto no art.º 411.º CPC, impossibilitando dessa forma uma liquidação justa do património comum.
A. Veio o Recorrente interpor recurso do despacho da Meritíssima Juíza no âmbito dos presentes autos, no qual não foi admitida a junção dos documentos por aquele há muito conhecidos, o que só fez em véspera de audiência de julgamento.
B. Porém, ao não indicar os concretos pontos da decisão que considera incorretamente julgados nem tão pouco indicando a norma violada, o Recorrente incumpre no ónus a que estava obrigado para poder interpor o recurso apresentado.
C. Pelo que, não cumprindo o Recorrente o ónus que se lhe impunha de cumprir as exigências da concretização dos pontos de facto incorretamente julgados, da especificação dos concretos meios probatórios convocados e da indicação da decisão a proferir, nos termos do disposto no n.º 1 do art.º 640.º do CPC, não deve o recurso apresentado ser admitido.
D. Quanto à não reclamação das perícias efetuadas, é o próprio Recorrente que confirma que não quis reclamar, quando refere no seu recurso que “O interessado nunca pretendeu reclamar sobre a avaliação propriamente dita (...)” – pág. 5 e conclusão n.º 11 do recurso – e quando admite que a junção dos documentos do “(...) licenciamento camarário vá para além do limite temporal previsto no art.º 423.º CPC (...)” – pág. 9 do recurso.
E. Ou seja, o Recorrente nunca discordou das avaliações periciais ao longo do desenrolar do processo judicial, muito menos das áreas inscritas nesses relatórios, tendo até junto as plantas com as áreas em anexo à reclamação de bens que apresentou no seu requerimento de 11/09/2023, em que até juntou a caderneta predial do imóvel com as áreas.
F. Ora, admitir a junção totalmente extemporânea de documentos que nada trazem de novo – tão extemporânea que até o Recorrente com isso concorda – é colocar em causa toda a instância, sobretudo face ao tempo decorrido, à prova junta e produzida, aos debates e às audiências já realizadas.
G. Porém, e como é do conhecimento do Recorrente, as áreas foram medidas in loco duas vezes, por dois peritos diferentes, nunca tendo o Recorrente discordado dessas medidas ao longo de quase dois anos.
H. Pelo que, salvo melhor entendimento, não pode assistir qualquer razão ao Recorrente quando é o próprio que admite que não reclamou dos relatórios, não solicitou esclarecimentos e não requereu segunda perícia.
I. Motivo pelo qual, face ao disposto no art.º 423.º do Código de Processo Civil, deve ser a douta decisão do Tribunal confirmada na íntegra, mantendo-se o ali decidido.
J. Quanto às áreas concretas de que o Recorrente agora reclama, reitera-se que o Recorrente assistiu às medições das áreas aquando da ida dos Srs. Peritos ao local, pelo que sabe que, efetivamente, as áreas constantes nos relatórios periciais são as verdadeiras e que correspondem à realidade.
K. E quanto à medição efetuada através do Google Earth não faz prova seja do que for, já que basta mover um pouco o rato no ecrã do computador para se obter medidas completamente diferentes das reais.
L. Sendo que não existem anexos edificados – cfr. explicado nos pontos 38 a 66 do requerimento da Recorrida de 14/11/2024, sob referência n.º 504969586 que, por questões de economia processual, se dão aqui por integralmente reproduzidos.
M. O que o Recorrente pretende é apenas corrigir “(...) a área que na realidade existe no local (...)”, pois, com isso, pretende “corrigir” o valor das benfeitorias, aumentando desse modo, e de forma indireta, o valor das benfeitorias que não existem, apenas com o objetivo de se beneficiar.
N. Quando assume que optou por nada fazer nem reclamar quando foi notificado dos relatórios periciais.
O. Litiga ainda o Recorrente de forma despudorada, numa lide temerária e de má-fé, bem sabendo que nada fez e pretendendo agora “corrigir” o seu erro, pois conhecia e sabia o prazo que dispunha para proceder à junção de documentos que até tinha em sua posse.
P. Razão pela qual há uma evidente e clara litigância de má-fé por parte do Recorrente, que recorre sabendo não ter razão e “baralhando” tudo para tentar agora resolver o que antes se esqueceu de cuidar.
Q. Assim, deve ser claramente sancionada a conduta do Recorrente, pois obrigou a Recorrida a ter que suportar despesas com mandatário, já que não poderia deixar de responder às alegações do Recorrente para repor a verdade.
13.- O recurso foi admitido pelo tribunal a quo como apelação, com subida imediata, em separado e com efeito suspensivo e assim recebido nesta Relação, que o considerou corretamente admitido e com o efeito legalmente previsto.
O âmbito dos recursos, tal como resulta das disposições conjugadas dos art.ºs 635.º, n.º 4, 639.º, n.ºs 1 e 2 e 641.º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Civil (doravante, CPC), é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente.
Isto, com ressalva das questões de conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado ou das que se prendem com a qualificação jurídica dos factos (cfr., a este propósito, o disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 663.º, n.º 2 e 5.º, n.º 3 do CPC).
Neste pressuposto, a questão que, neste recurso, importa apreciar e decidir é a seguinte:
.- da admissibilidade do requerimento do Apelante supra referida em 8;
.- da má fé do Apelante.
III.I.- Da Fundamentação de facto
.- Os factos que aqui importa considerar e que, em função dos elementos constantes dos autos, se mostram provados, são os acima descritos no relatório desta decisão, os quais, por razões de economia processual, se dão aqui por integralmente reproduzidos.
.- Da admissibilidade do requerimento do apelante supra referido em 8
Liminarmente, cumpre considerar que a Apelada, nas conclusões da sua peça recursória, bate-se pela inadmissibilidade do recurso.
Invoca, para tanto, o facto de o Apelante não identificar a “norma violada” e, bem assim, não concretizar os “pontos de facto incorretamente julgados”, não especificar os “meios probatórios convocados” e não indicar a “decisão a proferir”, tal como o imporia, na sua perspetiva, o n.º 1 do art.º 640.º do CPC.
Carece, contudo, de razão.
Assim, e desde logo, o Apelante identificou, nas conclusões com os n.ºs 26, 27, 28, 31, 32 e 33, os preceitos legais que, na sua perspetiva, conduziriam a decisão diversa da proferida pela 1.ª instância, cumprindo, assim, o ónus que lhe era imposto nas alíneas a), b) e c), do n.º 2, do art.º 639.º do CPC.
Depois, o presente recurso versa apenas sobre matéria de direito, pelo que nenhuma obrigação impedia sobre o mesmo de fazer as especificações a que aludem as alíneas a), b) e c), do n.º 1, do art.º 640.º do CPC, que pressupõem, como resulta da leitura do corpo deste preceito, que o recurso verse sobre matéria de facto.
Assim, e também não havendo outro motivo que conduza à sua rejeição, nada obsta ao conhecimento do recurso, desatendendo-se a posição da Apelada em apreço.
A questão a decidir no recurso é a de saber se o requerimento do Apelante supra referido em 8 é ou não admissível.
Subjacente a tal requerimento está em causa o seguinte.
Avaliadas as benfeitorias relacionadas sob a verba n.º 1, entendeu o Apelante que as áreas pressupostas pelo perito na avaliação não correspondem às áreas reais do imóvel benfeitorizado.
Isto, como o evidenciariam os dois documentos (projeto de licenciamento camarário e foto retirada da aplicação google earth) que, a instruir o requerimento, também pretendeu juntar.
Através do requerimento bateu-se o Apelante, por conseguinte, não só pela junção dos ditos documentos para demonstração do alegado quanto às áreas, como, também, pela retificação destas, em vista da subsequente reformulação da avaliação das benfeitorias, de modo a que esta passasse a retratar a realidade física existente.
Ora, a este respeito, importa começar por dizer que a pretensão do Apelante quanto à junção dos documentos é instrumental relativamente ao pedido - principal - de retificação das áreas das benfeitorias pressupostas na avaliação.
Ou seja, o Apelante pretende juntar os documentos, não como fim em si mesmo, ou então para prova de matéria diversa daquela que invocara no requerimento, mas para ilustrar aquilo que neste alegara.
Não fora o pedido de retificação das áreas, não teria o Apelante requerido a junção dos documentos, já que estes, na ausência daquele pedido, nenhuma utilidade ou sequer razão de ser teriam para os autos.
A questão da admissibilidade da junção dos documentos não constitui, por conseguinte, uma questão autónoma, a ser apreciada, como a 1.ª instância apreciou, como tal, mas sim inserida na apreciação da questão relativa à retificação das áreas.
Os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da ação ou da defesa devem, de acordo com o n.º 1 do art.º 423.º do CPC (aplicável ao processo de inventário por força do art.º 549.º do mesmo código), ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes.
Por conseguinte, destinando-se os dois documentos aqui em causa a fazer prova do alegado no requerimento quanto às áreas das benfeitorias, o destino deste ditará o destino daqueles.
O requerimento e os documentos visam um único fim e constituem, por isso, uma realidade processual única e incindível, pelo que, admitido o primeiro, admitidos serão os segundos ou não admitido aquele, desconsiderados serão estes.
Apreciemos, pois, a questão da admissibilidade do requerimento do Apelante propriamente dito.
Por via do requerimento, pretende o Apelante, como se disse, a retificação das áreas que estiveram na origem da avaliação das benfeitorias constantes da verba n.º 1 da relação de bens apresentada pela cabeça de casal.
Segundo o Apelante, as áreas reais das benfeitorias a considerar eram as por si indicadas e não aquelas que o Sr. Perito considerou, pelo que se imporia a sua retificação por forma a que a avaliação se reportasse à realidade verdadeiramente existente.
Ora, tal requerimento pode ser visto ou qualificado a partir de uma dupla perspetiva.
Desde logo, como reclamação ou, pelo menos, complemento de reclamação à relação de bens apresentada pela cabeça de casal.
O Apelante formulou nele, na verdade, uma pretensão que, em último termo, conduziria à alteração da descrição de uma verba constante da relação de bens (as benfeitorias no imóvel bem próprio da cabeça de casal), com notórias repercussões nas operações de partilha a realizar no inventário.
Ao requerer a retificação das áreas das benfeitorias, o Apelante surge nos autos, por conseguinte, a invocar a inexatidão do relacionamento destas pela cabeça de casal, o que, em último termo, nos reconduz ao instituto jurídico da reclamação à relação de bens.
O requerimento em apreço pode ser visto, depois, como reclamação contra o próprio relatório de avaliação elaborado pelo perito, no que aos pressupostos da realização dessa avaliação diz respeito.
O Apelante formulou nele, com efeito, uma pretensão que, em último termo, punha em causa os pressupostos em que a avaliação assentara e, portanto, as próprias conclusões desta.
A este propósito, argumentou o Apelante, no recurso, que nunca pretendeu reclamar da avaliação propriamente dita, mas apenas invocar a existência de erro das áreas que estiveram na base dessa avaliação, querendo com isso sugerir que o seu requerimento não materializava uma reclamação contra o relatório pericial.
Não tem, contudo, razão nessa argumentação, na certeza de que as áreas constantes do relatório foram, elas próprias, aferidas pelo Sr. Perito na realização da perícia.
Ou seja, as áreas que o Sr. Perito considerou resultaram, como resulta da factualidade assente supra transcrita, do próprio apuramento que delas fez o perito (daquilo que este “mediu”); são, assim, resultado da sua própria atividade e, portanto, elemento constituinte da avaliação realizada.
Por isso, a partir do momento em que o Apelante quis, no seu requerimento, pôr em causa as áreas das benfeitorias, não deixou de querer, também, pôr em causa a própria atividade do perito, podendo a sua pretensão ser vista, assim, também como reclamação contra o relatório pericial.
Ora, quer seja visto como reclamação ou, pelo menos, como complemento de reclamação à relação de bens, quer o seja como reclamação contra o relatório pericial, nunca o mesmo poderia ser admitido.
Vejamos porquê.
A estes autos aplica-se o regime do processo de inventário composto pelos art.ºs 1082.º a 1135.º do CPC, que, em conjunto, formam um título (o XVI) introduzido pela Lei n.º 117/2019, de 13/09.
Com este regime substituiu-se o vigente que decorria da Lei n.º 23/2013, de 05/03 e com o qual se operara como que a “desjudicialização” do processo de inventário, mediante a atribuição da competência para a sua tramitação aos cartórios notariais.
O novo regime do inventário, como tem sido reiterada e constantemente referido, introduziu um paradigma novo no que à sua tramitação diz respeito, o qual, no que ao caso importa, passou por que lhe fosse conferido maior grau de vinculação e objetividade e, com isso, um direcionamento mais célere e preciso dos seus termos para a decisão final.
Expressão deste novo paradigma foi a previsão do legislador, como nos dá conta Carlos Lopes do Rego[1], “de fases processuais relativamente estanques”, escalonadas de acordo com um “princípio de concentração, propiciador de que determinado tipo de questões deva ser necessariamente suscitado em certa fase procedimental (e não nas posteriores), sob pena de funcionar uma “regra de preclusão para a parte”.
Com esta solução legal, segundo o mesmo Autor, “foram impostas às partes cominações e preclusões, anteriormente inexistentes, levando naturalmente – em reforço de um princípio de auto responsabilidade das partes na gestão do processo – a que (…) as objeções, impugnações ou reclamações tenham de ser deduzidas, salvo superveniência, na fase procedimental em que está previsto o exercício do direito de contestação ou oposição"
Expressão deste modelo é o art.º 1104.º do CPC, do qual decorre um dever dos interessados diretos na partilha de, nos 30 dias subsequentes à sua citação, deduzirem os meios de defesa que tenham por pertinentes em face do teor da petição inicial e/ou das declarações do cabeça de casal, relativamente à generalidade das questões suscitadas no inventário.
Isto é, “adota-se, na fase de oposição, um princípio de concentração na invocação de todos os meios de defesa (…)”, em que esta “deve ser deduzida no prazo de que os citados beneficiam para a contestação/oposição, só podendo ser ulteriormente deduzidas as exceções e meios de defesa que sejam supervenientes (isto é, que a parte, mesmo atuando com a diligência devida, não estava em condições de suscitar no prazo da oposição, dando origem à apresentação de um verdadeiro articulado superveniente), que a lei admita expressamente passado esse momento (…).”
Consequentemente, à luz de tal preceito, e no que, com relevo para este caso, se reporta à reclamação à relação de bens (v. a alínea d) do seu n.º 1), temos que quaisquer reclamações contra o relacionamento dos bens pelo cabeça de casal têm, “sob pena de preclusão”, de “ser deduzidas, salvo demonstração de superveniência objetiva ou subjetiva, na fase das oposições e não a todo o tempo, em termos idênticos à junção de prova documental, como parecia admitir o art.º 1348.º, n.º 6 do anterior CPC.”
Assim se consagrou um regime com o qual pretendeu “evitar-se que a colocação tardia de questões – que podiam perfeitamente ter sido suscitadas em anterior momento ou fase processual – ponha em causa o regular e célere andamento do processo, acabando por inquinar irremediavelmente o resultado de atos e diligências já aparentemente sedimentados, tendentes nomeadamente à concretização da partilha, obrigando o processo a recuar várias casas, com os consequentes prejuízos ao nível da celeridade e eficácia na realização do seu fim último”.
Trata-se aqui de posição secundada por Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luis Filipe Pires de Sousa[2], ao referirem, em anotação ao referido preceito legal, que “o decurso do prazo de 30 dias [nele previsto] determina, por regra, efeitos preclusivos quanto [às iniciativas nele previstas], sendo que a não impugnação dos elementos factuais e documentais vertidos nas alegações do requerente de inventário ou do cabeça de casal tem os efeitos previstos nos arts.ºs 566º, 567º e 574º, ex vi art.º. 549º, n°1.”
Isto, inclusive quanto à reclamação à relação de bens, já que, como acrescentam, “[c]ontrariando a solução prevista no art.º 1348° CPC de 1961, a reclamação relativa à relação de bens não suporta o diferimento que tal regime permitia. Uma vez que os bens são relacionados pelo cabeça de casal e só depois se procede a citação dos interessados, facilmente se compreende que também tenha sido marcado um prazo peremptório para o exercício do direito de defesa mediante reclamação, de modo que, uma vez exercido o contraditório e produzidas as provas pertinentes, as questões atinentes ao ativo e passivo da herança estejam definitivamente decididas quando for convocada a conferência de interessados.”
E trata-se, também, de posição que se nos afigura tendencialmente seguida na jurisprudência de modo uniforme, como servem de exemplo os Acórdãos da Relação de Coimbra de 10-01-2022 (proferido no processo n.º 1001/21.0T8PBL.C1), da Relação de Guimarães de 22-09-2022 (proferido no processo n.º 5044/20.3T8BRG-B.G1 e desta Relação do Porto de 23-11-2023 (proferido no processo 10278/22.3T8PRT-A.P1).
Como impressivamente se escreveu no sumário do segundo, “[c]om a reforma da Lei 117/2019, prevendo o artigo 1104.º um prazo único de 30 dias para a dedução de contestação ao requerimento inicial do inventário e para o articulado apresentado pelo cabeça de casal nos termos do art.º 1102.º, e eliminada a norma que permitia que as reclamações contra a relação de bens fossem apresentadas posteriormente, decorrido aquele prazo de 30 dias, precludida fica a faculdade de apresentar reclamação contra a relação de bens”.
Por conseguinte, “ressalvada a possibilidade de partilha adicional (…), e sob pena de perturbações na marcha do processo de inventário, que o legislador pretendeu expressamente evitar, a possibilidade de reclamação posterior encontrar-se-á sujeita às regras gerais do processo, pela via de articulado superveniente a que se reporta o art.º 588.º do CPC, ou seja, em caso de superveniência subjetiva ou objetiva”.
In casu, apresentada, pela Apelada enquanto cabeça de casal, relação de bens - dela constando, sob a verba n.º 1, as benfeitorias realizadas na casa de habitação pertença da primeira, sita na Rua ..., ..., Lugar ..., ... ..., inscrita na respetiva matriz predial urbana sob o artigo n.º ..., da freguesia ... e descrita na Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira, sob o n.º ... – foi o interessado Apelante citado para os termos do inventário, nos termos e para os efeitos do disposto no supra referido n.º 1 do art.º 1104.º do CPC, aplicável ex vi n.º 2 do art.º 1084.º do mesmo código.
Citado, apresentou o mesmo, tempestivamente, reclamação à relação de bens, impugnando o valor dado pela cabeça de casal às benfeitorias relacionadas sob a verba n.º 1, invocando que o valor destas ascendia a € 215.000,00; isto é, uma vez citado, exerceu o Apelante o direito que lhe assistia de, à luz da alínea d), do n.º 1, do citado art.º 1104.º do CPC, apresentar reclamação à relação de bens.
Deduzida a reclamação, prosseguiram os autos com a tramitação do incidente em causa, apresentando a cabeça de casal, depois de notificada para o efeito, a sua resposta e sendo realizada, a pedido de ambos, a avaliação que aqui está em causa.
Ora, como se disse, o requerimento do Apelante pode ser perspetivado enquanto meio de invocação da inexatidão do relacionamento de bens feito pela cabeça de casal quanto às benfeitorias relacionadas sob a verba n.º 1; o mesmo é dizer como reclamação ou, pelo menos, complemento da reclamação à relação de bens.
O Apelante, contudo, já apresentara reclamação à relação de bens e nesta acusara expressamente a inexatidão do relacionamento das benfeitorias, pelo que o novo requerimento sempre consubstanciaria uma nova reclamação ou, pelo menos, um aperfeiçoamento da primeira.
Tratar-se-ia sempre, contudo, de articulado, não só estranho à tramitação normal do processo de inventário, como de articulado apresentado muito além do prazo de 30 dias de que o Apelante dispunha para o efeito (este foi citado em 19-06-2023 e o seu requerimento data de 30-10-2024).
Ou seja, de articulado apresentado além do “perímetro” da concentração da defesa delineado no supra citado art.º 1104.º do CPC e que o Apelante, por força do princípio da preclusão que também deriva do preceito, perdeu o direito de apresentar.
Só assim não seria se o Alegante tivesse agido a coberto de uma superveniência objetiva ou subjetiva, que lhe permitisse, tal como acima foi exposto, deduzir a sua pretensão no quadro de um articulado superveniente, de acordo com o previsto no art.º 588.º do CPC.
Mas tal não é, contudo, e manifestamente, o caso, na certeza de que o Apelante não só não alegou qualquer superveniência, como tal superveniência sempre resultaria afastada em função da constatação, destacada no despacho recorrido, de que o Apelante, aquando da reclamação à relação de bens que apresentou inicialmente, já tinha conhecimento, como resulta do art.º 3.º deste articulado, do “projeto camarário” que agora invoca para suportar o pedido de retificação das áreas e, consequentemente, das supostas áreas reais das benfeitorias a considerar.
Carecia, pois, de fundamento a apresentação do requerimento em apreço pelo Apelante com o fundamento vindo de considerar.
Carece de fundamento, também, enquanto reclamação ao relatório pericial, já que extemporâneo.
Com efeito, o relatório de peritagem foi junto aos autos em 06-05-2024 e notificado na mesma data a ambos os interessados.
Notificadas do relatório, poderiam os interessados, de acordo com os n.ºs 1 e 2 do art.º 485.º do CPC, apresentar reclamação invocando deficiência, obscuridade ou contradição do mesmo, sendo que, para o efeito, disporiam do prazo de 10 dias, nos termos do disposto no art.º 149.º do CPC.
O Apelante, contudo, só em 30-10-2024 é que surgiu nos autos a requerer a retificação das áreas consideradas pelo Sr. Perito, tratando-se, por conseguinte, de reclamação extemporânea.
Em suma, seja como reclamação à relação de bens, seja como reclamação ao relatório pericial, nunca o requerimento do Apelante poderia ser admitido.
E não podendo ser admitido o requerimento, também não poderiam, pelas razões já acima expostas, ser admitidos os documentos apresentados a instrui-lo.
Nenhum reparo merece, consequentemente, o despacho recorrido, improcedendo a apelação na totalidade.
A Apelada, nas conclusões O, P e Q da sua peça recursória, pugna pelo sancionamento do Apelante como litigante de má fé, sob o argumento de que o Apelante litiga no próprio recurso de má fé.
A este propósito, diz-se litigante de má fé, de acordo com o disposto no n.º 2 do art.º 542.º do CPC, a parte que, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devida ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
Verificada alguma destas hipóteses, será o litigante de má fé, nos termos do n.º 1, condenado em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.
Podemos definir a litigância de má fé, em tese geral, e de acordo com Manuel de Andrade, como a “utilização maliciosa e abusiva do processo”, constituindo, em último termo, a “violação do dever de probidade” que às partes cumpre observar enquanto pleiteantes (in Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, 1993, p. 356).
A litigância de má fé pressupõe uma conduta processual levada a cabo com dolo ou com negligência grave e nela cabem dois tipos de atuação: a litigância substancial, conexa com a forma como a parte se posiciona quanto ao fundo da causa; e a litigância instrumental, relacionada com a conduta processual adotada pela parte.
Estão abrangidas na primeira as hipóteses previstas nas alíneas a) e b) do n.º 2 do art.º 542.º acima citadas e, na segunda, as alíneas c) e d) do mesmo preceito (v., neste sentido, António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luis Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Parte Geral e Processo de Declaração, Artigos 1.º a 702.º, Almedina, p. 641).
O dever de litigar de boa fé, com respeito pela verdade e pelo outro, constitui um corolário dos princípios da cooperação e da boa fé processual previstos, respetivamente, nos art. ºs 7.º e 8.º do CPC.
Assim, se a parte, com propósito malicioso, pretender convencer o tribunal de um facto ou de uma pretensão que sabe carecer de fundamento ou se fizer do processo um uso contrário aos fins a que este destina, atua como litigante de má fé, devendo ser sancionada com esse fundamento.
Note-se, contudo, que, por força do princípio do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva (v. art.º 20.º da CRP), ao direito de ação e de defesa deve ser conferida uma magnitude que não surja comprometida por receios de sancionamento por conduta processual desadequada, fundada em litigância de má fé.
Por isso, e como se refere no Acórdão da Relação de Coimbra de 28-05-2019, constitui hoje “entendimento prevalecente na nossa jurisprudência que a garantia de um amplo direito de acesso aos tribunais e do exercício do contraditório, próprios do Estado de Direito em que vivemos, são incompatíveis com interpretações apertadas ou muito rígidas do art.º 542.º do CPC, havendo sempre que ter presente as características e a natureza de cada caso concreto”.
Daí que, ainda de acordo com o mesmo Acórdão, “se recomende uma certa prudência e razoabilidade na formulação do juízo sobre essa má fé”, devendo esta “ocorrer quando se demonstre, de forma manifesta e inequívoca, que a parte agiu dolosamente ou com negligência grave, com e/ou no processo entrado em tribunal” (Acórdão disponível na internet, no sítio com o endereço www.dgsi.pt).
A litigância de má fé não se confunde com o “não ter razão” ou com a perda de uma causa pela qual, ainda que sem fundamento, tinha a parte, de boa fé, razões para se bater por ela.
Deve, pois, como se referiu no Acórdão desta Relação de 08-11-2022, “ancorar em comportamento processual deliberadamente aleivoso e abusivo do recurso à lide (dolo) ou, pelo menos, num comportamento patentemente temerário ou desleixado em relação aos elementares deveres de boa conduta processual (negligência grosseira)”.
Em suma, a litigância de má corresponderá “à ultrapassagem clara e ostensiva dos limites da litigiosidade séria” (Acórdão também disponível na internet, no sítio com o endereço acima indicado).
No caso em apreço, não há fundamento para que se qualifique a conduta do Apelante como de má fé.
Este interpôs recurso de uma decisão da qual discordou, invocou os fundamentos que, na sua perspetiva, conduziriam a decisão diversa e concluiu de forma coerente com a posição por si sustentada.
A sua conduta processual no recurso mais não constituiu, por conseguinte, do que o exercício de um direito processual – de recurso – sem que haja um mínimo de indícios de que tenha com a forma como interpôs o recurso ultrapassado clara e ostensivamente os limites da litigiosidade séria.
Nenhuma condenação há, pelo exposto, que proferir com tal fundamento.
Pelo exposto, acordam os Juízes Desembargadores da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto em:
i.- julgar improcedente a apelação e, consequentemente, confirmar o despacho recorrido;
ii.- julgar não verificado que o Apelante tenha litigado no recurso de má fé e, consequentemente, não proferir qualquer condenação com esse fundamento.
Custas pelo Apelante e pela Apelada na proporção de 2/3 e de 1/3, respetivamente.
Notifique.