Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANO BIOLÓGICO
INDEMNIZAÇÃO
EQUIDADE
Sumário
I - O dano biológico reporta-se a toda a violação da integridade físico-psíquica da pessoa, com repercussão na sua vida pessoal e profissional, independentemente de dele decorrer ou não perda ou diminuição de proventos laborais, sendo um prejuízo que se repercute nas potencialidades e qualidade de vida do lesado, capaz de afetar o seu dia-a-dia nas vertentes laborais, sociais, sentimentais, sexuais, recreativas, determinando perda das faculdades físicas e/ou intelectuais em termos de futuro. II - O dano biológico tanto pode ser ressarcido como dano patrimonial, como pode ser compensado a título de dano não patrimonial, dependendo da situação concreta sob análise. III - Não sendo possível determinar o valor exato desse dano, tal avaliação terá de ser efetuada recorrendo à equidade, nos termos do artigo 566.º, nº 3 do Código Civil. IV - Sobre o critério de equidade na fixação do montante da indemnização por danos não patrimoniais tem-se entendido que deve ser proporcionado à gravidade do dano, tomando em conta na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida, devendo tal compensação ter um alcance significativo, e não meramente simbólico nem miserabilista, não podendo, na sua fixação, deixar de ser ponderadas circunstâncias como o quantum doloris, o período de doença, a situação anterior e posterior do lesado em termos de afirmação social, apresentação e autoestima, alegria de viver, a idade, esperança de vida e perspetivas para o futuro, incluindo o dano biológico (agora, na vertente não patrimonial), entre outras, que o caso concreto revele.
Texto Integral
Apelação n.º 1213/22.0T8VNG.P1
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:
I - RELATÓRIO
AA intentou ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra A..., S.A., ambos melhor identificados nos autos, pedindo que na procedência da ação, seja a Ré condenada no pagamento:
a) Da quantia de €21.822,87, acrescida dos juros de mora à taxa legal de 4%, desde a citação até integral pagamento;
b) De todas as despesas médicas e medicamentosas futuras que se venham a revelar necessárias em virtude dos danos sofridos pelo autor, bem como eventual valor devido pelo dano biológico, a liquidar nos autos, se se apurar ou em execução de sentença.
Para o efeito, o autor alegou que o veículo que conduzia sofreu um embate por veículo seguro na ré, que a culpa do embate foi deste último e que, como consequência do acidente, sofreu danos que pretende por via da presente ação ver ressarcidos.
A ré contestou, impugnando tanto os factos relativos à dinâmica do acidente como aos danos, pugnando pela sua absolvição do pedido.
O autor apresentou articulado superveniente a 22.9.2024, ampliando ao seu pedido a condenação da ré no pagamento de € 129,00 por despesas médicas entretanto feitas, apresentando, ainda, após a realização do exame pericial, novo articulado superveniente, ampliando o seu pedido com a condenação da ré no pagamento de € 37.137,78, correspondendo € 29.637,78 a 3% dos rendimentos esperados até ao fim da sua vida e 7.500€ às dores, à angústia e à dificuldade em dormir.
Prosseguindo o processo para julgamento, ao qual se procedeu, foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente a ação e, em consequência, decidiu: “a) Condenar a ré no pagamento ao autor, a título de compensação dos danos não patrimoniais, da quantia de € 15.000,00 (quinze mil euros). b) Condenar a ré no pagamento ao autor, a título de indemnização do dano biológico, da quantia de € 22.000,00 (vinte e dois mil euros). c) Condenar a ré no pagamento ao autor, a título de indemnização de danos patrimoniais, da quantia de € 1.181,87 (mil, cento e oitenta e um euros e oitenta e sete cêntimos. d) Condenar a ré no pagamento ao autor dos juros de mora correspondentes às quantias identificadas nas alíneas anteriores, contabilizados à taxa legal em cada momento em vigor, desde a data da citação até efetivo e integral cumprimento. e) Condenar a ré no pagamento ao autor de todas as despesas médicas e medicamentosas futuras que se venham a revelar necessárias em virtude dos danos sofridos pelo autor. f) Absolver a ré do demais peticionado pelo autor. g) Condenar o autor e a ré no pagamento das custas processuais na proporção dos respectivos decaimentos, que fixo, para o autor, em 36% e, para a ré, em 64%, nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º do Código de Processo Civil.”.
*
Não se conformando com o assim decidido, veio a ré A..., S.A., interpor o presente recurso, o qual foi admitido como apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Apresentou a recorrente as seguintes conclusões das suas alegações: “1. Na Sentença foi feita uma pouco criteriosa apreciação do relatório pericial e da documentação clínica junta aos autos. 2. Aquando da admissão no SU do CH..., o Autor mantinha a força, mobilidade e sensibilidade preservadas dos membros, para além de que os exames efetuados ao crânio e às costas não revelaram quaisquer alterações traumáticas. 3. O Autor voltou ao trabalho cerca de uma semana após o acidente. 4. O facto de o Autor manter a mobilidade, sensibilidade e força dos membros, instantes após o sinistro, e de ter voltado ao trabalho cerca de uma semana depois, leva forçosamente a concluir que não sofreu qualquer entorse na sequência do acidente; uma entorse provoca dores imediatas, que o Autor tinha de ter sentido. 5. Por outro lado, o alegado agravamento que o Autor sofreu na raquialgia que já sentia não foi objeto de qualquer justificação por parte do INML, sendo que apenas sabemos que o Autor, que já se queixava de dores nas costas antes do acidente, manteve essas dores após o acidente. 6. Com o devido respeito, seguindo critérios de lógica e de normalidade não podemos seguir cegamente as conclusões do relatório do INML, da mesma forma que esta instituição seguiu as queixas do Autor. 7. Dessa forma, por falta de suporte fáctico e perante a ausência de elementos que nos permitam concluir, com a segurança necessária, que o Autor sofreu mesmo a referida entorse (que apenas se manifestou duas semanas após o acidente e uma semana após o Autor ter retomado a sua profissão de professor de ginástica e bailarino) e que as dores que sentia nas costas efetivamente se agravaram na sequência do acidente, temos de concluir que o Autor não sofreu qualquer sequela na sequência do evento dos autos. 8. Da mesma forma, temos igualmente de desconsiderar a alegada necessidade futura da alegada cirurgia, que nem sequer sabemos se a mesma surge na sequência do evento dos autos ou se é resultado das lesões pré-existentes ou de lesões que o Autor entretanto, na sequência da sua atividade profissional, veio a sofrer. 9. Dessa forma, deve ser eliminada a condenação inscrita na alínea e) das Decisão. 10. Os factos provados sob os números 17, 27 a 29, 42, 44, 45, 46, 58, 59, 61 e 66 devem ser eliminados. 11. O facto provado 17 deve ser eliminado a partir de “ficando de imediato”. 12. O facto provado 19 deve ser alterado nos seguintes termos: “o autor teve alta hospitalar no mesmo dia, após ter efetuado exames e RX, apresentando força, mobilidade e sensibilidades preservadas dos membros e sem que os exames ao crânio e coluna cervical revelassem quaisquer alterações traumáticas”. 13. No facto provado 26 deve ser eliminada a parte “enjoado e com dores”. 14. Por outro lado, os demais factos provados, referentes a padecimentos que o Autor apresenta, que não se negam, não podem ser considerados como tendo sido consequência do acidente, por falta de elementos dos quais se possa estabelecer um nexo causal com tal evento. 15. O quantum condenatório inscrito na alínea c) da Decisão deve ser alterado para € 733,30. 16. Assim, na sequência das alterações à matéria de facto provada, deve a indemnização arbitrada a título de dano moral ser reduzida para € 5.000,00, eliminando-se o montante que a Recorrente foi condenada a pagar ao Autor a título de dano biológico, por inexistência de tal dano. 17. Sem prescindir, e ainda que se mantenha inalterada a matéria de facto provada, os valores arbitrados revelam-se manifestamente exagerados, devendo ambos ser reduzidos: o dano não patrimonial deve ser reduzido para € 8.000,00 e o dano biológico para € 15.000,00. Requer-se, assim, a V. Exas. que revoguem a Sentença recorrida nos exatos termos aqui peticionados, fazendo-se, assim, inteira JUSTIÇA.”.
Não foram apresentadas contra-alegações.
*
Após os vistos legais, cumpre decidir.
*
*
II - OBJETO DO RECURSO
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil.
Atendendo às conclusões das alegações apresentadas pela Apelante, as questões a apreciar são as seguintes:
- Se deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto;
- Se, procedendo, ou não, a impugnação da matéria de facto, devem ser eliminados ou reduzidos os valores fixados a título de indemnização.
*
*
III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Na decisão recorrida foram dados como provados os seguintes factos: 1. No dia 26 de outubro de 2020, pelas 7:34m, no Km 300,328 da Auto Estrada ..., em Vila Nova de Gaia, circulavam os seguintes veículos: a. Com a matrícula ..-VM-.., pesado de Mercadorias, de marca Renault, com inscrição da propriedade a favor de DE B... BV SUCURSAL EM PORTUGAL, NIPC ..., conduzido pelo seu motorista, BB; b. Com a matrícula ..-RR-.., ligeiro de passageiros, de marca Nissan, com inscrição de propriedade a favor de CC, conduzido pelo autor, o seu condutor habitual; c. Com a matrícula ..-QI-.., ligeiro de passageiros de marca Mercedes Benz, conduzido por DD. 2. O veículo pesado fazia conjunto com o semi-reboque LE-...., inscrito a favor da C... S.A., estando seguro através da apólice do veículo tractor. 3. Era dia, estava bom tempo e o local tinha boa visibilidade, desenvolvendo-se em ampla recta. 4. O pavimento estava húmido. 5. O local configura uma Auto-Estrada com dois sentidos de marcha, com separador central e 10,80m de largura, com três faixas de rodagem para cada sentido, tendo o acidente ocorrido junto à saída de .... 6. Os indicados veículos circulavam no sentido Norte/Sul. 7. Havia muito trânsito na zona do local do acidente. 8. O autor vinha da saída de ..., tendo entrado na ... onde passou a circular junto à faixa da direita. 9. Na sua dianteira, encontrava-se o veículo QI, parado devido ao congestionamento à sua frente. 10. Quando se encontrava a circular na faixa da direita da ..., o autor abrandou para permitir a entrada a outro veículo na autoestrada. 11. Atrás do veículo do autor circulava, na mesma faixa da ..., o veículo VM, seguro na ré. 12. O veículo VM embateu violentamente com a frente do seu veículo na traseira esquerda do RR por não ter conseguido travar de modo a evitar o embate. 13. Com o choque, o RR rodopiou sobre si próprio e fez peão. 14. Imobilizando-se, após embater com a frente direita no veículo QI, com a frente virada para o sentido sul/norte. 15. O condutor do VM encontrava-se a trabalhar naquele momento, conduzindo por conta e no interesse da sua entidade patronal, para quem trabalhava como motorista profissional. 16. O autor foi socorrido pelos Bombeiros Voluntários ..., que logo ali lhe prestaram os primeiros socorros, levando-o para o Hospital ..., onde deu entrada de Urgência. – Episódio .... 17. No momento do sinistro, o A. sofreu forte embate por trás, sentindo a cabeça ir violentamente para a frente, no chamado efeito de choque de chicote cervical, ficando de imediato com tonturas, sentindo-se a perder os sentidos, com zumbidos nos ouvidos e tendo deixado por completo de sentir as pernas. 18. O autor ficou com o pé direito entalado no tablier do veículo, sofrendo entorse do mesmo. 19. O autor teve alta do hospital no mesmo dia, após ter efectuado exames e RX e ter-lhe sido prescrito analgesia e colocação de gelo no tornozelo. 20. Com o descrito embate, o veículo conduzido pelo autor ficou com danos cuja reparação foi avaliada em 13.318,39 €. 21. O titular inscrito como proprietário do veículo conduzido pelo autor tinha efectuado junto da D... – Grupo E..., contrato de seguro cobrindo danos próprios, através da apólice .... 22. Atento o valor da reparação, a D... considerou que o veículo RR era uma perda total. 23. Assim, procedeu ao pagamento do veículo ao seu proprietário, deduzindo ao mesmo uma franquia contratual de € 270,00. 24. O autor alugou um veículo entre 26/10/2020 e 18/11/2021, pagando o A. por esse aluguer a quantia de 733,30€. 25. Aquando do acidente, o autor, professor de educação física nos ... e no ..., ia trabalhar. 26. O autor não trabalhou por três dias, enjoado e com dores. 27. As dores que o autor sentia aumentaram. 28. O pé do autor continuou dorido, negro e inchado. 29. O autor sentia ainda dores na coluna cervical e cefaleias. 30. O autor tomou analgésicos. 31. Devido às dores sentidas, em 6/11/2020, ao autor consultou ortopedista (Dr. EE) na F..., especialista em Medicina Desportiva. 32. Nessa sequência, o autor fez uma ressonância magnética da coluna Cervical, por cervicalgia após acidente de viação, e ressonância magnética do tornozelo direito. 33. De acordo com o relatório médico resultante da RM, verificou-se “Perda da Lordose cervical fisiológica, com inversão cifótica com centro por C5-C6. Associa-se curvatura cervical de Convexidade lateral esquerda ligeira, na posição de estudo (decúbito dorsal). Não é visível situação de conflito de espaço ao nível do buraco occipital. O canal vertebral tem dimensões constitucionais normais. Em C5-C6 observa-se formação herniária com topografia posterior centro-lateral esquerda, no seio do qual se deteta fissura do anulo fibroso, acompanhada por reação osteofitária marginal anterior discreta e, aparentemente, também posterior, que molda a face anterior esquerda do cordão medular e que comprime a raiz C6 esquerda, sendo causa provável do seu compromisso; alteração a merecer correlação clínica.” 34. Em 13/11/2020, o autor fez uma ressonância magnética do tornozelo direito, verificando-se que tinha um espessamento do ligamento resultante de lesão do mesmo. 35. O autor continuou com dores e dificuldade em trabalhar. 36. Em 24/11/2020, o autor foi a nova consulta médica, tendo efectuado exames médicos complementares. 37. Foram-lhe receitados medicamentos analgésicos, concretamente, Sodolac, Miodia, Pregabalina e Lyrica. 38. Em 2/12/2020, o autor foi submetido a uma electromiografia e a nova RMN ao tornozelo direito, com marcação de nova consulta de Ortopedia em 15/12/2020. 39. No Hospital 1..., o autor iniciou em 28 de Janeiro de 2021 tratamento em Medicina Física e de Reabilitação, após nova consulta médica em 14/01/2021. 40. Em 4/03/2021 o autor apresentava ainda dores intensas no trapézio esquerdo/bordo medial da omoplata esquerda. 41. O autor mantém até à actualidade dor muscular difusa e generalizada, com aumento da rigidez do tronco cerebral (centro de controle). 42. Em consequência do acidente, o autor sofre de dores crónicas na cervical e contracções dos músculos suboccipitais, originando por várias vezes que este sofra intensas dores de cabeça. 43. O autor tinha trinta e seis anos à data do sinistro. 44. Após o acidente, o autor passou a ter dificuldade em dormir. 45. O autor ficou em pânico com a possibilidade de não poder voltar a trabalhar normalmente. 46. Quando o autor regressou ao trabalho, passou a dar as suas aulas com sacrifício e esforço acrescido. 47. Os tratamentos fisiátricos feitos pelo autor provocaram-lhe dores. 48. O autor efectuou sessões de fisioterapia, tomou brufen, ben-u-ron, Sodolac, Miodia e Lyrica e fez aplicações diversas com Voltaren gel. 49. Efectuou Raio-X e Ressonâncias Magnéticas, bem como TAC´s. 50. Toda esta situação causa ao autor, frustração, tristeza, preocupação, desgosto, angústia e ansiedade. 51. Antes do sinistro o A. tinha profunda alegria com a sua profissão e dava aulas com prazer e satisfação. 52. Era genericamente uma pessoa alegre e bem disposta, transmitindo essa alegria de viver aos amigos e aos alunos. 53. Após o acidente, o autor passou a ter necessidade de descansar o pé direito, coisa que até então nunca tinha sucedido. 54. O autor pagou as seguintes despesas médico-medicamentosas em consequência do acidente, com o valor global de 319,57€: a. RM feita no F..., Lda., 130€ b. Medicamentos adquiridos na Farmácia ..., 26,17€ c. Consulta de Ortopedia (6/11/2020), 15€ d. Consulta de Ortopedia (24/11/2020), 15€ e. Electromiograma (2/12/2020), 5,30€ f. RX 4 incidências (2/12/2020),15€ g. Consulta de Ortopedia (15/12/2020), 15€ h. Consulta de neuro-cirúrgia, 15€ i. Tratamento de MFR (10 sessões), 40,40€ j. Consultas de março de 2021, 35,20€. 55. Em Março de 2022 o A. pagou consultas médicas no valor de 32€. 56. Na sequência das mesmas, efectuou e pagou uma ressonância magnética à Coluna cervical e dois RX à coluna cervical, no valor de 82€. 57. E efectuou nova consulta de ortopedia em 26/05/2022 pela qual pagou 15€. 58. Em resultado do acidente acima descrito, o autor sofreu entorse do tornozelo direito e agravamento sintomático das queixas álgicas associadas a patologia degenerativa cervical (hérnia C5-C6). 59. Como consequência do acidente acima descrito, o autor ficou no dia do acidente com défice funcional temporário total e de repercussão temporária na actividade profissional total e nos cinquenta dias seguintes com défice funcional temporário parcial e de repercussão temporária na actividade profissional parcial, tendo a consolidação médico-legal das lesões ocorrido a 15 de Dezembro de 2020. 60. Em consequência do acidente, o autor sofreu um quantum doloris fixável em grau 2 numa escala de sete graus de gravidade crescente, enquanto valoração do sofrimento físico e psíquico desde o acidente até à consolidação das lesões. O exame pericial considerou o quantum doloris fixável em grau 2 numa escala de sete graus de gravidade crescente, enquanto valoração do sofrimento físico e psíquico desde o acidente até à consolidação das lesões. 61. Como consequência do acidente acima descrito, o autor apresenta défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 3 pontos, dado o esforço suplementar necessário para exercer a profissão de professor de ginástica, o grau 2/7 de repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer e o grau 2 de repercussão permanente na actividade sexual. 62. No ano de 2018, o autor declarou à Autoridade Tributária rendimento anual de €20.542,13 (rendimentos de categoria A: 17.982,13€; rendimentos de categoria B: 2.560€). 63. No ano de 2019, o autor declarou à Autoridade Tributária rendimento anual de €19.721,71 (rendimentos de categoria A: 17.521,71€; rendimentos de categoria B: 2.200€). 64. No ano de 2020, o autor declarou à Autoridade Tributária rendimento anual de €11.802,00 (rendimentos de categoria A: 11.220€; rendimentos de categoria B: 682€). 65. O autor continua a sentir dores durante as aulas. 66. O autor tem indicação cirúrgica para ser operado. 67. Por contrato de seguro, titulado pela apólice ..., foi transferida para a ré a responsabilidade civil pelos danos causados a terceiros pelo veículo VM. 68. Dada a proximidade dos veículos (VM e RR), o condutor do VM ainda guinou o volante do veículo que tripulava para a esquerda. 69. De acordo com as condições particulares da apólice nº ..., o proprietário do RR tinha direito a um veículo de substituição 30 dias por ano. 70. A referida apólice de seguro continha uma cobertura de despesas de tratamento do condutor até € 2.500,00. 71. O Grupo A... adquiriu a G... S.A. (...) onde se incluía a Companhia de Seguros H..., S. A.
*
E consideram-se como não provados os factos seguintes: A. Ao ver o congestionamento à sua frente, em concreto, o veículo conduzido pelo A., o veículo seguro na ré travou. B. O veículo seguro na ré circulava a, pelo menos, 80 Kms/h. C. Além dos rendimentos declarados à Autoridade Tributária, o autor auferia, em eventos de ginástica e de dança particulares, pelo menos, mais 500€/mês. D. O autor assumiu a franquia contratual de € 270,00. E. Devido às dores provocadas pelo acidente, o autor esteve uma semana sem conseguir dar aulas, com o que deixou de auferir 500€. F. Nas aulas de dança, teve de parar várias vezes, por não aguentar com as dores no pé. G. Nas aulas de ginástica localizada, durante mais de quatro semanas, o autor viu-se forçado a não acompanhar os alunos, limitando-se a exemplificar, com muito esforço, os exercícios dados e prescindido do uso de pesos. H. Cerca de um ano antes do sinistro, o A. tinha efectuado um exame médico de rotina, com uma RM, não acusando este qualquer hérnia ou lesão na coluna. I. Após o acidente e em virtude das preocupações e dores que consequentemente passou a sofrer, a personalidade do A. deixou de ser tão exuberante e comunicativa. J. Nas suas aulas, o autor deixou de transmitir a alegria esfuziante que lhe era habitual. K. As dores de costas que o autor sente durante as aulas obrigam-no a obrigam a parar e a sentar-se no chão. L. O VM circulava a uma velocidade não superior a 40 kms horários. M. O veículo de matrícula RR, conduzido pelo Autor, vindo da via de aceleração, galgou a linha contínua que separa essa via de aceleração da via da direita da AE .... N. Sem nada que o fizesse prever nem necessidade houvesse, o veículo RR travou, imobilizando-se ou praticamente se imobilizando. O. O veículo VM travou a fundo.
*
*
IV – MOTIVAÇÃO DE DIREITO
1. Do erro de julgamento da matéria de facto
O art. 640º do CPC estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão da matéria de facto, nos seguintes termos:
“1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3. […]”
O mencionado regime veio concretizar a forma como se processa a impugnação da decisão de facto, reforçando o ónus de alegação imposto ao recorrente, o qual terá que apresentar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação em sede de reapreciação dos meios de prova.
Recai, assim, sobre o recorrente, o ónus, sob pena de rejeição do recurso, de determinar os concretos pontos da decisão que pretende questionar, ou seja, delimitar o objeto do recurso, motivar o seu recurso através da transcrição das passagens da gravação que reproduzem os meios de prova, ou a indicação das passagens da gravação que, no seu entendimento, impunham decisão diversa sobre a matéria de facto, a fundamentação, e ainda, indicar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pelo Tribunal da Relação.
No caso concreto, o julgamento foi realizado com gravação dos depoimentos prestados em audiência, sendo, contudo, certo que a apelante impugna a decisão da matéria de facto com indicação dos pontos de facto alvo de impugnação, indicando como provas a reapreciar, essencialmente, o relatório pericial e documentação clínica, fazendo menção às declarações de parte do autor e esclarecimentos prestados pelos senhores peritos, indicando também a decisão que sugere, mostrando-se, assim, suficientemente, reunidos os pressupostos de ordem formal para proceder à reapreciação da decisão de facto.
Tal como dispõe o nº 1 do art. 662º do CPC, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto “(…) se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, o que significa que os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem um meio a utilizar apenas nos casos em que os elementos constantes dos autos imponham inequivocamente uma decisão diversa da que foi dada pela 1ª instância (sublinhado nosso).
No presente processo, como referido, a audiência final processou-se com gravação da prova produzida.
Segundo ABRANTES GERALDES, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, pág. 225, e a respeito da gravação da prova e sua reapreciação, haverá que ter em consideração que funcionando o Tribunal da Relação como órgão jurisdicional com competência própria em matéria de facto, nessa reapreciação tem autonomia decisória, devendo consequentemente fazer uma apreciação crítica das provas, formulando, nesse julgamento, com inteira autonomia, uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova.
Assim, compete ao Tribunal da Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, face ao teor das alegações do recorrente e do recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.
Cabe, ainda, referir que neste âmbito da reapreciação da prova vigora o princípio da livre apreciação, conforme decorre do disposto no art. 396.º do Código Civil.
E é por isso que o art. 607.º, nº 4 do CPC impõe ao julgador o dever de fundamentação da factualidade provada e não provada, especificando os fundamentos que levaram à convicção quanto a toda a matéria de facto, fundamentação essencial para o Tribunal de Recurso, nos casos em que há recurso sobre a decisão da matéria de facto, com vista a verificar se ocorreu, ou não, erro de apreciação da prova.
Posto isto, cabe analisar se assiste razão à apelante, na parte da impugnação da matéria de facto.
Como resulta das respetivas conclusões do recurso, a apelante entende que deve ser alterada/eliminada a matéria de facto dada como provada nos pontos 17, 18, 19, 26, 27 a 29, 42, 44, 45, 46, 58, 59, 61 e 66.
São os seguintes os factos impugnados: 17. No momento do sinistro, o A. sofreu forte embate por trás, sentindo a cabeça ir violentamente para a frente, no chamado efeito de choque de chicote cervical, ficando de imediato com tonturas, sentindo-se a perder os sentidos, com zumbidos nos ouvidos e tendo deixado por completo de sentir as pernas. 18. O autor ficou com o pé direito entalado no tablier do veículo, sofrendo entorse do mesmo. 19. O autor teve alta do hospital no mesmo dia, após ter efetuado exames e RX e ter-lhe sido prescrito analgesia e colocação de gelo no tornozelo. 26. O autor não trabalhou por três dias, enjoado e com dores. 27. As dores que o autor sentia aumentaram. 28. O pé do autor continuou dorido, negro e inchado. 29. O autor sentia ainda dores na coluna cervical e cefaleias. 42. Em consequência do acidente, o autor sofre de dores crónicas na cervical e contrações dos músculos suboccipitais, originando por várias vezes que este sofra intensas dores de cabeça. 44. Após o acidente, o autor passou a ter dificuldade em dormir. 45. O autor ficou em pânico com a possibilidade de não poder voltar a trabalhar normalmente. 46. Quando o autor regressou ao trabalho, passou a dar as suas aulas com sacrifício e esforço acrescido. 58. Em resultado do acidente acima descrito, o autor sofreu entorse do tornozelo direito e agravamento sintomático das queixas álgicas associadas a patologia degenerativa cervical (hérnia C5-C6). 59. Como consequência do acidente acima descrito, o autor ficou no dia do acidente com défice funcional temporário total e de repercussão temporária na atividade profissional total e nos cinquenta dias seguintes com défice funcional temporário parcial e de repercussão temporária na atividade profissional parcial, tendo a consolidação médico-legal das lesões ocorrido a 15 de dezembro de 2020. 61. Como consequência do acidente acima descrito, o autor apresenta défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 3 pontos, dado o esforço suplementar necessário para exercer a profissão de professor de ginástica, o grau 2/7 de repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer e o grau 2 de repercussão permanente na atividade sexual. 66. O autor tem indicação cirúrgica para ser operado.
Pretende a recorrente que o facto provado 17 seja eliminado parcialmente, nomeadamente o segmento que refere “ficando de imediato com tonturas, sentindo-se a perder os sentidos, com zumbidos nos ouvidos e tendo deixado por completo de sentir as pernas”.
Refere para o efeito que de acordo com o relatório de admissão no serviço de urgência, o Autor apresentava, na mobilização dos membros, nomeadamente inferiores, força, mobilidade e sensibilidades preservadas.
Ora, apesar de o autor, nas suas declarações de parte, ter referido que deixou de sentir as pernas, por ter um pé entalado debaixo do tablier, o certo é que do próprio relatório pericial, junto aos autos a 02-10-2023, consta que o autor “nega perda de consciência aquando do evento”, não existindo qualquer referência a tonturas ou zumbidos nos ouvidos, sendo que do relatório de admissão no serviço de urgência (mencionado no relatório pericial) consta que não houve perda de consciência, nem náuseas e vómitos, nem cefaleia.
Assim, considera-se assistir razão à recorrente, pelo que se altera o facto provado 17, nos termos pretendidos.
Impugna a recorrente também o facto provado 19, pretendendo que o mesmo seja alterado, passando a ter a seguinte redação: O autor teve alta hospitalar no mesmo dia, após ter efetuado exames e RX, apresentando força, mobilidade e sensibilidades preservadas dos membros e sem que os exames ao crânio e coluna cervical revelassem quaisquer alterações traumáticas.
O tribunal da Relação deve alterar a matéria de facto desde que resulte da prova produzida que foi feita uma incorreta apreciação da mesma.
Ora, o facto 19, tal como foi dado como provado, ou seja, “19. O autor teve alta do hospital no mesmo dia, após ter efetuado exames e RX e ter-lhe sido prescrito analgesia e colocação de gelo no tornozelo.”, resulta da documentação junta aos autos, pelo que não ocorre qualquer erro de julgamento quando o mesmo se dá como provado, pelo que deve manter-se.
O que a recorrente parece pretender é um aditamento à matéria de facto, sendo certo que tendo em conta que está em causa nos autos apurar os danos que o autor sofreu, se afigura que se mostra importante a factualidade que a recorrente pretende ver acrescentada ao facto 19.
Assim, mantendo-se o que foi dado como provado pelo tribunal recorrido, acrescenta-se, contudo, ao dito facto o que a recorrente pretende, passando o facto 19 a ter a seguinte redação: 19. O autor teve alta do hospital no mesmo dia, após ter efetuado exames e RX e ter-lhe sido prescrito analgesia e colocação de gelo no tornozelo, apresentando ao exame objetivo, força, mobilidade e sensibilidades preservadas dos membros e sem que os exames ao crânio e coluna cervical revelassem quaisquer alterações traumáticas.
Ainda quanto a alterações nos factos provados, entende a recorrente que no facto provado 26 deve ser eliminada a parte “enjoado e com dores”.
Ora, como já se referiu supra, do relatório de admissão no serviço de urgência (mencionado no relatório pericial) consta que não houve perda de consciência, nem náuseas e vómitos, nem cefaleia, pelo que deve efetivamente ser retirada a parte que refere que o autor se sentiu enjoado. Já quanto às dores, as próprias regras da experiência comum permitem concluir que o autor tenha sentido dores, mesmo alguns dias após o acidente, tendo em conta a dinâmica do embate.
Assim, o facto provado 26 passa a ter a seguinte redação: 26. O autor não trabalhou por três dias, com dores.
Quanto aos demais factos que a recorrente impugna, nomeadamente os factos provados 18,27 a 29, 42, 44, 45, 46, 58, 59, 61 e 66, pede a mesma que sejam eliminados.
Vejamos.
Os factos em causa estão relacionados com as sequelas sofridas pelo autor em consequência do acidente em discussão nos autos.
Tendo em conta o que consta do relatório pericial junto aos autos em 02-10-2023 e os esclarecimentos juntos em 29-04-2024, entendemos que se mostra perfeitamente justificado o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica do autor, tendo tal atribuição sido devidamente justificada, e não tendo sido contrariada por qualquer outro meio de prova.
Os senhores peritos justificaram os motivos para considerarem ter o autor sofrido entorse do pé direito, confirmando existir nexo de causalidade entre o traumatismo descrito e o dano, o que resultou também das declarações do autor, embora não apenas destas, como a recorrente diz.
E também quanto ao agravamento sintomático das queixas álgicas associadas à patologia degenerativa cervical, de que o autor já sofria, os senhores peritos explicaram a atribuição do défice funcional, sendo, aliás, até da experiência comum que sofrendo da patologia em causa, um embate como aquele que ocorreu, que provocou um “movimento cervical em chicote”, só podia ter agravado a dita patologia.
E sendo assim, não se vê motivo para duvidar do que o autor disse, quanto a ter ficado com o pé direito entalado; como não se duvida que sentiu dores e que as mesmas até se agravaram nos dias seguintes ao acidente; continuando o pé do autor dorido, negro e inchado, como natural consequência de ter ficado entalado.
Quanto às dores na coluna cervical, já resulta do que se disse que se mostram comprovadas.
E, diga-se, ainda, que tais conclusões não são contrariadas pela factualidade provada no facto 19, na sequência dos exames realizados logo após o acidente, no serviço de urgência, podendo ter ocorrido que os exames realizados não revelassem as lesões, sendo certo que as mesmas, nomeadamente ao nível da coluna cervical, existiam, até já previamente ao acidente.
Por sua vez, tendo em conta a situação dolorosa da cervical, não podemos deixar de valorar as declarações do autor, quando refere que passou a ter dificuldade em dormir, que sentiu pânico com a possibilidade de não poder voltar a trabalhar, e que quando voltou ao trabalho, passou a ter que exercer um maior esforço.
Já nos pronunciamos quanto à matéria do facto provado 58, no sentido de em resultado do acidente, o autor ter sofrido entorse do tornozelo direito e agravamento sintomático das queixas álgicas associadas a patologia degenerativa cervical, como resultou do relatório pericial e esclarecimentos, os quais comprovam também a matéria dada como provada nos factos 59 e 61.
O facto provado 66, de que o autor tem indicação cirúrgica para ser operado, resulta claramente dos autos, tanto que o autor já recusou a cirurgia por duas vezes.
O único facto que entendemos dever ser efetivamente eliminado dos factos provados, até porque não tem qualquer influência na decisão, tendo em conta o que demais se provou, é o facto 42, ou seja, que “Em consequência do acidente, o autor sofre de dores crónicas na cervical e contrações dos músculos suboccipitais, originando por várias vezes que este sofra intensas dores de cabeça”, até porque se afigura impreciso, já que dá a entender que as dores de que o autor sofre, apenas surgiram na sequência do acidente, o que não corresponde à realidade, já que o que se provou foi o agravamento das dores de que já padecia.
Procede, assim, parcialmente e nos termos expostos, a impugnação da matéria de facto
*
2. Do erro da decisão de direito
A pretensão da recorrente consiste em ver alterada a decisão que a condenou no pagamento dos valores indemnizatórios referidos supra, em concreto:
- alterando-se o valor da condenação constante da alínea c) para € 733,30;
- eliminando-se a condenação da alínea e);
- reduzindo-se o valor da indemnização arbitrada a título de dano moral para € 5 000,00 e eliminando-se a indemnização a título de dano biológico, ou, pelo menos,
- reduzindo-se os valores da indemnização por dano moral e por dano biológico, respetivamente, para € 8.000,00 e para € 15.000,00.
Ora, no que diz respeito à condenação que consta das alíneas c) e e) do dispositivo da sentença recorrida, considerando que se mantiveram os factos provados relativos a tais condenações, nada há a alterar, mantendo-se tal como consta da decisão.
Quanto aos valores da indemnização por danos não patrimoniais e pelo dano biológico, sofridos pelo autor, diremos o seguinte:
Como resulta da matéria de facto provada, o autor ficou definitivamente afetado na sua integridade física e psíquica, com repercussão na atividade profissional, bem como nas atividades da vida diária, incluindo familiares e sociais, num grau 3, numa escala até 100.
Só este facto já se afigura suficiente para que se deva concluir pela perda da capacidade de ganho, nem que seja apenas pelo maior esforço que o autor terá que despender para realizar as mesmas tarefas que antes realizava, ainda que não tivesse resultado provada qualquer específica perda definitiva da capacidade de ganho.
Por refletir de forma clara a nossa posição sobre esta questão, passamos a transcrever o que foi decidido no Acórdão do STJ, de 21-04-2022, processo 96/18.9T8PVZ.P1.S1, onde se diz:
“I. O dano biológico vem sendo entendido como dano-evento, reportado a toda a violação da integridade físico-psíquica da pessoa, com tradução médico-legal, ou como diminuição somático-psíquica e funcional do lesado, com repercussão na sua vida pessoal e profissional, independentemente de dele decorrer ou não perda ou diminuição de proventos laborais; é um prejuízo que se repercute nas potencialidades e qualidade de vida do lesado, susceptível de afectar o seu dia-a-dia nas vertentes laborais, sociais, sentimentais, sexuais, recreativas, determinando perda das faculdades físicas e/ou intelectuais em termos de futuro, perda essa eventualmente agravável em função da idade do lesado.
II. Tal dano tanto pode ser ressarcido como dano patrimonial, como pode ser compensado a título de dano moral. Depende da situação concreta sob análise, a qual terá de ser apreciada casuisticamente, verificando-se se a lesão originará, no futuro, durante o período activo do lesado ou da sua vida, e por si só, uma perda da capacidade de ganho ou se se traduz, apenas, numa afectação da sua potencialidade física, psíquica ou intelectual, sem prejuízo do natural agravamento inerente ao decorrer da idade.
III. Não sendo possível determinar o valor exacto deste dano, tal avaliação terá de ser efectuada recorrendo à equidade, nos termos do artigo 566 º n.º 3 do CC. Isto é, a equidade terá de ser sempre um elemento essencial no cálculo deste dano, independentemente de se considerar o dano biológico numa vertente meramente patrimonial, mais ou menos patrimonial ou até... como um tertium genus.
IV. Na determinação do seu quantum indemnizatório, deve ter-se em consideração os critérios jurisprudenciais vigentes e aplicáveis a situações semelhantes, face ao que dispõe o art. 8°, n° 3, do CC, fazendo-se a comparação do caso concreto com situações análogas equacionadas noutras decisões judiciais, sem se perder de vista a sua evolução e adaptação às especificidades do caso concreto – não podendo, assim, o dano biológico ser indemnizado por obediência a tabelas rígidas, de forma que a uma mesma pontuação em pessoas de idade aproximada tenha de corresponder necessariamente a fixação do mesmo valor a ressarcir.
V. Particularmente relevante é a conexão entre as lesões físico-psíquicas sofridas e as exigências próprias da actividade profissional habitual do lesado, assim como de atividades profissionais ou económicas alternativas (tendo em conta as qualificações e competências do lesado).”.
Voltando ao caso, não havendo dúvidas que é devida a indemnização pelo dano biológico, face à matéria de facto provada, na sua vertente patrimonial de perda da capacidade de ganho, vejamos, então, se deve ser alterado o valor fixado pela 1.ª Instância.
Provou-se, com interesse para esta questão, que:
- O défice funcional permanente da integridade físico-psíquica resultante para o autor da lesão sofrida é de três pontos numa escala de cem.
- As sequelas que para o autor resultaram do acidente, no que à repercussão permanente na atividade profissional respeita, são compatíveis com o exercício da sua atividade profissional habitual, mas provocam maior penosidade na sua execução, por exigência de esforços suplementares para a prática das mesmas funções laborais.
- À data do acidente, o autor tinha 36 anos de idade.
- Auferia um rendimento médio anual de cerca de € 17 000,00.
Posto isto, considerando uma esperança média de vida na ordem dos 78 anos, é de concluir que o autor ainda terá cerca de 42 anos de rendimentos.
Com base nesta factualidade, o tribunal recorrido entendeu que “O conjunto dos factos acima descritos configura para o autor um dano biológico, o qual consiste num dano patrimonial futuro previsível autonomamente indemnizável (artigo 564.º, n.º 2, do Código Civil), uma vez que reflecte uma diminuição da condição e capacidade física, da resistência, da capacidade de certos esforços e correspondente necessidade de um esforço suplementar para obtenção do mesmo resultado, seja ele ou não do foro laboral, embora, neste campo, possa vir a comprometer o desempenho profissional, a progressão na carreira e o montante da pensão de reforma (veja-se, neste sentido, a título de exemplo, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.5.2021, proc. 826/18.9T8CTB.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt).
O apuramento deste dano biológico depende de um critério de equidade, já que não é compatível com um simples cálculo aritmético (artigos 566.º, n.º 3, e 4.º, alínea a), do Código Civil).
Todas as acima identificadas circunstâncias factuais relevam para encontrar a solução mais justa, proporcional e adequada para este caso concreto, e, ponderando-as, consideramos equilibrada uma indemnização no valor de € 22.000,00.”.
Ora, se levarmos em conta os critérios referidos, e em concreto o rendimento anual do autor, o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de que ficou a padecer, bem como o previsível número de anos de obtenção de rendimentos, constata-se que o valor atribuído pelo tribunal recorrido resulta praticamente do cálculo aritmético desses dados, que não deve ser o critério da fixação da indemnização, como na própria sentença recorrida se diz.
É que, a obrigação de indemnizar tem como diretrizes, por um lado, o princípio da reparação integral do dano, mas, por outro, a proibição de enriquecimento injusto do lesado à custa da indemnização.
Assim, sendo certo que a indemnização pelo dano futuro deve representar não um aumento do património, mas o ressarcimento da frustração de um ganho que era legitimamente esperado, não deve a indemnização ser fixada por cálculos aritméticos precisos, mas, antes, recorrendo, como já dito, a critérios de equidade, que equilibrem o facto de o lesado ir receber de uma só vez, uma quantia que apenas iria receber ao longo de anos.
Deste modo, considerando a idade do autor, o vencimento que auferia e que se manterá, apesar do maior esforço que terá que empregar para exercer as mesmas funções, e usando critérios de equidade, conforme referido supra, consideramos que a quantia de € 15 000,00 (quinze mil euros) indicada pela recorrente, a título de dano biológico na sua vertente patrimonial de perda da capacidade de ganho, se mostra mais adequada e proporcional em termos equitativos, procedendo o recurso nesta parte.
Recorre a ré também do valor fixado a título de indemnização por danos não patrimoniais, valor que o tribunal recorrido fixou em € 15.000,00 (quinze mil euros) e que a recorrente considera excessivo.
Quanto à indemnização por danos não patrimoniais, importa ter presente as seguintes considerações:
De harmonia com o disposto no art. 496º, nº 1 do Código Civil, a indemnização por danos de natureza não patrimonial respeita apenas aos danos que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, como é o caso da ofensa dos direitos à vida, à integridade física e moral, à liberdade, à segurança, à saúde e à qualidade de vida, entre outros, direitos que são tutelados pela Constituição da República Portuguesa (arts. 24º, 25º, 26º, 27º, 64º e 66º).
Destina-se esta indemnização a que se conceda ao ofendido uma quantia em dinheiro considerada adequada a proporcionar-lhe alegria ou satisfação que de algum modo contrabalancem as dores, desilusões, desgostos ou outros sofrimentos que o ofensor lhe tenha provocado.
O Supremo Tribunal de Justiça vem decidindo que esta indemnização se destina a proporcionar ao lesado, na medida do possível, uma compensação que lhe permita satisfazer necessidades consumistas que constituam um lenitivo para o mal, sofrido. Deve, por isso, tal compensação abranger as consequências passadas e futuras resultantes das lesões emergentes do evento danoso. Trata-se, num e noutro caso, de prejuízos de natureza infungível, em que, por isso, não é possível uma reintegração por equivalente, mas tão só um almejo de compensação que proporcione ao beneficiário certas satisfações decorrentes da utilização do dinheiro.
Nos termos do nº 3 do referido art. 496.º do Código Civil, a sua fixação deve ser feita equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção o grau de concorrência do lesante, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso (art. 494.º do Código Civil, para que remete aquele preceito legal).
Sobre o critério de equidade na fixação do montante da indemnização por danos não patrimoniais tem-se entendido que deve ser proporcionado à gravidade do dano, tomando em conta na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida.
A este respeito, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça vem acentuando a ideia de que tais compensações devem ter um alcance significativo, e não meramente simbólico nem miserabilista, acrescentando que, na sua fixação, não podem deixar de ser ponderadas circunstâncias como o quantum doloris, o período de doença, situação anterior e posterior do lesado em termos de afirmação social, apresentação e autoestima, alegria de viver, sua idade, esperança de vida e perspetivas para o futuro, incluindo o dano biológico (agora, na vertente não patrimonial), entre outras, que o caso concreto revele.
Partindo destas matrizes, e aceite que o autor sofreu danos não patrimoniais suscetíveis de indemnização, em face do critério estabelecido no art. 496.º, nº 1 do Código Civil, vejamos se o valor fixado pelo tribunal a quo se mostra equitativamente adequado.
Com relevância para a fixação da indemnização por danos não patrimoniais, há que tomar em consideração os seguintes aspetos, invocados pelo autor e dados como provados, ou seja, a natureza e a gravidade da ofensa sofrida na sua integridade física, aferida pela gravidade das lesões que sofreu e pelo grau de incapacidade de que ficou afetado em resultado dessas lesões, bem como a intensidade das dores que sofreu em consequência dessas lesões e dos tratamentos clínicos a que foi sujeito, isto é, o quantum doloris, a repercussão nas atividades desportivas e de lazer e, ainda, em termos de atividade sexual.
Como se vê dos factos provados, o autor foi ofendido na sua integridade física e na sua saúde, ofensas tuteladas pela Constituição da República Portuguesa (arts. 25.º, 64.º, nº 1 e 66.º, nº 1) e pelo Código Civil (art. 70.º) e, por isso, com relevância jurídica para efeitos de indemnização, nos termos do art. 496.º, nº 1 do Código Civil.
Em termos objetivos, as lesões sofridas pelo autor revelam um grau de gravidade médio, apesar do período de incapacidade total que sofreu, foi submetido a tratamentos, consultas e exames e sofreu evidentemente dores, quer em consequência das lesões quer dos tratamentos a que foi submetido, para além de ter ficado com sequelas que lhe provocam défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 3 pontos.
Assim, com base nestes pressupostos fácticos e tendo presentes as orientações jurisprudenciais acima referidas, temos de concluir que se mostra adequadamente fixado o valor a título de indemnização por danos não patrimoniais.
Posto isto, improcede o recurso nesta parte.
*
*
V - DISPOSITIVO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pela ré A..., S.A., e com sequentemente:
a) Alteram parcialmente a decisão da matéria de facto, nos termos expostos supra;
b) Alteram a condenação em indemnização pelo dano biológico sofrido pelo autor, que substituem por outra que fixa o valor em € 15 000,00 (quinze mil euros);
c) Mantêm a decisão recorrida quanto ao demais aí decidido.
Custas a cargo da apelante na proporção do decaimento (art. 527.º, nºs 1 e 2 do CPC).
Porto, 2025-05-22
Manuela Machado
Paulo Duarte Teixeira
Álvaro Monteiro