I - O que dita a indisponibilidade de certos direitos é a sua subtração ao princípio da autonomia da vontade. Ora, quando a própria lei aceita e protege essa autonomia, ainda que com certos limites, então a desistência do pedido pode ser admitida, desde que conduza a um resultado que assegure o interesse público que a indisponibilidade visa proteger, no caso, o superior interesse da criança.
II - Num caso em que a regulação das responsabilidades parentais estava estabelecida como atribuindo o exercício conjunto a ambos os pais para as questões de particular importância da vida, e se pretende agora o exercício exclusivo, estamos apenas perante diversas modalidades do exercício dessas responsabilidades. A desistência do pedido dessa alteração é admissível.
III - Nos processos de jurisdição voluntária as decisões estão subtraídas a critérios de legalidade estrita, devendo antes ser tomadas de acordo com critérios de conveniência ou de oportunidade (art.º 987º CPC).
IV - Existindo divergência entre ambos os progenitores, cada um peticionando um exercício das responsabilidades parentais em exclusivo, a seu favor, não se trata propriamente duma reconvenção, no sentido estrito do termo. Mas existe uma controvérsia a ser dirimida pelo que, o facto de um vir a desistir do pedido não prejudica o direito do outro a ver apreciada a sua pretensão.
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO
I – Resenha do processado
1. Corre termos um processo de alteração das responsabilidades parentais, instaurada por AA contra BB, e relativamente aos menores CC e DD.
Com pertinência para o recurso, havia sido acordado pelos progenitores, homologado por sentença que “a residência oficial das crianças é com a mãe” e que “o exercício das responsabilidades parentais nas questões de particular importância da vida dos filhos compete a ambos os pais, sendo que quanto aos atos da vida corrente tal exercício competirá ao progenitor que em cada momento tiver os filhos”.
Com este processo de alteração, pede a Requerente:
«A alteração do exercício das responsabilidades parentais relativamente aos menores, de modo a que a Requerente tenha plenos poderes para tomar decisões importantes e necessárias para o crescimento e desenvolvimento saudável dos menores, atribuindo-se a guarda e o exercício das responsabilidades parentais à ora Requerente e Progenitora Mãe.»
De relevante, invocou que o Requerido foi condenado pelo crime de violência doméstica na sua pessoa e na pena acessória de proibição de contactos com ela, o que dificulta o diálogo entre ambos, surgindo coisas que necessitam de solução célere e o facto de o exercício das responsabilidades parentais se encontrar atribuído a ambos os progenitores não permitem a rápida e boa decisão do presente e futuro dos menores.
Em contestação, o Requerido questionou a idoneidade da progenitora para o exercício da maternidade, considerando-a um risco para o exercício de uma parentalidade responsável. E contrapôs que os menores lhe devem ser entregues.
Os autos prosseguiram até que a Requerente apresentou requerimento comunicando que “desiste do presente processo, bem como da Petição Inicial e dos demais requerimentos que integram a ação de Alteração da Regulação das Responsabilidades Pentais”.
Ouvido o Requerido, suscitou que não se esclarece se desiste da instância ou do pedido e considerou inválida a desistência por ter por objeto direitos disponíveis.
Notificada para esclarecer se se tratava de desistência da instância ou do pedido, a Requerente veio dizer que “desisto do pedido, pretendo desistir da guarda total para o bem estar dos meus filhos tanto imosional como pesicologico, e manter a guarda partilhada”.
O Requerido manteve a sua posição da invalidade da desistência e o Ministério Público (Mº Pº) declarou nada ter a opor.
A Mm.ª Juíza considerou válida a desistência, com a seguinte fundamentação:
«Segundo o artigo 283º, nº1, do Código de Processo Civil, na redacção dada pela Lei nº 41/2013 de 26 de Junho (aplicável ex vi o artigo 33º, nº1 do R.G.P.T.C.) o autor pode a qualquer altura desistir de todo o pedido ou de parte dele.
Dispõe o art. 285, n.ºs 1, do Código de Processo Civil, na redacção dada pela Lei nº 41/2013 de 26 de Junho, (aplicável ex vi o artigo 33º, nº1 do R.G.P.T.C.) que:
1) A desistência do pedido extingue o direito que se pretendia valer”.
Por sua vez o artigo 286º, nsº1, do mesmo diploma legal (aplicável ex vi o artigo 33º, nº1 do R.G.P.T.C.), menciona que:
“2. A desistência do pedido é livre mas não prejudica a reconvenção, a não ser que o pedido reconvencional seja dependente do formulado pelo autor.”
Neste caso, o requerido alegou mas não deduziu reconvenção, porque tal não é admissível, nos termos do artigo 39º, nº4, do R.G.P.T.C., por isso a desistência é livre, não sendo necessária a sua aceitação.
Podendo o autor desistir a qualquer altura de todo o pedido, segundo o artigo 283º, nº1, do Código mencionado, aplicável ex vi o artigo 33º, nº 1, do R.G.P.T.C.
O requerido invoca que é um direito indisponível e que não admite desistência, porque se aplica o artigo 289º, nº1, do C.P.C.
O artigo 289º, nº1, do C.P.C. refere que: “Não é permitida confissão, desistência, ou transação que importe afirmação da vontade das partes relativamente a direitos indisponíveis”
O Regime Geral do Processo Tutelar Cível, não prevê uma norma como esta, por isso, só se podia aplicar se entendesse que existia uma lacuna e que teria de se recorrer subsidiariamente ao C.P.C., nos termos do artigo 33º, nº1, do R.G.P.T.C., desde que não contrarie os fins da jurisdição de menores.
Ora se houvesse o entendimento que o artigo 289º do C.P.C. se aplicava aos processos tutelares de regulação, alteração e incumprimento do exercício das responsabilidades parentais dos filhos, não era admissível a desistência, nem a transação.
Só que o legislador de forma expressa afastou a aplicação do artigo 289º, nº1, do C.P.C. aos processos tutelares de menores, nos artigos 37º, nº 1 e 41º, nº 4, do R.G.P.T.C., ao prever o acordo dos pais e a sua homologação pelo Tribunal.
Portanto nestes processos, é admissível a transação e a desistência, desde que salvaguarde os interesses da criança, que é critério que orienta o Juiz.
Neste caso encontra-se regulado o exercício das responsabilidades parentais da CC e do DD, estando fixada uma residência alternada.
Por isso, o Tribunal tem apenas de verificar se esta desistência salvaguarda os interesses destas crianças.
A outra norma que o requerido invoca, que é o artigo 294º do Código Civil, não se aplica, porque não existe norma imperativa que se aplique aos processos tutelares cíveis que impeça os pais de desistir do pedido ou da instância.
Assim, examinando o objecto do processo, e a qualidade da desistente julgo válida a desistência, porque salvaguarda os interesses dos filhos e permite diminuir o conflito que existe entre os progenitores, e homologo-a por sentença, declarando extinto o direito que se pretendia valer (cfr. arts. 283º, 286º e 290º, todos do Código de Processo Civil, na redacção dada pela Lei nº 41/2013 de 26 de Junho, aplicável ex vi o artigo 33º do R.G.P.T.C.).»
2. Inconformado com tal decisão, dela apelou o Requerido, formulando as seguintes conclusões:
1. O que dita se a desistência do processo é ou não válida é ter a Acção por objeto direitos disponíveis ou, ao invés, fundar-se em direitos indisponíveis.
2. Consideram-se, em regra, indisponíveis as relações jurídicas concernentes ao “Estado” das pessoas, e não, por exemplo, ao seu património.
3. Assim, a desistência do processo sobre o próprio “Estado” ou sobre os efeitos pessoais da Regulação das Responsabilidades Parentais é nula (cfr. art.s 289, n°1, do CPC e 294°, do CC), pois quer o “Estado” de filho quer o do progenitor é irrenunciável, versando sobre "direitos indisponíveis".
4. A constelação de direitos - deveres que constitui o conteúdo das Responsabilidades Parentais tem um cariz imperativo de indisponibilidade e irrenunciabilidade – artº 1882º CC.
5. O superior interesse dos menores não se encontra assegurado, pois não foi cumprido o contraditório, o que configura uma nulidade – artº 25º RGPTC.
6. O Requerido pediu que os filhos lhes fossem entregues, bem como o exercício do Poder Paternal.
7. Tal tem que ser considerado como “Reconvenção” lato senso, atenta a especificidade do regime tutelar cível – assim sendo, a desistência não prejudica a Reconvenção, que terá que prosseguir – artº 286º, nº 2 CPC.
8. A Requerente, enquanto progenitora configura um risco para o exercício de uma parentalidade responsável, com consequências para as crianças, que urge proteger.
9. O Apoio Judiciário foi pelo Requerido impugnado mas o douto Tribunal não se pronunciou e, considerou que a Requerente dele beneficia, prejudicando indirectamente o Estado Português.
10. Normas jurídicas violadas: artº 286º, nº 2 e 289º, nº 1 CPC; artº 294º, 1878º, nº 1 e 1882º CC; artº 25º e 39º, nº 4 RGPTC.
Pelo exposto, deve o Recurso ser julgado procedente e provado, considerando-se inadmissível a desistência do pedido, com as legais consequências, nomeadamente o prosseguimento dos autos.
3. Apenas o Mº Pº contra-alegou, concluindo pela improcedência do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II - FUNDAMENTAÇÃO
4. Apreciando o mérito do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art.º 615º nº 1 al. d) e e), ex vi do art.º 666º, 635º nº 4 e 639º nº 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC).
No caso, trata-se de apurar da validade da desistência dum pedido de alteração das responsabilidades parentais.
Decidindo:
§ 1º - Como é sabido, a desistência do pedido extingue o direito que se pretendia fazer valer, enquanto que a desistência da instância apenas faz cessar o processo que se instaurara: art.º 285º do CPC.
Face a essa diferença abissal — a extinção dum direito ou dum processo —, a lei rodeou as duas situações de algumas cautelas.
Assim, porque a desistência da instância apenas faz cessar o processo que se instaurou, tal significa que contende apenas com a relação processual. O Autor não renuncia ao direito que pretendia fazer valer e pode mais tarde instaurar novo processo com o mesmo objeto. [[1]] Por isso, acautelando a posição do Réu, a quem pode não interessar essa incerteza de vir mais tarde a ver-se envolvido em novo processo, a lei impõe que quando a desistência da instância se produz depois da contestação, a mesma fica dependente da aceitação do Réu: art.º 286º nº 1 do CPC.
E tal bem se compreende. «Efetivamente, em face dos bons princípios não pode reconhecer-se ao autor o direito de dispor da relação jurídica processual como de coisa sua. O autor tem a faculdade de propor ou deixar de propir a causa; mas, se a propõe e o réu é citado para ela, como ao lado da relação jurídica de acção se forma a relação jurídica de contradição ou defesa e, em consequência deste segundo vínculo, o réu adquire o direito de fazer proferir sentença sobre o fundo da controvérsia, sobre a relação jurídica substancial, não é lícito ao autor, por simples acto da sua vontade, extinguir unicamente a instância. (…) O réu ver-se-ia, assim, privado, por acto arbitrário do autor, do direito de fazer decidir a lide no primeiro processo; e isso poderia traduzir-se na perda de vantagens processuais de grande alcance.» [[2]]
Já na desistência do pedido o Réu não sofre desses inconvenientes pois que, essa desistência produz a extinção do direito exercido, significando que o Autor fica impedido de o voltar a exercer. A sentença homologatória duma desistência do pedido, implica a absolvição do Réu desse mesmo pedido.
Como o Autor não pode demandar o Réu em nova ação, a desistência do pedido nenhum prejuízo lhe traz; ao contrário, só o favorece ao obter ganho de causa prematuramente, sem ter de completar todos os trâmites processuais.
Por isso se diz que a desistência do pedido é livre. Havendo reconvenção, os interesses do Réu ficam acautelados pois que a desistência não afeta a apreciação dos pedidos reconvencionais, exceto se estes forem dependentes do formulado pelo Autor: art.º 286º nº 2 do CPC.
Porém, a lei estipula limites à desistência do pedido, considerando-a inadmissível quando se reporte a direitos indisponíveis: art.º 289º nº 1 do CPC.
O que bem se compreende, já que, tratando-se de algo que está fora da autonomia da vontade e da liberdade de disposição, a declaração de vontade do sujeito só poderá ser inoperante e ineficaz.
São exemplos de escola de direitos indisponíveis os “direitos fundamentais constitucionalmente protegidos”, os “direitos de personalidade” e os relativos ao “estado das pessoas”, por exemplo os respeitantes ao reconhecimento da qualidade de filho ou pai. Estamos no domínio dos interesses de ordem pública, que se sobrepõem aos interesses individuais, pelo que são direitos subtraídos à iniciativa e livre vontade dos indivíduos.
«II - Direitos disponíveis, como se extrai da própria expressão, são aqueles de que a parte pode, livremente, dispor e direitos indisponíveis os de que a parte não pode renunciar, aqueles em que a vontade das partes não pode manifestar-se de forma válida, que estão subtraídos ao domínio da vontade das partes, podendo sê-lo: i) quer por existir determinação legal expressa; ii) quer pela natureza da relação jurídica.» [[3]]
Mas, como bem advertem Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto [[4]], e resulta da leitura do nº 2 do art.º 289º do CPC, ao permitir a desistência nas ações de divórcio e separação de bens, essa indisponibilidade pode ser absoluta ou relativa, tudo dependendo dos contornos do caso concreto e da causa de pedir e do pedido.
E assim, como adverte Alberto dos Reis, há que atender aos contornos do caso concreto, da causa de pedir e do pedido. Dissertando sobre o exemplo das “antigas” ações de investigação de paternidade ilegítima, e as controvérsias doutrinais e jurisprudenciais à volta da possibilidade de confissão e desistência, refere o ilustre Mestre: «O estado é irrenunciável, tanto o estado já constituído, como o estado a constituir. (…)
Uma coisa é, porém, a confissão, desistência ou transação sobre o próprio estado ou sobre os efeitos pessoais da ação de investigação de paternidade ilegítima, outra a confissão, desistência ou transação sobre os direitos patrimoniais emergentes do estado de filho.» [[5]]
§ 2º - As particularidades/especificidades da regulação das responsabilidades parentais
As questões substanciais atinentes às responsabilidades parentais estão previstas no Código Civil (CC), enquanto os aspetos processuais constam do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (RGPTC) aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 08 de setembro.
O RGPTC nada refere expressamente sobre a possibilidade de desistência, mas o seu art.º 33º nº 1 remete-nos para as regras de processo civil, como direito subsidiário. Assim, valem os princípios atrás explanados, desde que “não contrariem os fins da jurisdição de menores”.
Já a afirmação de quais sejam os direitos indisponíveis, e do seu caráter absoluto ou relativo, terá de ser encontrada no CC, enquanto lei substantiva.
As responsabilidades parentais são exercidas no interesse dos filhos, obrigando os progenitores a velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los e administrar os seus bens (art.º 1878º CC). Já os filhos estão sujeitos às responsabilidades parentais até à maioridade ou emancipação (art.º 1877º CC).
E efetivamente, o art.º 1882º do CC determina que os pais não podem renunciar às responsabilidades parentais nem a qualquer dos direitos que ele especialmente lhes confere, sem prejuízo do que neste Código se dispõe acerca da adoção.
Sucede que, como atrás se disse, há que interpretar esta disposição cum grano salis. Uma coisa seria a renúncia às responsabilidades ou direitos parentais tout court, que deve entender-se irrenunciável/indisponível porque inerente ao estado ou qualidade de progenitor. Coisa bem diferente é o respetivo exercício, ou seja, o leque de deveres e direitos que a qualidade de progenitor integra e comporta e que se protela durante toda a menoridade dos filhos.
Desde logo porque o exercício das responsabilidades parentais tem duas modalidades: o exercício conjunto e o exercício exclusivo por um dos progenitores, ou até a confiança a terceira pessoa.
Ou seja, o modo como se exercem e se concertam entre ambos os progenitores, as competências de cada um deles no exercício das responsabilidades parentais é uma realidade diversa da respetiva renúncia.
Assim, ao invés de referir que “responsabilidade” cabe a cada um, o CC estatui como regra que elas são exercidas de comum acordo (art.º 1901º nº 2 CC), mesmo em caso de divórcio (art.º 1906º nº 1 CC).
E o Tribunal deve privilegiar a manutenção desse acordo, mesmo após o divórcio, na perspetiva que os pais saberão melhor que ninguém como harmonizar a vida familiar e satisfazer os interesses dos filhos.
Porém, porque está em causa o interesse público da proteção da infância e do superior interesse das crianças, o Tribunal pode ser chamado a dilucidar “questões de particular importância da vida dos filhos”, quer durante o casamento, quer após o divórcio (art.º 1906º nº 1 e 2 CC). Da mesma feita que pode não homologar o acordo obtido se ele não acautelar o superior interesse da criança (art.º 1906º nº 6 e 8 CC).
Por outro lado, é sabido que no âmbito dos processos de jurisdição voluntária, o valor do trânsito em julgado das decisões é limitado à manutenção das circunstâncias tidas em conta na decisão tomada.
Ou seja, não vigora o princípio da imutabilidade do trânsito em julgado, já que a decisão pode ser alterada, desde que circunstâncias supervenientes assim o justifiquem.
Assim o preceitua o art.º 988º do CPC: Nos processos de jurisdição voluntária, as resoluções podem ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração; dizem-se supervenientes tanto as circunstâncias ocorridas posteriormente à decisão como as anteriores, que não tenham sido alegadas por ignorância ou outro motivo ponderoso.
Assim sendo, se a forma como as responsabilidades parentais são exercidas pode ser acordada entre os pais, e se qualquer acordo obtido pode ser alterado a todo o tempo, também é de admitir que um dos progenitores desista dum qualquer pedido que tenha suscitado ao Tribunal sobre o modo de as exercer.
Na verdade, se o que dita a indisponibilidade de certos direitos é a sua subtração ao princípio da autonomia da vontade, e se a própria lei aceita e protege essa autonomia, ainda que com certos limites, então a desistência e a transação podem ser admitidas, desde que conduzam a um resultado que assegure o interesse público que a indisponibilidade visa proteger, no caso, o superior interesse da criança.
No caso, a Requerente não pretendeu desistir do núcleo da sua parentalidade. Estando atribuído o exercício conjunto a ambos quanto à decisão sobre as questões de particular importância da vida dos menores, a Requerente apenas veio pedir que a alteração desse aspeto, pedindo que o exercício dessas responsabilidades lhe seja atribuído exclusivamente a ela (exercício exclusivo). Ora, desistindo desse pedido, mantêm-se o decidido, ou seja, as responsabilidades parentais são exercidas por pai e mãe, em conjunto, como pretende a lei, que o estabelece como regra.
É o caso também, a título de exemplo, do direito a alimentos, em si mesmo indisponível e irrenunciável, mas que já nada impede que possam «objeto de acordo quanto ao modo de eles serem prestados, quanto às necessidades a cobrir por eles ou quanto ao montante da prestação pecuniária a prestar pelo devedor de alimentos.» [[6]] ou que se permita a renúncia às prestações já vencidas (art.º 2008º nº 1 CC).
Neste sentido, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa [[7]]: «A indisponibilidade do direito constitui um limite formal à validade da confissão, desistência ou transação, sem embargo do regime especial previsto para as ações de divórcio e separação de pessoas e bens, em que é admissível a desistência quer do pedido, quer da instância. Vontade que pode estender-se a outros aspetos que normalmente surgem cumulados com a pretensão de divórcio ou de separação, como ocorre em matéria de alimentos, destino da casa de morada da família ou responsabilidades parentais.» (sublinhado nosso)
Concluindo, a desistência do pedido de alteração das responsabilidades parentais é admissível, na medida em que apenas respeita, deixando incólume a indisponibilidade da parentalidade em si.
§ 3º - Por fim, a questão da “reconvenção”.
A decisão recorrida declarou a extinção do direito que a Requerente pretendeu fazer valer, e não a extinção da instância.
O Apelante considera que os autos devem prosseguir para apreciação do seu pedido de que “os filhos lhes fossem entregues, bem como o exercício do Poder Paternal”.
Efetivamente, em contestação à alteração suscitada pela Requerente, veio ele a impugnar os factos alegados e, por outro lado, a alegar factos atinentes à demonstração da sua “idoneidade como pai” e ao “superior interesse dos menores”, terminando assim:
«Nestes termos, e nos mais de Direito cujo douto suprimento se invoca, deverá V. Exa:
1) Considerar o pedido infundado e arquivar o processo, com custas pela Requerente – artº 42º, nº 4 RGPTC
2) Se assim não se entender, devem os menores serem entregues ao Pai, a quem caberá o exercício do Poder Paternal, e com quem passarão a residir permanentemente, assegurando-se assim o superior interesse das crianças – o que se requer!»
Na sentença homologatória da desistência, a Mmª Juíza considerou que o Apelante “não deduziu reconvenção, porque tal não é admissível, nos termos do artigo 39º, nº4, do R.G.P.T.C.” [[8]]
Sucede que o preceito, ou o RGPTC, nada diz sobre a possibilidade ou impossibilidade de reconvenção, pelo que, continua a vingar o regime do CPC, decorrente do art.º 33º nº 1 do RGPTC.
E sendo assim, mais uma vez, há que contar com o facto de estarmos perante um processo de jurisdição voluntária em que as decisões estão subtraídas a critérios de legalidade estrita, devendo antes ser tomadas de acordo com critérios de conveniência ou de oportunidade (art.º 987º CPC).
Daí que, mais do que em qualquer outro, encontram pleno acolhimento nestes processos os princípios da gestão processual (art.º 6º CPC), da economia processual (art.º 131º CPC) e o princípio pro action [[9]] que postula a prevalência das decisões de mérito sobre as decisões de forma.
É certo que a admissibilidade da reconvenção depende da verificação de determinados requisitos, de índole adjetiva e substantiva.
Quanto aos primeiros (art.º 266º nº3 CPC), nenhum obstáculo existe in casu já que a ambas as pretensões corresponde a mesma forma de processo.
Verifica-se que o Apelante não deu cumprimento ao disposto no art.º 583º do CPC identificando expressamente uma reconvenção na sua contestação. Tal não constitui obstáculo pois a lei determina apenas o convite ao aperfeiçoamento (nº 2 do art.º 583º CPC).
Quanto aos de índole substantiva, também não há qualquer obstáculo, já que, nos termos do art.º 266º nº2 al. d) CPC se permite a reconvenção quando o pedido do réu tende a conseguir em seu benefício o mesmo efeito jurídico do autor. É o caso dos autos já que o Requerido pretende obter, também, a alteração das responsabilidades parentais.
Acima de tudo, atendendo aos interesses em jogo (o superior interesse da criança), é consensual o entendimento que nos processos de regulação ou alteração das responsabilidades parentais não existe propriamente um litígio de interesses a decidir, nos moldes convencionais, mas antes uma controvérsia entre os progenitores sobre a melhor forma de o concretizar.
E, porque sempre norteado pelo superior interesse da criança, uma vez proposta a ação por qualquer um dos progenitores ou pelo Mº Pº, o Tribunal fica vinculado oficiosamente (art.º 1906º nº 6 CC e 40º do RGPTC) a tomar uma decisão, ainda que diversa da pretendida pelos pais.
Assim, não se tratando propriamente duma reconvenção, no sentido estrito do termo, existe uma controvérsia a ser dirimida.
Decorre de tudo isto que, existindo divergência entre ambos os progenitores, cada um peticionando um exercício das responsabilidades parentais em exclusivo, a seu favor, o facto de um vir a desistir do pedido não prejudica o direito do outro a ver apreciada a sua pretensão.
O único obstáculo que aqui se encontra deriva do facto de a pretensão do Apelante ter sido suscitada em termos subsidiários, para o caso de o Tribunal não considerar o pedido da Requerente infundado e não arquivar o processo, “Se assim não se entender…”.
E, como decorre do art.º 554º nº 1 do CPC, o Tribunal só se pronuncia sobre o pedido subsidiário no caso de ter procedido a pretensão da Requerente que, como vimos, não aconteceu.
Face ao exposto, conclui-se pela improcedência da apelação.
5. Sumariando (art.º 663º nº 7 do CPC)
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III. DECISÃO
6. Pelo que fica exposto, acorda-se nesta secção cível da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação.
Tendo sucumbido no recurso, ficam a cargo do Apelante as respetivas custas (art.º 527º nº 1 e 2 do CPC).
Porto, 22 de maio de 2025
Isabel Silva
Isabel Ferreira
Álvaro Monteiro
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[[1]] Por isso se considera que ela tem os mesmos efeitos da absolvição da instância que, nos termos do art.º 279º nº 1 do CPC, não obsta à propositura de nova ação.
[[2]] Alberto dos Reis, “Comentário ao Código de Processo Civil”, vol. 3º, Coimbra Editora, pág. 469-470.
[[3]] Acórdão do TRP de 03/06/2024, processo nº 5056/15.9T8MTS-A.P1, disponível em www.dgsi.pt/, sítio a atender nos demais arestos que vierem a ser citados sem outra menção de origem.
[[4]] “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 1º, 2ª edição, Coimbra Editora, anotação ao art.º 299º.
[[5]] Alberto dos Reis, obra citada, pág. 523.
[[6]] Acórdão do TRC de 08/07/2021, processo nº 1880/17.6T8CBR-B.C1.
[[7]] “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, 3ª edição, Almedina, anotação 1 ao art.º 289º CPC. Em idêntico sentido, Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 1º, 2ª edição, Coimbra Editora, anotação ao art.º 299º, considerando tratar-se de uma indisponibilidade relativa.
[[8]] Cujo texto é: 4 - Se os pais não chegarem a acordo, o juiz notifica as partes para, em 15 dias, apresentarem alegações ou arrolarem até 10 testemunhas e juntarem documentos.
[[9]] Segundo o acórdão do STA de 29/01/2014, processo nº 01233/13: «O princípio pro actione é um corolário normativo ou uma concretização do princípio constitucional do acesso efectivo à justiça (administrativa), que aponta para uma interpretação e aplicação das normas processuais no sentido de favorecer o acesso ao tribunal ou de evitar as situações de denegação de justiça, designadamente por excesso de formalismo.»
No mesmo sentido, o acórdão do STJ de 24/06/2004, processo nº 01631/03: «II - O princípio anti-formalista e pro actione postula que, ao nível dos pressupostos processuais, se privilegie a interpretação que se apresente como a mais favorável ao acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efectiva e que se pode traduzir na fórmula in dubio pro habilitate instantiae.»