Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
VENDA ANTECIPADA
BENS APREENDIDOS
Sumário
I- A Lei n. 45/2011, de 24 de Junho, resultou da necessidade de dar cumprimento à Decisão n.º 2007/845/JAI, de 6 de Dezembro de 2007, do Conselho da União Europeia, respeitante à cooperação entre os gabinetes de recuperação de bens dos Estados-Membros no domínio da deteção e identificação de produtos ou outros bens relacionados com o crime, a que o Estado Português se vinculou. II - Prevê este diploma a medida processual antecipatória da declaração de perda de bens a favor do Estado, que naturalmente contende com o direito de livremente dispor do direito de propriedade. III - A criação do Gabinete de Administração de Bens não viola qualquer tratado de Direito Internacional. Pelo contrário, visa compatibilizar a ordem jurídica interna com instrumentos legislativos de Direito europeu, aos quais Portugal naturalmente está vinculado. IV- Não obstante o cumprimento de todo o processo administrativo de avaliação dos bens, pelo GAB, com a notificação aos proprietários do valor e da comunicação da possibilidade de impedir a sua venda, pelo depósito do valor, impõe-se que a decisão que autoriza a venda efetiva não belisque o princípio do contraditório. V- A decisão de venda é matéria de reserva jurisdicional e o juízo a realizar sobre a sua oportunidade e adequação exige concreta ponderação dos interesses conflituantes em confronto, o direito de propriedade e outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, obedecendo a sua restrição à estrita medida do necessário, de acordo com o disposto no artigo 18º n.2 da Constituição da República Portuguesa.
Texto Integral
Acordam os juízes que compõem este Tribunal da Relação de Lisboa, nos seguintes termos:
1. Relatório
Nos presentes autos de recuso, vieram as recorrentes Objetivos Convergentes, Unipessoal Lda. e DEPOB - Deutsch-Portugiesch Beratungs GMBH, gerida por AA, recorrer do teor dos despachos proferidos em 14 de Setembro de 2023 de Outubro de 2023, em 24 de Maio de 2024 e ainda em 11 de Junho de 2024, dos quais foram notificadas e, em simultâneo, por ofício datado de 23 de Setembro de 2024, requerendo a sua revogação.
Para tal apresentaram alegações, com as seguintes Conclusões: “1. O Tribunal recorrido não deu cumprimento ao que foi ordenado por Acórdão de 16 de Dezembro de 2021 do Tribunal da Relação de Lisboa, no sentido expresso e claro de proferir decisão judicial, no âmbito do que se reserva à sua competência e se insere nas suas atribuições legais na face de inquérito, sobre o requerido pela ora Recorrente Objetivos Convergentes, Unipessoal Lda. em 21 de Julho de 2021, pelo que incorrendo em violação do artigo 4º, n.º 1, do Estatuto dos Magistrados Judiciais, aprovado pela Lei n.º 21/85, de 30 de Julho (na sua versão atualizada); do artigo 4º, n.º1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (na sua versão atualizada); e dos artigos 2º, 9º, alínea b), 205º, n.º 2, 215º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa; e o disposto nos artigos 620º, n.º 1, e 628.º do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi artigo 4º do Código de Processo Penal. 2. E face ao que se cingiu o Tribunal a quo no despacho de 14 de Setembro de 2023 (a que se associa, em relação de dependência, a prolação subsequente dos despachos de 13 de Outubro de 2023, de 24 de Maio de 2024 e de 11 de Junho de 2024), antes incorre em incumprimento e em violação do que foi entendido e decidido, com trânsito em julgado, por aquele Acórdão de 16 de Dezembro de 2021, pelo que sempre também em violação daqueles mesmos preceitos e diplomas legais, e ainda atento o disposto no artigo 625º, n.º2, do Código de Processo Civil (também aplicável ex vi artigo 4º do Código de Processo Penal). 3. À revelia e a contrario do entendido e decidido pelo aludido Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 16 de Dezembro de 2021, o Tribunal a quo não profere decisão judicial, enquanto acto jurisdicional decisório prévio e cumpridos os respetivos requisitos legais, sobre a "venda antecipada" de cada um dos veículos automóveis da propriedade das ora Recorrentes, e, assim, também com preterição da devida equidade processual e uma coartação ilegal e inconstitucional do que devem ser efetivas e plenas garantias de defesa, em que se insere o contraditório. 4. O despacho de 14 de Setembro de 2023 não se conforma com o que seja uma decisão judicial, um acto jurisdicional prévio, cumpridos os inerentes requisitos legais, que se determinou ser da competência de Juiz de instrução Criminal pelo Acórdão de 16 de Dezembro de 2021, proferido e transitado em julgado nos autos de inquérito em apreço, quanto a uma pretensa venda antecipada de bens — no caso, veículos automóveis — apreendidos à ordem desse mesmo inquérito. 5. A omissão de fundamentação de uma decisão judicial, à revelia do disposto no artigo 97º, n.º5, do Código de Processo Penal, configura violação do dever (e do direito) consagrado no artigo 205º, n.º1, e, por inerência, do consagrado nos artigos 202º, n.ºs 1 e 2, e 203º, todos da Constituição da República Portuguesa, bem como violação da equidade processual e das devidas garantias de defesa, incluindo o recurso, com consagração nos artigos 20º, n.º 4, e 32º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, e ainda nos artigos 10º e 11º, n.º 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem; no artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem; no artigo 14º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos; e nos artigos 47º e 48º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. 6. Na senda do que sucede com decisões por que sejam aplicadas e/ou revogadas medidas de coação e, bem assim, de garantia patrimonial, impunha-se que a decisão consubstanciada no despacho de 14 de Setembro de 2023 — e tendo a "venda antecipada" pressupostos próprios e diversos daqueles de que depende a decisão de apreensão de bens e também uma decisão de revogação dessa decisão de apreensão contivesse motivação de facto e de Direito, sob pena de nulidade, e seguramente que sempre decorrendo dessa omissão uma coartação de um efetivo e pleno exercício do direito elementar de recurso, por desconhecimento do que sustente e fundamente, de facto e de Direito, aquele despacho. 7. As Recorrentes não foram notificadas de qualquer promoção, para que, em sede do elementar direito de defesa, pudessem exercer contraditório e pronunciar-se sobre uma "venda antecipada" de veículos automóveis da sua propriedade, em violação dos princípios, direitos e garantias elementares consagrados nos artigos 20º, n.º4 (como regra geral) e 32º, n.ºs 1 e 2 (vincadamente para o processo criminal) da Constituição da República Portuguesa; nos artigos 10º e 11º, n.º 1, da Declaração Universal dos Direitos Humanos; no artigo 6º, n.ºs 1, 2 e 3, alíneas a), b), c) e d); no artigo 14º, n.ºs 1, 2 e 3, alíneas a), b), c), d) e e), do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos; e no artigo 47º § 2 e 48º, n.º 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. 8. Para mais, reforçando fosse assegurado o contraditório e a necessidade de prolação de uma decisão judicial por que fossem cumpridos os requisitos essenciais de um acto decisório, sendo "distintos os pressupostos para que deva manter-se a apreensão dos bens e para que possa proceder-se à respetiva venda antecipada, ainda que esta última só possa ter lugar se a primeira se verificar "(Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 22 de Janeiro de 2018, que igualmente se acompanha no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16 de Dezembro de 2021), ainda que não deva ser despiciendo, antes justificando devida consideração, o facto de se ter ressalvado no Acórdão de 5 de Março de 2024 do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido nos mesmos autos de inquérito, que poderá ser inversa a decisão sobre a própria manutenção (requerida que foi a revogação) da apreensão dos veículos automóveis em ulterior reavaliação dos respetivos pressupostos e circunstâncias, nomeadamente, quando atingidos 10 anos de duração do inquérito (em 17 de Novembro de 2024). 9. Sequer recaindo o despacho de 14 de Setembro de 2023 sobre o requerido em 21 de Julho de 2021, como ordenado, há muito, pelo Tribunal da Relação de Lisboa (Acórdão de 16 de Dezembro de 2021), sem que fosse, ou seja ainda, cumprido pelo Tribunal recorrido, daquele despacho também não se extrai o que, atentos o direito fundamental sob privação antecipada das suas legítimas titulares e o que sejam pressupostos de uma venda antecipada, tenha justificado ou justifique o que configura mera anuência do Tribunal a quo, mediante "autorização", a uma decisão que continuou a ser, na substância e mesmo procedimentalmente, do GAB — IGFEJ, I.P. 10. Vendo ao que se cingiu o despacho de 14 de Setembro de 2021, e, bem assim, os despachos subsequentes ao mesmo associados e em relação de dependência, incluindo o despacho de 24 de Maio de 2024, a posição do Tribunal a quo não diverge processualmente e, em rigor, tão pouco na substância, do que fora entendido pelo despacho de 26 de Julho de 2021, revogado pelo Tribunal da Relação de Lisboa, porquanto meramente autoriza o procedimento como encetado e levado a cabo pelo GAB — IGFEJ, I.P., continuando a venda antecipada, no que a decide e na sua execução, sem dependência do que seja uma prévia decisão judicial no âmbito do que são a função e as competências do Juiz de Instrução Criminal, pese embora o já decidido e determinado nos autos por Acórdão de 16 de Dezembro de 2021. 11. O despacho de 14 de Julho de 2023 - e subsequentes despachos decorrentes da sua prolação, de entre os quais o despacho de 24 de Maio de 2024 - contende com o que se acautela e garante no artigo 32º, n.ºs 4 e 5, e no aludido artigo 62º, todos da Constituição da República Portuguesa, incorrendo o Tribunal em violação também do que se extrai do artigo 109.º do Código Penal e, de forma conjugada, dos artigos 186.º, n.º 3, e 268.º, n.º 1, al. e), do Código de Processo Penal. 12. Uma venda antecipada de veículos automóveis apreendidos à ordem de inquérito criminal que, para mais, perdura há praticamente 10 anos, sem que as proprietárias, Arguidas, tenham sequer sido acusadas, muito menos condenadas e por sentença transitada em julgado, pela prática de qualquer ilícito, sem possibilidade de exercício do contraditório e do elementar direito de defesa, e sem que seja determinada por uma prévia decisão judicial por que sejam cumpridos os respetivos requisitos essenciais enquanto acto decisório, viola claramente o direito fundamental à propriedade, consagrado no artigo 62º da Constituição da República Portuguesa, no artigo 17º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, no artigo 1º do Protocolo Adicional à Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, e no artigo 17º, n.º1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. 13. Os despachos sob recurso (despacho de 14 de Setembro de 2023 e subsequentes despachos ao mesmo associados, nomeadamente o despacho de 24 de Maio de 2024) representam violação do direito a um processo justo e equitativo, como assegurado não só nos artigos 20º, n.º4 (como regra geral) e 32º, n.º2 (vincadamente para o processo criminal), da Constituição da República Portuguesa, como também no artigo 10º da Declaração Universal dos Direitos Humanos; no artigo 6º, n.ºs 1 e 3, alínea a), da Convenção Europeia dos Direitos Humanos; no artigo 14º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos; e no artigo 47 § 2 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. 14. E consubstanciam, atendendo ao que se limita o seu teor, violação, sem mais, do princípio basilar da presunção de inocência, consagrado no artigo 32º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, bem como no artigo 11º, n.º1, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, no artigo 6º, n.º 2, da Convenção para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, no artigo 14º, n.º 2, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, e no artigo 48º, n.º 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. 5. São inconstitucionais as normas contidas nos artigos 13º e 14º da Lei n.º45/2011, de 24 de Junho, se interpretadas e aplicadas no sentido de poder o Gabinete de Administração de Bens (do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, I.P.) encetar procedimento administrativo para "venda antecipada" de veículos automóveis apreendidos à ordem de inquérito criminal em curso e poder efectivar essa "venda antecipada" mediante uma mera autorização pro forma de Juiz de Instrução Criminal, sem que tenha sido previamente assegurado o contraditório e decidido que se procedesse à "venda antecipada" desses bens por acto jurisdicional fundamentado, por violação do direito fundamental à propriedade consagrado no artigo 62º da Constituição da República Portuguesa, bem como no artigo 17º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, no artigo 1º do Protocolo Adicional à Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, e no artigo 17º, n.º 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. 16. E ainda por violação do direito elementar a um processo equitativo, pautado por efetivo respeito pelo princípio da presunção de inocência e pela possibilidade de exercício de todas as garantias de defesa, pelo que contendendo, ostensivamente, entendimento naquele sentido sobre o 14º (e também sobre o artigo 13º) da Lei n.º45/2011, de 24 de Junho, com os princípios, direitos e garantias fundamentais (direitos humanos) plasmados nos artigos 20º, n.º4, e 32º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, nos artigos 10º e 11º, n.º1, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, no artigo 14º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, e nos artigos 47º e 48º, n.ºs 1 e 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Pede-se, respeitosamente, Vossa melhor e justa consideração para com tudo quanto se vem de expor, e que, em JUSTIÇA, julguem V. Ex.s procedente o presente recurso, revogando o despacho recorrido.”
1.2
O Ministério Publico apresentou resposta às alegações de recurso, concluindo do seguinte modo:
“1. Às arguidas Recorrentes foi determinada a apreensão, entre outros, dos veículos Ferrari F151 e Porsche 911 GT3 RS, por estar fortemente indiciado nos autos que tais veículos foram adquiridos com o lucro proveniente de um fato ilícito típico, o cometimento do crime de fraude na obtenção de subsídio qualificado e, ainda, por tais veículos integrarem a própria materialidade do crime de branqueamento, constituindo uma forma de conversão e ocultação de rendimentos provenientes do precedente crime de fraude na obtenção de subsídio. 2. Não obstante não ter ainda sido deduzida acusação contra as sociedades Recorrentes, o processo foi declarado de especial complexidade e dos elementos de prova recolhidos nos autos resultam fortemente indiciado os ilícitos de fraude na obtenção de subsídio agravado, branqueamento, associação criminosa e fraude fiscal qualificada, mantendo-se todos os pressupostos legais da apreensão das viaturas, determinadas nos termos do artigo 178.º do C.P.P. e como antecipação e garantia da futura declaração de perda a favor do Estado, por via do estatuído no artigo 110.º do Código Penal. 3. Os prazos do 276.º do Código de Processo Penal são meramente ordenadores e a manutenção da apreensão das viaturas, mesmo após decorridos esses prazos, conquanto se verifiquem os seus pressupostos, o que no caso ocorre, em nada contende com a presunção de inocência, o direito a um processo célere ou o direito de propriedade. 4. Conforme já decidido pelo Tribunal Constitucional, o direito de propriedade admite diversas restrições, entre as quais não poderia deixar de estar a de poder ser restringido - primeiro cautelarmente e, verificados os necessários requisitos, a final, definitivamente - quando o mesmo se tenha constituído ilicitamente. 5. Ao contrário do que vem alegado pelas Recorrentes, o despacho recorrido deu cumprimento ao Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido nestes autos, datado de 16 de Dezembro de 2021, ao autorizar o GAB a proceder à venda antecipada dos veículos cada um deles pelo valor de avaliação efetuada, ao abrigo do disposto no artigo 14.º, n.º1 da Lei n.º45/2011, de 24 de junho. 6. Conforme se alcança da leitura do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 16 de Dezembro de 2021, proferido nestes autos, o que estava então em causa era saber se a decisão sobre a venda antecipada dos veículos teria que passar pelo crivo de um despacho judicial, uma vez que o Juiz de Instrução havia declinado a sua competência, para decidir sobre se autoriza ou não a venda, valendo-se do artigo 14.º da Lei n.º 45/2011 de 24 de Junho. 7. Ao proferir decisão autorizando a venda antecipada, o despacho recorrido não violou o acórdão datado de 16.12.2021 e o que as Recorrentes se insurgem no recurso apresentado é, na verdade, que as viaturas apreendidas possam ser objeto de venda antecipada pelo GRA, nos termos do artigo 14.º da Lei n.º45/2011 de 24 de Junho, ainda que mediante autorização prévia do Juiz de Instrução. 8. A decisão recorrida é clara, coerente e suficiente, refletindo os motivos de facto e de direito enunciados pelo Ministério Público, não suscitando qualquer dúvida, quanto ao seu conteúdo, permitindo às destinatárias Recorrentes aquilo que vieram a fazer através das motivações de recurso, ou seja, a apreciação crítica do sentido da decisão judicial. 9. Mostra-se cumprido o dever de fundamentação exigido e não existe qualquer violação do dever de fundamentação, da equidade processual, de plenas garantias de defesa, incluindo o direito de recurso e da presunção de inocência, nos termos dos artigos 97.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, os artigos 205.º, n.º1 e 202.º, n.ºs 1 e 2, e 203.º, da Constituição da República Portuguesa (CRP), bem como os artigos 20.º, n.º4, e 32.º, n.º1, da CRP, 10.º e 11.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 14.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e 47.º e 48.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. 10. Porém, ainda que assim não se entendesse, a omissão de fundamentação não constitui qualquer nulidade, mas uma mera irregularidade (vide artigos 119º e 120º a contrario sensu e 123.º, todos do Código de Processo Penal), a qual não foi arguida tempestivamente, tendo-se sanado. 11. A administração dos veículos apreendidos foi entregue ao Gabinete de Administração de Bens (GAB), por imperativo legal - artigo 10.º, n.º 1, da Lei 45/2011, de 24 de Junho -, tendo as Recorrentes sido notificadas através de carta registada com aviso de receção para, caso assim o pretendessem, no prazo de 10 dias, requerer à autoridade judiciária competente a entrega da viatura contra o depósito do valor da avaliação das viaturas, e com a advertência de que, findo aquele prazo, o GAB daria seguimento ao procedimento de venda antecipada daquela viatura, nos termos da Lei n.º30/2017, de 30 de Maio 12. As Recorrentes não requereram a entrega das viaturas em causa contra o depósito do valor da respetiva avaliação, tendo apenas suscitado a intervenção do Mmo. Juiz de Instrução na decisão de venda antecipada. 13. O Mmo. Juiz de Instrução veio então a proferir o despacho recorrido, datado de 14 de Setembro de 2023, autorizando o GAB a proceder àquela venda antecipada, ao abrigo do disposto no artigo 14.º, n.º 1, da Lei n.º 45/2011, de 24 de Junho. 14. O objetivo da venda antecipada dos bens apreendidos, antes de haver decisão que declare a sua perda a favor do Estado, é o preservar o valor desses bens, quando sejam perecíveis ou estejam sujeitos a deterioração ou desvalorização, em função do decurso do tempo e considerando a demora do processo até ao trânsito em julgado da decisão final. 15. No caso em concreto importa considerar, por um lado, a previsível demora de uma decisão final transitada em julgado, atenta a especial complexidade e dimensão dos presentes autos e, por outro lado, a notória desvalorização daquelas viaturas decorrente da passagem do tempo e eventual deterioração se continuarem imobilizadas muito tempo, sendo de salientar a desvalorização da viatura apreendida, entre a primeira e a última avaliação. 16. Estão devidamente acautelados os direitos dos arguidos Recorrentes e proprietários das viaturas pois, excluindo as situações de perda não baseada numa condenação - morte do agente, contumácia, amnistia, prescrição -, ou seja, caso aqueles arguidos venham, eventualmente, a ser absolvidos por se ter comprovado a não verificação da prática de qualquer crime, em caso de venda antecipada, terão direito à restituição do valor obtido acrescido dos juros vencidos desde a venda, deduzidas as despesas efetuadas pelo Gabinete de Administração de Ativos (GAB), nos termos do disposto no artigo 18.º da Lei n.º 45/2011, de 24 de Junho, sendo que esta situação, tal como no caso da expropriação por utilidade pública (n.º 2, do artigo 62.º da Constituição da República Portuguesa), satisfaz as exigências constitucionais de salvaguarda do direito de propriedade 17.O direito de propriedade tem consagração na Constituição da República Portuguesa, designadamente no artigo 62.º, porém, não é garantido em termos absolutos, mas sim dentro dos limites e com as restrições previstas e definidas na Constituição e na lei, por razões ambientais, de ordenamento territorial e urbanístico, de segurança, de defesa nacional e económicas - caso da venda antecipada, quando o bem em causa está congelado tendo em vista uma eventual decisão de perda subsequente, sendo que aqui a venda antecipada é uma medida de gestão adequada à não desvalorização do bem - e, de interesse geral, ou seja, com o direito que os Estados possuem de pôr em vigor leis para a regulamentação do uso dos bens. 18. O direito de propriedade não faz parte do elenco dos "direitos, liberdades e garantias", embora goze do respetivo regime, naquilo que nele reveste natureza análoga à daqueles: cfr. artigo 17.º da CRP, nomeadamente para efeito do regime de restrições a favor do Estado e da coletividade, sendo que esta admissão de restrições contende com as liberdades de uso, fruição e disposição. 19. Esta não proteção constitucional do direito de propriedade não obsta a que esteja garantido um direito de não ser arbitrariamente privado da propriedade e de ser indemnizado no caso de desapropriação. 20. Entendemos pois que face ao interesse manifestado pelo GAB na venda antecipada dos supra referidos veículos e pelas razões expostas, bem andou o Mmo. Juiz de Instrução ao autorizar a respetiva venda, considerando o valor da última avaliação efetuada, nos termos e ao abrigo do artigo 14.º, da Lei n.º 45/2011, de 24 de Junho. 21. As arguidas recorrentes defendem ainda a inconstitucionalidade artigos 13.º e 14.º da Lei n.º 45/2011, de 24 de Junho, se interpretadas no sentido de poder o Gabinete de Administração de Bens (do Instituto de Gestão Financeira e Equipamento da Justiça, I.P.) encetar procedimento administrativo para venda antecipada de veículos automóveis apreendidos à ordem de inquérito criminal e curso e poder efetivar essa venda mediante uma mera autorização do Juiz de Instrução, sem que tenha siso assegurado o contraditório e decidido a venda por acto jurisdicional fundamentado, por violação do direito fundamental à propriedade consagrado no artigo 62.º, da Constituição da República Portuguesa. 22. As normas referidas da Lei n.º45/2011, de 24 de junho, quando interpretadas no sentido de poder o Gabinete de Administração de Bens (do Instituto de Gestão Financeira e Equipamento da Justiça, I.P.) proceder à venda antecipada de veículo apreendido à ordem de inquérito criminal em curso, após autorização do Juiz de Instrução Criminal, não viola o direito fundamental à propriedade, antes se conformam com essa norma constitucional, a qual acolhe as normas internacionais a que o Estado português se obrigou e que mereceram reflexo e consagração na nossa legislação. 23. A decisão de venda antecipada de bens, designadamente de veículos automóveis, prevista no artigo 14.º da Lei n.º 45/2011, de 24 de Junho, após cumpridos os mencionados requisitos legais de notificação ao proprietário para depósito do valor da avaliação e após autorização do Juiz de Instrução, que apenas deverá assegurar os mencionados requisitos e que a venda se destina a preservar o valor desses bens, quando sejam perecíveis ou estejam sujeitos a deterioração, - não viola o princípio constitucional do direito à propriedade, donde não serem inconstitucionais as disposições que derivam dos artigos 13.º e 14.º da Lei n.º 45/2011. 24. Deve ser mantido o despacho judicial recorrido, o qual não violou qualquer preceito legal, rejeitando-se as invocadas nulidades e inconstitucionalidades. Nestes termos, deve o recurso ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se a decisão recorrida. V. Exas., porém, melhor decidirão, fazendo JUSTIÇA!”
1.3
Chegados os autos a este Tribunal e dado cumprimento ao disposto no artigo 114º do Código de Processo Penal, tendo o Ministério Público, pugnado pelo não provimento do recurso interposto.
2.
Delimitação do objeto do Recurso
O objeto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal da Relação definem-se pelas conclusões que os recorrentes apresentam, cabendo a estes o ónus de sintetizar as razões da discordância do decidido e resumir as razões do pedido - artigos 402º, 403.º e 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, naturalmente que sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso (cfr. Silva, Germano Marques da, Curso de Processo Penal, Vol. III, 1994, p. 320; Albuquerque, Pinto de, Comentário do Código de Processo Penal, 3ª ed. 2009, págs. 1027 e 1122).
O objeto do recurso consiste assim em:
- conhecer da compatibilidade do despacho judicial de 14 de setembro de 2024, com o acórdão proferido neste Tribunal da Relação em 16 de Julho de 2021;
- conhecer da suficiência da fundamentação e posteriormente da validade e adequação do despacho judicial.
- conhecer da interpretação conforme à Constituição dos artigos 13º e 14º da Lei n. Lei n.º 45/2011, de 24 de Junho, referente ao Gabinete de Recuperação de Activos e o Gabinete de Administração de Bens.
3. Fundamentação
O Gabinete de Recuperação de Ativos instituído pela Lei n. 45/2011 de 24 de junho, tem como missão proceder à identificação, localização e apreensão de bens ou produtos relacionados com crimes, a nível interno e internacional, assegurar a cooperação com os gabinetes de recuperação de ativos criados por outros Estados e exercer as demais atribuições que lhe sejam legalmente atribuídas.
Cabe ainda ao Gabinete de Recuperação de ativos realizar a recolha, a análise e o tratamento de dados estatísticos anonimizados, resultantes da sua atividade ou que a lei mande comunicar-lhe, referentes à apreensão e à aplicação de medidas de garantia patrimonial em processo penal, bem como ao destino final que os bens por elas abrangidos tiveram, nomeadamente a restituição, o envio a autoridade de outro Estado em cumprimento de pedido de cooperação judiciária internacional ou a declaração de perda a favor do Estado, com especificação do tipo de bem, do respetivo valor, da sua titularidade como pertencendo ao arguido ou a terceiro e ainda do facto ilícito típico previsto nas leis penais com o qual o mesmo está relacionado. (artigo 1º e 3º da Lei n. 45/2011, de 24 de junho).
Estatuí o artigo 4.º, deste mesmo diploma, que o Gabinete de Recuperação de Ativos procede à investigação financeira ou patrimonial mencionada no artigo anterior por determinação do Ministério Público:
a) Quando se trate de instrumentos, bens ou produtos relacionados com crimes puníveis com pena de prisão igual ou superior a 3 anos; e
b) Quando o valor estimado dos mesmos seja superior a 1000 unidades de conta.
Mediante prévia autorização do Procurador-Geral da República ou por delegação dos procuradores-gerais distritais, pode o Gabinete de Recuperação de Ativos, proceder à investigação financeira ou patrimonial, em casos não abrangidos pelo número anterior, considerando o estimado valor económico, científico, artístico ou histórico dos bens a recuperar e a complexidade da investigação.
A apreensão de bens é realizada pelo Gabinete, nos termos do Código de Processo Penal, podendo o titular dos bens ou direitos requerer ao juiz de instrução, no prazo de 10 dias, após notificação, modificação ou revogação da medida.
A notificação a que se refere o número anterior é feita por edital ou anúncio quando o titular dos bens ou direitos não for encontrado.
Os procedimentos realizados pelo GRA são documentados em apenso ao processo.
A investigação financeira ou patrimonial pode realizar-se, para efeitos do n.º 2 do artigo 8.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, depois de encerrado o inquérito e, para efeitos de deteção e rastreio dos bens a declarar perdidos, mesmo depois da condenação, com os limites previstos no artigo 112.º-A do Código Penal.
Relativamente à administração de bens dispõe o artigo 10º, do mesmo diploma, que:
1 - A administração dos bens apreendidos, recuperados ou declarados perdidos a favor do Estado, no âmbito de processos nacionais ou de atos de cooperação judiciária internacional, é assegurada por um gabinete do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, I. P. (IGFEJ, I. P.), designado Gabinete de Administração de Bens (GAB)
2 - Compete ao conselho diretivo do IGFEJ, I. P., a prática de todos os atos de administração e gestão do GAB, assim como a definição das suas normas de funcionamento e a regulamentação dos procedimentos instituídos no presente capítulo.
3 - No exercício dos seus poderes de administração compete ao GAB, nos termos do disposto no presente capítulo:
a) Proteger, conservar e gerir os bens recuperados ou à guarda do Estado;
b) Determinar a venda;
c) Determinar a afetação a finalidade pública ou socialmente útil conexa com a administração da justiça, conquanto os bens a afetar se revelem de interesse para a entidade beneficiária e sejam adequados ao exercício e prossecução das suas competências legais ou estatutárias;
d) Determinar a destruição dos bens mencionados na alínea a), desde que salvaguardado o cumprimento da regulamentação comunitária aplicável;
e) Assegurar a destinação dos bens recuperados ou declarados perdidos a favor do Estado por decisão transitada em julgado, sem prejuízo do disposto no n.º 5 do artigo 20.º-A;
f) Exercer as demais competências que lhe sejam legalmente atribuídas.
4 - O GAB exerce as suas funções no estrito respeito pelo princípio da transparência, visando a gestão racional e eficiente dos bens administrados e, se possível, o seu incremento patrimonial.
5 - O GAB procede ao exame, à descrição e ao registo da avaliação do bem para efeitos de fixação do valor de eventual indemnização.
6 - O GAB fornece ao GRA dados estatísticos para os efeitos do n.º 2 do artigo 3.
De acordo com o artigo 11.º da Lei n.41/2011, o Gabinete de Administração de Bens intervém, nos termos do presente capítulo, a pedido do Gabinete de Recuperação de ativos ou das autoridades judiciárias, quando o valor do bem apreendido exceda as 50 unidades de conta ou, independentemente desse valor, quando se trate de veículo automóvel, embarcação ou aeronave.
O Gabinete de Administração de Bens, para exercício das suas competências de avaliação e de administração de bens abrangidos pela presente lei, designadamente para efeitos da sua conservação, gestão, afetação, venda e destruição, pode obter informação atualizada referente à identificação, à situação jurídica, ao valor e à localização dos bens e dos respetivos titulares inscritos, que conste das específicas bases de dados existentes na administração tributária, na segurança social, no registo civil, no registo nacional de pessoas coletivas, no registo predial, no registo comercial e no registo de veículos.
Para facilitar a aplicação do disposto no número anterior, o GAB, através do IGFEJ, I. P., pode promover a celebração de protocolos com as entidades pertinentes, sem prejuízo dos regimes legais de segredo e de sigilo e, bem assim, do controlo prévio da Comissão Nacional de Proteção de Dados, quando este for exigido pelo disposto na Lei n.º 67/98, de 26 de outubro, alterada pela Lei n.º 103/2015, de 24 de agosto. (artigo 11.º-B) com epígrafe acesso à informação)
O Diploma prevê, igualmente, a venda dos bens apreendidos, no artigo 11º C, nos seguintes termos:
1 - Quando haja de proceder à venda de um bem ao abrigo do disposto no presente capítulo, o GAB realiza-a preferencialmente em leilão eletrónico, nos termos do disposto para essa modalidade de venda no Código de Processo Civil, com as devidas adaptações, exceto quando se tratar de venda:
a) De bem referido no artigo 830.º ou no artigo 831.º daquele Código, caso em que o GAB adota a modalidade de venda aí prevista; ou
b) Cuja especial urgência, dada a natureza do bem, seja incompatível com o recurso a leilão eletrónico, caso em que o GAB procede à venda por negociação particular, nos termos do disposto para essa modalidade de venda no Código de Processo Civil, com as devidas adaptações.
2 - Se a venda em leilão eletrónico prevista no número anterior se frustrar por ausência de propostas, o GAB procede à venda por negociação particular, nos termos do disposto para essa modalidade de venda no Código de Processo Civil, com as devidas adaptações.
3 - Para efeitos da aplicação do disposto no n.º 1 no que respeita à realização da venda em leilão eletrónico, o GAB pode celebrar protocolos com outras entidades, designadamente com a Entidade de Serviços Partilhados da Administração Pública, I. P. (ESPAP, I. P.), no que se refere à venda de veículos.
Após decurso do prazo fixado no n.º 3 do artigo 4.º (no prazo de 10 dias após notificação, modificação ou revogação da medida) ou da decisão nele prevista, o GAB procede à avaliação do bem apreendido, para efeitos da sua administração e de fixação do valor de eventual indemnização.
Da decisão de homologação da avaliação pelo presidente do IGFEJ, I. P., cabe reclamação para o juiz competente, no prazo de 10 dias após notificação, que decide por despacho irrecorrível após a realização das diligências que julgue convenientes, comunicando a decisão ao GAB, sendo correspondentemente aplicável o disposto no n.º 5 do artigo 68.º do Código de Processo Penal.
O proprietário ou legítimo possuidor de um bem que não constitua meio de prova relevante pode requerer à autoridade judiciária competente a sua entrega contra o depósito do valor da avaliação à ordem do IGFEJ, I. P. (artigo 12º)
Previamente à venda, afetação ou destruição de um bem antes de decisão transitada em julgado, o Gabinete de Administração de Bens:
a) Solicita ao Ministério Público que, no prazo de 10 dias, preste informação sobre o seu valor probatório e sobre a probabilidade da sua perda a favor do Estado; e
b) Notifica o proprietário ou legítimo possuidor para que, caso o pretenda, no prazo de 10 dias a contar da notificação, exerça a faculdade prevista no n.º 4 do artigo anterior, isto é para que querendo requeira à autoridade judiciária competente a sua entrega contra o depósito do valor da avaliação à ordem do IGFEJ, I. P.(desde que não constitua elemento de prova relevante).
Havendo especial urgência em realizar a venda ou a afetação referidas no número anterior, atenta a natureza do bem, os prazos ali fixados são reduzidos para cinco dias, podendo a notificação do proprietário ou legítimo possuidor ser realizada por via telefónica, devendo a pessoa que a efetuar identificar-se, dar conta do cargo que desempenha e transmitir todos os elementos que permitam ao notificado inteirar-se do ato a que a notificação se refere e efetuar, caso queira, a contraprova de que se trata de telefonema oficial e verdadeiro.
A notificação realizada nos termos do número anterior e o respetivo teor são documentados por escrito imediatamente após a sua realização.
O Ministério Público deve ponderar se o interesse probatório pode ser satisfeito através de amostra do bem apreendido. (artigo 13º. do mesmo diploma)
Por fim o artigo 14º, prevê a sua venda antecipada nos seguintes termos:
“1- O GAB procede à venda dos bens perecíveis, deterioráveis ou desvalorizáveis ou à sua afetação a finalidade pública ou socialmente útil, antes de decisão transitada em julgado, quando não constituam meio de prova relevante. 2 - Quando o bem referido no número anterior for um veículo automóvel, embarcação ou aeronave cujo valor resultante da avaliação seja inferior a 3000 (euro), apenas há lugar à sua venda.
Feito este enquadramento legal, cumpre analisar da conformidade do despacho recorrido (datado de 14 de setembro de 2023 mas notificado em 23 de setembro de 2024) convocando para esta análise todos os outros despachos ou notificações que o precederam, bem como das decisões proferidas neste Tribunal da Relação sobre os recursos entretanto aos mesmos interpostos, pois é invocada a sua desconformidade com o Acórdão de 21 de dezembro de 2021.
Chamar-se-á à colação os demais despachos entretanto proferidos, pois para eles remete o despacho recorrido e a sua validade dependerá da sua conformidade com essas questões neles abordadas.
Analisemos, pois os vários actos, com vista a responder às questões colocadas neste recurso.
O despacho de 14-09-2023, apenas foi notificado a 23 de setembro de 2024, pelo que o recurso que sobre o mesmo incidiu foi tempestivamente interposto:
O Despacho recorrido tem o seguinte teor:
“Tomei conhecimento do conteúdo do Apenso com o n.º 413/14.0TELSB-R. Promoção do Ministério Público de fls. 12014 a 12020: I – Na promoção que antecede, o MP promoveu que seja indeferida a revogação da decisão de apreensão e a consequente restituição à requerente “Objectivos Convergentes, Unipessoal, Ld.ª” da viatura de marca e modelo “Ferrari F151”, de matrícula ..-PT-... A aludida pretensão da requerente “Objectivos Convergentes, Unipessoal, Ld.ª” já foi apreciada e indeferida, por despacho datado de 04/05/2023, que integra fls. 46 a 55 do Apenso n.º 413/14.0TELSB-R, pelo que nada temos a acrescentar e/ou a alterar relativamente ao aí decidido.
* II – Atendendo a que, na sequência da notificação das reavaliações dos veículos automóveis de matrícula ..-PT-.. e .. LL .., realizadas em 15/09/2022, efectuadas através de carta registada com aviso de receção, nos termos e para os efeitos do disposto nos arts. 12.º, n.º 4 e 13.º, n.º 1, al. b), ambos da Lei n.º 45/2011, de 24 de Junho, com a advertência de que findo o prazo de 10 dias após a notificação, o GAB daria seguimento ao procedimento de venda antecipada das referidas viaturas (cfr. ofícios de fls. 11958 e de fls. 11959), os respetivos proprietários não exerceram a faculdade prevista no mencionado art.º 12.º, n.º 4, autorizo o Gabinete de Administração de Bens a proceder à venda antecipada do veículo automóvel de marca e modelo “Ferrari F151”, de matrícula ..-PT-.., propriedade da arguida “Objectivos Convergentes, Unipessoal, Ld.ª”, e a proceder à venda antecipada do veículo automóvel de marca e modelo “Porshe 911 GT3 RS”, de matrícula .. LL .., propriedade do arguido AA, cada um deles pelo valor de avaliação efetuada em 15/09/2022 – art.º 14.º, n.º 1 da Lei n.º 45/2011, de 24 de Junho. Lisboa, 14/09/2023”
Por seu turno, no despacho de 13/10/2023, mediante o qual suspendeu a execução do despacho ora recorrido, o Exmo. Sr. Juiz de Instrução Criminal exarou o seguinte:
“Considerando que a arguida “Objectivos Convergentes, Unipessoal, Ld.ª” interpôs recurso da decisão judicial proferida em 04/05/2023, que integra fls. 47 a 55 do Apenso n.º 413/14.0TELSB-R, que indeferiu a requerida entrega das viaturas daquela e manteve a respetiva apreensão, recurso este que foi admitido por despacho datado de 06/10/2023, e a que foi atribuído efeito suspensivo da decisão recorrida, em conformidade com o promovido pelo Ministério Público na promoção que antecede, determino que a autorização da venda antecipada, pelo GAB, do veículo de marca e modelo “Ferrari F151”, de matrícula ..-PT-.., propriedade da arguida/recorrente, concedida por despacho judicial de fls. 12027a), seja suspensa, até ser proferida decisão naquele recurso e transitar em julgado a decisão judicial proferida no referido Apenso n.º 413/14.0TELSB-R. Dê-se, de imediato, conhecimento ao GAB.
O despacho de 24 de maio de 2024, tem o seguinte teor: “Promoção do Ministério Público de fls. 12309: Tomei conhecimento. Por despacho proferido em 13/10/2023, que integra fls. 12114, na sequência de recurso interposto pela arguida “Objectivos Convergentes, Unipessoal, Ld.ª”, foi determinado que a autorização da venda antecipada, pelo GAB, do veículo de marca e modelo “Ferreri F151”, de matrícula ..-PT-.., propriedade da arguida/recorrente, concedida por despacho judicial de fls. 12027 a), fosse suspensa, até ser proferida decisão naquele recurso e transitar em julgado a decisão judicial proferida no referido Apenso n.º 413/14.0TELSB-R. Em face do teor do acórdão, datado de 5 de março de 2024, proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, que integra fls. 72 a 95 do apenso n.º 413/14.0TELSB-S, que julgou improcedente o recurso interposto, e tendo transitado em julgado o despacho datado de 04/05/2023, que integra fls. 46 a 55 do Apenso n.º 413/14.0TELSB-R, em conformidade com o promovido pelo Ministério Público na promoção que antecede, determino que se cumpra o determinado no segundo segmento do despacho de fls. 12027a), devendo-se notificar o Gabinete de Administração de Bens nos exatos termos e para os efeitos promovidos. Lisboa, 24/05/2024 (após 18H00).
Por fim, o despacho de 11 de junho de 2024, tem o seguinte teor: “Promoção do Ministério Público de fls. 12329: Tomei conhecimento. Fls. 12331 e 12332: Tomei conhecimento. * O segundo parágrafo de fls. 12027a) enferma de um lapso de escrita, porquanto, quando aí se escreveu “..-PT-..”, pretendia-se, na realidade, escrever-se “..-PT-..”. O segundo segmento de fls. 12027a) enferma de dois lapsos de escrita, porquanto, quando aí se escreveu “..-PT-..”, pretendia-se, na realidade, escrever-se “..-PT-..”. O segundo parágrafo do despacho de fls. 12313 enferma de um lapso de escrita, porquanto, quando aí se escreveu “..-PT-..”, pretendia-se, na realidade, escrever-se “..-PT- ..”. Assim, com vista a sanar tais lapsos de escrita, determino que nos locais acima referidos, onde se escreveu “..-PT-..”, passe a constar “..-PT-..”, o que se determina nos termos do disposto no art.º 380.º, ns.º 1, al. b) e 3 do Cód. Processo Penal. Consideram-se os três mencionados despachos rectificados pelo presente despacho, que é parte integrante daqueles. Lavre cota no local próprio. Notifique.
Lisboa, 11/06/2024.
Afirmam as recorrentes que o despacho que efetivamente constitui despacho decisório que afetou o direito de propriedade da recorrente (o despacho de 14 de setembro de 2023, cuja eficácia foi, entretanto, suspensa pelos despachos posteriores) desobedece ao determinado no acórdão proferido por este Tribunal da Relação de Lisboa, que subindo em separado, veio a constituir o Apenso R, nestes autos.
Consultado o Apenso Q, e o Volume XXX. dos autos de inquérito, verifica-se que, em 21 de julho de 2021, a Recorrente Objectivos Convergentes, Unipessoal, Lda, dirigiu aos autos um requerimento, (fls. 11170 a 11180) que concluía nos seguintes termos:
“Pelo que, a manter-se a apreensão dos três veículos da arguida, ora requerente, estando o veículo com marca e modelo Ferrari F151, com matrícula ..-PT-.., efetivamente e na prática sob a administração do GAB do IGFEJ, I.P., se pede a V. Ex. não seja autorizada qualquer venda antecipada, sendo a V. Ex., e não ao organismo público, que cabe essa decisão. Pede-se, respeitosamente, a Vossa melhor e justa atenção para com quanto se vem de expor e requerer, e que Vos é dirigido, enquanto garante do respeito por direitos, liberdades e garantias fundamentais em sede de inquérito criminal, que, por tudo quanto se referiu, estão e mais poderão ainda ser seriamente comprometidos, com danos de maior relevo, mesmo irreversíveis, daí diretamente advindos. PD”.
Este requerimento foi objeto de apreciação, em 26 de julho de 2021, tendo merecido o seguinte despacho judicial, exarado a fls. 11183: "Fls. (...) A decisão de venda antecipada, feita no âmbito de um inquérito criminal, in casu de veículos automóveis, prevista no artigo 14.º da Lei 45/2011, de 24/6, não depende de ordem ou autorização do Juiz de Instrução que nele pratique actos jurisdicionais no âmbito do inquérito.
Foi sobre este despacho e nenhum outro que se debruçou o Acórdão que as recorrentes dizem ter sido agora violado pelo despacho recorrido que autoriza a venda dos veículos.
Contudo, para perceber o alcance e amplitude do Acórdão proferido naquele apenso Q, há que atentar na sua fundamentação, que tem o seguinte teor: “A recorrente não se insurge no presente recurso que os bens (veículos automóveis), apreendidos estão, possam, ou não ser vendidos, o que ela almeja é que tal decisão sobre a venda antecipada tenha que previamente passar pelo crivo de um despacho judicial, dai as invocadas inconstitucionalidades. Não vem aqui invocado que os bens não sejam ou possam antecipadamente ser vendidos nos termos da Lei suprarreferida e que regulará tais situações. O que a recorrente enfatiza é que por si só o GAB não poderá proceder a tal venda antecipada de bens, sem um despacho judicial prévio. Como já se constatou, de harmonia com o disposto no artigo 14º da Lei nº. 45/2011, que tem por epígrafe “Venda antecipada”, o GAB procede à venda dos bens perecíveis, deterioráveis desvalorizáveis ou à sua afetação a finalidade pública ou socialmente útil, antes de decisão transitada em julgado, quando não constituam meio de prova relevante. Ora podemos adiantar já que neste particular desiderato, nada se conhece, e não tendo sido aparentemente emitido qualquer parecer nesse ou noutro sentido (quanto ao meio de prova relevante), sendo certo, no entanto que este não é o cerne da questão “sub judice”. O núcleo é, e não nos desviaremos dele, de decidir se a venda antecipada de bens deverá ser precedida de um despacho judicial, como pretende a arguida. Sendo a venda antecipada de bens apreendidos, na fase de inquérito, um ato que atinge o direito de propriedade dos respetivos titulares, direito esse que goza de proteção constitucional, mesmo em caso de intervenção do GAB, ao abrigo do disposto nos artigos 11º e 14º da Lei nº. 45/2011, de 24 de junho, o JIC, chamado a pronunciar-se sobre essa questão, como aconteceu, no caso concreto, declinou a sua competência para proferir decisão sobre o que requerido foi valendo-se do art.º 14 º da Lei 45/2011. É verdadeiramente com esta decisão que a recorrente não se conforma. Como se disse, a recorrente não se insurge para já no presente que os bens que apreendidos estão possam ou não ser vendidos, o que ela almeja é que tal decisão sobre a venda antecipada tenha que passar pelo crivo prévio de um despacho judicial, neste caso do JIC (uma vez que os autos se encontram na fase de inquérito), dai as invocadas inconstitucionalidades. Sendo a venda antecipada de bens apreendidos, na fase de inquérito, um ato que atinge o direito de propriedade dos respetivos titulares, direito esse que goza de proteção constitucional, mesmo em caso de intervenção do GAB/M.P. ao abrigo do disposto nos artigos 10º, 11º e 14º da Lei nº. 45/2011, de 24 de junho, adiantamos já que o JIC, chamado a pronunciar-se sobre essa questão, como aconteceu, no caso concreto, tem competência para decidir sobre se autoriza ou não a venda (vide neste sentido o AC TRG de 22.01.2018, in, www.dgsi.pt). Efetivamente, temos o entendimento que o Tribunal recorrido tem competência para proferir esta decisão, uma vez que não compete em primeira linha ao Gabinete de Administração de Bens decidir sobre vendas antecipadas, após informação do Ministério Público/IGDEF sobre o valor probatório e sobre a probabilidade de perda a favor do Estado, nos termos dos artigos art.ºs 13º/1 e 14º da Lei 45/2001. De facto, se assim fosse a arguida não poderia recorrer da decisão de venda antecipada (quando na lei só pode impugnar judicialmente a avaliação feita do bem a vender, ou seja, numa fase posterior, quando a decisão da venda já foi tomada/ art.º 11º)”
Ora, aqui chegados verifica-se que a decisão recorrida, observou embora apenas restritamente, o referido Acórdão, obedecendo-lhe do ponto de vista da prolação de despacho pelo órgão jurisdicional indicado neste acórdão- o Juiz de instrução.
Isto é, ao contrário do que ocorreu no despacho de 26 de julho de 2021, sobre o qual se debruçou o transcrito Aresto, no despacho ora recorrido, o Exmo. Sr. Juiz de Instrução não se absteve de proferir decisão, escudando-se na ausência de previsão para tal, mas conheceu do que lhe foi solicitado e autorizou a venda da viatura com a matrícula ..-PT-...
Contudo, não cremos que o alcance do acórdão se esgote na atribuição de competência.
Tratando-se de matéria atinente a direitos liberdades e garantias a sua limitação sempre terá que se revestir de fundamentação, o que se prende com a segunda questão levantada: a apreciação da validade e adequação do despacho judicial, na sua vertente substantiva.
Estas questões substantivas, enquanto violadoras do direito de propriedade, incidem parcialmente sobre matéria que foi suscitada no recurso interposto ao despacho judicial de 4 de maio de 2023, cuja admissão deu azo à suspensão da execução do despacho de 14 de setembro de 2024, podendo agora este Tribunal da Relação tornar a apreciar a questão, sem violação do princípio do caso julgado, porquanto no Apenso S.L1, foi expressamente consignado que poderiam ser reponderados os juízos de adequação e proporcionalidade em face da necessidade de antecipação de garantia de futura declaração de perda dos bens.
Com efeito, naquele recurso, a mesma ora recorrente, veio requerer a este Tribunal da Relação, a revogação do despacho que recaiu sobre o seu requerimento de 17/04/2023, que culminava com o seguinte pedido: “a) Seja revogada a decisão de apreensão e ordenada a restituição à requerente dos veículos da sua propriedade com marca e modelo BMW 420 D, e matrícula ..- RF-..; com marca e modelo BMW 530 D, e matrícula ..-PB-..; e com marca e modelo Ferrari F151, e matrícula ..-PT-... b) Por força de revogação da decisão de apreensão, seja determinada a devolução à requerente dos valores que depositou a título de caução para poder levantar os veículos automóveis também da sua legítima propriedade: com marca e modelo Porsche GT2, e matrícula ..-LH-..; com marca e modelo Jaguar Land Rover Limited, Range Rover, e matrícula ..-RA-..; com marca e modelo ..., e matrícula ..-..-HN.
Alegou para tal, os mesmos fundamentos, que ora pretende ver novamente esgrimidos e decididos:
- o longo período do decurso de inquérito;
- a inconstitucionalidade da decisão de manutenção da apreensão por violadora do direito de propriedade.
Com efeito, aquele recurso, que não mereceu provimento, incidiu sobre o despacho de 5 de maio de 2023, apresentado a fls. 11893, no Apenso R. objeto de apreciação no Apenso R, a fls. 47, onde o Tribunal de Instrução Criminal havia decidido:
“Fls. 32 a 35, com referência a fls. 1 a 14 - Veio a requerente Objectivos Convergentes, Unipessoal, Lda, requerer o levantamento da apreensão e a restituição dos veículos com as matrículas ..-RF-.., ..-PB-.. e ..-PT-.. e a restituição dos valores que depositou a titulo de caução para levantamento das viaturas com as matrículas ..-LH-.., ..-RA-.. e ..-..-HN, nos termos e com os fundamentos constantes do seu requerimento, que aqui se dá por reproduzido, por mera economia processual. O M.º P.º deduziu oposição ao requerido levantamento da apreensão que incide sobre os referidos veículos automóveis, nos termos e com os fundamentos que infra se transcrevem, para melhor compreensão:
«O Ministério Público, notificado, por termo de vista datado de 24/04/2023, nos termos e para os efeitos do artigo 178.º, n.º 8, do CPP (Código de Processo Penal) do requerimento apresentado pela arguida OBJECTIVOS CONVERGENTES, Unipessoal, Lda - fls. 1 a 14, vem, pelo presente, consignar a sua OPOSIÇÃO Ao levantamento da apreensão dos veículos com as matrículas ..-RF-.., ..-PB-.. e ..-PT- .., -LH-, ..-RA-.. e ..-..-HN. O que faz com os seguintes fundamentos: I- Dos argumentos da requerente. 1. A arguida requerente vem solicitar ao Mmo. Juiz de Instrução que: a) Revogue a decisão de apreensão e, em consequência: b) Ordene a restituição dos veículos com as matrículas ..-RF-.., ..-PB-.. e ..-PT-..; c) Determine a devolução à requerente dos valores que depositou a título de caução para levantar os veículos com as matrículas ..-LH-.., ..-RA-.. e ..-..-HN. 2. Começa por notar a morosidade processual que em seu entender fere o inquérito e alega a ultrapassagem do prazo legal para o seu encerramento, mesmo atendendo à declaração de excepcional complexidade do mesmo. 3. Avança que a duração do inquérito, que já ultrapassou os 8 anos e 5 meses, associada à apreensão das viaturas de sua propriedade já desde 23 maio de 2017, ofendem de forma essencial o seu direito de propriedade. 4. Mais especifica que a 30/12/2017 pôde levantar as viaturas com as matrículas ..-LH-.. e ..-RA-.., contra o depósito de caução no valor respectivo de € 90.193,00 e € 87.500,00 e em 2021 fez o mesmo quanto à viatura ..-..-HN, neste caso contra o depósito de € 14.737,74. 5. E que as viaturas com as matrículas ..-RF-.. e ..-PB-.. foram objecto de declaração de utilização operacional, desconhecendo a situação e paradeiro das mesmas. 6. Refere que nunca esteve em causa como fundamento da e para a apreensão as viaturas apreendidas constituírem meio de prova, mas tão só produtos relacionados com a prática de um facto ilícito típico. 7. Em seguida, ao longo de 11 páginas, a requerente reproduz o seu requerimento de 16/07/2018, no qual referiu que a sua constituição se ficou a dever à intenção de AA e a sua família obterem vantagens económicas na utilização e manutenção das viaturas através de uma empresa e não para ocultar ou dissimular o produto de um crime ou para praticar o crime de branqueamento de capitais. 8. Mais aduziu que AA e a sua família tinham capital suficiente para aquisição das referidas viaturas, capital esse proveniente dos seus rendimentos, tendo discriminado os rendimentos brutos declarados por AA e a sua ex-esposa, ora unida de facto, BB. 9. Dedicando-se em seguida a demonstrar o procedimento aquisitivo das viaturas apreendidas e em especial aquela que foi a data da sua aquisição por aqueles que, posteriormente, transmitiram as viaturas à requerente, considerando que um e outra demonstram que as viaturas apreendidas não são objeto do crime e que a transmissão das viaturas para a sua esfera de propriedade não constituiu um acto de branqueamento. 10. Afirmou que a prova de que tinha capital para proceder à aquisição das viaturas foi confirmada pelo facto de ter tido capacidade para proceder ao depósito das quantias necessárias ao levantamento de algumas das viaturas apreendidas. 11. Recordando os despachos do Senhor Vice-Procurador-Geral da República que, na sequência dos pedidos de aceleração processual, conferiram prazo adicional para o encerramento do inquérito, 12. Conclui mostrar-se violado o disposto no artigo 276.º do Código de Processo Penal, com consequente responsabilização do Estado Português nos termos do artigo 12.º da Lei n.º 67/2007, de 31/12 e atento o disposto no artigo 22,º da Constituição da República (doravante CRP), mormente por violação dos artigos 20.º, n.º 4 e 32.º, n.ºs 1 e 2, e 62.º da CRP, considerando que o procedimento adotado nos autos é violador do direito a um processo equitativo, do princípio da presunção da inocência e do direito de propriedade. * II - Da oposição do Ministério Público. II.1 - Da alegada violação dos princípios do processo equitativo, presunção de inocência e do direito de propriedade da arguida. 13. A arguida, aqui requerente, associa a morosidade processual destes autos, com a apreensão dos veículos de sua propriedade, à violação dos princípios do processo equitativo, presunção de inocência e do direito de propriedade. 14. Ora, a este respeito, e tendo por assente (como parece ser hoje unânime) que os prazos do 276.º do CPP são meramente ordenadores, importa reler o Acórdão do tribunal Constitucional n.º 294/2008, disponível em TC > Jurisprudência > Acórdãos > Acórdão 294/2008 (tribunalconstitucional.pt) Conforme o Tribunal Constitucional tem sublinhado noutras ocasiões e constitui entendimento doutrinário assente, o direito de propriedade, tal como previsto no artigo 62º, nº 1, da Constituição, não é garantido em termos absolutos, mas sim dentro dos limites e com as restrições definidas noutros lugares do texto constitucional ou na lei, quando a Constituição para ela remeter, ainda que possa tratar-se de limitações constitucionalmente implícitas (GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, I vol., 4.ª edição revista, Coimbra, pág. 801; JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2005, Coimbra, pág. 628). Referindo-se especialmente às apreensões em processo penal (estando então em causa a norma do artigo 178º, n.º 3, do CPP de 1987, na sua redacção originária), o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 7/87 (publicado no Diário da República n.º 33, I Série, de 9 de Fevereiro de 1987), afirmou que as apreensões, quando autorizadas ou ordenadas pela autoridade judiciária, nos casos referidos nesse preceito, não podem deixar de considerar- se um limite imanente ao direito de propriedade, daí se extraindo a sua completa conformidade com o garantia constitucional. E, na mesma linha de orientação, o acórdão n.º 340/87 (publicado no Diário da República n.º 220, II Série, de 24 de Setembro de 1987) entendeu que o artigo 108º do Código Penal de 1982 (também na sua redação originária), quando prevê a perda a favor do Estado de objetos de terceiro, não é inconstitucional, por violação do direito de propriedade, por ser de considerar que esse direito constitucional pode ser sacrificado em homenagem aos valores da segurança das pessoas, da moral ou da ordem pública enquanto elementos constitutivos do Estado de Direito democrático.( Sublinhado nosso) No caso vertente, não se vê que a manutenção da apreensão de quantias para além dos prazos legalmente fixados para o termo do inquérito, represente uma restrição ilegítima do direito de propriedade por violação do princípio da proporcionalidade, designadamente na sua dimensão de adequação aos fins visados pela lei. Vimos que a apreensão tem a dupla função de meio de obtenção de prova e de garantia patrimonial do eventual decretamento de perda de valores a favor do Estado (cfr. DAMIÃO DA CUNHA Perda de bens a favor do Estado, Centro de Estudos Judiciários, 2002, pág. 26), e, nesse sentido, tem pleno cabimento que enquanto providência processual instrutória ela possa manter-se até à fase de julgamento e venha apenas o ser declarada extinta com a sentença final (absolutória ou condenatória), quando nela tenha sido entretanto fixado o destino a dar aos bens apreendidos. A apreensão de bens ou valores que constituam o produto do crime não está relacionada, por isso, com quaisquer vicissitudes processuais, mas unicamente com os próprios fins do processo penal, e é justificada à luz do interesse da realização da justiça, nas suas componentes de interesse na descoberta da verdade e de interesse na execução das consequências legais do ilícito penal. E neste plano de compreensão tem relevo chamar a atenção para o facto de estarmos perante formas de criminalidade económica-financeira organizada que é de muito difícil prova e relativamente à qual o legislador sentiu necessidade, através da mencionada Lei n.º 5/2002, de adotar medidas especiais de controlo e repressão, mediante a derrogação do segredo fiscal e bancário, para facilitar a investigação criminal (artigos 2º a 5º) a permissão do registo de voz e de imagem, como específico meio de produção de prova (artigo 6º), e a previsão de um mecanismo especial de perda de bens a favor do Estado tomando por base a presunção de obtenção de vantagens patrimoniais ilícitas através da actividade criminosa (artigo 70º) - sobre estes aspectos, DAMIÃO DA CUNHA, ob. cit., págs. 7-10). Num outro plano, os recorrentes invocam ainda a violação do princípio da presunção da inocência do arguido e do direito ao processo célere, tal como consagrados no artigo 32º, n.º 2, da Constituição. Não existindo dúvidas, no âmbito do processo, quanto ao alcance do primeiro dos princípios enunciados, e aceitando que este posso representar, no ponto em que mais releva para o caso, a proibição de antecipação de uma pena, haverá de convir-se que a manutenção da apreensão de valores, destinando-se a funcionar como elemento de prova a ser considerado nas fases ulteriores do processo e como garantia patrimonial de uma eventual medida de perda de bens a favor do Estado, não põe em causa esse parâmetro constitucional. Desde logo, porque não fica de nenhum modo excluído que, nos precisos termos do artigo 186º, se venha a determinar a restituição dos bens apreendidos ao seu titular, quer porque se reconheça, no decurso do processo, a desnecessidade da apreensão para efeitos probatórios, quer porque, na decisão final, se considere não verificada a prática dos factos ilícitos que eram imputados aos arguidos. Não é, por conseguinte, a circunstância de a apreensão subsistir para além dos prazos legalmente fixados para a conclusão do inquérito, como vem alegado, que poderá implicar uma violação do princípio da presunção da inocência do arguido, visto que nada fica decidido quanto ao destino a dar às quantias apreendidas e é a própria natureza da medida processual (meio de obtenção de prova e medida cautelar) que justifica que posso manter-se até ao termo do processo. Por identidade de razão, não é o prolongamento da situação de apreensão de bens que pode pôr em causa o direito ao processo célere, enquanto garantia de defesa do arguido. Esta pode considerar-se afetada, de algum modo, pelo esgotamento dos prazos de conclusão do inquérito - caso tenha efetivamente ocorrido visto que, por si, essa eventualidade é determinante de um atraso na resolução final do processo (ainda que possa discutir-se se é suficiente para que se considere violado o princípio constitucional). Não há, no entanto, uma direta correlação entre a manutenção da apreensão e a possível violação do direito ao processo célere, porquanto não é a pretendida restituição das quantias apreendidas que poderá obstar a que processo prossiga e impedir a consequência processual negativa que advenha da demora na ultimação do processo do inquérito. “ 15. Ou seja, a manutenção da apreensão mesmo após decorridos os prazos a que alude o artigo 276.º do CPP, conquanto se verifiquem os seus pressupostos (o que no caso ocorre, como veremos a seguir), em nada contende com a presunção de inocência, o direito a um processo célere ou o direito de propriedade. 16. Este admite diversas restrições, entre as quais não poderia deixar de estar a de poder ser restringido - primeiro cautelarmente e, verificados os necessários requisitos, a final, definitivamente - quando o mesmo se tenha constituído ilicitamente. II.2 - Os fundamentos para a decisão e manutenção da apreensão. 17. Nos presentes autos investiga-se a prática de crimes de fraude na obtenção de subsídio, previsto e punido pelos artigos 3.º, 8.º e 36.º, n.º 1, al. a), n.º 2, n.º 3 e n.º 5, al. a), do DL 28/84 de 20.1, crime punido com a pena de prisão de dois a oito anos e de penas acessórias como a de privação do direito a subsídios ou subvenções, encerramento definitivo de estabelecimento e de dissolução da sociedade; e do crime de branqueamento, previsto e punido pelo artigo 368.º-A, n.º 1 (com referência ao artigo l.º da Lei 36/94 de 29.9) e n,º 2, do Código Penal, com a pena de prisão de dois a doze anos. 18. Conforme consignado no despacho que ordenou a apreensão indicia-se o desvio de elevadas quantias monetárias provenientes de fundos comunitários para outros fins que não a concretização de projectos que esses fundos se destinavam a financiar. 19. Indicia-se também que a compra de veículos automóveis de alta cilindrada, na ..., serviu para dissimular e converter os valores obtidos dessa forma fraudulenta, tendo tais veículos sido exportados para Portugal onde foram revendidos, por um dos arguidos, por valor inferior ao da sua aquisição a empresas ou sujeitos por si controlados ou relacionados com a fraude na obtenção de subsídios. 20. As viaturas são importadas por empresas detidas pelos arguidos AA, EE, FF, GG e HH. 21. Entre elas está a Objectivos Convergentes, Unipessoal, Lda. e têm como destinatário final empresas indicadas como fornecedoras e os seus sócios, como é o caso da Perfitec - Revestimentos Metálicos e Perfilados, Lda., AmbiPombal - Recolha de Resíduos Industriais, S.A., Aplikargumento - Soluciones Globales Importacion y Exportation, S.A e o sócio destas II, entre outros. 22. Entre ... de 2014 e ... de 2016 foram importados da Alemanhã 38 veículos automóveis e que, destes, 32 foram registados a favor dos arguidos ou de pessoas da sua confiança. 23. De todos, apenas através da CdF foram importados 13, no ano de 2014, o que não exclui que tenham sido importados outros através de outras empresas. 24. Deste modo, AA, com a adesão e auxílio dos demais coarguidos, nomeadamente, de JJ, logrou colocar em território nacional, e na titularidade dos beneficiários dos projetos ou de pessoas da sua confiança, tal património adquirido com o produto do cometimento daqueles crimes de fraude na obtenção de subsídio, por todos cometido, dissimulando a sua origem. 25. O que releva para a decisão e manutenção da apreensão é que se trata de um modo de ocultação e de dissimulação do produto do crime ou da sua vantagem, nos termos em que vêm definidos nos artigos 368.º e 110.º do Código Penal (redação da Lei n.º30/2017) ou que já vinham definidos no artigo 111.º do Código Penal. 26. O que determinou a apreensão destes bens foi o facto de terem sido adquiridos com o lucro proveniente de um fato ilícito típico, o cometimento do crime de fraude na obtenção de subsídio, qualificado, para o qual contribuiu, de forma decisiva, a empresa alemã CDF. 27. Como o facto de integrarem a conversão de tais lucros, a transferência de tais vantagens, por si obtidas ou por terceiros, integradas, deste modo, na economia legítima. 28. Os rendimentos declarados pelos arguidos afiguram-se-nos incongruentes com o património que titulam o que determinará a necessidade da liquidação a que alude o art.º 8º da L. 5/2002, 29. A requerente Objectivos Convergentes, proprietária de vários veículos automóveis de alta cilindrada, foi constituída em ........2015, com um capital de € 5.000,00, sendo a titular da quota única BB, ex-mulher de AA e que com este continua a viver, em união de facto. 30. A sede da arguida é a morada/casa de habitação do arguido KK, filho de AA. 31.Os veículos automóveis supra identificados encontravam-se todos na garagem da residência de Processo n.º 413/14.0TELSB-S.L1 AA e de BB, na sua esfera patrimonial e para sua utilização. 32. Os métodos pelos quais esta empresa portuguesa, imediatamente, após a sua constituição, adquiriu vários veículos automóveis de alta cilindrada, o que foi feito mediante a intervenção de AA e de BB, são indiciadores da prática do crime de branqueamento de capitais. 33. Mesmo o veículo de matrícula ..-..-HN, de que era proprietário AA, foi adquirido por esta empresa em ........2015, apenas 10 dias após a sua constituição, indiciando-se fortemente que com este negócio AA justificou uma transferência de dinheiro a crédito para uma conta bancária pessoal, integrando esta venda um novo ato de branqueamento. 34. Deste modo, forçoso é concluir que se encontram preenchidos todos os pressupostos formais e materiais da apreensão dos veículos referidos, aliás como já judicialmente apreciado. É nesta conformidade que nos opomos à devolução à requerente dos veículos automóveis supra identificados, promovendo seja o requerimento indeferido e mantidas as apreensões determinadas nos autos. Cumpre decidir: Tomei boa nota da oposição deduzida pelo detentor da ação penal supra transcrita. As viaturas em causa foram apreendidas por se indiciar terem sido adquiridos com o lucro proveniente de um fato ilícito típico, o cometimento do crime de fraude na obtenção de subsídio, qualificado, para o qual se indicia terá contribuído, de forma decisiva, a empresa alemã CDF. Atenta a factualidade e ilícitos penais objeto da investigação, somos levados a corroborar o entendimento sancionado pelo detentor da ação penal, de que está em causa um modo de ocultação e de dissimulação do produto do crime ou da sua vantagem, nos termos em que vêm definidos nos artigos 368.º e 110.º do Código Penal (redação da Lei n.º 30/2017) ou que já vinham definidos no artigo 111º do Código Penal. Corrobora-se o entendimento sancionado pelo titular da ação penal de que a manutenção da apreensão mesmo após decorridos os prazos a que alude o artigo 276.º do CPP, conquanto se verifiquem os seus pressupostos (o que no caso ocorre, como veremos a seguir), em nada contende com a presunção de inocência, o direito a um processo célere ou o direito de propriedade. Aliás, concordando, na íntegra, com a oposição deduzida pelo detentor da ação penal, à qual me arrimo e aqui dou por reproduzida, não por falta de ponderação própria da questão, mas por simples economia processual e por ilustrar com suficiência de argumentos, o entendimento que perfilhamos, pelo que se indefere, por ora, a requerida entrega das viaturas e depósitos de caução, mantendo-se a respetiva apreensão das mesmas. Notifique o M.º P.º e a ora Requerente (esta última, também com cópia da oposição deduzida). (…)».
Este despacho foi apreciado em sede de recurso e, por Acórdão de 5 de março de 2024, foi inteiramente mantido, no seu sentido e fundamentos, tendo na sua fundamentação sido expressamente exarado que “ (…) Somos, por isso a entender manter-se o juízo de necessidade, adequação e, no momento atual, ainda o de proporcionalidade quanto à medida de apreensão de bens da recorrente decretada nos termos do disposto no art.º 178º do Código de Processo Penal e executada a 23/05/2017, como antecipação e garantia da futura declaração de perda a favor do Estado, por via do estatuído no art.º 110º do Código Penal, no pressuposto de que essa perda ocorrerá com grande probabilidade e que a fase de inquérito terá para breve o seu desfecho assegurando-se à recorrente, caso tal não suceda, a faculdade de voltar a suscitar a questão junto do Tribunal.
Ora, a questão foi novamente colocada, mas agora no prisma meramente da venda antecipada dos veículos, judicialmente autorizada.
Por ofício de 29 de maio de 2023, foram os recorrentes notificados de um ofício expedido pelo IGFEJ, com o seguinte teor: ASSUNTO: Processo n.º 413/14.0TELSB Notificação da homologação do valor da avaliação atualizada do veículo com a matrícula ..-PT-... No âmbito do processo nº 413/71.0TELSB, que corre termos junto do Departamento Central e Investigação e Ação Penal (Seção Única), foi apreendido o veículo automóvel Ferrari F151, com a matrícula ..-PT-.., avaliado em 197.000,00€ (cento e noventa e sete mil euros), de acordo com o valor comercial atual. O referido veículo foi entregue para administração do Gabinete de Administração de Bens (GAB) do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, 1.P., nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 10 e seguintes da Lei nº 45/2011, de 24 de junho, na sua redação atual. Dando cumprimento ao disposto nos artigos 12º e 13º do citado diploma legal, vimos, pela presente notificar V. Exa., na qualidade de proprietário, do valor de avaliação da viatura, homologado pela Presidente do Conselho Diretivo do IGFEJ, LP., a 19/0512023, com a possibilidade de, no prazo de 10 dias após a presente notificação, requerer à autoridade judiciária competente a entrega do veículo contra o depósito do valor da avaliação à ordem deste IGFEJ, l.P. para a seguinte conta: Conta: IGFEJ - Receitas GAB BIC: … IBAN: … Descrição: 413/14.0TELSB Findo este prazo, na ausência de resposta, fica V. Exa. notificado de que o GAB irá dar seguimento ao procedimento de venda antecipada da referida viatura nos termos do artigo 14º e da Lei n.º 45/2011, de 24 de junho, na sua redação atual. Com os melhores cumprimentos. Diretora do GAB”
Em 19 de Junho de 2023, por ofício 19-06-2023, o IGFEJ comunicou e requereu ao Exmo. Sr. Procurador do inquérito o seguinte: “ASSUNTO: Processo n.º 423/14TELSB - Pedido de informação prévia Nos termos e para os efeitos previstos nos n. 3 e 4 do artigo 12º da Lei nº 45/2011, de 24 de junho, na sua redação atual, o Gabinete de Administração de Bens (GAB) notificou os proprietários/legítimos possuidores das viaturas com as matrículas ..-SV-.., ..-PT-.. e .. LL .., apreendidas no âmbito do processo n.º 43/14.0TELSB, relativamente aos respetivos valores de avaliação, homologados por despacho da Presidente do IGFEJ, LP. Ao abrigo do disposto no artigo 12º da citada lei, o proprietário do veículo com a matrícula ..-SV-.. veio informar o GAB de que requereu junto da autoridade judiciária competente a entrega da viatura mediante o depósito do valor de 163.320,00€, pelo que solicitamos o competente despacho de autorização para darmos seguimento à sua restituição. O valor de avaliação ficará, assim, à guarda do GAB até decisão transitada em julgado. Relativamente aos veículos com as matrículas ..-PT-.. e .. LL .., remetemos, em anexo, os requerimentos apresentados pelos respetivos proprietários e vimos solicitar a V. Exa. se pronuncie sobre a possibilidade de venda antecipada pelo GAB, nos termos do art.ºs 10ºe e seguintes da Lei n 45/2011, de 24 de junho, na sua redação atual. Finalmente, não tendo sido possível assegurar a notificação do proprietário do veículo automóvel com a matrícula ..-QQ-.., por correio registado com aviso de receção, solicitamos a V. Exa. o envio dos contactos do seu mandatário, de modo a darmos seguimento à notificação do valor de avaliação. Com os melhores cumprimentos, A Diretora do Gabinete de Administração de Bens.”
O Requerimento apresentado pela parte, junto com o ofício, a fls. 11997/11999, tem o seguinte teor:
“Objectivos Convergentes, Unipessoal, Lda (…) tendo sido notificada enquanto proprietária da homologação do valor da avaliação atribuído ao veiculo automóvel com marca e modelo Ferrari F151 commatrícula ..-PT-.., no âmbito do procedimento de venda antecipada desse veiculo por decisão do GAB vem pedir devidas atenções e consideração para com o que foi já decidido a contrario, no inquérito 413/14.0TELSB, por douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 16 de dezembro de 2021. 1º Na sequência d requerimento anteriormente dirigido a V. Ex. em 13 de julho de 2021 e de requerimento dirigido ao exmo. Sr. Juiz de Instrução Criminal de 21 de julho de 2021, veio a ser proferido despacho jurisdicional em 26 de julho de 2021, que, por sua vez foi objeto de recurso interposto pela arguida para o Tribunal da Relação de Lisboa, 2. Por douto acórdão proferido em 16 de dezembro de 2021, pela 9ª Seção do Tribunal da Relação de Lisboa, as exas senhoras Juízas Desembargadoras concluíram e determinaram, como melhor e cabalmente fundamento no Acórdão, que: A intervenção do IGFEJ/GAB e eventualidade de se proceder à venda antecipado dos veículos colocado sob a sua administração acontece em momento anterior ao da dedução da acusação, a qual ao que sabemos nem sequer foi ainda deduzida, prolongando-se o inquérito já quase há oito anos. Uma vez que o processo parece estar ainda numa fase embrionária e por muito tempo quase há oito anos, e tendo em conta que os veículos automóveis apreendidos e cuja hipótese de venda antecipada e colocada pelo IDFEJ/GAB pese embora sujeitos a desvalorização e ou deterioração, os interesses e a decisão a tomar terá que passar previamente pelo JIC considerando-se o principio da proporcionalidade, consagrado no artigo 18º, nº 2 da CRP entre a lesão do direito de propriedade sobre os veículos automóveis pertencentes á recorrente. Por conseguinte, merece censura o despacho recorrido ao decidir não ter competência para decidir sobre a venda antecipada de bens pertencentes à arguida, pelo que se revoga o mesmo ordenando-se que outro seja proferido decidindo a questão suscitada no requerimento da arguida. (…) Em devida atenção pelo justamente determinado e decidido por douto Acórdão de 16 de Dezembro de 2021 do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no inquérito criminal n.º 413/14.0TELSB; não cabe ao GAB decidir sobre uma "hipótese" de vendaantecipada de qualquer dos veículos apreendidos à ordem daquele processo em fase de inquérito, antes tendo essa decisão que "passar previamente pelo JIC considerando-se o principio da proporcionalidade, consagrado no artigo l8º, n. 2, da CRP, entre a lesão do direito de propriedade sobre o/s veículos automóveis pertencentes à recorrente. 4º E como mais resultava também claro do Acórdão de 16 de dezembro de 2021, sempre assegurado face a decisão jurisdicional que seja proferida, o exercício elementar de recurso.
5º Pelo que o teor, o objecto e o anunciado a propósito da notificação pelo GAB, em sede de decisão sua de venda antecipada de um dos veículos da propriedade da Objectivos Convergentes, Unipessoal, Lda contende diretamente com o que foi já decidido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em 16 de dezembro de 2021. 6. Acresce ao exigido respeito pelo já decidido por Tribunal Superior no Processo n.º 413/14.0TELSB (Inquérito) ter sido apesentado no dia 17 de Abril de 2023 requerimento naqueles autos dirigido ao Exmo. Sr. Juiz de Instrução Criminal, requerendo de forma fundamentada e actual, a revogação da decisão de apreensão e a consequente restituição de todos os veículos da propriedade da ora exponente, pelo que também do veiculo sobre o qual incide a notificação provinda do GAB. 7. Requerimento aquele que ainda não foi objeto de decisão, isto, sem prejuízo do direito de recurso que assiste à arguida Requerente. 8. Termos em que requer a vossa ex. devidas atenções e consideração face ao que foi decidido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão reportado já a 16 de dezembro de 2021 e ao que acresce também requerimento de 17 de abril de 2023, que ainda não foi objeto de decisão.”
Este requerimento veio a ser alvo de despacho e de recurso, constituindo o objeto do apenso S.L1, transitado em julgado em abril 2024.
Entretanto, em 30 de agosto de 2023, por ofício, junto aos autos a fls. 12013, veio novamente a Exma. Sra. Diretora do GAB requerer que ao MP que se pronunciasse sobre a venda antecipada dos veículos ..-PT-.. e .. LL ...
Sobre este requerimento, o Ministério Publico lavrou promoção de 4/09/2023, requerendo:
“ Promoção ao Mmo. Juiz de Instrução para que autorize o Gabinete de Administração de Bens a proceder à venda antecipada dos veículos de matrícula ..-PT-.. e .. LL .. (Requerimentos do GAB de fls. 11978-11979, 11996-12001 e 12013 e Requerimentos dos arguidos OBJECTIVOS CONVERGENTES e AA de fls. 11891-11906, 11980-11988 e 11997-12001): Nos presentes autos e no que aos arguidos requerentes OBJECTIVOS CONVERGENTES, UNIPESSOAL, LDA e AA concerne, foi determinada a apreensão, entre outros, dos veículos da propriedade daqueles, com as matrículas, marcas e modelos seguintes: ..-PT-.., Ferrari F151, propriedade da arguida OBJECTIVOS CONVERGENTES, e .. LL .., Porsche 911 GT3 RS, propriedade do arguido AA. A razão da apreensão prendeu-se com o facto de estar fortemente indiciado nos autos que tais veículos foram adquiridos com o lucro proveniente de um fato ilícito típico, o cometimento do crime de fraude na obtenção de subsídio qualificado e, ainda, por taisveículos integrarem a própria materialidade do crime de branqueamento, constituindo uma forma de conversão e ocultação de rendimentos provenientes do precedente crime de fraude na obtenção de subsídio. Com efeito, indicia-se nos presentes autos factos suscetíveis de integrar, em abstrato, os crimes de fraude na obtenção de subsídio agravado, p. e p. pelos artigos 21.º, 36.º, n.º 1, alíneas a), b), e c), 5, alínea a) e 8, alíneas a) e b) do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Fevereiro; branqueamento, p. e p. pelo artigo 368.º-A, n. 1 e 2 do Código Penal; associação criminosa, p. e p. pelo artigo 299.º, n.º 1 e 3 do Código Penal e fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos artigos 103.º e 104.º, n.º 1 e 2 do RGIT (Lei n.º 15/2001, de5 de junho). A investigação centra-se na atividade desenvolvida pelo arguido AA, o qual, através de empresas de que é ou era sócio de direito e/ou de facto, desenvolveu um esquema fraudulento fundado na constituição e controlo de empresas com sede em Espanha (caso da PERIPLAST, S.L.) e na Alemanhã (caso das sociedades CdF GmbH, DEPOB GmbH e AMBIBAU GmbH) que foram indicadas como fornecedoras em projetos cofinanciados por despesa pública de que eram promotoras empresas portuguesas controladas pelo arguido AA e por outras empresas nacionais a quem este arguido propôs os serviços da consultora"SILORA - Consultoria e Gestão, Lda ", para a apresentação e gestão dos processos de candidatura para obtenção de fundos comunitários. Os equipamentos faturados aos projetos foram, na sua maioria, fabricados por empresas portuguesas, faturados àquelas empresas estrangeiras, criando, com esta intermediação, um elevado empolamento de custos, sendo que a faturação apresentada para justificar os pagamentos não tem correspondência com os equipamentos instalados. Com vista a dissimular e a converter os valores obtidos, através da atuação fraudulenta descrita, valores que foram, efetivamente, pagos por fundos comunitários, aquele arguido adquiriu veículos de alta cilindrada, na Alemanhã, que exportou para Portugal, onde foram revendidos por valores inferiores aos da aquisição, a empresas ou pessoas singulares que controla ou que estão relacionados com as fraudes desenvolvidas. A administração do património apreendido nos autos, maxime dos referidos veículos de matrícula ..-PT-.. e .. LL .., foi entregue ao Gabinete de Administração de Bens (GAB), por imperativo legal - artigo 10.º, n.º 1, da Lei 45/2011, de 24 de Junho, mantendo-se essa administração na presente data e as viaturas à guarda do GAB (fls. 11544). Relativamente ao veículo de matrícula ..-PT-.., cabe referir que, em 31.07.2020, a OBJECTIVOS CONVERGENTES, foi notificada, através de carta registada com aviso de receção para, caso assim o pretendesse, no prazo de 10 dias, requerer à autoridade judiciária competente a entrega da viatura contra o depósito do valor da avaliação da viatura de matrícula ..-PT-.. e marca Ferrari F151, e com a advertência de que, findo aquele prazo, o GAB daria seguimento ao procedimento de venda antecipada daquela viatura, nos termos da Lei n.º 30/2017, de 30 de Maio (cfr. fls. 10707-10708). Após aquela notificação do GAB não veio a OBJECTIVOS CONVERGENTES solicitar qualquer intervenção do Mmo. Juiz de Instrução no sentido de obstar à venda antecipada do veículo automóvel de matrícula ..-PT-.. e marca Ferrari F151 e só, decorrido quase um ano, em requerimento de 21.07.2021 (fls. 11160-11165v.º) veio solicitar ao Mmo. Juiz de Instrução que não fosse autorizada a venda antecipada de tal viatura. Em face do despacho judicial proferido a fls. 11183, veio ainda a OBJECTIVOS CONVERGENTES interpor recurso com o fundamento de que a venda antecipada na fase do inquérito tem de passar sempre pelo crivo da competência do Juiz de Instrução (fls. 11252-11285). Por decisão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16.12.2021, foi julgado parcialmente provido o recurso interposto pela arguida OBJECTIVOS CONVERGENTES, revogado o despacho recorrido (de fls. 11183), e consequentemente, ordenou-se que o Mmo. Juiz de Instrução se pronunciasse sobre a venda antecipada dos bens apreendidos, na fase de inquérito, por se tratar de um acto que atinge o direito de propriedade dos respectivos titulares, autorizando, ou não, aquela venda. Foram então proferidos os despachos de fls. 11446, 11448, 11465, 11615 e, tendo em conta o tempo que mediou entre a avaliação das viaturas de matrícula ..-PT-.. e .. LL .. e a data em que o GAB havia manifestado interesse na venda antecipada das viaturas, o que nos pareceu ser motivo de alteração significativa do valor de tais veículos automóveis, foi efectuada uma avaliação actualizada. O GAB, a fls. 11610, remeteu reavaliação dos veículos apreendidos, realizada em 15.09.2022 constatando-se o seguinte: • relativamente ao veículo de matrícula ..-PT-.., uma avaliação inicial em 25.05.2017 de 343.816,00 €, uma avaliação de 225.032,34 €, em 29.11.2017 e uma avaliação no valor de 197.000,00 €, em 15.09.2022; • relativamente ao veículo de matrícula .. LL .., uma avaliação inicial em 25.05.2017 de 196.387,00 € e uma avaliação no valor de 235.000,00 €, em 15.09.2022. Resultando dessas reavaliações, realizadas em 15.09.2022, um valor novo ou distinto, foram os seus proprietários ou legítimos possuidores notificados da mesma, nos termos do artigo 13.º, n.º 1, alínea b) e para os efeitos do disposto no n.º 4 do artigo 12.º, ambos da Lei n.º 45/2011, de 24/06. Na verdade, as anteriores avaliações perderam atualidade, devendo ser dada ao proprietário ou legítimo possuidor do bem avaliado a possibilidade de conhecer e se pronunciar quanto ao valor atualizado e requerer à autoridade judiciária competente a entrega das viaturas contra o depósito do valor da avaliação atual. Porém, conforme consta dos requerimentos de fls. 11980-11988 e 11997-12001 os arguidos OBJECTIVOS CONVERGENTES e AA, não requereram a entrega das viaturas contra o depósito do valor da respetiva reavaliação, tendo apenas suscitado a intervenção do Mmo. Juiz de Instrução na decisão de venda antecipada, em conformidade com o decidido pela supra mencionada decisão do Tribunal da Relação de Lisboa e requerendo ainda a OBJECTIVOS CONVERGENTES, a apreciação do requerido a fls. 11909-11921, quanto à viatura de matrícula ..-PT-.., em síntese, que o Mmo. Juiz de Instrução revogue a decisão de apreensão e ordene a restituição àquela requerente da viatura de modelo Ferrari F151, matrícula ..-PT-... Para sustentar a restituição daquela viatura, alegou, em síntese, a antiguidade do inquérito e a circunstância de ter sido ultrapassado o prazo máximo para o seu encerramento, bem como a restrição e privação do direito de propriedade. Ora, conforme se fez constar da supra referida decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, "o objetivo da venda antecipada dos bens apreendidos, antes de haver decisão que declare a sua perda a favor do Estado, é o preservar o valor desses bens, quando sejam perecíveis ou estejam sujeitos a deterioração ou desvalorização, em função do decurso do tempo e considerando a demora do processo até ao trânsito em julgado da decisão final". No caso em concreto importa considerar, por um lado, a previsível demora de uma decisão final transitada em julgado, atenta a especial complexidade e dimensão dos presentes autos e, por outro lado, a notória desvalorização daquelas viaturas decorrente da passagem do tempo e eventual deterioração se continuarem imobilizadas muito tempo, sendo de salientar a desvalorização da viatura de matrícula ..-PT-.., entre a primeira e a última avaliação, de 343.816,00 € (25.05.2017) para 197.000,00 € (15.09.2022). Afigura-se-nos ainda estarem devidamente acautelados os direitos dos arguidos e proprietários das viaturas pois, excluindo as situações de perda não baseada numa condenação - morte do agente, contumácia, amnistia, prescrição -, ou seja, caso aqueles arguidos venham, eventualmente, a ser absolvidos por se ter comprovado a não verificação da prática de qualquer crime, em caso de venda antecipada, terão direito à restituição do valor obtido acrescido dos juros vencidos desde a venda, deduzidas as despesas efetuadas pelo Gabinete de Administração de Ativos (GAB), nos termos do disposto no artigo 18.º da Lei n.º 45/2011, de 24 de junho, sendo que esta situação, tal como no caso da expropriação por utilidade pública (n.º 2, do artigo 62.º da Constituição da República Portuguesa), satisfaz as exigências constitucionais de salvaguarda do direito de propriedade. Se é verdade que o direito de propriedade tem consagração na Constituição da República Portuguesa, designadamente no artigo 62.º, o facto é que não é garantido em termos absolutos, mas sim dentro dos limites e com as restrições previstas e definidas na Constituição e na lei, por razões ambientais, de ordenamento territorial e urbanístico, de segurança, de defesa nacional e económicas - caso da venda antecipada, quando o bem em causa está congelado tendo em vista uma eventual decisão de perda subsequente, sendo que aqui a venda antecipada é uma medida de gestão adequada à não desvalorização do bem - e, de interesse geral, ou seja, com o direito que os Estados possuem de pôr em vigor leis para a regulamentação do uso dos bens. Neste conspecto verificamos que "(...) O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem-se manifestado no sentido de que medidas patrimoniais (como a perda alargada) não violam o direito de propriedade, pois consistem em formas de regulação do uso de bens justificados pelo interesse geral (artigo 1.º, segunda parte do protocolo n.º 1 anexo à Convenção Europeia dos Direitos Humanos)". O direito de propriedade não faz parte do elenco dos "direitos, liberdades e garantias", embora goze do respetivo regime, naquilo que nele reveste natureza análoga à daqueles: cfr. artigo 17.º da CRP, nomeadamente para efeito do regime de restrições a favor do Estado e da coletividade, sendo que esta admissão de restrições contende com as liberdades de uso, fruição e disposição4. Esta não proteção constitucional do direito de propriedade não obsta a que esteja garantido um direito de não ser arbitrariamente privado da propriedade e de ser indemnizado no caso de desapropriação. Entendemos, pois, que face ao interesse manifestado pelo GAB na venda antecipada dos supra referidos veículos e pelas razões expostas, deverá ser autorizada a respetiva venda, considerando o valor da última avaliação efetuada em 15.09.2022 (fls. 11610). Pelo exposto, promove-se ao Mmo. Juiz de Instrução que indefira a requerida revogação da decisão de apreensão e restituição à Requerente Objectivos Convergentes da viatura de matrícula ..-PT-.. e, em face da decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa nestes autos, autorize o Gabinete de Administração de Bens a proceder à venda antecipada dos veículos Ferrari F151, de matrícula ..-PT-.., propriedade da arguida OBJECTIVOS CONVERGENTES e Porsche 911 GT3 RS, matrícula .. LL .., propriedade do arguido AA, nos termos e ao abrigo do artigo 14.º da Lei n.º 45/2011, de 24 de junho. Remetam-se os autos ao Tribunal Central de Instrução Criminal, para apreciação e decisão.
Foi a esta promoção que o despacho recorrido de 14/09/2023, deu acolhimento, decidindo nos termos já supra indicados, a fls.12027.
Este despacho foi notificado apenas ao Ministério Público e comunicado ao GAB, não tendo sido notificado a nenhum arguido e veio a ser suspenso na sua execução, por despacho judicial de fls. 12114, de 13/10/2023, como consequência da admissão com efeito suspensivo do recurso interposto ao despacho judicial proferido em 04/05/2023 no Apenso S.L1, também supra transcrito.
Invocam os recorrentes que não lhes foi dada a possibilidade de se pronunciarem sobre esta promoção, por não ter sido sequer cumprido o contraditório.
Ultrapassada a primeira questão da reserva jurisdicional, devidamente observada, quando à decisão da venda, impõe-se como supra se anunciou, a apreciação da sua substância, na perspetiva do cumprimento das regras do contraditório e depois da sua fundamentação e por fim, da sua adequação e validade.
Da consulta da tramitação processual constata-se que assiste desde logo razão aos recorrentes na medida em que foi omitida a sua notificação para querendo se pronunciarem sobre a promoção do Ministério Público.
É certo que tinham sido notificados pelo GAB do valor encontrado para os veículos, e para a possibilidade de exercerem o seu direito a proceder ao pagamento de caução, para os poderem reaver e assim objetar à sua venda antecipada, mas questão diversa é saber da adequação dessa venda, por se tratar de questão distinta da validade da manutenção da apreensão dos bens, essa sim já decidida e recorrida.
O Despacho recorrido, datado de 14 de Setembro de 2023, quanto à questão da manutenção da apreensão dos veículos remeteu expressamente para o despacho judicial de 5 de Maio de 2023, onde a validade das apreensões foram apreciadas e decididas: Não vemos que não o pudesse ter feito tanto mais que entre ambos os despachos haviam apenas decorrido 4 meses.
Mas a oportunidade da venda antecipada é como se disse distinta da manutenção da apreensão, pelo que quanto a esta haveria que ter havido cumprimento do contraditório e prolação de despacho expresso em que se apreciasse da sua oportunidade e adequação, o que de facto não se verificou no despacho recorrido
Sempre se acrescenta que se tal exigência existia em setembro de 2023, em 2024, um ano depois, na altura em que foi declarado o levantamento da suspensão da eficácia do despacho, a necessidade de fundamentação já não se esgota só na apreciação da venda, mas também da manutenção da apreensão em face do tempo decorrido, tornando a fundamentação jurisdicional ainda mais premente.
Assim, sempre teria que ser proferida uma apreciação judicial que conhecesse da oportunidade e da observância da tramitação estatuída pela Lei 45/2011, efetivamente restritiva do direito de propriedade, antecipando a possibilidade de venda de bens, cautelarmente apreendidos nos autos.
Da leitura do despacho recorrido resulta que o Exmo. Sr. Juiz de Instrução verificou e conferiu a tramitação realizada pelo Gabinete de Administração de Bens, junto do IGFEJ.
Com efeito, verificou que os proprietários dos veículos foram notificados da avaliação realizadas aos mesmos com vista à sua venda, para, querendo, dela reclamarem, bem como para obstaculizarem à sua venda, depositando à ordem dos autos o valor correspondente ao da avaliação.
Depois de tal verificação, autorizou a realização da venda, mas não cumpriu o contraditório notificando as arguidas do teor da promoção que antecedeu tal despacho, nem o justificou na perspetiva da ponderação dos interesses em conflito.
É certo que as arguidas, ora recorrentes, optaram por não proceder a qualquer depósito por conta dos dois veículos, abrindo assim a possibilidade de ser realizada a sua venda, ao contrário do que fizeram, relativamente a outros veículos.
Contudo, a ponderação quanto a estes, realizada na promoção do Ministério Público, relativamente ao efeito do decurso do tempo e da consequente perda de valor dos bens, sob pena de violação do princípio do contraditório exigia a possibilidade de ser contraditada pelos arguidos, efetivos titulares do direito de propriedade dos bens e só após cumprido tal princípio poderia ser decidida pelo Juiz de Instrução.
Nestes termos, afigura-se-nos ser de conceder procedência ao recurso.
Pese embora a procedência, desde já declarada do recurso, afigura-se-nos ainda que deveremos conhecer da última das questões colocadas:
A (des)conformidade dos artigos 10º a 14º da Lei n.45/2011, com o disposto nos artigos 32º, n.4 e 5, 62º da Constituição da Republica Portuguesa e ainda com o disposto no artigo 11º n.º 1, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o artigo 6º, n.º 2, da Convenção para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, e o artigo 14º, n.º 2, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, e no artigo 48º, n.º1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, uma vez que estas violações foram expressamente arguidas pelas recorrentes.
Prevê o artigo 32º, n. 4, da Constituição da República Portuguesa, que toda a instrução é da competência de um juiz, o qual pode, nos termos da lei, delegar noutras entidades a prática dos actos instrutórios que se não prendam diretamente com os direitos fundamentais e ainda que o processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os atos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.
Por seu turno, o artigo 62.º, garante a todos direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição, prevendo o seu n.2, que a requisição e a expropriação por utilidade pública só podem ser efetuadas com base na lei e mediante o pagamento de justa indemnização.
O artigo 17º, da Declaração Universal dos Direitos Humanos prevê que todo o ser humano tenha direito à propriedade, só ou em sociedade com outros e que ninguém seja arbitrariamente privado de sua propriedade.
De igual modo, o Protocolo n.º 1, adicional à Convenção de Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, estatui que qualquer pessoa singular ou coletiva tem o direito ao respeito dos seus bens. Ninguém pode ser privado do que é sua propriedade a não ser por utilidade pública e nas condições previstas pela lei e pelos princípios gerais do direito internacional.
Por fim, o artigo 17º, n.º 1, da Carta dos Direitos Fundamentais, da União Europeia, sob epigrafe “Direito de Propriedade” consagra que.
1. Todas as pessoas têm o direito de fruir da propriedade dos seus bens legalmente adquiridos, de os utilizar, de dispor deles e de os transmitir em vida ou por morte. Ninguém pode ser privado da sua propriedade, exceto por razões de utilidade pública, nos casos e condições previstos por lei e mediante justa indemnização pela respetiva perda, em tempo útil. A utilização dos bens pode ser regulamentada por lei na medida do necessário ao interesse geral.
O Direito de propriedade, sendo igualmente um direito fundamental, inscreve-se apenas no Título III, da Constituição da República Portuguesa, no seu Capítulo I, respeitante aos direitos e deveres económicos, sociais e culturais, na parte de direitos e deveres económicos.
Como todos os demais direitos fundamentais, em obediência ao disposto no artigo 18º, do Texto Constitucional, são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas, sendo que a lei possa restringir os direitos, liberdades e garantias, salvo nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
Os diplomas habilitantes para as apreensões judiciais realizadas nos autos e para a venda antecipada de bens apreendidos, em concreto o artigo 178º do Código de Processo Penal e a venda antecipada de bens encontram-se previstas por diploma legislativos que se revestem da forma de Decreto-Lei ou Lei, isto é, observam a reserva orgânica relativa da Assembleia da República, para a sua aprovação.
A apreensão de objetos, nos quais se incluem os documentos, visa, entre o mais, a preservação da prova do crime, mas também garantir a execução do confisco dos instrumentos, produtos e vantagens decorrentes da prática do crime, como forma de ser um instrumento eficaz no combate à criminalidade, impedindo os delinquentes de beneficiar dos proventos dos actos ilícitos, mesmo que privados de liberdade.
A previsão destas normas assenta assim, numa vertente, no seu interesse para a descoberta da verdade, mas também na eficácia do exercício do ius puniendi estadual, isto é a apreensão de bens visa garantir que, findo o processo, proferida decisão condenatória, o agente não tenha acesso aos instrumentos que lhe permitiriam prosseguir a prática criminosa, por um lado, e por outro, que não retire do crime vantagens, ainda que venha a ser sancionado.
A Lei 45/2011, de 24 de junho, é uma medida processual antecipatória da declaração de perda de bens a favor do Estado, naturalmente limitadora do exercício do direito de propriedade, mas emanada pelo órgão legislativo competente, a Assembleia da República.
Este direito de propriedade, conforme resulta claro do próprio texto constitucional, não obstante ser um direito fundamental, não é um direito absoluto, insuscetível de ser limitado por via legislativa, com reserva relativa da Assembleia da República, nos termos do disposto no artigo 165º do Texto Constitucional, como é o caso do diploma sobre o qual nos debruçamos, que não obstante a reserva ser relativa, teve a sua génese, como se disse, no Parlamento.
A compressão do direito de propriedade é legítima, desde que adequada e proporcional à execução e proteção de outros direitos fundamentais, como seja o direito à Segurança, e ao efetivo combate à criminalidade.
A apreensão de bens em sede de investigação criminal é incontornável, como corolário da eficácia da ação punitiva do Estado.
O mecanismo de venda antecipada visa, precisamente, acautelar os prejuízos decorrentes do perecimento de alguns dos bens apreendidos ou apenas do desgaste no seu valor, decorrente da morosidade do processo de investigação e também do julgamento até ao trânsito em julgado.
É da necessidade de conjugar esta ação preventiva e punitiva do Estado, com o princípio da presunção da inocência e o direito de propriedade que nasce este mecanismo processual, que visa menorizar os prejuízos caso venham a soçobrar os indícios existentes no momento da apreensão dos bens, permitindo a sua avaliação e a entrega pelo estado ao arguido absolvido de igual valor.
Na verdade, proceder à avaliação e venda dos bens sujeitos a desvalorização, garante aos arguidos, caso venham a ser absolvidos ou mesmo não acusados, pelo menos, a devolução do valor do bem caso este seja perecível ou sujeito a desvalorização.
Conceder ao titular da propriedade do bem apreendido a possibilidade de o reaver mediante depósito da quantia pelo qual foi avaliada, visa também acautelar a possibilidade deste manter, na sua propriedade e posse, o bem apreendido e manter-se salvaguardar a ação punitiva, ainda assim.
Não, é, por isso, incompatível com a tutela constitucional da propriedade a compressão desse direito desde que seja identificável uma justificação assente em princípios e valores também com dignidade constitucional.
Não podemos deixar de lembrar que a Lei n. 45/2011, de 24 de Junho, resulta da necessidade de dar cumprimento à Decisão 2007/845/JAI, de 6 de Dezembro de 2007, do Conselho da União Europeia, relativa à cooperação entre os gabinetes de recuperação de bens dos Estados-Membros no domínio da deteção e identificação de produtos ou outros bens relacionados com o crime, a que o Estado Português se vinculou.
Deste modo, a criação do Gabinete de Administração de Bens não só não viola qualquer tratado de Direito Internacional, como, pelo contrário, visa compatibilizar a Ordem Jurídica Interna com instrumentos legislativos de Direito Europeu, aos quais Portugal naturalmente está vinculado
A Lei n. 45/2011, de 24 de junho, mormente nos seus artigos 12 a 14º, tem um âmbito natural restritivo de direitos, liberdades e garantias. No entanto, toda a sua regulamentação se reveste de carácter geral e abstrato.
Trata-se de uma lei ordinária que cumpre todos os requisitos impostos pelo artigo 18ª da Constituição da República Portuguesa, norma atinente à força jurídica dos Direitos Fundamentais, isto é:
- a restrição encontra-se expressamente prevista pela Constituição, concretamente:
- nos seus artigos 8º, n.4, pois as disposições dos Tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático.
- no artigo 65º, que prevê a restrição do direito de propriedade, por via legislativa, mediante a sua indemnização.
- a restrição visa salvaguardar outro direito ou interesse constitucionalmente protegido, no caso o exercício da ação penal (princípio da adequação, da necessidade e da exigibilidade)
- a restrição exigida por essa salvaguarda, limita-se à medida necessária para alcançar esse objetivo (observando o princípio da proporcionalidade)
- não extingue o direito restringido, viabilizando a sua compensação. (observando o princípio da proibição do excesso).
Nestes termos, em nada viola a Constituição a aplicação, em abstrato, das referidas normas da Lei n. 45/2011, de 24 de junho.
Contudo, impõe-se que após o cumprimento do contraditório ( isto é, depois de ser conferida a possibilidade dos titulares dos direitos afetados pela venda antecipada sobre a mesma se pronunciarem, o que é distinto da pronúncia sobre o seu valor ou sobre a opção de deposito do seu valor) ser proferida decisão judicial que determinando ou indeferindo a venda antecipada, aprecie da sua oportunidade e adequação, na ponderação dos interesses conflituantes em confronto, sendo essa única possibilidade de a interpretação das mesmas ser conforme ao disposto no artigo 18.º, 32.º, 64.º e 205.º da Constituição da República Portuguesa.
4. Decisão:
De harmonia com o exposto, acordam os juízes que compõem este Tribunal da Relação de Lisboa, em conceder provimento ao recurso, declarando a nulidade dos despachos de 14.09.2023, 24.05.2024 e 11.06.2024, por preterição de ato jurisdicional efetivo e violação dos princípios do contraditório e da fundamentação.
Consequentemente, determinam a sua substituição por outro que:
- num primeiro momento, determine o contraditório;
- após, ponderando a argumentação que porventura possa ser oferecida pelos proprietários/arguidos e a promoção antecedente do Ministério Público, avalie da natureza e estado dos bens, verifique a necessidade concreta da venda antecipada e fundamente a decisão nos termos do art.º 14.º da Lei n.º 45/2011, conjugado com o disposto nos arts. 18.º e 205.º da CRP.
Sem custas.
Notifique.
Lisboa, 21-05-2025
Ana Guerreiro da Silva
Alfredo Costa Gameiro
Ana Paula Grandvaux