REVISÃO E CONFIRMAÇÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
DIVÓRCIO
COMPETÊNCIA TERRITORIAL
CONHECIMENTO OFICIOSO
LEGITIMIDADE
MINISTÉRIO PÚBLICO
Sumário

I. Na acção com processo especial de revisão e confirmação de sentença estrangeira (que decretou o divórcio entre as partes) é aplicável, na aferição da competência territorial do tribunal, o disposto nos artigos 979.º e 80.º, ambos do CPC, cuja violação determina a incompetência relativa do tribunal (cf. art. 102.º do CPC).
II. Não sendo a violação da regra ínsita no art. 80.º do CPC de conhecimento oficioso, nos termos da previsão do art. 104.º, n.º 1, do CPC, não pode o tribunal conhecer oficiosamente da mesma quando não tenha sido arguida pelas partes, nos termos do art. 103.º do CPC.
III. Não sendo o Ministério Público parte principal na presente acção, a sua intervenção encontra-se limitada aos arts. 980.º, 982.º e 985.º do CPC, a incompetência territorial não pode por si ser arguida.
(Sumário elaborado pela relatora)

Texto Integral

Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório
A …, residente na Rua de …, …, ….º dto, Porto, veio intentar a presente acção de revisão e confirmação de sentença estrangeira contra B …, residente no Brasil.
Requer que se confirme na ordem jurídica portuguesa a  decisão estrangeira que decretou o divórcio consensual entre requerente e requerida.
Procedeu-se à citação do requerido,  tendo o mesmo junto aos autos declaração de concordância com o pedido formulado nos presentes autos.
Cumprido o disposto no art. 982.º do CPC veio o Digno Procurador Geral Adjunto invocar a incompetência territorial deste Tribunal da Relação de Lisboa, em virtude de a área de residência da Autora pertencer à área geográfica da Relação do Porto.
Concedido o contraditório à requerente, veio a mesma responder nos termos constantes do articulado de 25-02-2025.
O M.P. manteve a posição assumida no que tange à incompetência territorial.
II. Questão prévia
Em sede de alegações veio o Digno Procurador Geral Adjunto excepcionar a incompetência territorial deste Tribunal da Relação de Lisboa, em virtude de a residência da Autora se situar na área geográfica da Relação do Porto, alegando em suma que:
“Inserido na Secção IV relativa à Competência em razão do território, o artigo 80.º, n.º 3, do CPC, sob a epígrafe “Regra Geral”, estipula o seguinte:
“Se o réu tiver domicílio e residência em país estrangeiro, é demandado no tribunal do lugar em que se encontrar; não se encontrando em território português, é demandado no do domicílio do autor, e, quando este domicílio for em país estrangeiro, é competente para a causa o tribunal de Lisboa.”
Ora, no caso em apreciação, a A. A … reside na Rua … - …- …º DTO, 4250- … Porto.
Já o R. B … reside na Rua …, Qd. 09 Lt. …, Jardim Dom Fernando …, Código Postal 74765-…, Goiânia, …, Brasil.
Significa, portanto, que competente em razão do território para a ação de revisão de sentença estrangeira será o tribunal da área de residência da A., que pertence à área geográfica do Tribunal da Relação do Porto.
A incompetência em razão do território configura uma exceção dilatória que neste caso implica a remessa do processo para outro tribunal (cfr. artigos 576.º, n.º 2, e 577.º, alínea a), parte final, do CPC).
Assim, em face do exposto, promovo que se declare a incompetência territorial do Tribunal da Relação de Lisboa e se determine a remessa oportuna do processo para o Tribunal da Relação do Porto.”
Cumpre apreciar.
Conforme decorre do disposto no art. 102.º do CPC, a infracção das regras de competência fundadas na divisão judicial do território determina a incompetência relativa do tribunal.
Trata-se de excepção dilatória mas que apenas é de conhecimento oficioso nos casos previstos no art. 104.º, n.º 1, do CPC - cf. ainda artigos 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, al. a), e 578.º do CPC.
Ora, o art. 104.º, n.º 1, do CPC, que determina as situações em que a incompetência relativa é de conhecimento oficioso, não contempla, nas suas diversas previsões constantes das als. a) a c) do n.º 1, o art. 80.º do CPC.
Pelo que estamos, indiscutivelmente, perante uma situação em que o tribunal não pode oficiosamente conhecer da excepção em causa, a qual não foi suscitada pelas partes.
É certo que a questão foi suscitada pelo M.P. na sua promoção de 12-02-2025.
Não obstante, o certo é que o Ministério Público, na presente acção, não é parte principal.
Partes principais são A … e B …, razão pela qual apenas este último foi citado para deduzir oposição, nos termos do disposto no art. 981.º do CPC.
Não sendo o Ministério Público parte principal, a sua intervenção está limitada nos termos da lei, tal como a actividade oficiosa do tribunal – cf. artigos 980.º a 985.º do CPC.
Logo, não pode este Tribunal da Relação conhecer da excepção de incompetência relativa, por não ter sido arguida pelo Réu nos termos do art. 103.º do CPC.
Neste mesmo sentido se pronunciaram os seguintes Acórdãos:
- o acórdão da Relação do Porto de 27-04-1992, proferido no proc. n.º 9140292, disponível em www.dgsi.pt, conforme se alcança do seguinte ponto do respectivo sumário: “I - Não tem o Ministério Público legitimidade para arguir a incompetência territorial de um Tribunal da Relação para a revisão de sentença estrangeira.”
- o acórdão da Relação de Évora de 01-10-2022, proferido no proc. n.º 1622/02-3, também disponível em www.dgsi.pt, em cujo sumário se refere precisamente que: “I - Na acção para revisão e confirmação de sentença estrangeira, o Tribunal não pode, oficiosamente, ou a requerimento do MºPº, julgar-se territorialmente incompetente.”
- o acórdão da Relação de Lisboa de 05-12-2024, proferido no proc. n.º 1825/24.7YRLSB-2 (Relatora Laurinda Gemas), em cujo sumário se refere “II - Tratando-se de exceção dilatória que não encontra abrangida pela previsão do art. 104.º, n.º 1, do CPC, não pode o tribunal conhecer oficiosamente da mesma quando não tenha sido arguida pelas partes, no caso pela Ré, nos termos do art. 103.º do CPC, não bastando que a questão da incompetência territorial haja sido suscitada pelo Ministério Público, ao abrigo do disposto no art. 982.º, n.º 1, do CPC, pois, não sendo parte principal na ação, a sua intervenção encontra-se limitada nos termos da lei, tal como a atividade oficiosa do tribunal (cf. artigos 980.º a 985.º do CPC).”
Em face da fundamentação supra e aderindo ao entendimento constante dos acórdãos referidos supra, não se conhece da excepção de incompetência relativa suscitada.
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III. Saneamento da acção
O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia.
Inexistem nulidades que invalidem todo o processo.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e a Autora está devidamente representada.

IV. Fundamentação de facto
Atento o teor dos documentos juntos aos autos – certidão de casamento, escritura publica de divórcio devidamente apostilada e assento de casamento -, está provado que:
1. O Requerente e a Requerido contraíram casamento no dia 21 de Março de 2007 no 3.º Registro Civil e Tabelionato de Notas, na Cidade de Goiânia, Góias, Brasil.
2. O referido casamento encontra-se averbado em Portugal, na Conservatória de Registo Civil do Porto, conforme assento de casamento n.º …/….
3.  Por escritura publica de  a 01-09-2015 realizada no 3.º Registo Civil e Tabelionato de Notas foi decretado o divórcio consensual entra requerente e requerido.
V. Fundamentação de Direito
Para que uma decisão de um tribunal estrangeiro, sobre direitos privados, possa ter eficácia em Portugal, tem de ser revista e confirmada nos termos do processo especial regulado pelos artigos 978.º a 983.º do Código do Processo Civil (com as naturais, específicas e excepcionais situações reguladas em Regulamentos da União Europeia, Leis especiais, Tratados e Convenções de que Portugal faça parte).
“A decisão é considerada ‘estrangeira’ quando for proferida por tribunal ou (…) por autoridade no exercício de competências atribuídas por uma ordem jurídica estrangeira”, devendo entender-se por decisão “qualquer acto público que segundo o Direito do Estado de origem tenha força de caso julgado”[1].
 Ou, como de forma ampla se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Junho de 2013 (Processo n.º 623/12.5YRLSB.S1-Granja da Fonseca), quando estejamos perante um “acto caucionado administrativamente pela ordem jurídica em que foi produzido”[2].  
A revisão de sentença estrangeira ou acto equiparado com vista a operar efeitos jurisdicionais na ordem jurídica nacional é um processo de natureza formal, que envolve apenas e essencialmente a verificação da regularidade formal ou extrínseca da sentença/decisão revidenda. Trata-se, como refere João Gomes de Almeida (in “Processos Especiais”, Volume I, AAFDL, 2020, página 315) do sistema dito de delibação, de acordo como o qual o tribunal, em princípio, se limita a verificar se a sentença estrangeira satisfaz certos requisitos de forma, não conhecendo do fundo ou mérito da causa[3].
O artigo 980.º do Código de Processo Civil define minuciosamente quais os requisitos da revisão:
1 – que não haja dúvidas sobre a autenticidade e sobre a inteligibilidade do documento de que conste a sentença (alínea a));
2 – que tenha ocorrido o trânsito em julgado da sentença (alínea b));      
3 – que a sentença/decisão provenha do tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada com fraude à lei e que não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses (alínea c));
4 - que não possam invocar-se as excepções de litispendência ou caso julgado com fundamento em causa afecta a tribunal português, excepto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição (alínea d));
5 – que a citação do réu tenha tido lugar nos termos da lei do país de origem e tenham sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes (alínea e));
6 – que a sentença/decisão não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado português (alínea f)).
Aferindo-se a verificação de todas as condições exigidas pela lei para a revisão e confirmação da escritura pública de divórcio em causa, poderá levar-se a cabo a confirmação peticionada.
De facto, o artigo 1124-A do Código de Processo Civil Brasileiro (acrescentado pela Lei n.º 11.441/07, de 04 de Janeiro) dispõe que:
“A separação consensual e o divórcio consensual, não havendo filhos menores ou incapazes do casal e observados os requisitos legais quanto aos prazos, poderão ser realizados por escritura pública, da qual constarão as disposições relativas à descrição e à partilha dos bens comuns e à pensão alimentícia e, ainda, ao acordo quanto à retomada pelo cônjuge de seu nome de solteiro ou à manutenção do nome adotado quando se deu o casamento.
§ 1º  A escritura não depende de homologação judicial e constitui título hábil para o registro civil e o registro de imóveis.
§ 2º  O tabelião somente lavrará a escritura se os contratantes estiverem assistidos por advogado comum ou advogados de cada um deles, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial.
§ 3º  A escritura e demais atos notariais serão gratuitos àqueles que se declararem pobres sob as penas da lei”.
Do mesmo modo, o artigo 733.º do mesmo Código (Lei nº 13.105, de 16 de Março de 2015), preceitua que “O divórcio consensual, a separação consensual e a extinção consensual de união estável, não havendo nascituro ou filhos incapazes e observados os requisitos legais, poderão ser realizados por escritura pública, da qual constarão as disposições de que trata o art. 731 .
§ 1º A escritura não depende de homologação judicial e constitui título hábil para qualquer ato de registro, bem como para levantamento de importância depositada em instituições financeiras.
§ 2º O tabelião somente lavrará a escritura se os interessados estiverem assistidos por advogado ou por defensor público, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial”.
Os Requerentes aproveitaram – assim – a possibilidade, que a Lei brasileira lhes concedia, de se divorciarem, de forma consensual, num cartório notarial, através de uma escritura pública.
Assim:
Tendo a revisão sido requerida pela requerente, sem oposição – antes com adesão  - do requerido e sabendo-se que se impõe ao Tribunal o conhecimento oficioso da verificação dos pressupostos a que se referem as alíneas a) a f) do citado artigo 980.º, na situação dos presentes autos, é de concluir que:
- não foram suscitadas pelo requerido, nem se suscitam ao Tribunal, dúvidas quer quanto à autenticidade, quer quanto à inteligência dos documentos juntos pelaa Requerente;
- a decisão decorrente da escritura pública brasileira não conduz a resultado incompatível com os princípios de ordem pública internacional do Estado Português;
- mostram-se cumpridos os princípios do contraditório e da igualdade das partes;
- inexiste qualquer situação de litispendência ou de caso julgado, com fundamento em causa afecta a um tribunal português;
- a decisão revidenda é definitiva;
- nada indicia ou faz suspeitar que a competência do tribunal tenha sido determinada em fraude à lei.
Verificando-se, assim, todos os requisitos necessários para a confirmação da escritura pública de divórcio em análise, impõe-se, sem necessidade de outras considerações ou desenvolvimentos, dar procedência à pretensão da requerente.
No que à responsabilidade tributária se refere, as custas do processo ficam a cargo da Requerente, nos termos da parte final do n.º 1 do artigo 527.º do Código de Processo Civil.
VI. DECISÃO
Por todo o exposto, acordam os juízes desta 6.ª secção cível do Tribunal da Relação em:
- Julgar procedente a presente acção e, em consequência, decide-se conceder a revisão e confirmer adecisão decorrente da escritura pública de divórcio exarada a 01 de Setembro de 2015 no Serviço Notarial de Goiânia – Estado de Góias /Brasil, que decretou o divórcio de B … e A …, a qual passará a ter eficácia na ordem jurídica portuguesa.
Custas pela  Requerente.
Registe e notifique.
Oportunamente comunique-se à Conservatória de Registo Civil.
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Lisboa, 22 de Maio de 2025
Maria Teresa Mascarenhas Garcia
João Manuel Cordeiro Brasão
Nuno Luís Lopes Ribeiro
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[1] Luís de Lima Pinheiro, Direito Internacional Privado, Volume III, Tomo II – Reconhecimento de Decisões Estrangeiras, 3.ª edição refundida, AAFDL, 2019, página 199 (também 203).
[3] Assim, entre muitos, STJ 12/07/2011 (Paulo Sá) e Relação do Porto 07/12/2017 (Aristides Gomes de Almeida), ambos disponíveis em www.dgsi.pt.