DIVÓRCIO
INVENTÁRIO
LEGITIMIDADE
MEAÇÃO
TRANSMISSÃO
NULIDADE
Sumário

I. Em processos de inventário para partilha de bens comuns, na sequência de divórcio, a regra é de que a legitimidade, para intentar e ser demandado, recai sobre os ex-cônjuges.
II. Admite-se, não obstante, a existência de excepções que justificam que se conceda legitimidade a terceiros alheios à relação conjugal: (i) caso de falecimento de um dos ex-cônjuges, em que, o inventário pode ser requerido pelos ou contra os respectivos sucessores; (ii) necessidade de protecção dos interesses de um ex-cônjuge que esteja ausente em parte incerta ou seja incapaz, em que o Ministério Público pode requerer o inventário (art. 4.º, n.º 1, al. b), do E.M.P. e art. 1085.º, n.º 2, al. c), do CPC; (iii) casos em que a meação nos bens comuns tenha sido objecto de venda/transmissão.
III. No património comum do casal, os cônjuges meeiros não são titulares de um direito de propriedade comum sobre uma coisa, mas antes contitulares do direito à meação que recai sobre uma universalidade de bens, ignorando-se sobre qual ou quais deles o seu direito se concretizará, pelo que o direito que cada um dos ex-cônjuges tem sobre os bens comuns é indivisível, recaindo antes sobre o conjunto dos bens comuns e não sobre certos e determinados bens desta.
IV. Alegando a requerente ter adquirido à ex-cônjuge, por documento particular autenticado, a sua meação num concreto bem comum, e aferindo-se a legitimidade da Requerente em função do título de transmissão que invoca para justificar essa sua legitimidade, é forçoso concluir que o mesmo não é susceptível de transmitir para o requerente o direito que o mesmo alega como causa de pedir e justificativo da legitimidade nos presentes autos.
V. A verificação de uma qualquer excepção dilatória insuprível em fase de despacho liminar determina sempre o indeferimento liminar – nos termos do art. 590.º e 1100.º do CPC – e não a absolvição da instância, como foi decidido pelo Tribunal a quo.
(Sumário elaborado pela relatora)

Texto Integral

Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório:
A 23-06-2024 Galbex Lda. veio, por apenso à acção de divórcio sem Consentimento do outro Cônjuge, em que era Autor A … e Ré B …,  intentar processo de inventário contra A …
Alega para tanto que:
- por sentença de 28-05-2015 foi decretado o divórcio entre B … e A …;
- que em 13-01-2020 adquiriu a B … a meação da mesma no prédio sito na Rua Casal de …, sitio dos ..., n.º …1, Ericeira;
-  que existe um imóvel por partilhar e que requerente e requerido não estão de acordo quanto à partilha do mesmo.
Termina, assim, requerendo se proceda a inventário para partilha do mencionado bem.
Conclusos os autos em 30-09-2024, foi, nessa mesma data, proferido o seguinte despacho liminar:
“GALBEX, COMPRA E VENDA DE PROPRIEDADES, LDA, veio intentar a presente acção de inventário para partilha dos bens comuns entre a requerente por aquisição a B … do seu quinhão nos bens comuns do casal e o Requerido A …, peticionando ser nomeada como cabeça de casal o Requerido e a partilha do bem imóvel que identifica na sequência da aquisição do mesmo à então cônjuge mulher e na sequencia da dissolução do casamento entre aqueles.
Nos termos do artigo 1133.º do Código Penal “Decretada a separação judicial de pessoas e bens ou o divórcio, ou declarado nulo ou anulado o casamento, qualquer dos cônjuges pode requere inventário para partilha dos bens comuns:” (sublinhado nosso).
Lembramos que o processo de inventário visa por termo à comunhão de bens do casal, que são um acervo de bens comuns existentes à data em que se consideram cessadas as relações patrimoniais entre os cônjuges, dos quais, cada um dos cônjuges detém uma quota ideal e por tal, é tão somente atribuída legitimidade activa a qualquer dos então cônjuges (ou no decesso destes, aos herdeiros) – cfr. artigos 1688.º, 1689.º, n.º 1 do Código Civil e acórdão do STJ de 11.04.2019, processo n.º 3185/12).
Assim, julgo verificada a exceção dilatória de ilegitimidade do Autor e, consequentemente, absolvo o Requerido da instância A …, nos termos do disposto nos artigos 1133.º, n.º 1, 570.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, n.º1, alínea e) e 578.º, todos do Código de Processo Civil.
Valor da ação em € 30.000,01.
Custas pelo Requerente.
Registe e Notifique.”
***
Inconformado com este despacho de absolvição da instância, dele vem apelar a Requerente Galbex,  pugnando no sentido da sua revogação.
Termina as respectivas alegações com as seguintes conclusões (que se transcrevem):
I- A Apelante instaurou o presente Inventário com os seguintes fundamentos:
a) o divórcio entre C … e D … foi decretado por sentença de 25 de Janeiro de 2016 e já transitou em julgado (artigo 1.º do Requerimento Inicial).
b) A Requerente, ora Apelada, em 12 de Outubro de 2023, adquiriu a transmissão da meação da fracção identificada nos autos (artigo 2.º do Requerimento Inicial).
c) A fracção identificada nos autos constitui o acervo comum dos bens do casal, pelo que a Apelante veio requerer a partilha, nos termos do artigo 1133.º, n.º 1 do Código de Processo Civil (artigo 5.º do Requerimento Inicial).
d) A Apelante tem legitimidade para requerer o Inventário, por ter interesse directo, nos termos do artigo 1133.º, n.º 2 do Código de Processo Civil (artigo 7.º do Requerimento Inicial)|;
II- A Apelante adquiriu a transmissão da meação do bem identificado nos autos, pelo que tem legitimidade para requerer o Inventário para partilha do bem, substituindo-se ao cônjuge que alienou a meação nos termos dos artigos 1133.º, n.º 1 do Código de Processo Civil e 2101.º do Código Civil);
III- A Meritíssima Juíza na sua douta sentença fundamenta a ilegitimidade activa do A. com base no disposto no artigo 1689.º do Código Civil, quando  esta disposição legal prevê expressamente que os herdeiros dos cônjuges recebem os bens da meação do património comum;
IV- A Apelante ao adquirir a transmissão da meação do cônjuge marido substitui-se a este e tem legitimidade para requerer o Inventário para partilha dos bens comuns do casal (artigo 1689.º do Código Civil e artigo 1133.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, na medida em que é interessado directo na partilha;
V- Assim, salvo o devido respeito, que creia-se é muito, a Meritíssima Juíza nas normas jurídicas a que fez alusão na sua douta sentença foram mal interpretadas e aplicadas;
VI- Caso tivessem sido devidamente interpretadas e aplicadas, não conduziam à ilegitimidade activa, na medida em que A.\Apelante tem legitimidade para requerer o Inventário por ter interesse directo na partilha;
VII- Deve assim, julgar-se procedente o presente recurso de Apelação in totum, revogando-se a sentença objecto do presente recurso e, em consequência, proferir Acórdão a reconhecer a ilegitimidade activa da Apelante e ordenar-se o prosseguimento dos autos. “
*
Admitido o recurso neste tribunal e colhidos os vistos, cumpre decidir.
*
Questão a decidir:
O objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (arts. 5.º, 635.º n.º3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do CPC), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.
Em face do exposto importa assim conhecer das seguintes questões:
(i) -Da legitimidade no processo de inventário para partilha na sequência de divórcio.
(ii) – Da concreta legitimidade da Requerente em virtude de negócio celebrado com a ex-cônjuge;
(iii) – Do conhecimento da excepção de ilegitimidade em sede de despacho liminar: indeferimento liminar/absolvição da instância.
*
II. Fundamentação:
Resultam provados os factos ou actos processuais referidos e datados no relatório que antecede, a que se acrescentam os seguintes:
1. Correu termos na Comarca de Lisboa Oeste, instância Central Cível de Sintra, a.ª Secção de Família e Menores, J4, Acção de Divórcio sem Consentimento em que foi Autor A … e Ré B ….
2. Em sede de audiência de julgamento realizada em 28-05-2015, Autor e Ré requereram a convolação dos autos em divórcio para mútuo consentimento nos seguintes termos:
“…tendo ambos requerido a convolação dos autos em divórcio por mútuo
 consentimento, estabelecendo os seguintes acordos para o efeito:
I. Declararam inexistirem filhos menores.
II. O direito de utilização da casa de morada de família sita na Rua do …, Praceta …, Bloco …, …º Esq., 2655-… ERICEIRA é atribuída ao cônjuge marido,
até à partilha ou venda do imóvel a terceiros.
III. Bens comuns:
Activo
Clausula I
Bem imóvel sito na Rua ..., Ericeira.
Clausula II
Um veículo automóvel, com a matrícula nº ..., de marca Hyundai.

Bens Controvertidos:
Clausula III
Uma mobília de quarto.
Clausula IV
Uma mobília de sala.
Clausula V
Três televisões.
Clausula VI
Uma mobília de cozinha
Passivo
Clausula I
Empréstimo hipotecário, tendo como credor a Caixa Geral de Depósitos, cujo
montante não conseguem precisar

Passivo Controvertido
Clausula II
Crédito cujo credor é o banco Millennium BCP, cujo montante o autor não consegue indicar.
Clausula III
Um Credito cujo credor é o banco Cofidis, cujo montante é de 20.000,00.
Clausula IV
Crédito cujo credor é o banco Credibom, cujo montante não o autor não consegue precisar.
Clausula V
Crédito cujo credor é o banco Santander Totta, no valor 4.840,00 euros.

IV- Prescindem mutuamente de alimentos, por deles não carecerem.
IV- Fixam como data da separação o dia 19-11-2008.”
3. Tendo de imediato sido proferida a seguinte sentença:
“A … e B …, contraíram matrimónio um com o outro em 20 Dezembro 1975. Requereram a convolação do divórcio para mútuo consentimento no âmbito da tentativa de conciliação agendada para hoje.
O tribunal é o competente.
O processo é o próprio e não enferma de nulidades que totalmente o invalidem.
Não se vislumbram quaisquer outras nulidades, excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
Mostrando-se verificados os requisitos do artigo 1775º do Código Civil, e atento o disposto no artigo 1778º do Código Civil, e ainda o artigo 931º. n.º 4 do Código de Processo Civil, homologo os acordos apresentados e decreto o divórcio por mútuo consentimento entre os cônjuges, A … e B …, ficando dissolvido o respectivo casamento.
Custas a cargo de ambos, em partes iguais.
Registe e notifique.
Transitada em julgado a presente sentença, comunique à Conservatória do Registo Civil competente nos termos do art. 78º do CRC.”
4. Por documento particular autenticado E …, na qualidade de procurador e em representação de B … e na qualidade  representante de Galbex – Compra e Venda de Propriedades Lda. celebraram contrato de compra e venda, através do qual aquele E …, em nome de B … declarou vender a Galbex – Compra e Venda de Propriedades Lda., por si também representada, que declarou aceitar a venda, a metade indivisa da fracção autónoma designada pela Letra …, Bloco A, para habitação, correspondente ao primeiro andar esquerdo no bloco A, do prédio urbano sito no Casal de … – ..., Ericeira, freguesia da Ericeira, concelho de Mafra, descrito na Conservatória do Registo Predial de Mafra sob o n.º …, com os registos de propriedade horizontal pela Ap. 30/08/196 e de aquisição a favor de B …, no estado de casada com A …, pela Ap. De 05-12-1995, inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo …, da freguesia da Ericeira.
5. Nos termos do referido documento particular o imóvel foi vendido livre de ónus ou encargos à excepção da hipoteca registada pela A. 14 de 05/12/1995 e da penhora registada pela Ap. … sw 10/05/2017, ambas a favor da Caixa Geral de Depósitos S.A.
6. Por averbamento n.º 01, de 13-01-2020 foi tal contrato de compra e venda rectificado nos seguintes termos: “ rectifica-se o contrato que o presente termo autentica no sentido do mesmo passar a constar que se trata de transmissão da meação que B … detém no imóvel e não de venda da metade indivisa, o que por mero lapso de escrita ficou a constar”.
7. Em 23-06-2023 Galbex Compra e Venda de Propriedades Lda. intentou, por apenso à acção de divórcio, Inventário para partilha de bens contra o requerido A …, requerendo que se proceda a inventário para partilha do bem na sequência do dissolvido casamento de B … e do requerido.
*
III. O Direito:
III.A – Da Legitimidade para requerer inventário na sequência de divórcio
Os processos de inventário são uma das modalidades de partilha que se destinam a pôr termo à indivisão do património: partilha de herança em caso de indivisão do património do falecido; partilha de bens comuns de dissolvido casal, em caso de separação judicial de pessoas e bens ou de divórcio.
Dispõe o art. 1133.º do CPC que “1. Decretada a separação judicial de pessoas e bens ou o divórcio (…) qualquer dos cônjuges  pode requerer inventário para partilha de bens comuns”, acrescentando o n.º 2 que “As funções de cabeça de casal incumbem ao cônjuge mais velho”.
Em comum com o inventário por morte, que pretende por termo à comunhão hereditária, pressupõe este inventário especial a indivisão dos bens, visando a sua divisão e partilha pelos interessados (ali os herdeiros, aqui os ex-cônjuges) .
Quando ocorre a dissolução do casamento, por qualquer uma das causas supra referidas, as relações patrimoniais do casal extinguem-se e, ao extinguirem-se, torna-se indispensável efectuar a partilha de bens entre os cônjuges. E, acrescentamos, de todos os bens comuns e não apenas de alguns deles, assim como do passivo, o que pressupõe a descrição detalhada de todos os bens que constituem o património indiviso do dissolvido casal e a sua subsequente divisão e partilha pelos interessados, dissolvendo a universalidade e substituindo-a pela formação de quinhões ou quotas individuais ou concretizadas (neste sentido ver Tomé d’Almeida Ramião, “O Novo Regime do Processo de Inventário – Notas e Comentários”, 2.ª ed., Lisboa – Quid Juris, 2015, pág. 20).
Desenhado assim, em traços largos, os objectivos do processo de inventário, cumpre aferir da legitimidade no âmbito deste processos.
Relativamente à legitimidade no processo civil encontramos o seu conceito no art. 30.º do CPC, o qual dispõe, no seu n.º 1, que “ O autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer”, acrescentando o n.º 3 que “ Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo Autor”.
Lopes Cardoso (na sua obra Partilhas Judiciais, vol. I, pág., 177) defende que o critério utilizado para a aferir a legitimidade nos processos comuns deveria também estar presente nos processos de inventário, afirmando que o facto de se “ter ou não interesse directo na partilha é que comanda a legitimidade a requerer…”.
Sem prejuízo, o art. 1133.º do CPC, a propósito do inventário para partilha de bens comuns, dispõe que “1 - Decretada a separação judicial de pessoas e bens ou o divórcio, ou declarado nulo ou anulado o casamento, qualquer dos cônjuges pode requerer inventário para partilha dos bens comuns.”
Deste artigo resulta que a legitimidade para requerer o inventário cabe a qualquer um dos cônjuges.
A questão que se coloca é assim a de saber se assistirá, igualmente, legitimidade a quem não seja ex-cônjuge.
Miguel Teixeira de Sousa, Lopes do Rego, Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres abordam a questão na obra “O Novo Regime do Processo de Inventário e outras Alterações na Legislação Processual Civil” (Almedina, 2025, págs. 156-157). Aí referem: “ Sobre a legitimidade processual importa considerar os seguintes aspectos:
a) Qualquer dos ex-cônjuges pode requerer inventário para partilha dos bens comuns (n.º 1). O inventário deve ser requerido contra o outro cônjuge. Se algum dos ex-cônjuges tiver falecido, o inventário pode ser requerido pelos ou contra os respectivos sucessores. (….) O inventário para partilha dos bens comuns pode ter como causa a morte de um dos ex-cônjuges, desde que a sua finalidade seja a partilha do património conjugal que não foi realizada em vida de um ou de ambos os cônjuges. A morte de um dos cônjuges não determina ipso facto a extinção da comunhão conjugal, pelo que esta continua a ter de ser partilhada.(…).
b) O MP pode requerer o inventário quando se trate de proteger os interesses de um ex-cônjuge que esteja ausente em parte incerta ou que seja incapaz.  É o que decorre do disposto no art. 4.º, n.º 1, al. b), do E.M.P., quanto à competência do M.P., e do estabelecimento no art. 1085.º, n.º 2, al. c), quanto à legitimidade do M.P.;
c) A meação nos bens comuns é penhorável (cf. por exemplo, art. 1696.º, n.º 1, do CC. Se esta meação for objecto de venda executiva, o seu adquirente tem legitimidade para requerer o inventário. (….)”
Aderindo a esta posição de Miguel Teixeira de Sousa, Lopes do Rego, Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres diremos que a regra, no que tange à legitimidade activa e passiva no processo de inventário para partilha de bens comuns, é a que resulta do art. 1133.º do CPC, mas que essa mesma regra poderá comportar excepções em virtude, entre outros, de transmissão legal ou convencional dessa meação nos bens comuns se, aquando dessa transmissão a comunhão patrimonial não se houver extinto.
Assim, por analogia - com o argumento de que se a meação for objecto de venda executiva o seu adquirente tem legitimidade para requerer o inventário – podemos também afirmar que se a meação nos bens comuns for objecto de venda ou qualquer tipo de transmissão também o adquirente dessa meação tem legitimidade para requerer o inventário.
Não obstante, esta afirmação não conduz necessariamente à procedência da apelação. Isto porque essa legitimidade há-de ser aferida em função do concreto acto de transmissão.  O que nos remete para a segunda questão a apreciar.
III. B - Da legitimidade do Requerente em função do concreto contrato que celebrou com a ex-cônjuge B …
A ex-cônjuge e a Requerente começaram por, através de documento particular, celebrar um contrato de compra e venda da metade indivisa da fracção autónoma designada pela letra D, Bloco A, correspondente ao 1.º andar esq. ,no bloco A, do prédio urbano sito no Casal de São João.
Por averbamento efectuado no mesmo dia procedeu-se à rectificação do mesmo contrato no sentido do mesmo passar a constar que a transmissão (venda) tinha por objecto não a metade indivisa da referida fracção, mas sim a meação da ex-cônjuge na mesma fracção.
Acontece que se é certo que a ex-cônjuge não detinha o direito a metade indivisa da requerida fracção, da mesma forma a mesma não detinha o direito à meação naquela concreta fracção!
O que a mesma detinha, isso sim, era o direito e acção à meação nos bens comuns. Se é certo que os bens comuns dos cônjuges não constituem objecto de uma relação de compropriedade, não é menos certo que a comunhão ou propriedade colectiva que caracteriza o património comum dos cônjuges incide sobre a massa patrimonial em bloco e não sobre os concretos bens que integram esse património comum – neste sentido ver Ac. R.C. de 08-11-2001.
Cada um dos cônjuges tem uma posição jurídica em face do património comum, um direito à meação, um verdadeiro direito de quota – que exprime a medida da divisão – em relação a todos os bens comuns, entendidos como uma universalidade. Mas, diversamente, não têm um direito à meação sobre cada um dos bens individualmente considerados que compõem essa universalidade.
Apenas depois da partilha poderá a ex-cônjuge deter (ou não) um direito – que já não será meação, mas sim eventualmente uma propriedade ou compropriedade – sobre um dos bens que integravam o património comum.
Para que a ex-cônjuge pudesse transmitir o seu direito sobre a referida fracção necessário seria que se conhecesse a extensão do seu direito sobre a mesma – neste sentido Ac. R.L. de 09-05-2024, relatado pela aqui 1.ª adjunta. Ora, sobre a referida fracção em concreto, e até à partilha dos bens comuns, a transmitente nenhum direito tem/tinha sobre a mesma. Como se refere no acórdão acabado de citar - aplicável aos autos com as necessárias adaptações – “Na herança os herdeiros não são titulares de um direito de propriedade comum sobre uma coisa, mas antes contitulares do direito à herança que recai sobre uma universalidade de bens, ignorando-se sobre qual ou quais deles o direito hereditário se concretizará; “(…) enquanto não se fizer a partilha, os herdeiros têm sobre os bens que constituem a herança indivisa um direito indivisível, recaindo tal direito sobre o conjunto da herança e não sobre bens certos e determinados desta(…) A contitularidade do direito à herança implica um direito a uma parte ideal desta considerada em si mesmo e não sobre um dos seus bens que a compõem” – conf. Luís Filipe Pires de Sousa, in Processos Especiais de Divisão de Cosa Comum e de Prestação de Contas, 2016, Almedina, pág. 19.”
O que vale dizer: no património comum do casal, os cônjuges meeiros não são titulares de um direito de propriedade comum sobre uma coisa, mas antes contitulares do direito à meação que recai sobre uma universalidade de bens, ignorando-se sobre qual ou quais deles o seu direito se concretizará. Isto é, o direito que cada um dos ex-cônjuges tem sobre os bens comuns é indivisível, recaindo antes sobre o conjunto dos bens comuns e não sobre certos e determinados bens desta.
O art. 280º, nº 1 diz que é nulo o negócio jurídico de objecto física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável.
Dois sentidos pode ter a expressão "objecto do negócio jurídico"
Um corresponde ao objecto imediato, ou conteúdo, do negócio, sendo preenchido pelos efeitos que tende a produzir.
Outro, o objecto mediato, consiste naquilo sobre que incidem os efeitos do negócio.
Ambos estes sentidos estão abrangidos naquela disposição- cfr. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição, pg. 547.
A impossibilidade legal, ou jurídica, ocorre quando a prestação consiste num acto que a lei não permite que seja realizado, podendo impedi-lo; há contrariedade à lei se a prestação consiste num acto que viola uma proibição legal que não pode, em todo o caso, impedir a sua ocorrência- cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 9ª edição, pg. 831, e Mota Pinto, obra citada, pgs. 550.
Como não pode ser celebrada uma uma compra e venda de um direito de um cônjuge sobre um bem concreto que integra a meação por haver impossibilidade legal do objecto, impõe-se concluir pela sua nulidade, nos termos do supra citado artigo.
Nos termos do disposto no art. 286.º do CPC, a nulidade pode ser oficiosamente conhecida pelo Tribunal.
Aferindo-se a legitimidade da Requerente, conforme supra exposto, neste caso excepcional em função do título que invoca para justificar essa sua legitimidade, é forçoso concluir que, sendo o mesmo nulo, não é susceptível de transmitir para o requerente o direito que o mesmo alega como causa de pedir nos presentes autos.
Concordamos assim, embora com fundamento não inteiramente coincidente com a conclusão retirada pela Mma. Juiz a quo de ilegitimidade do Requerente para intentar o presente inventário.

III.C – Da verificação da excepção de ilegitimidade em sede de despacho liminar
O Requerente intentou os presentes autos de inventário e, conclusos de imediato os autos, foi proferido o despacho recorrido que “ julgo(u) verificada a exceção dilatória de ilegitimidade do Autor e, consequentemente, absolv(eu) o Requerido da instância A …, nos termos do disposto nos artigos 1133.º, n.º 1, 570.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, n.º1, alínea e) e 578.º, todos do Código de Processo Civil.
Com a reforma do CPC/95, e ao contrário do que sucedia até então, e nas reformas processuais civis posteriores, deixou de haver, como regra, o despacho inicial ou liminar de intervenção processual do juiz, quer para ordenar a citação dos demandados, quer para indeferir liminar a petição inicial, quer mesmo para convidar o autor da mesma a aperfeiçoá-la ou a corrigi-la (cfr., nomeadamente, o artº 234 do CPC).
Actualmente, e como a regra, o primeiro contacto do juiz com o processo está reservado apenas para quando findarem os articulados.
Não obstante, existem excepções a tal regra.
A este propósito dispõe o art. 590.º do CPC, sob a epígrafe Gestão inicial do processo” que:
1 - Nos casos em que, por determinação legal ou do juiz, seja apresentada a despacho liminar, a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, exceções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente, aplicando-se o disposto no artigo 560.º.
Conforme referem Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro (in “Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil”, pág. 510.), o despacho liminar consagrado no actual CPC visa a boa gestão do processo, sendo o mesmo um veículo de excelência para a realização de uma profícua gestão inicial do processo.
Ora, os presentes autos de inventário constituem uma dessas excepções em que há lugar a despacho liminar.
Com efeito trata-se de um processo de inventário, intentado por apenso a uma acção de divórcio, nos termos previstos nos arts. 1082.º, al. d) e 1133.º do CPC.
A estes inventários especiais aplicam-se, nos termos do disposto no art.1084.º, n.º 2, do CPC, o disposto no capítulo III, e, em tudo o que não estiver especificamente regulado, o regime definido para o inventário destinado a fazer cessar a comunhão hereditária.
Nada se encontrando regulado acerca da tramitação processual deste inventário especial, há de se aplicar o disposto no art. 1100.º do CPC, o qual, sob a epígrafe “Despacho Liminar e Citação”, dispõe, no seu n.º 1, que “O requerimento é submetido a despacho liminar para, além das demais previstas na lei (e que são nomeadamente as que constam do art. 590.º, n.º 1), as seguintes finalidades:
a) Verificação da existência de qualquer deficiência do requerimento, devendo seguir-se o respetivo convite ao aperfeiçoamento;
b) Confirmação ou designação do cabeça de casal. (…)”.
Assim, a verificação de uma qualquer excepção dilatória insuprível em fase de despacho liminar determina sempre o indeferimento liminar – nos termos do art. 590.º e 1100.º do CPC – e não a absolvição da instância, como foi decidido pelo Tribunal a quo.
Pelo que, ainda que se conclua pela bondade da verificação da excepção de ilegitimidade, a consequência será sempre o indeferimento liminar, e não a absolvição do Requerido da instância.
*
IV. Decisão:
Por todo o exposto:
Acorda-se em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pela Requerente Galbex, Compra e Venda de Propriedades, Lda. e, consequentemente, ainda que por diversos fundamentos, mantém-se a decisão recorrida na parte em que considerou a Requerente parte ilegítima, determinando-se o indeferimento liminar da petição inicial.
Custas pela apelante.
Registe e notifique.

Lisboa, 22 de Maio de 2025
Maria  Teresa Mascarenhas Garcia
Vera Antunes
Nuno Luís Lopes Ribeiro