Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
APELAÇÃO AUTÓNOMA
INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA
CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA
CONTROVÉRSIA SÉRIA
Sumário
SUMÁRIO (da exclusiva responsabilidade da Relatora – art. 663.º, n.º 7, do CPC) I – O n.º 2 do art. 644.º do CPC contem uma previsão normativa que vem ampliar o leque de casos, para além dos contemplados no seu n.º 1, em que é admissível a apelação autónoma. A decisão que ponha termo à causa, absolvendo a ré da instância pela procedência da exceção dilatória de incompetência absoluta, cabe na previsão da alínea a) do n.º 1, e não na previsão da alínea b) do n.º 2 do art. 644.º. Logo, à interposição do respetivo recurso não é aplicável o prazo de 15 dias, mas antes o prazo geral de 30 dias (cf. art. 638.º, n.º 1, do CPC). II – A cláusula compromissória constante de um contrato, além de valer entre os outorgantes que o subscreveram, pode ser aplicável quando um terceiro “sucede” na posição de uma partes, sendo ainda admissível a extensão da sua eficácia a um terceiro se os signatários o consentirem e o terceiro aderir (expressa ou tacitamente) à convenção arbitral. III – Peticionando a Autora a condenação da Ré no pagamento da parte do preço (alegadamente) devida pela compra e venda de ações (de uma sociedade de capital de risco) nos termos estipulados no contrato outorgado pela Ré/compradora (que assim efetuaria uma prestação a favor de terceiro – cf. art. 443.º do CC) e pela sociedade/vendedora, da qual a Autora detinha 100% do capital social, “ativo” de cuja administração estava incumbida, como “sociedade veículo”, por decisão do Banco de Portugal, tendo em vista as finalidades enunciadas no art. 145.º-C do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, é de considerar que, não obstante a Autora não tenha formalmente outorgado o contrato de compra e venda de ações, deu a sua concordância a todo o seu conteúdo, incluindo a cláusula compromissória do mesmo constante, a qual se apresenta como elemento acessório do direito de crédito transmitido em benefício da Autora (cf. artigos 443.º, 577.º, n.º 1, e 582.º, n.º 1, do CC). IV – Tendo em atenção o disposto no art. 18.º, n.º 1, da LAV, a orientação da jurisprudência é no sentido de considerar que os tribunais judiciais só devem julgar improcedente a exceção dilatória de incompetência absoluta por preterição de tribunal arbitral, quando seja manifesto e incontroverso que a convenção/cláusula compromissória invocada é inválida, ineficaz ou inexequível ou que o litígio, de forma ostensiva, se não situa no respetivo âmbito de aplicação. V – Assim, em circunstâncias como as dos autos e em sede de recurso, apenas cumpre verificar se é manifesta e insuscetível de controvérsia séria a não aplicabilidade da convenção de arbitragem estipulada à relação contratual litigiosa e, propendendo a considerar que tal cláusula compromissória é aplicável à resolução do litígio dos autos, concluir pelo acerto da decisão recorrida que julgou procedente a exceção de incompetência absoluta, por preterição de tribunal arbitral, nos termos conjugados dos artigos 96.º, al. b), e 576.º, n.ºs 1 e 2, e 577.º, al. a), do CPC.
Texto Integral
Acordam, na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, os Juízes Desembargadores abaixo identificados
I - RELATÓRIO
OITANTE, S.A., Autora na ação declarativa que, sob a forma de processo comum, intentou contra FUND BOX HOLDINGS, S.A., interpôs o presente recurso de apelação do despacho saneador que julgou verificada a exceção de incompetência absoluta, por preterição de tribunal arbitral, absolvendo a Ré da instância.
Os autos tiveram início em 17-09-2024, com a apresentação de Petição Inicial em que a Autora peticionou a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de 198.431,83 €, acrescida de juros vincendos até efetivo e integral pagamento, alegando, para tanto e em síntese, que:
- Na sequência da medida de resolução aplicada pelo Banco de Portugal, em 20-12-2015, ao Banif-Banco Internacional do Funchal, S.A. (Banif), a Autora, como sociedade veículo, assumiu a administração dos direitos e obrigações que fossem ativos desse Banco e lhe fossem transferidos em cada momento, por decisão do Banco de Portugal;
- Foi então transferida para a Autora a participação social detida pelo Banif no Banif-Banco de Investimento, S. A. (BBI), correspondente à totalidade do respetivo capital social;
- Após, o BBI decidiu alienar a Banif Capital-Sociedade de Capital de Risco, S.A. (Banif Capital), que era uma sociedade de capital de risco (detida a 100% pelo BBI), gestora de três fundos de capital de risco: (i) Banif Portugal Crescimento-Fundo de Capital de Risco (“Fundo BPC”); (ii) Banif Global Private Equity Fund-FCR (“Fundo BGPE”) e (iii) Banif Capital Infrastructure Fund-FCR (“Fundo BCIF”);
- A Ré apresentou uma proposta de compra vinculativa, que foi aceite pelo BBI, tendo sido celebrado, no dia 9 de junho de 2017, entre o BBI e a Ré um contrato de compra e venda de ações relativo a 100% do capital social e direitos de voto (doc. 2), nos termos do qual a Ré se comprometeu a comprar as ações e prestações acessórias ao BBI, o qual se comprometeu a vendê-las, livres de ónus ou encargos e com todos os direitos económicos e sociais que lhes são inerentes;
- O BBI e a Ré acordaram ainda que o preço de compra e venda das ações e das prestações acessórias seria de 530.000 €, acrescido de um montante variável correspondente a 50% dos montantes pagos pelo Fundo BGPE à entidade gestora a título de comissão de performance aquando da liquidação do Fundo BGPE – cláusula 3.1.1;
- Mais ficou acordado que a Ré, na qualidade de compradora, sendo instruída para esse efeito, pagaria a componente variável do preço (devido ao BBI) à Oitante/Autora, nos exatos termos em que esta seria paga ao vendedor – cláusula 3.1.2 (ou seja, efetuaria uma prestação a favor de terceiro – cf. art. 443.º do CC);
- Entretanto, o BBI foi vendido à sociedade chinesa Bison Capital, a qual, a 12 de fevereiro de 2019, instruiu a Ré de que, nos termos contratualizados, a componente variável do preço deveria ser paga à Autora no momento em que fosse devida;
- Em 21 de julho de 2023, o Fundo BGPE foi liquidado, verificando-se a condição da qual dependia o pagamento do montante variável do preço ao vendedor, resultando do Relatório de Liquidação que a comissão de performance devida à entidade gestora ascendia a 390.909 €;
- Assim, nos termos do Contrato celebrado, passou a ser devido à Autora o montante de 195.454,50 €, correspondente a 50% do montante pago pelo Fundo BGPE à entidade gestora a título de comissão de performance aquando da liquidação do Fundo, i. e., 50% de 390.909 €;
- Embora a Ré, por ser acionista maioritária da entidade gestora do Fundo BGPE, tenha pleno conhecimento quer da data de liquidação do fundo, quer da data e montante do pagamento da comissão de performance à entidade gestora, a Autora, a 12 de dezembro de 2023, comunicou-lhe, por carta registada com aviso de receção, que esta deveria proceder ao pagamento do valor de 195.454,50 €;
- Não obstante tenha sido por diversas vezes interpelada para esse efeito, a Ré não liquidou tal quantia à Autora, incorrendo, assim, em responsabilidade civil contratual pelo incumprimento do Contrato celebrado e constituindo-se em mora, sendo devidos juros a contar do dia da constituição em mora, ou seja, desde 30 de abril de 2024, à taxa de juro comercial (os quais já ascendem a 2.977,33 €), nos termos do disposto nos artigos 798.º, 799.º e 805.º, n.º 1, do CC.
A Ré apresentou Contestação, em que se defendeu por impugnação, bem como por exceção, arguindo, no que ora importa, a incompetência absoluta do tribunal por preterição do tribunal arbitral, alegando, em síntese, que: a Ré celebrou com a Autora, no dia 9 de junho de 2017, contrato de compra e venda de ações relativamente a 100% do capital social e direitos de voto da Banif Capital-Sociedade de Capital de Risco, S.A.; na cláusula 14.ª desse contrato ficou previsto que qualquer litígio emergente ou relacionado com o contrato de compra e venda de ações celebrado entre as partes deverá ser resolvido junto do Centro de Arbitragem da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa (Centro de Arbitragem Comercial) e em consonância com o Regulamento de arbitragem deste, pelo que a presente demanda não pode ser submetida aos tribunais comuns. Veio também a Ré, para o caso de não ser julgada procedente a referida exceção, deduzir o incidente de intervenção principal provocada da Fund Box, Sociedade de Capital de Risco, S.A., bem como reconvenção, peticionando a condenação da Autora no pagamento à Ré e à Interveniente da quantia de 259.178,08 €.
A Autora apresentou articulado de Resposta, em que se pronunciou pela competência deste Tribunal, alegando, em síntese, que a referida cláusula 14.ª do Contrato não lhe é oponível, pois o contrato foi celebrado entre a Ré e o Banif-Banco de Investimento, S.A., entidade distinta da Autora, sendo esta terceira e mera beneficiária face a tal contrato.
Em 24-01-2025, foi proferido o Despacho saneador recorrido (cuja notificação às partes foi elaborada em 27-01-2025), tendo o respetivo segmento decisório o seguinte teor: “Pelo exposto, ao abrigo das disposições legais citadas, declaro a incompetência absoluta deste Tribunal e determino a absolvição da Ré da instância. Custas pela Autora, por ter dado causa à acção (artigo 527°, n.° 1 do C.P.C.). Notifique e registe”.
É com esta decisão que a Autora não se conforma, tendo interposto, em 19-02-2025, o presente recurso de apelação, em cuja alegação formulou as seguintes conclusões: A. O negócio de compra e venda de ações celebrado entre o BANIF – Banco de Investimento, S.A. (abreviadamente, BBI) e a FUND BOX Holdings, S.A. (abreviadamente FUND BOX Holdings) em 9 de junho de 2017, teve por objeto as participações sociais da vendedora na sociedade BANIF CAPITAL sociedade de Capital de Risco, S.A., participação que totalizava 100% do capital desta última, e só pode ser plenamente compreendido no conjunto das operações decorrentes da resolução decretada pelo Banco de Portugal da instituição de crédito “mãe”, BANIF – Banco Internacional do Funchal, S.A. (a resolução decretada em 20 de dezembro de 2015); B. A maior parte dos ativos da sociedade “mãe” afetos à atividade bancária foi comprada por 150 milhões de euros pelo Banco Santander Totta, S.A. e os ativos não incluídos nesta aquisição e que o banco comprador não teve interesse em adquirir, foram transferidos para uma sociedade veículo com vista à sua rápida liquidação, sociedade detida a 100% pelo Fundo de Resolução, e que passou a deter, entre outras participações, 100% do capital do referido BBI (como resulta do comunicado do Banco de Portugal de 20 de dezembro de 2015 e dos Considerandos do Contrato de Compra e Venda apreciado neste processo). C. A sociedade veículo em causa tem a denominação de OITANTE, S.A. D. O BBI vendeu à FUND BOX HOLDINGS em 9 de junho de 2017 a totalidade do capital social da sociedade BANIF Capital, tendo esta sociedade por objeto a gestão de três fundos de capital de risco (abreviadamente designada como BPC, BGPE e BCIF), pelo preço composto por dois componentes: preço fixo de €530.000,00 e componente de preço variável a calcular no futuro, quando fosse liquidado o fundo de capital de risco BGPE (50% dos montantes pagos por esse fundo à sociedade gestora BANIF Capital a título de comissão de performance); E. Ficou acordado na Cláusula 3.1.2 no referido Contrato de Compra e Venda que a FUNDBOX HOLDINGS se comprometia, desde a data da celebração do contrato, a pagar a componente variável de preço à OITANTE, no caso de o vendedor BBI lhe comunicar instruções nesse sentido; F. Em julho de 2018, todas as participações no capital social do BBI foram vendidas a um Grupo de Hong-Kong (Grupo Bison Capital), tendo a denominação BBI sido alterado para Bison Bank; G. Em 2019, o Bison Bank deu instruções à FUND BOX HOLDINGS para pagar a parte variável do preço da compra e venda à OITANTE; H. Como a compradora não honrou a obrigação assumida, a OITANTE propôs a presente ação judicial para obter a condenação da compradora no pagamento da referida componente variável do preço; I. Na contestação, a FUND BOX HOLDINGS suscitou a questão da preterição do Tribunal Arbitral, constante do articulado do Contrato de Comprar e Venda (Cláusula 14.2), arguindo a incompetência do tribunal estadual (art. 96º, b), do CPC). Para além, disso, impugnou de mérito e requereu a intervenção principal de uma sociedade sua participada para deduzir pedido reconvencional contra a Oitante; J. A OITANTE sustentou que lhe era inoponível a cláusula compromissória invocada pela FUND BOX HOLDINGS, por não ser parte do Contrato de Compra e Venda de Ações de 2017 que contém a convenção de arbitragem, não tendo igualmente aderido à mesma, sendo um terceiro estranho ao Contrato (princípio da eficácia inter partes dos contratos, só sendo estes eficazes contra terceiros “nos casos e termos especialmente previstos na lei” – art. 406º, nº 2, co CPC); K. Num despacho saneador surpreendente, a Senhora Juiz a quo absolveu da instância a FUND BOX HOLDINGS, aplicando a LAV de 1986, revogada em 2012, embora citando o art. 5º da nova LAV, por supor que se tratava da nova redação de um artigo de lei revogada; L. Nesse saneador sentença, o Tribunal a quo sustentou, sem apoio na LAV (quer na vigente, quer na anterior de 1986), que, como estava em causa uma questão de responsabilidade contratual da Ré FUND BOX HOLDINGS, a OITANTE não podia “fazer-se valer apenas de parte de um contrato, selecionando e invocando cláusula que lhe são favoráveis e ignorando as demais”, por isso, a Autora, aqui Apelante, estava vinculada à cláusula compromissória, sendo a arbitragem um meio não litigioso de resolução de litígio (?), embora ao tribunal arbitral caiba “definir o direito nas situações concretas que lhe são submetidas”, absolvendo a Ré da instância; M. O saneador sentença impugnado não cuidou de averiguar qual o regime jurídico da intervenção da OITANTE, enquanto terceiro, no Contrato de Compra e Venda de Ações, não tendo tido em consideração que as Partes outorgantes do mesmo tinham apenas acordado que a vendedora poderia designar um terceiro para receber a parte do preço em divida, o que configura uma situação de delegação do pagamento (eficaz e válido) a uma não parte desse contrato (art. 770º, alínea a), do Código Civil). N. No caso de delegação num terceiro da faculdade de receber uma prestação, esse terceiro tem legitimidade para exigir judicialmente o pagamento, em caso de incumprimento do devedor (embora as partes possam excluir tal faculdade, o que não aconteceu no caso sub judice). O. Está bem estudada no Direito da Arbitragem, a matéria de intervenção de terceiros que não subscreveram a convenção de arbitragem, como sucede in casu. P. A doutrina distingue os “falsos terceiros” – aqueles que se substituírem na posição de uma das partes da convenção de arbitragem, como sejam os sucessores inter vivos ou mortis causa (cessionários, cessionários na posição contratual, terceiros sub-rogados nos termos da lei ou do contrato, herdeiros ou legatários) – e os “verdadeiros terceiros” (onde se incluem os sócios de uma pessoa coletiva, em caso de desconsideração da personalidade coletiva, sociedades de um mesmo grupo, garantes em relação ao afiançados). Nos casos de “verdadeiros terceiros”, fala a doutrina em extensão subjetiva da convenção de arbitragem a não subscritores. Q. A jurisprudência portuguesa, no silêncio da LAV sobre a matéria, não tem aceite a doutrina da extensão da convenção de arbitragem a sociedades do mesmo grupo, podendo recensear-se três decisões dos tribunais superiores nesse sentido (cf. Ac. TRL, 11.01.2011. Ac. STJ de 8.09.2011, Ac. STJ. 15.01.2019). R. A jurisprudência entende que aquilo que interessa é ver quem outorgou ou não outorgou na convenção de arbitragem, e interpretar a vontade das partes outorgantes no sentido se saber quem se pretendia vincular à convenção de arbitragem, sendo precisamente o que não fez o Tribunal a quo. S. Os acórdãos acima referidos são explícitos no sentido de concluir que as partes que outorgaram a convenção de arbitragem estão vinculadas, e sendo demandadas em tribunal judicial, qualquer delas pode opor à outra, validamente, a exceção de preterição de tribunal arbitral, ao passo que as que não outorgaram, não estão vinculadas, nem lhes podem opor, validamente, tal exceção e que não releva, nomeadamente, que integrem o mesmo grupo empresarial duma das partes ou que “directa ou indirectamente, tenham auxiliado na execução do contrato ou nas negociações pós-cessação” para ficarem, por isso, vinculadas à convenção de arbitragem. T. A jurisprudência tem admitido que no caso de cessão da posição contratual, cessão de créditos ou a adesão ao contrato, o terceiro possa ficar vinculado pela convenção de arbitragem, mas já não integra qualquer destas figuras a comunicação duma das outorgantes à outra de que a faturação devia passar a ser feita a terceira, situação que se assemelha ao caso dos autos, pelo que dúvidas não podem restar da não vinculação da Apelante à convenção de arbitragem. U. No caso presente deve notar-se que a OITANTE não tem qualquer ligação jurídica desde 2018 ao BBI (atualmente Bison Bank), não podendo invocar-se qualquer doutrina dos grupos de sociedades em relação a si como terceiro. V. Não está, por outro lado, em causa qualquer caso de desconsideração da pessoa coletiva, visto que a OITANTE é credora da FUND BOX HOLDINGS e não sua devedora; W. É manifesta a ilegalidade do Despacho impugnado, mostrando-se violados os arts. 406º, nº 2, e 770º, alínea a), do CC, os arts. 2º, nº 1 e 2, 3º e 5º, nº 1, da LAV vigente (aprovada pela Lei nº 63/2011, de 14 de dezembro, e entrada em vigor em 15 de março de 2012) e os arts. 96º, alínea b), e 577º, alínea a), do CPC. X. Por todas estas razões, deve ser revogado o saneador sentença recorrido e fixado a competência do tribunal estadual para conhecer a presente ação.
Terminou a Apelante defendendo que deve ser revogada a decisão recorrida, por ser ilegal, sendo substituída por outra que considere o Tribunal competente para conhecer o litígio, determinando-se a baixa do processo à 1ª instância para prosseguir a tramitação.
Foi apresentada alegação de resposta, em que a Apelada pugnou pela não admissão do recurso ou, se assim não se entender, pela improcedência do mesmo e confirmação da decisão recorrida, concluindo designadamente nos seguintes termos: (…) 8. Ao procurar defender que a Cláusula Compromissória – à qual está vinculada – não lhe é extensível, a Recorrente vem, numa tentativa de justificar o injustificável desviar o foco dos factos realmente relevantes, invocando factos novos, os quais, apesar de serem anteriormente por si conhecidos, não foram invocados nos presentes autos. 9. Uma vez que estes não são factos supervenientes, de acordo com os princípios da estabilidade da instância, da concentração da defesa e da preclusão, a alegação destes factos em sede de Recurso deve ser desconsiderada, por carecer de forma legal, determinando-se, então, a sua inalegabilidade. 10. Nos presentes autos, a Recorrente alega ser credora do montante correspondente à componente variável, no âmbito do Contrato de Compra e Venda celebrado entre o BBI e a Recorrida, porquanto, conforme estipulado no Contrato, foram dadas instruções à Recorrida nesse sentido. 11. Ao fazê-lo, está a Recorrente a tomar a posição contratual da Credora Cedente, porquanto este direito, de exigir o cumprimento da obrigação, foi-lhe transferido através da Cláusula 3.1.2 do Contrato e advém do mesmo, sendo, por isso, por ele regulado. 12. Acresce que, a Recorrente refere, por diversas vezes, nos autos que, sendo um terceiro face ao Contrato de Compra e Venda, não resulta, para ela “quaisquer direitos ou obrigações decorrentes desse contrato”, olvidando-se, no entanto, de que alicerça a presente ação no seu direito a exigir à Recorrida a prestação da sua obrigação de pagamento do montante relativo à componente variável. 13. Se esta fosse, realmente, a posição da Recorrente, então a presente ação careceria, no entender da própria Autora, de qualquer fundamento, porquanto está a tentar fazer valer um direito que agora refere expressamente não ter. (…) 18. No presente caso, a intenção das partes foi atribuir à Recorrente – que ocupa a posição de terceiro nesta relação contratual – o direito a exigir a prestação a cumprir pela Recorrida. 19. A própria Recorrente, na Petição Inicial, subsume o presente Contrato à figura jurídica do Contrato a favor de terceiro, pelo que é pacífico, conforme já reconhecido pelas partes nos autos que o Contrato em apreço é um Contrato a favor de terceiro, constituindo este tipo de contrato uma exceção ao princípio da eficácia relativa dos contratos, sendo este princípio, por isso, neste caso, inoperante. 20. Portanto, a Recorrente, apesar de não ser parte outorgante do Contrato em apreço – sendo, ao invés, um terceiro a favor do qual foi celebrado o referido Contrato – para fazer valer um direito que dele decorre, terá de cumprir com as obrigações lá estipuladas, nomeadamente, a obrigação de submissão de todos os litígios emergentes deste contrato ou com ele relacionados, incluindo litígios relativos a obrigações conexas com o contrato, a tribunal arbitral. 21. Resta apenas, por mera cautela, e uma vez que o princípio da autonomia privada é um dos corolários da Arbitragem, explorar e analisar devidamente a questão da extensibilidade da Convenção de Arbitragem a não signatários, como é o caso dos autos. 22. Segundo a opinião de Teixeira de Sousa, autor também citado pela Recorrente, “No direito interno português pode encontrar-se um exemplo da extensão da convenção arbitral a um terceiro na hipótese do contrato a favor de terceiro, que é o contrato em que uma das partes (o promitente) assume perante o outro contraente (o promissário) a obrigação de efetuar uma prestação a favor de um terceiro (o benificiário) (cf. art. 443, nº1, CC). Se o promitente e o promissário tiverem convencionado o recurso à via arbitral para resolução dos seus diferendos, o beneficiário também é abrangido por essa convenção.” (…) 23. Ora, este é, precisamente, o caso dos autos, porquanto, o BBI, enquanto promissário, e a Fund Box Holdings, S.A., enquanto promitente, convencionaram o recurso à via arbitral, vinculando essa convenção também a Oitante, S.A., aqui Autora e Recorrente, enquanto benificiária do Contrato, integrando esta tanto o âmbito subjetivo do Contrato como também o da Convenção de Arbitragem lá contida. 24. Acresce que, é possível ainda aliar esta argumentação à Teoria dos Grupos de Sociedades, grupos esses que, no entender de Brito Correia, se caracterizam por “um conjunto de duas ou mais sociedades, sujeitas a influência comum, quer porque uma participa na(s) outra(s) (...)”. 25. Ora, à data de celebração do Contrato de Compra e Venda de Ações, outorgado pela Recorrida e pelo BBI, a favor da Recorrente – 09.06.2017 – a Recorrente era acionista do BBI, porquanto, conforme refere, foi-lhe transferida a participação social detida pelo Banif no BBI, estando estas sociedades sujeitas a influência comum, pelo facto de a primeira participar, a 100%, na segunda. 26. Têm entendido, tanto a Doutrina como a Jurisprudência relevante, que para a questão de saber se é possível a extensão da Convenção de Arbitragem a sociedades pertencentes ao mesmo Grupo de Sociedades releva a vontade das partes, a qual poderá ser aferida pelo facto de o Contrato que contém a Cláusula Arbitral em apreço, bem como os litígios que dele advenham, dizerem respeito ao terceiro não signatário – como é o caso nos presentes autos – tendo-se em consideração a manifestação, ainda que tácita, de vinculação à mesma, conforme refere o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15.01.2019, Processo n.º 28/14.3TBOHP.C1.S. 27. Quanto à aceitação tácita, refere ainda este Acórdão que é essencial que se possa afirmar que o terceiro tinha conhecimento da Convenção de Arbitragem, apontando como elemento factual emergente dos autos, que permite concluir pela adesão tácita à Cláusula, o facto de as Autoras basearem as relações de que resultam as alegadas obrigações das Rés no Acordo que contém a Cláusula Arbitral – o que sucede precisamente no presente caso. 28. Isto porque, a Recorrente tinha conhecimento da Cláusula Compromissória, não podendo ignorar a sua existência, porquanto esta consta do Contrato de Compra e Venda que ela própria juntou aos autos, não podendo, igualmente, ignorar que deste Contrato resultam direitos, mas também obrigações, nomeadamente a obrigação, que tacitamente aceitou, de submeter qualquer litígio decorrente deste Contrato a um Tribunal Arbitral. 29. No caso supra referido, conclui o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15.01.2019, Processo n.º 28/14.3TBOHP.C1.S1, Relator Acácio das Neves pela procedência da exceção de incompetência absoluta resultante da preterição de tribunal arbitral, porquanto, “(…)” (…) 30. Assim, apesar de ser necessário que a Convenção de Arbitragem revista a forma escrita, não é condição essencial, nos termos da LAV, que a mesma seja assinada pelas partes vinculadas. 31. Face ao exposto, no presente caso, não obstante a Recorrente não ter assinado a Cláusula Compromissória – uma vez que não outorgou o Contrato onde ela se insere – entende-se que está vinculada à mesma. 32. Neste sentido, e pelos motivos elencados, estando a Recorrente obrigada nos termos estipulados no Contrato de Compra e Venda que trouxe aos autos, e constando deste Contrato uma Cláusula Compromissória, está a Recorrente também vinculada a esta Cláusula, que estipula que os litígios emergentes do Contrato deverão ser dirimidos pelo Tribunal Arbitral lá especificado. 33. Portanto, verifica-se, no presente caso, a exceção de preterição do tribunal arbitral, a qual, nos termos do artigo 96.º, b), do CPC, determina a incompetência absoluta do Tribunal, conforme decidido pelo Tribunal a quo. 34. Deste modo, andou bem o Tribunal a quo ao absolver a Ré, ora Recorrente, da instância, por efeito da referida incompetência, pelo que deverá ser julgado improcedente o presente Recurso e confirmada a douta decisão recorrida.
Foi proferido despacho de admissão de recurso, tendo o Tribunal a quo considerado que a decisão recorrida se reconduzia à previsão do art. 644.º, n.º 1, al. a), do CPC, referindo designadamente que: «A doutrina e a jurisprudência têm discutido se, a decisão que apreciando a competência absoluta do tribunal, põe termo à causa absolvendo o R. da instância admite recurso no prazo de 30 dias, nos termos da al. a) do n.º 1 do art.º 644º ou no prazo de 15 dias nos termos da al. b) do n.º 2 do mesmo artigo. No sentido de que deve aplicar-se o prazo de 15 dias, com o argumento que a norma do n.º 2 do art.º 644º é excepcional, não fazendo a lei qualquer distinção, vejam-se a título de exemplo os Acórdão RP 30/5/2018 (proc nº 19903/16), Ac RP de 4/4/2022 (proc nº 20371/19), disponíveis em www dgsi ). Em sentido contrário, ABRANTES GERALDES (Recursos em Processo Civil, 7.ª edição actualizada, 2022, Almedina, p.165, nota 291) defende que “deve ser feita uma interpretação restritiva do preceituado no n.º 1 do art.º 638.º, em conjugação com o disposto na alínea b) do n.º2 do art.º 644.° excluindo deste prazo reduzido os casos emergentes de processos não urgentes em que a decisão que apreciou a questão da incompetência absoluta tenha posto termo ao processo, isto é, quando, com fundamento na incompetência absoluta, se decrete a absolvição total da instância ( art.º 644.º n.º 1 a), ou a absolvição da instância relativamente a algum pedido ou a algum dos réus ( art.º 644.º n.º1, alínea b).” . No mesmo sentido veja-se também RUI PINTO, Manual do Recurso Civil, Vol. I, p.273, nota 1135. Esta posição tem merecido acolhimento, se não unânime, certamente maioritário de acordo com a jurisprudência publicada, junto do STJ que vem considerando que o prazo de recurso é de 30 dias, sempre que a decisão sobre a incompetência absoluta ponha termo ao processo. Considera o nosso mais alto Tribunal que a diferenciação de prazo de interposição de recurso se justifica pela implicação que a decisão tiver no iter processual. Se a decisão puser termo ao processo, entende-se que não há nenhuma razão para o desvio do prazo geral de interposição do recurso. Por seu turno, se a decisão apreciar a excepção da incompetência absoluta sem pôr termo ao processo, nomeadamente julgando improcedente a excepção, deve aplicar-se o prazo mais curto, de 15 dias, uma vez que, tendo o recurso efeito meramente devolutivo, há toda a conveniência em acelerar a decisão definitiva. Este entendimento apoia-se, ainda, na ratio legis que justifica a redução do prazo para interposição do recurso, nas decisões interlocutórias, para 15 dias. Vejam-se os Ac. STJ de 22.11.2016, 23.03.2018, 21.02.2019 e 10.12.2024, todos disponíveis em www.dgsi.pt. Tendemos a seguir o entendimento do STJ, pelo que, tendo a decisão posto termo ao processo, não há qualquer razão justificativa para a redução do prazo de recurso, devendo, ao invés, aplicar-se a regra geral estipulada no art.º 638.º n.º 1 do CPC.»
Ouvida a Apelante, ao abrigo do disposto no art. 655.º do CPC, veio defender, em síntese, que: o prazo de interposição do recurso é de 30 dias, considerando que a decisão recorrida põe termo ao processo, aplicando-se a regra geral do art. 638.º, n.º 1, do CPC; ainda que se considere ser de 15 dias o prazo aplicável ao caso, o recurso foi tempestivamente interposto, já que o prazo terminaria a 14-02-2025, mas o recurso poderia ser interposto até dia 19-02-2025, mediante pagamento da multa na sequência de notificação a efetuar nos termos do art. 139.º, n.º 6, do CPC.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
***
II - FUNDAMENTAÇÃO
Como é consabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido (artigos 608.º, n.º 2, parte final, ex vi 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 636.º e 639.º, n.º 1, do CPC).
Além da questão prévia da não admissão do recurso, a única questão a decidir é a de saber se não se verifica a exceção de incompetência absoluta por preterição de tribunal arbitral.
Questão prévia da não admissão do recurso
A Apelada defendeu que o recurso não deve ser admitido, argumentando, em síntese, que:
- Não é aplicável o art. 644.º, n.º 1, al. a) do CPC, mas sim o art. 644.º, n.º 2, al. b), do CPC, de cuja conjugação com o art. 638.º, n.º 1, do mesmo Código resulta ser de 15 dias o prazo para interposição do recurso, o qual foi, assim, interposto extemporaneamente;
- Ainda que se considerasse que a Apelante apresentou o recurso no 3.º dia útil subsequente ao termo do prazo, como a mesma não procedeu ao pagamento da multa prevista na alínea c) do n.º 5 do art. 139.º do CPC, fica comprometida a validade do recurso interposto, motivo pelo qual deverá o recurso ser considerado inadmissível.
A Apelante, divergindo deste entendimento, alegou, em síntese, que:
- O prazo de recurso é de 30 dias, porque a decisão recorrida põe termo à causa, ficando o prazo de 15 dias reservado para os casos de interposição de recurso de decisões interlocutórias, ou seja, decisões em que é apreciada a exceção de incompetência absoluta mas sem pôr termo à causa; nesse sentido, os acórdãos do STJ de 10-12-2024, no proc. n.º 18570/21.8T8LSB.L1.S1, 23-03-2018, no proc. n.º 2834/16.5T8GMR-A.G1.S1, e 07-05-2024, no proc. n.º 3556/22.3T8PNF-A.P1.S1; e o ac. da Relação do Porto de 05-02-2024, no proc. n.º 3556/22.3T8PNF-A.P13;
- Ainda que assim não se entenda, como a sentença em apreço foi notificada à Autora a 27-01-2025, o prazo de interposição do recurso, a ser de 15 dias, terminaria a 14-02-2025, podendo o ato ainda ser praticado dentro dos três primeiros dias úteis subsequentes, pelo que sempre poderia interpor o competente recurso até ao dia 19-02-2025 (como fez), mediante pagamento da competente multa, cuja guia lhe teria de ser remetida pela secretaria para liquidação nos termos do art. 139.º, n.º 6 do CPC.
Vejamos.
Preceitua o art. 638.º, n.º 1, do CPC, que “(O) prazo para a interposição do recurso é de 30 dias e conta-se a partir da notificação da decisão, reduzindo-se para 15 dias nos processos urgentes e nos casos previstos no n.º 2 do artigo 644.º e no artigo 677.º”.
No que ora importa, dispõe o art. 644.º, sob a epígrafe “Apelações autónomas”, nos seus n.ºs 1 e 2, que: “1 - Cabe recurso de apelação: a) Da decisão, proferida em 1.ª instância, que ponha termo à causa ou a procedimento cautelar ou incidente processado autonomamente; b) Do despacho saneador que, sem pôr termo ao processo, decida do mérito da causa ou absolva da instância o réu ou algum dos réus quanto a algum ou alguns dos pedidos. 2 - Cabe ainda recurso de apelação das seguintes decisões do tribunal de 1.ª instância: (…) b) Da decisão que aprecie a competência absoluta do tribunal;”
A dúvida que se coloca é a de saber se estará incluída na previsão da citada alínea b) do n.º 2 do art. 644.º do CPC a decisão que julgue verificada a exceção dilatória de incompetência absoluta e, em consequência, absolva o réu da instância, pondo, pois, termo à causa.
A questão não é nova, pois já se colocava a propósito do preceito que lhe correspondia no anterior CPC, o art. 691.º, n.º 2, al. b).
A posição defendida pela Apelada foi sufragada na jurisprudência, designadamente, no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 30-05-2018, proferido no processo n.º 19903/16.4T8PRT-A.P1 (disponível em www.dgsi.pt), em cujo sumário se afirma que: “O prazo para interposição de recurso de decisão que aprecie a competência do tribunal é reduzido para 15 dias, independentemente dessa decisão pôr fim ao processo, de harmonia com as disposições conjugadas dos artigos 638.º, n.º 1, e 644.º, nº 2, alínea b), do Código de Processo Civil.” E também no acórdão da Relação do Porto 17-02-2014, proferido no processo n.º 367/12.8TVPRT-A.P1 (consultado em https://jurisprudencia.pt/acordao/10576/pdf/), com o seguinte sumário: “I - O prazo para interposição de recurso de - Decisão que aprecie a competência do tribunal - é reduzido para 15 dias, independentemente dessa decisão pôr fim ao processo, de harmonia com o disposto no art. 691º, nº 2, al. b) e nº 5, do Código de Processo Civil, não devendo fazer-se qualquer interpretação restritiva deste nº 5. II - O prazo para interpor recurso da decisão que aprecie a competência do tribunal é de 15 dias, não concebendo a lei qualquer desvio a esta regra. III - Isso, resulta da previsão da al. b) do nº2 e nº 5, do art. 691º, do ACPC e, resulta do nº 2, al. b), do art. 644º e nº1 do art. 638º, ambos do NCPC, que, agora, expressamente, se refere à apreciação da “competência absoluta do tribunal”, a qual conduz ao termo do processo, com a consequente absolvição da instância (art.s 105º, nº1, 493º, nº 2 e 494º, al. a), do NCPC art.s 99º, 576º e 577º), onde o prazo de 30 dias para interposição do recurso continua, expressamente, reduzido para 15 dias.”
Pensamos, todavia, ser maioritariamente defendida na jurisprudência posição diferente. Neste sentido, destacamos, desde logo, a Declaração de Voto no referido processo n.º 19903/16.4T8PRT-A.P1: «Apesar dos fundamentos expostos no acórdão, continuamos a entender que estando em causa uma decisão que julga procedente a exceção de competência material e põe termo ao processo e não se tratando de processo urgente, o prazo para interpor recurso é de 30 dias, nos termos das disposições conjugadas dos art. 638º/1 e art. 644º/1 a) CPC. Entendemos que se deve fazer uma interpretação restritiva do art. 644º/2 b), conjugado com o art. 638º/1 CPC, devido à sua inserção sistemática e natureza da decisão, no sentido de apenas se aplicar às decisões que julgam improcedente a exceção de competência absoluta do tribunal. Esta era já a interpretação desenvolvida à face da anterior redação do preceito e talvez por esse motivo o legislador não viu necessidade de corrigir (cfr. ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES Recursos em Processo Civil-Novo Regime, 2ª edição revista e atualizada, Almedina, Coimbra setembro de 2008, pag. 179 a 181 e nota 261). A previsão do nº2 do art. 644º CPC reporta-se a decisões interlocutórias, excecionando o regime que resulta da aplicação do nº3 e nº4 do preceito, pois, em regra, das decisões interlocutórias apenas é admissível recurso a final. Por outro lado, quando o legislador no art. 644º/2 b) CPC se reporta a “decisão que aprecie a competência absoluta do tribunal” deve entender-se decisão que indefere a exceção de competência absoluta, pois só dessa forma se justifica que se crie um tratamento de exceção em relação às demais exceções processuais, devido às consequências que advêm do conhecimento apenas a final do recurso de tal decisão. Com efeito, se não existisse este regime de exceção, estando em causa a apreciação da exceção de competência absoluta, a ser a mesma julgada improcedente, isso significaria que o processo prosseguiria os seus termos no tribunal onde se encontrava, ainda que este não fosse competente, apesar de estar pendente um recurso que impugnava tal decisão e que só seria apreciado a final, como ocorre com o recurso de decisões que se pronunciam sobre outras exceções. Ponderando o exposto e seguindo a posição expressa no Ac. STJ 22 de novembro de 2016, Proc. 200/14.6 T8LRA-A.C1, S1, 1ª seção (acessível em www.dgsi.pt e citado pela reclamante), consideraria ser de 30 dias o prazo de interposição de recurso, por se aplicar o regime do art. 644º/1 a) CPC, conjugado com o art. 638º/1 CPC e desta forma, julgaria interposto em tempo o recurso e atendendo a reclamação, admitiria o recurso.»
Esta posição já havia sido defendida no acórdão da Relação de Coimbra, de 27-10-2009, proferido no processo n.º 2288/08.0TJCBR-A.C1 (disponível em www.dgsi.pt), ainda na vigência do anterior CPC, conforme resulta do respetivo sumário: “VI – A lei ao declarar que cabe recurso da decisão que aprecie a competência do tribunal – artº 691º, nº 2, al. b) – tem notoriamente em vista a decisão meramente interlocutória que julgue o tribunal competente e, portanto, que não põe termo ao processo. O prazo de interposição do recurso é, neste caso, de 15 dias. VII – Enquadrando-se a decisão recorrida na previsão da al. b) do nº 2 do artº 691º - decisão que aprecie a competência do tribunal -, mas também na previsão do nº 1 do mesmo preceito, o prazo para interposição de recurso é de 30 dias porque, concluindo pela incompetência absoluta do tribunal, isso conduz ao termo do processo. artºs 105º, nº 1; 493º, nº 2; e 494º, al. a), do CPC.”
Posteriormente, a Relação do Porto no acórdão de 09-10-2012, proferido no processo n.º 2313/11.7TBGDM.P1 (disponível em www.dgsi.pt), pronunciou-se no mesmo sentido, conforme consta do respetivo sumário: “I - Nos casos em que a decisão que aprecie a competência do tribunal conclui pela respectiva incompetência absoluta o prazo para interposição de recurso é de 30 dias, e não de 15 dias, porque isso conduz ao termo do processo - arts. 105º, nº1 e 691º, nº1 do Código do Processo Civil. II - Os tribunais de comércio são competentes, em razão da matéria, para as acções em que se peça a condenação, em benefício da sociedade, pelos prejuízos sofridos por gestão danosa de sociedade comercial, nos termos do artigo 77º n. 1 do Código das Sociedades Comerciais.”
O STJ, no acórdão de 22-11-2016, proferido no processo n.º 200/14.6T8LRA-A.C1.S1 (disponível em www.dgsi.pt), decidiu também que é de 30 dias o prazo para interpor recurso da decisão de 1.ª instância que, tendo julgado procedente a exceção da incompetência absoluta do tribunal, pôs termo ao processo, com absolvição total dos réus da instância.
Este entendimento veio a ser reiterado em acórdãos mais recentes (disponíveis em www.dgsi.pt), designadamente:
- de 23-03-2018, no proc. n.º 2834/16.5T8GMR-A.G1.S1, conforme se alcança do respetivo sumário: “I. A determinação do prazo (de 30 ou de 15 dias), nos termos do artigo 638.º, n.º 1, do CPC, para interpor recurso de apelação de decisões que apreciem a incompetência absoluta depende da interpretação conjugada do disposto nos n.º 1 e 2, alínea b), do artigo 644.º do mesmo Código. II. A locução cabe ainda inserta no proémio do n.º 2 do referido artigo 644.º do CPC aponta no sentido de que as hipóteses de apelação autónoma previstas nas suas diversas alíneas se traduzem em extensões para além dos casos contemplados no n.º 1 daquele artigo e não em hipóteses especiais que se sobreponham aos casos ali compreendidos. III. Assim, a decisão de procedência da exceção de incompetência absoluta que, conduzindo ao indeferimento liminar total da petição inicial ou à absolvição de réu da instância, seja em que momento processual for, ponha, por essa via, termo ao processo cai no âmbito de previsão do artigo 644.º, n.º 1, alínea a), do CPC. IV. Por sua vez, a decisão de procedência de exceção da referida categoria no despacho saneador que, absolvendo o réu ou alguns dos réus da instância, não ponha termo ao processo inscreve-se no âmbito da alínea b) do n.º 1 do indicado artigo 644.º. V. Fora do âmbito daquele n.º 1 ficam os demais casos, mormente os casos de decisão de improcedência daquela exceção em sede do despacho saneador que não ponha termo ao processo; serão estes os casos contemplados no n.º 2, alínea b), do artigo 644.º. VI. Nessa conformidade, é de 30 dias o prazo para interpor recurso de apelação das decisões que, seja em que momento processual for, apreciem a incompetência absoluta e, desse modo, ponham termo ao processo, nos termos conjugados dos artigos 638.º, n.º 1, 1.ª parte, e 644.º, n.º 1, alínea a), do CPC.”
- de 21-02-2019, no proc. n.º 27417/16.6T8LSB-A.L1.S2, em cujo sumário se refere designadamente que: “II - Apesar de o art. 629º, nº 2, al. d) do mesmo diploma prever apenas a contradição do acórdão recorrido com outro acórdão da Relação, entende-se que, por maioria de razão, será relevante para integrar a sua previsão a contradição que se estabeleça com um acórdão do STJ. IV – A redução para 15 dias do prazo para interposição de recurso, nos termos conjugados nos arts. 638º, nº 1 e 644º, nº 2 do mesmo diploma vale apenas para decisões interlocutórias. V – O prazo para recorrer da decisão que, ao declarar a incompetência absoluta do tribunal, absolve o réu da instância, pondo termo ao processo, é de 30 dias.”
- de 07-05-2024, no proc. n.º 3556/22.3T8PNF-A.P1.S1, em cujo sumário se refere que: “O prazo para a interposição de recurso de apelação da sentença final que julgou improcedente a excepção da incompetência internacional dos tribunais portugueses é de 30 dias ( prazo regra), por aplicação do art.638 nº1 e 644 nº1 CPC.”
- de 10-12-2024, no proc. n.º 18570/21.8T8LSB.L1.S1, em cujo sumário se refere que: “I - O prazo para interposição do recurso de apelação da decisão que declara a incompetência absoluta do tribunal em razão da matéria, absolvendo o réu da instância, pondo termo ao processo, é de 30 dias. II - A redução, para 15 dias, do prazo para interposição de recurso, nos termos conjugados dos artigos 638º nº 1 e 644.º n.º 2 do Código de Processo Civil, aplica-se apenas às decisões interlocutórias.”
Na doutrina, sobre esta questão, destacamos os ensinamentos de Abrantes Geraldes, na sua obra“Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5.ª edição, Almedina, pág.140, nota de rodapé 233, em anotação ao art. 638.º do CPC, explicando que, em relação aos recursos de decisões da 1.ª instância, o prazo geral é de 30 dias, sendo aplicável aos recursos das decisões que ponham termo ao processo ou incidente processado autonomamente, mas é de 15 dias nos recursos intercalares previstos no n.º 2 do art. 644.º; acrescentando o seguinte: “Como refiro na anot. ao art. 644.º, deve ser feita uma interpretação restritiva do preceituado no seu n.º 1 do art. 638.º, em conjugação com o disposto na al. b) do n.º 2 art. 644.º, excluindo deste prazo reduzido os casos em que a decisão que apreciou a questão da competência tenha posto termo ao processo, isto é, quando, com fundamento na procedência da excepção de incompetência absoluta, se decrete a absolvição total da instância. - in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2013, Almedina, pág. 106, nota de rodapé 171. Concordo com esta argumentação, parecendo-me até que, mais do que interpretação restritiva, se trata aqui de interpretação sistemática dos citados normativos. Com efeito, como se viu, o n.º 1 do art. 638.º refere que o prazo é reduzido para 15 dias “nos casos previstos no n.º 2 do artigo 644.º”. Ora, no corpo do n.º 2 do art. 644.º prevê-se “Cabe ainda recurso de apelação das seguintes decisões do tribunal de 1.ª instância” (sublinhado nosso).
Concordamos com a citada jurisprudência maioritária e doutrina, entendendo que o n.º 2 do art. 644.º dispõe sobre casos não contemplados no n.º 1, contendo uma previsão normativa que vem ampliar os casos em que é admissível a apelação autónoma. Portanto, perante uma situação contemplada na alínea a) do n.º 1, como é o caso da decisão que ponha termo à causa - aqui se incluindo a decisão de absolvição da ré da instância pela procedência da exceção de incompetência absoluta -, não se cai na previsão do n.º 2 do art. 644.º, em particular da sua alínea b), não sendo aplicável o prazo de 15 dias de interposição de recurso.
Logo, tendo o requerimento de interposição de recurso em apreço sido apresentado dentro do prazo de 30 dias, concluímos que não assiste razão à Apelada ao pugnar pela não admissão do recurso, pelo que se passa a conhecer do objeto do mesmo.
Da incompetência absoluta – preterição de tribunal arbitral
O Tribunal recorrido fundamentou a sua decisão, mencionando o teor da cláusula 14.2 e referindo designadamente que: “Tal cláusula consubstancia o que a doutrina e a jurisprudência têm designado de Cláusula compromissória. Efectivamente, tem-se entendido que o compromisso arbitral versa sobre litígio presente, ao passo que a cláusula compromissória versa sobre litígio futuro, e que tanto o compromisso arbitral como a cláusula compromissória vinculam as partes à sujeição da decisão do litígio a árbitros, sendo que no primeiro caso, são logo nomeados pelas partes e, no segundo, terão de o ser por elas quando surgir um litígio abrangido pela cláusula ou, na falta e escolha pelas partes, o serão pelo tribunal (Vaz Serra, in RLJ, ano 105, p. 251; Ac. RL de 5/04/90 in CJ, II, p. 150; Ac. RP, 6/03/90, in CJ, II, 203). No caso vertente, afigura-se incontroverso que, em face do conteúdo da referida cláusula, estamos perante uma cláusula compromissória, sendo certo que a questão em litígio não respeita a direitos indisponíveis, pelo que a vontade das partes pode, livremente, afirmar-se na concretização do princípio da liberdade contratual, como corolário da autonomia privada - art.º 405º do Código Civil e art.º 1º da Lei 31/86 de 29/08 (Lei da arbitragem voluntária). Importa aferir, face à alegação da A. da inoponibilidade da cláusula à A. Ora, a cláusula encontra-se incerta no contrato de compra e venda de acções celebrado em 09.06.2017 pelo Banif – Banco de Investimento, S.A. (BBI) e Fund Box Holdings, S.A. Alega a A. e resulta do documento n.º 1 junto que na sequência da medida de resolução foi transferida para a A. a participação social detida pelo BBI correspondente à totalidade do capital social, sendo, assim, uma Sociedade anónima que se dedica à administração dos direitos e obrigações que constituam activos do BBI que lhe forme transferidas em cada momento, por decisão do BdP. Que, tendo o BBI decidido alienar à R as acções relativas a 100% do capital social do Banif Capital, (doc. 2) acordaram as partes que a Ré, na qualidade de compradora poderia ser instruída para pagar a componente variável do preço à A., conforme cláusula 3.32 do contrato. Mais alega que, tenho sido instruída nesse sentido, a Ré não cumpriu a sua obrigação contratual, incorrendo, assim, em responsabilidade contratual pelo incumprimento do contrato celebrado. Então, perante o pedido e a causa de pedir, dúvidas não existem que a A. invoca a responsabilidade contratual da Ré por incumprimento do contrato de compra e venda de acções junto aos autos, do qual consta a supra-referida cláusula 14, consubstanciadora de cláusula compromissória. Ora, não pode a A. fazer-se valer apenas de parte de um contrato, seleccionando e invocando as cláusulas que lhe são favoráveis e ignorando as demais. Assim, sendo a causa de pedir o incumprimento do contrato, entende-se que deveria a A. ter esgotado os meios de composição não litigiosa, através do recurso à arbitragem, nos termos acordados, em vez de ter recorrido ao tribunal. É importante ter presente que os tribunais arbitrais, embora não sejam órgãos de soberania como os tribunais estaduais, não deixam de ser entidades jurisdicionais a quem cabe definir o direito nas situações concretas que lhes são submetidas, o que levou Francisco Cortez a proferir a conhecida afirmação: «(…) » FRANCISCO CORTEZ, A Arbitragem Voluntária em Portugal, in O Direito, ano 124, 1992, IV, pg.555. O mesmo Autor remata a referida asserção com a seguinte síntese feliz: «A arbitragem voluntária é contratual na sua origem, privada na sua natureza, jurisdicional na sua função e pública no seu resultado». A convenção arbitral reveste, por conseguinte, a natureza de negócio jurídico bilateral que pode designar-se como «contrato processual», a que a lei atribui relevância enquanto acto de autonomia de vontades das partes contratantes em subtraírem à competência natural dos tribunais judiciais a resolução de determinados litígios, que atribuem a árbitros. Teixeira de Sousa, (in "A Competência Declarativa dos Tribunais Comuns", pg. 100), classifica as convenções arbitrais como «contratos processuais» por atribuírem à arbitragem voluntária, «ad hoc» ou institucionalizada, a competência para o "julgamento" de determinados negócios com eficácia num processo pendente ou futuro, ao mesmo tempo que a retiram às jurisdições estaduais. Além do pressuposto atrás citado (de que o convénio não verse sobre direitos indisponíveis), a convenção arbitral está sujeita a dois requisitos: um formal, já que tem de ser reduzida a escrito, observando os requisitos de forma do contrato e outro material, traduzido, no caso do compromisso arbitral (que é o que aqui interessa considerar), no dever de designar as questões a que se refere e o critério de determinação do tribunal (art.º 952 do CPC e art.º 2º da LAV(Lei da Arbitragem Voluntária – Lei n.º 31/86, de 29.08, com as alterações introduzidas pelos Dec. Lei n.º 38/03, de 08.03 e Lei n.º 63/2011, de 14.12. A preterição de tribunal arbitral, que, na vigência do Código de Processo Civil anterior à reforma de 2013, constituía uma excepção dilatória, é, agora, um caso de incompetência absoluta, nos termos do artigo 96º deste Código. De acordo com o entendimento perfilhado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.03.2011 (disponível em www.dgsi.pt), que, pela clareza e relevância para a questão a decidir, aqui seguimos de perto, «(...) ao apreciar a referida excepção dilatória devem os tribunais judiciais actuar com reserva e contenção, de modo a reconhecer ao tribunal arbitral prioridade na apreciação da sua própria competência, apenas lhes cumprindo fixar, de imediato e em primeira linha, a competência dos tribunais estaduais para a composição do litígio que o A. lhes pretende submeter quando, mediante juízo perfunctório, for patente, manifesta e insusceptível de controvérsia séria a nulidade, ineficácia ou inaplicabilidade da convenção de arbitragem invocada (justificando-se, então, por evidentes razões de economia e celeridade e, face à evidência da questão, a imediata definição da competência para dirimir o litígio, de modo a dispensar a prévia instalação do tribunal arbitral sobre os pressupostos da sua própria competência)». E, na esteira de outros arestos do S.T.J., exprimindo uma jurisprudência que se vem afirmando como maioritária, acrescenta o mesmo acórdão que «(...) vigora, entre nós, o princípio lógico e jurídico da competência dos tribunais arbitrais para decidirem sobre a sua própria competência, designado em idioma germânico por Kompetenz-Kompetenz e que, na acepção negativa, impõe a prioridade do tribunal arbitral do julgamento da sua própria competência, obrigando os tribunais estaduais a absterem-se de decidir sobre essa matéria antes da decisão do tribunal arbitral». Tal entendimento resulta do regime consagrado no artigo 18º da citada LAV, do qual se conclui que o nosso legislador sufragou o princípio lógico e jurídico da competência dos tribunais arbitrais para decidirem sobre a sua própria competência, razão porque, ao tribunal judicial, apenas é permitido, para decidir da procedência ou improcedência da excepção dilatória da preterição do tribunal arbitral, apreciar tão só dos casos de manifesta nulidade, ineficácia, inexistência ou inexequibilidade da convenção arbitral – cf. o Acórdão da Relação de Coimbra de 05.02.2013. Aliás, a sustentação de tal entendimento, para além dos contributos doutrinários e jurisprudenciais que já o ancoravam, encontra-se agora reforçada através da actual redacção do artigo 5.º, n.º 1 da LAV, com a epígrafe “efeito negativo da convenção de arbitragem”, com o seguinte teor: «O tribunal estadual no qual seja proposta acção relativa a uma questão abrangida por uma convenção de arbitragem deve, a requerimento do réu deduzido até ao momento em que este apresentar o seu primeiro articulado sobre o fundo da causa, absolvê-lo da instância, a menos que verifique que, manifestamente, a convenção de arbitragem é nula, é ou se tornou ineficaz ou é inexequível». Atentando ao caso dos autos, verifica-se que a invocada cláusula arbitral estará inserida nas condições aplicáveis ao contrato que é causa de pedir nos presentes autos pelo que do supra citado princípio da Kompetenz-Kompetenz (agora claramente consignado na lei) decorre a prioridade do tribunal arbitral no julgamento da sua própria competência, obrigando os tribunais estaduais a absterem-se de decidir sobre essa matéria antes da decisão do tribunal arbitral. Com efeito, o artº 21º nº 1 da Lei de Arbitragem Voluntária consagra expressis verbis que «o tribunal arbitral pode pronunciar-se sobre a sua competência, mesmo que para esse fim seja necessário apreciar a existência, a validade ou a eficácia da convenção de arbitragem ou do contrato em que ela insira, ou a aplicabilidade da referida convenção». Também Lopes dos Reis no seu estudo «A Excepção da Preterição do Tribunal Arbitral», referindo-se ao princípio Kompetenz-kompetenz, esclarece: «Aquele princípio acarreta o efeito negativo de impor à jurisdição pública o dever de se abster de pronunciar sobre as matérias cujo conhecimento a lei comete ao árbitro, em qualquer causa que lhe seja submetida e em que se discutam aquelas questões, antes que o árbitro tenha tido a oportunidade de o fazer. Isto é, do aludido princípio não decorre apenas que o árbitro tem competência para conhecer da sua própria competência, decorre também que tal competência lhe cabe a ele, antes de poder ser deferida a um tribunal judicial» (in Revista da Ordem dos Advogados (ROA), ano 58, Dezembro 1998, pg.1122). E continua, mais à frente “Todas estas cautelas da lei significam que ela quis que o tribunal judicial olhasse a convenção de arbitragem como um sinal de proibição: há convenção de arbitragem, é plausível que ela vincule as partes no litígio, então, quanto ao litígio entre elas, o tribunal judicial não pode intervir senão em sede de impugnação da decisão arbitral. Para que esse limite fique claro, para que fique nitidamente delimitada essa fronteira estabelecida ao poder do juiz, questões relativas à própria convenção, como a sua validade, a sua eficácia, a sua aplicabilidade, só podem ser apreciadas pelo tribunal judicial depois de o árbitro proferir a sua decisão final. Só se ocorrer nulidade da convenção de arbitragem é que o tribunal judicial pode decidir de outro modo». Também a generalidade da jurisprudência defende que (cf., de entre a mais recente, por exemplo, os Acórdãos da Relação de Lisboa de 24.02.2015 e 30.06.2015, disponíveis em www.dgsi.pt), apenas nos casos em que for manifesta a nulidade, a ineficácia ou a inaplicabilidade da convenção de arbitragem, pode o Juiz do tribunal judicial declará-lo e, consequentemente, julgar improcedente a excepção, sendo que, nos restantes casos, tal aferição incumbe em primeira linha ao tribunal arbitral. O que não é o caso dos autos. Assim sendo, é de verificar a excepção de preterição do tribunal arbitral, considerando a cláusula invocada pela Ré e, em consequência, concluir pela incompetência absoluta deste tribunal, nos termos do artigo 96º, b) do Código de Processo Civil. Por efeito de tal incompetência, deve a Ré ser absolvida da instância – artigo 278º, n.º 1, a) do C.P.C.”.
Na análise a fazer sobre o acerto destas considerações, relevam, da factualidade que resulta do relatório supra, os seguintes factos:
1. A Autora é uma sociedade anónima cuja constituição se encontra registada na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa, mediante inscrição 1 e ap. 224 datada de 12-01-2026, tendo por objeto a “Administração dos direitos e obrigações que constituam activos do Banif-Banco Internacional do Funchal, S.A., que lhe forem transferidos em cada momento, por decisão do Banco de Portugal, tendo em vista as finalidades enunciadas no artigo 145º-C do RGICF”, conforme doc. 1 junto com a Petição Inicial cujo teor se dá por reproduzido.
2. Foi transferida para a Autora a participação social (100% do capital social) detida pelo Banif-Banco Internacional do Funchal, S.A. no Banif-Banco de Investimento, S.A. (BBI), correspondente à totalidade do respetivo capital social.
3. Este último, por sua vez, era detentor de 100% do capital social do Banif-Gestão de Activos.
4. Em 9 de junho de 2017 foi outorgado entre o Banif-Banco de Investimento, S.A., como “Vendedor”, e a Ré, a Fund Box Holding, S.A., como “Comprador”, o “Contrato de compra e venda de ações relativo a 100% do capital social e direitos de voto da Banif Capital-Sociedade de Capital de Risco, S.A.”, consubstanciado no doc. 2 junto com a Petição Inicial, cujo teor se dá por reproduzido, aí se estipulando designadamente que «O Vendedor e o Comprador de ora em diante conjuntamente designados por “Partes” e Individualmente por “Parte”», e constando dos respetivos Considerandos designadamente o seguinte: «(A) No dia 20 de dezembro de 2015, o Banco de Portugal aplicou uma medida de resolução ao Banif – Banco Internacional do Funchal, S.A. (“Banif”), a qual determinou, entre outras medidas, a transferência de parte dos seus ativos para um veículo de gestão de ativos especialmente criado para o efeito, a Oitante, S.A. (“Oitante”, anteriormente Naviget, S.A.), para posterior venda ou liquidação. (B) Na sequência da medida de resolução, foram transferidos para a Oitante a participação social detida pelo Banif no BBI, correspondente à totalidade do respetivo capital social; (…) (E) O BBI é titular de 350.000,00 (trezentas e cinquenta mil) ações escriturais nominativas com o valor nominal de €0,36 (trinta e seis cêntimos de Euro) cada, representativas de 100% (cem por cento) do capital social e direito de voto da Vanif Capital (“Ações”).»
5. Na cláusula 2.1 desse contrato consta que, pelo mesmo, “o Comprador obriga-se a comprar as Ações e as Prestações Acessórias ao Vendedor, e o Vendedor por sua vez obriga-se a vender as Ações e as Prestações Acessórias ao Comprador, livres de quaisquer ónus ou encargos e com todos os direitos económicos e sociais que lhe são inerentes a partir da Data de Conclusão”.
6. Na cláusula 3.1.1 ficou estipulado que o preço de compra e venda das ações e das prestações acessórias é de «€530.00,00 (quinhentos e trinta mil euros) (o “Preço Fixo”), acrescido de um montante variável correspondente a 50% (cinquenta por cento) dos montantes pagos pelo Fundo BGPE à entidade gestora a título de comissão de performance aquando da liquidação do Fundo BGPE (“Componente variável” e conjuntamente com o Preço Fixo, “O Preço”).»
7. Mais ficou estipulado, na cláusula 3.1.2, que o “Comprador desde já se compromete, no caso de o BBI lhe comunicar instruções nesse sentido, a pagar a Componente Variável do Preço à Oitante, nos exatos termos em que esta seria paga ao BBI”.
8. Na cláusula 14.ª do referido contrato de compra e venda de ações celebrado a 9 de junho de 2017 entre o Banif-Banco de Investimento, S.A., como Vendedor, e a Ré, Fund Box Holding, S.A., como Comprador, consta o seguinte: “14.1 O presente Contrato, os documentos com ele conexos e quaisquer obrigações não contratuais conexas com o mesmo, serão regulados e interpretados de acordo com a lei portuguesa. 14.2 Todos os litígios emergentes deste contrato (incluindo litígios relativos à existência, validade ou cessação do mesmo), ou com ele relacionados, incluindo litígios relativos a obrigações não contratuais decorrentes ou conexas com o contrato, serão definitivamente resolvidos de acordo com o Regulamento de Arbitragem do centro de arbitragem da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa (Centro de Arbitragem Comercial), por três árbitros nomeados nos termos do Regulamento, sendo um árbitro nomeado pelo Comprador, outro árbitro pelo Vendedor e designando os árbitros nomeados o respectivo presidente, sem que haja recurso da respectiva decisão. 14.3 No decurso da arbitragem as Partes permanecerão obrigadas ao cumprimento das obrigações assumidas nos termos do presente Contrato, ficando claro que a cessação do presente Contrato não determina a cessação do compromisso arbitral ou da arbitragem que esteja eventualmente em curso. 14.4 Cada Parte pagará os honorários e custos dos seus consultores. O custo de qualquer arbitragem será imputado à Parte perdedora, relativamente a qualquer Reclamação disputada e à qual não tenha sido dada razão à Parte, e os árbitros efectuarão a alocação de custos como parte das demais regras por eles emitidas.”
9. Mais consta do contrato, na cláusula 15.1 que “As Partes não poderão, sem o prévio consentimento escrito da outra Parte, ceder total ou parcialmente a respetiva posição contratual neste Contrato, sem prejuízo da possibilidade de o BBI poder ceder a sua posição contratual, ou qualquer crédito sobre o Comprador, à Oitante.”
Importa proceder ao enquadramento jurídico do caso, tendo presente que a competência constitui um pressuposto processual relativo ao Tribunal, a apreciar em função dos termos em que a ação foi posta e a determinar pela forma como o autor estrutura o pedido e a respetiva causa de pedir. Na sua falta, verifica-se a exceção dilatória insuprível da incompetência absoluta - cf. artigos 96.º, 97.º, 98.º, 99.º, 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, al. a), e 578.º do CPC. No que ora importa, estabelece o art. 96.º do CPC, na sua alínea b), que a preterição de tribunal arbitral determina a incompetência absoluta do tribunal.
Ante os factos alegados na Petição Inicial, em particular os acima enunciados, é fora de dúvida (nem as partes o questionam) que da cláusula 14.ª do Contrato de compra e venda de ações em apreço (doc. 2 junto com a PI) consta uma convenção de arbitragem, mais precisamente uma cláusula compromissória, de harmonia com preceituado no art. 1.º da Lei da Arbitragem Voluntária, publicada em Anexo à Lei n.º 63/2011, de 14-12 (lei cujo art. 5.º, n.º 1, revogou expressamente a anterior Lei n.º 31/86, de 29-08, à qual também é feita referência no despacho recorrido, em termos que atribuímos a mero lapso).
Estabelece esse artigo, sob a epígrafe “Convenção de arbitragem”, que: “1 - Desde que por lei especial não esteja submetido exclusivamente aos tribunais do Estado ou a arbitragem necessária, qualquer litígio respeitante a interesses de natureza patrimonial pode ser cometido pelas partes, mediante convenção de arbitragem, à decisão de árbitros. 2 - É também válida uma convenção de arbitragem relativa a litígios que não envolvam interesses de natureza patrimonial, desde que as partes possam celebrar transacção sobre o direito controvertido. 3 - A convenção de arbitragem pode ter por objecto um litígio actual, ainda que afecto a um tribunal do Estado (compromisso arbitral), ou litígios eventuais emergentes de determinada relação jurídica contratual ou extracontratual (cláusula compromissória). 4 - As partes podem acordar em submeter a arbitragem, para além das questões de natureza contenciosa em sentido estrito, quaisquer outras que requeiram a intervenção de um decisor imparcial, designadamente as relacionadas com a necessidade de precisar, completar e adaptar contratos de prestações duradouras a novas circunstâncias. 5 - O Estado e outras pessoas colectivas de direito público podem celebrar convenções de arbitragem, na medida em que para tanto estejam autorizados por lei ou se tais convenções tiverem por objecto litígios de direito privado.”
É sabido que a convenção de arbitragem está submetida às regras gerais de interpretação do negócio jurídico, valendo com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele; ademais, sendo um negócio formal, não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento (cf. artigos 236.º, 238.º do CC e art. 2.º, n.º 1, da LAV) – neste sentido, a título exemplificativo, veja-se o acórdão do STJ de 12-11-2019, proferido no proc. n.º 8927/18.7T8LSB-A.L1.S1 (disponível em www.dgsi.pt), bem como o sumário do acórdão do STJ de 14-04-2015, proferido na Revista n.º 194466/12.2YIPRT.L1.S1 (disponível em www.stj.pt) com o seguinte teor: “I - O tribunal arbitral voluntário assenta no acordo de vontades (a convenção de arbitragem) mediante o qual as partes decidem submeter a resolução de um litígio a uma estrutura de natureza privada a que a lei reconhece poderes jurisdicionais, o que tem como efeito negativo a exclusão do conhecimento desse diferendo pelos tribunais estaduais, correspondendo a preterição daquele tribunal a uma excepção dilatória. II - A convenção de arbitragem tem como elementos necessários a expressão da vontade das partes no sentido de que os litígios sejam resolvidos em sede arbitral e a identificação desses litígios, sendo pacífico que, na modalidade de cláusula compromissória – previsão inserida num contrato (designado como principal) mediante a qual se prevê que os litígios futuros dele emergentes sejam resolvidos em sede arbitral –, a mesma mantém autonomia relativamente ao contrato. (…) IV - A teoria da impressão do destinatário impõe a apreensão do sentido objectivo que resulta da declaração, independentemente do conhecimento da verdadeira intenção do declarante. Estando em causa uma declaração escrita, dever-se-á atender a todas as circunstâncias que rodearam a celebração do contrato, prevalecendo o sentido coincidente com a vontade real dos contraentes que tenha um mínimo de correspondência com o texto. Tratando-se de uma cláusula compromissória restritiva, justifica-se uma interpretação estritamente objectiva do seu texto.”
Na sua Contestação, a Ré veio alegar que “celebrou com a Autora, no dia 9 de junho de 2017, contrato de compra e venda de ações relativamente a 100% do capital social e direitos de voto da Banif Capital Sociedade de Capital de Risco, S.A.” (cf. art. 4.º da Contestação).
Porém, em bom rigor, é evidente que isso não sucedeu, tendo o contrato em apreço sido outorgado entre a Ré, como “Comprador”, e o Banif-Banco de Investimento, S.A., como “Vendedor”. A Autora não outorgou o contrato de compra e venda de ações, sendo sim a detentora de 100% do capital social do Banif-Banco de Investimento, S.A., o qual, por sua vez, era detentor de 100% do capital social do Banif-Gestão de Activos.
Foi essa circunstância que levou a Autora/Apelante a invocar o preceituado no art. 406.º do CC, nos termos do qual: “1. O contrato deve ser pontualmente cumprido, e só pode modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei. 2. Em relação a terceiros, o contrato só produz efeitos nos casos e termos especialmente previstos na lei.”
Importa, assim, dar resposta à questão de saber se a citada cláusula 14.ª é eficaz ou oponível relativamente à Autora, apesar de esta não ter outorgado o contrato de compra e venda de ações.
A doutrina e a jurisprudência têm considerado que a cláusula compromissória constante de um contrato vale entre os outorgantes que subscreveram o acordo, sendo, contudo, de admitir a sua aplicação quando um terceiro “sucede” na posição de uma partes, bem como a extensão da eficácia dessa cláusula a um terceiro, se os signatários o consentirem e o terceiro aderir (expressa ou tacitamente) à convenção arbitral. Neste sentido, a título exemplificativo, destacamos:
- o acórdão do STJ de 08-09-2011, no proc. n.º 3539/08.6TVLSB.L1.S1, em cujo sumário (disponível em www.stj.pt e também em www.dgsi.pt, embora nesta página o n.º do processo indicado seja 3539/08.6TVLSB.LL.S1) se refere designadamente que: “I - A convenção de arbitragem constante da cláusula dum contrato só vale, em princípio, entre os outorgantes. II - Sem prejuízo, no entanto, e de acordo com o regime geral dos contratos, de valer relativamente ao cessionário da posição contratual, ao cessionário de crédito ou ao aderente ao contrato.”
- o acórdão do STJ de 15-01-2019, no proc. n.º 28/14.3TBOHP.C1.S1 (disponível em www.dgsi.pt), conforme se alcança do respetivo sumário, com o seguinte teor: “O facto de uma das sociedades autoras, integrada no grupo societário da outra autora, e uma das sociedades rés, integrada igualmente no grupo societário da outra ré, não terem tido intervenção no acordo-quadro invocado pelas autoras para fundamentar os seus pedidos de condenação das rés – acordo-quadro esse do qual consta uma cláusula arbitral, não impede que tal cláusula arbitral seja extensível também a tais sociedades – por via da aceitação tácita, à luz das disposições conjugadas dos arts. 406.º, n.º 2 e 217.º, n.º 1, do CC.”
- o acórdão do STJ de 07-03-2019, no proc. n.º 13688/16.1TBPRT.P1.S1 (disponível em ww.dgsi.pt), em cujo sumário se refere designadamente que: “IV - A cessão da posição contratual tem como efeito principal típico a transferência da posição processual do cedente para o cessionário e por conteúdo a totalidade dessa posição, no seu conjunto de direitos e obrigações. V - A convenção de atribuição de jurisdição constante de um contrato, embora vincule, em princípio, os seus outorgantes, por efeito da cessão da posição contratual passa a vincular o cessionário.”
- o acórdão da Relação de Lisboa de 24-03-2015, no proc. n.º 7666/13.0TBOER.L1-1 (disponível em www.dgsi.pt), explicando-se no ponto 2 do respetivo sumário que “A adesão tácita (implied consent) deve emergir de factos que com toda a probabilidade a revelem (art. 217.º, n.º1, parte final do Cód. Civil); para esse efeito não basta que o terceiro tenha tido intervenção na fase das negociações e execução do contrato em que se insere a convenção arbitral, exigindo-se que, concretamente, se possa assentar que o terceiro tinha conhecimento da existência da convenção de arbitragem, estando consciente de que dessa forma seriam resolvidos os litígios emergentes do contrato, assim possibilitando inferência de adesão à cláusula arbitral.”
- o acórdão da Relação do Porto de 21-06-2022, no proc. n.º 1433/21.4T8MAI.P1 (disponível em www.dgsi.pt): “I – A convenção de arbitragem está sujeita às regras gerais de interpretação do negócio jurídico, nos termos dos arts. 236º e 238º do Cód. Civil e 2º, nº 1 da LAV, devendo relevar na sua interpretação o sentido que seria considerado por uma pessoa normalmente diligente, sagaz e experiente em face dos termos da declaração e de todas as circunstâncias situadas dentro do horizonte concreto do declaratário, isto é, em face daquilo que o concreto destinatário da declaração conhecia e daquilo até onde ele podia conhecer.II – A convenção de arbitragem constante de um contrato vale entre os outorgantes que subscreveram o contrato, sendo que, porém, nos casos de cessão da posição contratual, cessão do direito de crédito, assunção de dívida, sub-rogação, o terceiro, que não foi parte nesse contrato, fica também sujeito a tal convenção de arbitragem por efeito dessa cessão/transmissão, desde que esta não tenha sido celebrada intuitu personae.”
De salientar que, no citado acórdão da Relação de Lisboa, se refere precisamente que «(…) a doutrina e jurisprudência vêm unanimemente considerando que há situações em que é admissível estender a eficácia da convenção de arbitragem a alguém que não a subscreveu relevando, para o que ora nos interessa, a chamada adesão do terceiro à convenção” (“implied consente”), acrescentando-se, em nota de rodapé que nesta afirmação, «Abstraímo-nos daquelas hipóteses que não relevam para a nossa análise, mormente a que tem gerado acesa controvérsia e que se prende com o contexto relacionado com grupos de sociedades, em que várias sociedades ou empresas têm algum tipo de ligação ou interdependência entre si (“teoria do grupo”).» Mais se afirmando designadamente que (omitimos as notas de rodapé): «Ponto é que se verifique um concreto circunstancialismo que permita, sem margem para dúvidas, afirmar aquela adesão – e que as partes signatárias nisso consintam –, podendo essa manifestação de vontade ser expressa ou tácita. Sendo a declaração tácita, a mesma deve emergir de factos que com toda a probabilidade a revelem (art. 217.º, n.º1, parte final do Cód. Civil), considerando os autores que não basta, para esse efeito, que o terceiro tenha tido intervenção na fase das negociações e execução do contrato em que se insere a convenção arbitral, exigindo-se que, concretamente, se possa assentar que o terceiro tinha conhecimento da existência da convenção de arbitragem, estando consciente de que dessa forma seriam resolvidos os litígios emergentes do contrato –, assim possibilitando inferência de adesão à cláusula arbitral [ [14] ] [ [15] ]. Ou seja, a extensão subjectiva da eficácia da convenção de arbitragem por via de uma adesão tácita pressupõe uma ilacção segundo a concludência concreta do comportamento [ [16] ]. A esta consideração, cremos, não é inteiramente alheio “o específico modo de relacionamento que se estabelece entre a cláusula arbitral e o contrato principal em que se integra e entre ela e os vários direitos (nomeadamente, direitos de crédito) que desse contrato emergem”, e que os autores identificam pelo princípio da autonomia da cláusula arbitral [ [17] ]. O princípio foi expressamente acolhido no art. 21º, nº2 da Lei 31/86, de 29 de Agosto [ [18] ] e, actualmente, de forma mais expressiva, no art.18.º, nº2 da nova LAV, que, sob a epígrafe “[c]ompetência do tribunal arbitral para se pronunciar sobre a sua competência”, estipula: (…) Servindo a cláusula compromissória para “dar à relação contratual uma determinada configuração no plano dos seus eventuais desenvolvimentos contenciosos, isto é, na vertente do direito de acção que é inerente a todo o direito material” [ [19] ], compreende-se que a afirmação de adesão (tácita) de terceiro que não assinou o documento que titula o contrato em que foi inserida cláusula compromissória, tenha como pressuposto um comportamento concludente deste no sentido de que aceitou essa específica configuração do exercício (processual) de direitos, com reporte a essa específica cláusula e não, genericamente, ao contrato: o que se averigua é a adesão à convenção arbitral e não a adesão, globalmente considerada, ao contrato em que a mesma se insere.»
De referir ainda que o STJ, no citado acórdão de 08-09-2011, proferido no proc. n.º 3539/08.6TVLSB.L1.S1, se pronunciou sobre um caso em que a autora, Sociedade A (com sede em Portugal), na qualidade de agente, outorgou no ano de 2003 um contrato de agência com a 1.ª ré, Sociedade B (com sede na Dinamarca), esta última na qualidade de principal; tal contrato foi modificado no ano de 2004 e continha uma cláusula compromissória nos termos da qual todos os litígios emergentes de tal relação jurídica deveriam ser dirimidos através do recurso a arbitragem, localizada em Copenhaga, Dinamarca, submetida à Lei de Arbitragem da Dinamarca; entretanto, por carta, a Sociedade B havia instruído a Sociedade A para que todas as comissões resultantes do contrato de agência fossem “faturadas” à Sociedade C (2.ª ré e subsidiária Portuguesa da Sociedade B), mais informando que seria esta Sociedade C quem passaria a pagar tais comissões à autora (Sociedade A); durante um determinado período de tempo, tais comissões foram efetivamente “faturadas” à Sociedade C e esta última pagou tais comissões à Sociedade A, agente naquela relação contratual; no ano de 2006, a Sociedade B declarou à Sociedade C a cessação do contrato de agência; a Sociedade A instaurou então ação judicial contra a Sociedade B, contra a Sociedade C e também contra a Sociedade D (neste último caso apenas para prevenir a improcedência do pedido contra a Sociedade B com fundamento na possível inexistência jurídica desta última sociedade), visando o recebimento de comissões e da indemnização de clientela. O tribunal de 1.ª instância julgou procedente a aludida exceção; a Relação de Lisboa manteve a decisão de primeira instância em relação às Sociedades B e D, mas anulou-a no que toca à Sociedade C; esta última recorreu então para o Supremo Tribunal de Justiça, que manteve a decisão recorrida, referindo-se no respetivo sumário, além da passagem acima citada, que: “III. Não alcança qualquer destas figuras (cessionário da posição contratual, cessionário de crédito ou aderente ao contrato) a comunicação duma das outorgantes à outra de que a facturação devia passar a ser feita a terceira.IV. A comunicação para início da arbitragem e constituição do tribunal arbitral feita por uma das outorgantes do contrato às outras e, bem assim, à esta terceira, não encerra reconhecimento relevante de que a convenção arbitral valha relativamente a esta.”
Ora, este acórdão foi objeto de comentário por parte de Duarte Gorjão Henriques, em artigo intitulado “A extensão da convenção de arbitragem no quadro dos grupos de empresas e da assunção de dívidas: um vislumbre de conectividade?”, publicado na ROA, disponível em https://portal.oa.pt/upl/%7B069d2092-6da0-4e0c-96cc-de54850203cb%7D.pdf. Nesse artigo o autor conclui que os tribunais superiores adotaram uma visão restritiva da regra imperativa constante do Art. II da Convenção de Nova Iorque de 1958 e desconsideraram o que pode ser entendido como um vislumbre da conectividade entre a convenção de arbitragem, o litígio, a operação económica no seu todo e as partes envolvidas, bem como que esse vislumbre poderia ser não só o elo necessário, mas também o suficiente para remeter as partes para a arbitragem, decidindo pela existência e validade “prima facie” da convenção de arbitragem e, consequentemente, para vincular todas as partes aos termos da mesma (exceto a Sociedade D que, manifestamente, nada teve a ver com a situação litigiosa), remetendo-as para a arbitragem. Lembra ainda o referido autor que:
«Os tribunais estaduais, os tribunais arbitrais e a doutrina têm recorrido a uma série de doutrinas ou de expedientes jurídicos para permitir a extensão das convenções de arbitragem a terceiras entidades não signatárias das mesmas. Tem sido comum abordar este tema — sempre, naturalmente, em função das particularidades de cada caso — ao abrigo das teorias da agência, “abuso de direito”, terceiros beneficiários, garantes, cessão de posição contratual, assunção, fusão, sucessão legal, entre outras. Entre essas, interessa-nos agora as teorias dos “grupos de empresas” e do levantamento da personalidade jurídica. (…) A teoria do “grupo de empresas” tem sido analisada em estreita ligação com a teoria do “levantamento da personalidade jurídica” (ou doutrina do “alter ego”, tal como tem sido indiferentemente tratada na literatura e jurisprudência estrangeiras). O ponto de que comungam é o seguinte: num certo nível de análise da convenção arbitral envolvida no litígio que surge entre duas ou mais partes, uma destas conclui pela falta de efeito contratual relativo dessa cláusula mas ainda assim pretende que tal cláusula vincule a parte (ou partes) que não a assinaram. (…) a distinção entre estas duas teorias não é muito clara e a linha que as divide também não está muito bem definida. Em qualquer caso, poder-se-á dizer que no caso da teoria do “grupo de empresas” a terceira entidade não está oculta, estando antes visível e envolvida numa ou várias fases do contrato (negociação, assinatura, execução e até cessação do contrato). Em regra, trata-se de uma entidade que pretende tornar-se visível no seio de uma relação jurídica que entra em litígio e por isso invoca a qualidade de parte nessa relação. Na verdade, esta teoria tem sido utilizada para permitir que uma empresa possa invocar uma cláusula compromissória inserida num contrato entre um terceiro e uma sociedade que aquela primeira controla ou que é controlada por esta. (…) Os nossos tribunais e a nossa doutrina, de uma forma genérica, não têm um entendimento diferente sobre esta questão. No contexto da teoria do “grupo de empresas”, Manuel Pereira Barrocas não rejeita a extensão da convenção de arbitragem desde que a parte não signatária tenha de algum modo aderido à mesma (39MANUEL PEREIRA BARROCAS, p. 211, Manual da Arbitragem, Almedina, 2.ª ed., 2013.). Alinhados com o entendimento das decisões aqui analisadas estão Jorge Morais Carvalho e Mariana França Gouveia para quem a mera existência de um “grupo de empresas” não é suficiente para estender uma convenção de arbitragem (40JORGE MORAIS CARVALHO e MARIANA FRANÇA GouveiA, Arbitragens Complexas: Questões materiais e Processuais, p. 132, Revista Internacional de Arbitragem e Conciliação, Almedina, 2011). José Lebre de Freitas segue este entendimento, fazendo notar que pertencer a um grupo de empresas não é suficiente, sendo necessário que a empresa não signatária tenha por alguma forma intervindo na negociação e execução do contrato que contém a convenção de arbitragem e que as partes devem de alguma forma ter manifestado o seu consentimento para arbitrar (41José LEBRE DE FREITAS, intervenção de Terceiros em Processo Arbitral, “III Congresso do Centro de Arbitragem da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa”, p. 195, Almedina, 2010. Cf. também MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, A intervenção de Terceiros em Processo Arbitral, Revista Internacional de Arbitragem e Conciliação, p. 163, Almedina, 2012.). Também Carla Gonçalves Borges e Ricardo Neto Galvão aderem a este entendimento, fazendo notar que o consentimento também pode nascer de forma tácita (42CARLA GONÇALVES BORGES E RICARDO NETO GALVÃO, A Extensão da Convenção de Arbitragem a Não Signatários, “VI Congresso do Centro de Arbitragem da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa”, p. 131, Almedina, 2013.). 21. Por contraponto, a perspectiva subjacente à teoria do “alter ego” ou da “desconsideração da personalidade jurídica” é a daquela parte que pretende recusar a extensão da convenção de arbitragem (43Para um tratamento mais aprofundado, cf. ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Responsabilidade por informações dadas em juízo, Revista da Ordem dos Advogados, n.º 64, Nov. 2004, I/II e O levantamento da personalidade colectiva no direito civil e comercial, Almedina, 2000.). Neste caso, é a parte oculta e resguardada pelo princípio da separação de personalidades jurídicas dos entes colectivos (com intenção próxima da fraude) (44) que é perseguida pela parte contrária. Nestes casos, não é suficiente a existência de uma relação de domínio ou a integração no mesmo grupo de empresas mas é antes requerida uma intenção quase fraudulenta. (…) há que reconhecer que o recurso à teoria do “grupo de empresas” é por definição excepcional e que, apesar da existência do regime legal aplicável à responsabilidade da sociedade dominante em relação à sociedade totalmente dominada, tem também ele de ser interpretado de uma forma restritiva. Existe um princípio quase universal de separação de personalidades jurídicas que não pode deixar de ter intervenção nos grupos de empresas. (…) Neste aspecto, parece que o Supremo Tribunal de Justiça adoptou uma visão formalística dos princípios da liberdade contratual e do princípio da relatividade dos contratos, escorando-se no n.º 2 do art. 406.º do Código Civil (que, pode-se dizer de uma forma grosseira, dispõe que os contratos são “res inter alia acta”), assim concluindo que não existiu consentimento da terceira parte para se vincular à convenção de arbitragem. Certamente que deve existir consentimento para arbitrar e que este consentimento deve resultar dos factos concretos do caso. E assim sendo, estaríamos tentados a aderir mais uma vez à opinião de Bernard Hanotiou: “qualquer referência a uma teoria de grupo de empresas deveria desaparecer de uma vez por todas do nosso vocabulário uma vez que podemos alcançar o mesmo objectivo com a clássica teoria do consentimento (tácito) das partes” (46/ 47). Mas a questão que mais uma vez se levanta é, considerando a existência de um grupo de empresas, deveremos baixar o nível de exigência de verificação dos requisitos do “mútuo consentimento” ou deve esse “mútuo consentimento” ser interpretado, ou melhor, detectado, de acordo com requisitos estritos e formalistas? (…) À luz do ordenamento jurídico Português, o consentimento é sempre requerido, como se anotou. E este consentimento pode ser implícito ou explícito. No primeiro caso e em relação à arbitragem, dado que a convenção de arbitragem deve ser reduzida a escrito, ainda assim podemos detectar um consentimento tácito válido desde que o mesmo resulte de factos conclusivos que tenham sido reduzidos a escrito (50 DÁRIO MOURA VICENTE, A manifestação do consentimento na convenção de arbitragem, p. 993, Revista da Faculdade de Direito da universidade de Lisboa, Coimbra Editora, 2002.).»
Procurando transpor estas considerações para o caso dos autos, importa clarificar a posição da Autora, lembrando que esta, na sua Petição Inicial, considerou resultar do contrato de compra e venda de ações a obrigação de a Ré efetuar uma prestação a favor de terceiro / a própria Autora, nos termos e para efeito do disposto no art. 443.º, n.º 1, do CC; porém, na sua alegação recursória, invocou o disposto no art. 770.º, al. a), do CC, alegando que se verificou uma mera delegação do pagamento (eficaz e válido) a uma “não parte” do contrato, um “verdadeiro terceiro”, com legitimidade para exigir judicialmente o pagamento, argumentando não poder valer-se a Ré da doutrina da extensão subjetiva da convenção de arbitragem a não subscritores, por não estar verificada nenhuma das situações em que pode operar, mormente a existência de grupos de sociedades ou a desconsideração da pessoa coletiva.
Concordamos que a situação dos autos é distinta da que ocorre perante um “normal grupo de empresas/sociedades” e que não tem cabimento invocar aqui a figura da desconsideração da pessoa coletiva, mas já não nos parece que a posição da Autora seja a de um “verdadeiro terceiro” ou que, a ser considerada como tal, não deva ter lugar a extensão subjetiva da convenção de arbitragem em apreço à mesma.
Tão pouco nos parece que a cláusula 3.1.2 se trate de estipulação ou consentimento nos termos previstos no art. 770.º, al. a), do CC, como a Autora agora defende, na sua alegação de recurso, numa linha de argumentação contrária a que sufragou na Petição Inicial. Com efeito, estabelece esse preceito que a prestação feita a terceiro não extingue a obrigação, exceto se assim foi estipulado ou consentido pelo credor. Mas a posição assumida pela Autora de modo algum parece ser a do terceiro contemplado em tal normativo legal, como se alcança das palavras de Pires de Lima e Antunes Varela, no seu “Código Civil Anotado”, Vol. II, 3.ª ed., Coimbra Editora, pág. 16, explicando, em anotação ao art. 770.º do CC, que: “A estipulação ou consentimento do credor, previstos na alínea a), não importam necessariamente a representação, caso em que se repetiria, afinal, a doutrina do artigo anterior. Pode tratar-se do consentimento para um terceiro receber a prestação em nome próprio, por delegação do credor. Encarrega-se, por ex., um banco de, por conta dum depósito, entregar certa mensalidade a um terceiro. Também é lícito convencionar-se que o devedor possa pagar a um terceiro, sem que se atribua a este o direito exigir a prestação: o pagamento a terceiro constituirá, quando assim seja, uma faculdade do devedor, mas não um direito do terceiro. O terceiro será, nesse caso, em boa linguagem romanista, um solutionis causa odiectus, mas não um adstipulador. Todos estes casos e outros semelhantes estão previstos na alínea a) do artigo 770.º”.
Mais apropriado, a nosso ver, será reconduzir o clausulado em apreço, atinente ao pagamento do preço devido pela compra e venda das ações, à figura do contrato a favor de terceiro previsto no art. 443.º do CC, nos termos do qual: “1. Por meio de contrato, pode uma das partes assumir perante outra, que tenha na promessa um interesse digno de protecção legal, a obrigação de efectuar uma prestação a favor de terceiro, estranho ao negócio; diz-se promitente a parte que assume a obrigação e promissário o contraente a quem a promessa é feita. 2. Por contrato a favor de terceiro, têm as partes ainda a possibilidade de remitir dívidas ou ceder créditos, e bem assim de constituir, modificar, transmitir ou extinguir direitos reais.”
De novo nos socorremos das palavras de Pires de Lima e Antunes Varela, na obra citada, vol. I, 4.ª ed., pág. 424: “Essencial ao contrato a favor de terceiro, como figura jurídica autónoma, é que os contraentes (promitente e promissário) ajam com a intenção de atribuir, através dele, um direito (de crédito ou real) a terceiro (beneficiário) ou que dele resulte, pelo menos, uma atribuição patrimonial imediata para o beneficiário. (…) E não há igualmente contrato a favor de terceiro quando o credor se limita a autorizar que a prestação seja entregue a terceiro (solutionis causa adjectus), que fica encarregado de recebê-la (cfr. art. 770.º, al. a)), ou se reserva o direito de exigir que a prestação seja efectuada a terceiro. Nestes casos, não há a intenção de atribuir ao terceiro nenhum direito à prestação, ao contrário do que sucede no verdadeiro contrato a favor de terceiro. (…) Enquanto que o n.º 1 se refere à constituição de um direito de crédito em favor de terceiro, o n.º 2 permite, igualmente, a remissão de dívidas (por acordo entre A e B, considera-se remetida uma dívida de C para B), a cessão de créditos (A e B convencionam ceder a C um crédito do primeiro sobre o segundo ou de B sobre D), bem como a constituição, modificação, transmissão ou extinção de direitos reais (…) O artigo 443.º trata não só dos casos em que todo o contrato é estabelecido a favor de terceiro, como daqueles em que o contrato ou o negócio a favor de terceiro se insere no contexto de um outro contrato, ao lado dele, sem prejuízo de um e outro se integrarem unitariamente na mesma relação contratual”.
Nesta linha de pensamento, afigura-se-nos que, no contrato de compra e venda de ações em apreço nos autos, o BBI/Vendedor, celebrou com a Ré/Compradora um contrato a favor de terceiro/a Autora, à qual cedeu, com a concordância desta - como evidenciado pela propositura da presente ação e, desde logo, pelas cartas que juntou com a Petição Inicial como docs. 5 e 6 - parte do seu crédito atinente ao preço, mais precisamente a componente variável do mesmo (a calcular após a aprazada liquidação do Fundo BGPE), o que se reconduz à previsão do art. 577.º, n.º 1, do CC: “1. O credor pode ceder a terceiro uma parte ou a totalidade do crédito, independentemente do consentimento do devedor, contanto que a cessão não seja interdita por determinação da lei ou convenção das partes e o crédito não esteja, pela própria natureza da prestação, ligado à pessoa do credor.”
A situação aproxima-se de um dos exemplos referidos na anotação ao art. 577.º constante do “Código Civil Anotado” de Pires de Lima e Antunes Varela (págs. 593-594 do Vol. I), quando referem que “A cessão de crédito pode ocorrer em situações e para fins muito diversos. Vejamos alguns exemplos. (…) E vende uma quinta a F, por 3 000 contos. Como vendeu em muito boas condições, graças ao intermediário G, resolver doar a este uma parte (500 contos) do seu crédito sobre o comprador. (…) Em todos estes casos, na base de finalidades muito distintas, há um fenómeno comum: a transmissão do direito de crédito, no todo ou em parte, feita pelo credor a um terceiro. A cessão de créditos é, assim, um negócio de causa variável ou policausal, podendo ter por base uma venda, uma doação, uma dação em cumprimento, uma dação pro solvendo, um negócio de garantia em benefício doutro crédito, etc. (…)”.
Com efeito, a Autora é uma sociedade “veículo”, cujo objeto é, precisamente, aadministração dos direitos e obrigações que constituam ativos do Banif-Banco Internacional do Funchal, S.A., que lhe forem transmitidos em cada momento, por decisão do Banco de Portugal, tendo em vista as finalidades enunciadas no art. 145.º-C do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31-12 (com sucessivas alterações), ou seja: a) Assegurar a continuidade da prestação dos serviços financeiros essenciais para a economia; b) Prevenir a ocorrência de consequências graves para a estabilidade financeira, nomeadamente prevenindo o contágio entre entidades, incluindo às infraestruturas de mercado, e mantendo a disciplina no mercado; c) Salvaguardar os interesses dos contribuintes e do erário público, minimizando o recurso a apoio financeiro público extraordinário; d) Proteger os depositantes cujos depósitos sejam garantidos pelo Fundo de Garantia de Depósitos e os investidores cujos créditos sejam cobertos pelo Sistema de Indemnização aos Investidores; e) Proteger os fundos e os ativos detidos pelas instituições de crédito em nome e por conta dos seus clientes e a prestação dos serviços de investimento relacionados.
Sendo a Autora, à data da celebração do contrato, a detentora de 100% do capital social da sociedade Vendedora, a Banif-Banco de Investimento, S.A., e estando incumbida da administração desse “ativo” do Banif-Banco Internacional do Funchal, S.A., parece-nos inevitável concluir que, não obstante a Autora não tenha formalmente outorgado o contrato de compra e venda de ações, se retira dos factos descritos a sua adesão, de forma tácita ou concludente, à referida cláusula compromissória, tendo dado a sua concordância a todo o conteúdo do aludido contrato, para isso apontando também a circunstância de figurar no mesmo como entidade à qual deveria ser, por indicação do BBI/Vendedor, paga a parte variável do preço (e à qual poderia o BBI ceder a sua posição contratual ou qualquer crédito sobre a Ré/Compradora, incluindo, pois, o atinente à parte fixa do preço).
Ou seja, no caso concreto, o BBI/Vendedor logo cedeu à Autora o seu crédito atinente à parte variável do preço, obrigando-se a Ré/Compradora a pagar a componente variável do preço à Autora, nos exatos termos em que seria paga ao BBI (no caso de este lhe comunicar instruções nesse sentido), tudo seguramente com a concordância das partes contratantes e da Autora.
Neste contexto, a cláusula compromissória surge como um elemento acessório do crédito cedido, pelo que rege ainda o disposto no art. 582.º, n.º 1, do CC, nos termos do qual: “1. Na falta de convenção em contrário, a cessão do crédito importa a transmissão, para o cessionário, das garantias e outros acessórios do direito transmitido, que não sejam inseparáveis da pessoa do cedente.”
Esta problemática é abordada na pág. 48 da dissertação de Mestrado de Neuza Patrícia Alves Moreira, intitulada “Extensão da convenção de arbitragem a terceiros não signatários. análise de questões conexas e de jurisprudência relevante”, disponível em https://estudogeral.uc.pt/bitstream/10316/84253/1/Tese%20Neuza.pdf, citando as posições favoráveis à extensão da convenção de arbitragem ao terceiro cessionário de António Pereira Barrocas e Mariana França Gouveia e lembrando que «poderão ser confrontadas com perspetivas de (im)pessoalidade da convenção de arbitragem. Jorge Morais de Carvalho defende precisamente a este respeito que a admissão da extensão da convenção de arbitragem ao cessionário, não se verifica se da interpretação concreta resultar que esta é inseparável da pessoa do cedente, ou seja, foi celebrada com um intuiti personae. Em sentido oposto, Raúl ventura aponta para a impessoalidade da convenção de arbitragem. Segundo o mesmo autor, o artigo 4.º, n.º 2 da LAV deve ser vislumbrado tendo em consideração que “(...) aflora nele um princípio de impessoalidade da convenção de arbitragem; se esta, em regra, não caduca por morte ou extinção de uma parte, não é celebrada intuitu personae”. Apesar das diferentes perspetivas, parece-nos que deveremos entender que em regra, o cessionário pode invocar a convenção de arbitragem constante do contrato anterior. Só assim não será, se tal como pode ocorrer na cessão da posição contratual, existir previamente convenção em contrário ou se através de uma interpretação concreta concluirmos que a cláusula não é separável da pessoa do cedente.»
No caso dos autos, inexiste uma tal convenção em contrário e não vemos motivo para considerar a cláusula compromissória inseparável do cedente/Vendedor. Face aos termos do contrato (e à invocação pela Ré da exceção em apreço), parece-nos que a vontade de ambas as partes signatárias do contrato foi no sentido da extensão subjetiva da convenção arbitral à Autora, sociedade expressamente mencionada nas cláusulas cláusula 3.1.2 e 15.1, apontando nesse sentido a redação abrangente da cláusula 14.2: “Todos os litígios emergentes deste contrato (incluindo litígios relativos à existência, validade ou cessação do mesmo), ou com ele relacionados, incluindo litígios relativos a obrigações não contratuais decorrentes ou conexas com o contrato, serão definitivamente resolvidos de acordo com o Regulamento de Arbitragem do centro de arbitragem da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa (Centro de Arbitragem Comercial), por três árbitros nomeados nos termos do Regulamento (…).”
Em suma, a convenção de arbitragem em apreço constitui um elemento acessório do crédito atinente à componente variável do preço, que se transmitiu, para a Autora, cessionária, a qual, pretendendo exigir o cumprimento da respetiva obrigação contratual assumida pela Ré/Compradora, deverá proceder em conformidade com o previsto na cláusula 14.ª, não se descortinando nenhuma razão séria para que um tal elemento não seja de considerar abrangido pela cessão de crédito que ocorreu, com a concordância das partes contratantes e da Autora, beneficiária, nos termos acima referidos.
A única dificuldade que identificamos consubstancia um problema de “exequibilidade” da cláusula (mas não de eficácia), considerando a redação dada à cláusula 14.ª em apreço. Efetivamente, no contrato em apreço, celebrado a 9 de junho de 2017 entre o Banif-Banco de Investimento, S.A., como Vendedor, e a Ré, Fund Box Holding, S.A., como Compradora, ficou estipulado que «O Vendedor e o Comprador de ora em diante conjuntamente designados por “Partes” e Individualmente por “Parte”», constando na cláusula 14. que: “(…) 14.2 Todos os litígios emergentes deste contrato (incluindo litígios relativos à existência, validade ou cessação do mesmo), ou com ele relacionados, incluindo litígios relativos a obrigações não contratuais decorrentes ou conexas com o contrato, serão definitivamente resolvidos de acordo com o Regulamento de Arbitragem do centro de arbitragem da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa (Centro de Arbitragem Comercial), por três árbitros nomeados nos termos do Regulamento, sendo um árbitro nomeado pelo Comprador, outro árbitro pelo Vendedor e designando os árbitros nomeados o respectivo presidente, sem que haja recurso da respectiva decisão. 14.3 No decurso da arbitragem as Partes permanecerão obrigadas ao cumprimento das obrigações assumidas nos termos do presente Contrato, ficando claro que a cessação do presente Contrato não determina a cessação do compromisso arbitral ou da arbitragem que esteja eventualmente em curso. 14.4 Cada Parte pagará os honorários e custos dos seus consultores. O custo de qualquer arbitragem será imputado à Parte perdedora, relativamente a qualquer Reclamação disputada e à qual não tenha sido dada razão à Parte, e os árbitros efectuarão a alocação de custos como parte das demais regras por eles emitidas.”
Esta cláusula, nos termos em que foi prevista, suscita um desafio interpretativo e de integração para que possa ser aplicada a uma sociedade que não é “Parte” no contrato. Aliás, a própria sociedade BBI que figura no contrato de compra e venda de ações como Parte/Vendedor já nem sequer existirá, tendo a Autora alegado que o BBI foi vendido à sociedade chinesa Bison Capital (a qual, a 12 de fevereiro de 2019, instruiu a Ré de que, nos termos contratualizados, a componente variável do preço deveria ser paga à Autora no momento em que esta fosse devida).
No entanto, tais circunstâncias não tornam inaplicável a cláusula compromissória em apreço à resolução de todos os litígios emergentes do contrato, incluindo no caso de as obrigações resultantes do mesmo deverem ser cumpridas perante outra sociedade, nos termos expressamente previstos no contrato.
Com efeito, sendo a Autora uma sociedade expressamente referida no contrato, em particular, na cláusula 3.1.2, cujo cumprimento a Autora pretende exigir da Ré/Compradora, estando previsto que o pagamento da Componente Variável do Preço deveria ser efetuado “nos exatos termos em que esta seria paga ao BBI”, será de equiparar a Autora àquele Vendedor. Assim, e tendo presente o disposto nos artigos 8.º a 11.º da LAV e nos artigos 6.º a 8.º do referido Regulamento de Arbitragem, estamos em crer que se mostrará viável a constituição do tribunal arbitral, por três árbitros nomeados nos termos do Regulamento de Arbitragem do centro de arbitragem da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa (Centro de Arbitragem Comercial), sendo um árbitro nomeado por uma das partes em litígio (Comprador/Devedor/Demandante/Requerente), outro árbitro pela outra parte em litígio (Vendedor/Credor/Demandado/Requerido) e designando os árbitros nomeados o respetivo presidente.
Para terminar, parece-nos importante lembrar, tal como fez o Tribunal a quo, que, segundo o disposto no art. 18.º, n.º 1, da LAV (à semelhança do que estabelecia o art. 21.º, n.º 1, da anterior LAV), incumbe ao tribunal arbitral pronunciar-se sobre a sua própria competência, apreciando para tal os pressupostos que a condicionam (validade, eficácia e aplicabilidade ao litígio da convenção de arbitragem), o que tem levado a jurisprudência a afirmar que os tribunais judiciais só devem julgar improcedente a exceção dilatória de incompetência absoluta por preterição de tribunal arbitral, determinando o prosseguimento do processo perante a jurisdição estadual, quando seja manifesto e incontroverso que a convenção/cláusula compromissória invocada é inválida, ineficaz ou inexequível ou que o litígio, de forma ostensiva, se não situa no respetivo âmbito de aplicação; dito de outro modo, ao tribunal estadual apenas compete, em circunstâncias como as suprarreferidas e em sede de recurso, verificar se é manifesta e insuscetível de controvérsia séria a não aplicabilidade da convenção de arbitragem à relação contratual litigiosa, devendo, mesmo em caso de dúvida fundada sobre o âmbito da convenção de arbitragem, remeter as partes para o tribunal arbitral ao qual foi atribuída competência para solucionar o litígio; neste sentido, a título exemplificativo, destacamos os acórdãos do STJ de 09-07-2015, no proc. n.º 1770/13.1TVLSB.L1.S1, 20-03-2018, no proc. n.º 1149/14.8T8LRS.L1.S1, e 12-11-2019, no proc. n.º 8927/18.7T8LSB-A.L1.S1, e da Relação do Porto de 21-06-2022, no proc. n.º 1433/21.4T8MAI.P1 (todos disponíveis em www.dgsi.pt), referindo-se no primeiro, a propósito de contrato celebrado ainda na vigência da anterior LAV, conforme consta do respetivo sumário, que “Basta uma plausibilidade de vinculação das partes à convenção de arbitragem para que, sem mais, cumpra devolver ao tribunal arbitral voluntário a apreciação da sua própria competência, nos termos do art. 21º, nº1, da LAV, só podendo o tribunal judicial deixar de proferir a absolvição da instância se for manifesta, clara, patente a invalidade ou a inexequibilidade da cláusula”.
Pelas razões acima expostas, propendemos a considerar aplicável a cláusula compromissória à resolução do litígio que opõe as partes, não nos parecendo que entendimento contrário (ou seja, da inaplicabilidade dessa cláusula) possa ser sustentado como incontroverso ou manifesto. Daí que se mostre acertada a decisão recorrida, que julgou verificada a exceção dilatória de incompetência absoluta, por preterição de tribunal arbitral, nos termos conjugados dos artigos 96.º, al. b), e 576.º, n.ºs 1 e 2, e 577.º, al. a), do CPC [a qual não obsta a que o tribunal arbitral possa vir a ter entendimento diverso; somente nessa eventualidade, atento o caso julgado meramente formal da decisão de absolvição da Ré da instância (cf. art. 620.º do CPC), se abrirá às partes a possibilidade de recurso aos tribunais judiciais para a resolução do litígio].
Por tudo isto, consideramos que improcedem as conclusões da alegação de recurso, ao qual será negado provimento.
Vencida a Autora/Apelante, é a responsável pelo pagamento das custas processuais (artigos 527.º e 529.º, ambos do CPC).
***
III - DECISÃO
Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso, mantendo-se, em consequência, a decisão recorrida.
Mais se decide condenar a Autora/Apelante no pagamento das custas do recurso.
D.N.
Lisboa, 22-05-2025
Laurinda Gemas
João Paulo Raposo
Inês Moura