I – A declaração de resolução de um contrato que seja ilegal e infundada valerá como recusa de cumprimento da prestação e incumprimento definitivo se e na medida em que ela evidencie, de forma clara, séria, categórica, inequívoca e definitiva o propósito do declarante de não cumprir a sua obrigação, porque não quer ou porque não pode.
II – Ressalvando os casos de essencialidade do prazo estabelecido, o atraso no cumprimento da obrigação (ainda possível) configura apenas uma situação de mora que não confere ao credor (pelo menos de imediato e sem que a mora assim constituída, seja convertida em incumprimento definitivo por via dos mecanismos previstos no citado art.º 808.º) o direito de recusar a prestação em momento posterior e o direito de resolver o contrato e de se desvincular das obrigações que também tenha assumido.
III – Nessas circunstâncias, o promitente comprador que, ainda antes da data estabelecida para a celebração negócio prometido e sem que existisse ainda qualquer incumprimento ou recusa de cumprimento por parte do promitente vendedor – e apenas porque se perspectivava que o promitente vendedor não estava em condições de cumprir a prestação na data aprazada –, declara resolver o contrato, afirmando a sua indisponibilidade para prorrogar o prazo estabelecido (e, portanto, para celebrar o negócio prometido após o termo desse prazo), está a declarar, de forma expressa, clara, séria, categórica, inequívoca e definitiva, que não irá cumprir a sua obrigação, circunstância que traduz uma recusa antecipada ao cumprimento do contrato que equivale ao seu incumprimento definitivo.
IV – A redução da cláusula penal – nos termos previstos no art.º 812.º do CC – pode ser determinada oficiosamente pelo tribunal se e na medida em que o seu valor, nas concretas circunstâncias do caso, se evidencie como manifestamente excessivo e clamorosamente ofensivo da boa fé e dos bons costumes, em termos que permitam concluir pela existência de abuso de direito (cfr. art.º 334.º do CC).
V – Considera-se abusivo – e, por isso, ilegítimo – o direito de reclamar a totalidade de uma cláusula penal quando o seu valor substancialmente elevado (cerca de 200.000,00€) provem apenas de um atraso anormal (mais de três anos) no cumprimento da obrigação de entrega de determinados imóveis e quando o credor compactuou com esse atraso, permitindo e viabilizando, durante todo esse período, conversações e negociações tendo em vista a definição extrajudicial dos direitos emergentes da cessação do contrato promessa que tinha por objecto esses imóveis, sem que, durante todo esse período, tivesse tomado providências ou sequer intimado expressamente os devedores para a entrega dos imóveis, justificando-se, por isso, a redução oficiosa e equitativa da cláusula penal ao valor que, com ponderação dessa e das demais circunstâncias do caso, se evidencie como mais justo e equilibrado.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
I.
AA e mulher BB, residentes na Quinta ..., ..., instauraram a presente acção, com processo comum, contra CC, residente em ..., ... ..., Holanda e contra DD, residente em ..., ... ..., Holanda, pedindo:
a) Que se declare resolvido o contrato promessa de compra e venda celebrado entre os AA. e os RR. em 31/01/2014 e que teve por objecto o prédio misto e o prédio rústico identificados na petição;
b) Que os Réus sejam condenados a restituir aos AA. a quantia recebida a título de sinal, em dobro, no valor de 110,000.00€, acrescida de juros legais desde a data da citação até efectivo pagamento;
c) Que os Réus sejam condenados a restituir aos AA. as quantias pagas a título de caução e reforço do sinal, igualmente em dobro, no valor global de 78.000,00€, acrescida de juros legais desde a data da citação até efectivo pagamento.
Em fundamento dessas pretensões, alegam, em resumo:
- Que, por força do referido contrato, prometeram comprar – e os Réus prometeram vender – os prédios identificados, livres de quaisquer ónus e encargos, pelo preço global de 586.000,00€, tendo entregado aos Réus, a título de sinal e em diversas parcelas, o valor global de 94.000,00€;
- Que, nos termos convencionados, a escritura de compra e venda devia ser realizada em Janeiro de 2016, podendo ser marcada por qualquer um dos outorgantes mediante notificação aos outros com a antecedência de 15 dias;
- Que os prédios em causa foram entregues aos Autores na data de celebração do contrato promessa (tendo existido traditio), sendo certo que, quando se instalaram na propriedade, constataram a existência de diversos problemas e constataram que ela não tinha as características e áreas que haviam sido garantidas pelos Réus e que eram, para si, determinantes (existia uma hipoteca, os proprietários de um prédio confinante reclamavam uma área do prédio e a existência de serventias de passagem, existindo ainda outros confinantes que utilizavam uma outra servidão de passagem sobre o prédio que haviam prometido comprar);
- Que, não obstante as comunicações e os esclarecimentos pedidos aos Réus, as dúvidas dos Autores em relação àquelas circunstâncias mantiveram-se, razão pela qual propuseram aos Réus duas soluções: a rescisão do contrato ou a renegociação do preço da quinta;
- Que, dada a falta de resposta dos Réus, enviaram-lhe comunicação, em 22/01/2016, onde invocaram o incumprimento destes por falta de esclarecimentos das aludidas questões;
- Que, apesar disso e porque ainda mantinham interesse no negócio (com renegociação do preço), enviaram nova comunicação aos Réus reiterando a solução que haviam apresentado anteriormente;
- Que, entretanto – em 04/02/2016 –, os Réus comunicaram que a resolução efectuada pelos Autores era infundada e ineficaz e que, por evidenciar a vontade inequívoca de não celebrar o contrato prometido, correspondia a incumprimento definitivo, razão pela qual faziam seu o sinal e concediam o prazo de cinco para desocupação dos prédios;
- Que, apesar disso, Autores e Réus mantiveram negociações ao longo do ano de 2016 e até 2019, sem que os Réus tivessem esclarecido as questões referidas e sem que tivessem apresentado solução que passaria pelo ajuste do preço;
- Que, por essas razões, os Autores perderam definitivamente interesse no negócio, tendo deixado a quinta em Agosto de 2019.
- Que, em razão desses factos, ocorreu incumprimento definitivo do contrato por culpa exclusiva dos Réus, razão pela qual o contrato deve ser resolvido, com restituição aos Autores da quantia total de 188.000,00€, correspondente ao dobro das quantias que pagou a título de sinal (55.000,00€), reforço de sinal (36.000,00€) e caução (3.000,00€).
A Ré Gezina Riki apresentou contestação, sustentando que foram os Autores que incorreram em incumprimento definitivo do contrato e alegando, em resumo:
- Que os problemas suscitados pelos Autores – com o aproximar da data agendada para a escritura – correspondiam apenas a pretextos usados com o objectivo de conseguirem adquirir a quinta dos Réus por um preço muito inferior;
- Que os Autores sempre souberam da hipoteca e sabiam que, como é habitual, ela seria cancelada no momento da celebração da escritura de compra e venda;
- Que os Réus não tinham conhecimento que os vizinhos confinantes reclamassem qualquer área do prédio e estão convencidos que toda a área pertence ao seu prédio (tendo prestado esse esclarecimento aos Autores), área essa que, além do mais, é uma pequena área rochosa sem qualquer utilidade;
- Que também nunca tiveram conhecimento de qualquer servidão de passagem e disso também informaram os Autores;
- Que, apesar de os Réus terem prestado esses esclarecimentos, os Autores usavam essas circunstâncias para exigir, de forma irrazoável, uma redução do preço em quase metade do seu valor;
- Que, apesar de posteriormente terem continuado a pressionar os Réus para uma redução do preço (ainda que sem apresentação de novas propostas em relação à que já haviam apresentado), a verdade é que, através da carta de 22/01/2016, os Autores evidenciaram o seu desinteresse pelo contrato, afirmando a impossibilidade de celebrar a escritura e a sua indisponibilidade para prorrogar o contrato e pedindo a devolução do sinal;
- Que nunca existiu qualquer incumprimento ou mora dos Réus, pelo que a resolução do contrato por parte Autores, efectuada por carta datada de 22/1/2016, não tem qualquer fundamento e, como tal, a mesma não pode produzir os efeitos que estes pretendem;
- Que tal resolução sempre traduziria um abuso de direito, na medida em que se fundamentava em circunstâncias insignificantes no contexto global do negócio;
- Que essa carta demonstra, no entanto, a vontade inequívoca dos Autores de não celebrar o contrato prometido, o que equivale a um incumprimento definitivo do contrato-promessa da parte dos mesmos;
- Que, tendo os Autores incumprido o contrato, assiste aos Réus o direito de fazer seu o sinal recebido, assim como lhes assiste o direito de reclamar, a título de cláusula penal e nos termos previsos no contrato, a quantia diária de 150,00€ desde 25/02/2016 (data em que deviam ter entregue os imóveis) até 16/10/2019 (data em que os entregaram)
Com esses fundamentos, conclui pedindo a improcedência da acção e formulando, em reconvenção, as seguintes pretensões:
a) que se declare que a resolução que os Autores fizeram, por carta datada de 22/1/2016, do contrato-promessa que celebraram com os Réus em 31/01/2014 (e respectiva adenda celebrada em 1/2/2014) não tem fundamento, pelo que não pode produzir os efeitos pretendidos pelos mesmos;
b) que se declare que a resolução dos Autores demonstra a vontade inequívoca destes de não celebrar o contrato prometido, o que equivale a um incumprimento definitivo do contrato-promessa da parte dos mesmos;
c) que se declare que, em consequência do incumprimento definitivo por parte dos Autores, os Réus têm o direito de fazerem seus os montantes que receberam daqueles a título de sinal no montante global de 94.000 euros;
d) que os Autores sejam condenados a pagar solidariamente à Ré, a título de cláusula penal, a quantia diária de 150 euros desde 25/2/2016 até 16/10/2019, o que soma a quantia de 199.350 euros;
e) que, caso não procedam os pedidos formulados nas alíneas anteriores, os Autores sejam condenados a pagarem à Ré, a título de indemnização por danos patrimoniais (violação ilícita do direito de propriedade dos Autores, ou pelo menos a título de enriquecimento sem causa), a quantia mensal de 1500 euros, correspondente ao valor locativo dos imóveis (e de exploração turística dos mesmos), desde pelo menos 01/02/2014 até 16/10/2019, o que soma a quantia de 104.250 euros;
f) que os Autores sejam condenados no pagamento de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Pede ainda que os Autores sejam condenados, como litigantes de má-fé, em multa e em indemnização condigna a favor dos Réus.
Os Autores replicaram, reafirmando o que já haviam alegado, ou seja, que foram os Réus que incumpriram o contrato e que, como tal, não podem proceder as pretensões formuladas em reconvenção.
Sustentando a inexistência de qualquer abuso de direito, terminam pedindo a improcedência do pedido reconvencional e a condenação da Ré, por litigância de má fé, a indemnizar os Autores em valor não inferior a 2.500,00€.
Foi realizada a audiência prévia e proferido o despacho saneador, com identificação do objecto do litígio e delimitação dos temas da prova.
Na sequência dos demais trâmites processuais e após realização do julgamento, foi proferida sentença, cujo segmento decisório tem o seguinte teor:
“Nestes termos, na total improcedência da acção e parcial procedência da reconvenção, mostrando-se resolvido o contrato promessa ajuizado:
a) indefiro o pedido de condenação dos réus a restituir aos autores a quantia recebida a título de sinal, em dobro, no valor de 110,000.00€, acrescida de juros legais desde a data da citação até efectivo pagamento;
b) indefiro o pedido de condenação dos réus a restituir aos autores as quantias pagas a título de caução (€3000.00) e reforço do sinal (€36.000,00), igualmente em dobro, no valor global de 78.000,00€, acrescida de juros legais desde a data da citação até efectivo pagamento, assim, um total de €188.000 €. (cento e oitenta e oito euros);
c) condeno os autores reconvindos a reconhecer que a resolução que fizeram, por carta datada de 22/1/2016, do contrato-promessa que celebraram com os réus em 31/01/2014 (e respectiva adenda celebrada em 1/2/2014) não tem fundamento, pelo que não pode produzir os efeitos pretendidos pelos mesmos, demonstrando a vontade inequívoca destes de não celebrar o contrato prometido, o que equivale a um incumprimento definitivo do contrato-promessa da parte dos mesmos e em consequência do incumprimento definitivo por parte dos autores, o direito de fazer seu as quantias que receberam daqueles a título de sinal, no montante global de 94.000 euros” (cf.rect. Requerida por refª 37506798), com fundamento no incumprimento contratual e instituto do enriquecimento sem causa;
d) absolvo os autores reconvindos da condenação no pagamento solidário à ré, a título de cláusula penal, a quantia diária de 150 euros desde 25/2/2016 até 16/10/2019, o que soma a quantia de 199.350 euros;
e) condeno os autores reconvindos a pagar à ré a quantia residual de €8750 (oito mil, setecentos e cinquenta euros), a título de indemnização por danos patrimoniais violação ilícita do direito de propriedade dos autores e enriquecimento sem causa, acrescido de juros de mora desde a citação, à taxa legal de juros civis.
Custas por autores reconvindos e ré reconvinte, na proporção do seu decaimento e vencimento.
Não se vislumbra actuação de qualquer das partes a título de litigância de má fé”.
Inconformados com essa decisão, os Autores vieram interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:
(…).
A Ré respondeu ao recurso, formulando as seguintes conclusões:
(…).
A Ré interpôs também recurso subordinado, formulando as seguintes conclusões:
(…).
II.
Questões a apreciar:
O recurso dos Autores suscita as seguintes questões:
· Saber se deve ser alterada, nos termos propostos pelos Apelantes, a decisão que julgou provado o facto constante da alínea Z);
· Saber se, por força de recusa antecipada do cumprimento, existiu incumprimento definitivo do contrato promessa por parte dos Réus que legitimasse a resolução do contrato por parte dos Autores;
· Saber se o direito de retenção pode ser afastado por convenção das partes e se ele permite a utilização do bem sobre o qual incide;
· Apurar o valor que, eventualmente, os Autores estejam obrigados a restituir por força da utilização que fizeram dos imóveis;
O recurso (subordinado) da Ré suscita as seguintes questões:
· Saber se deve ser julgado procedente o pedido principal que havia sido formulado pela Ré referente à cláusula penal estabelecida no contrato em relação à obrigação dos Autores de entregar os imóveis na sequência da cessação do contrato;
· Caso não proceda esse pedido (principal), apurar em que termos deve proceder o pedido subsidiário no sentido da condenação dos Autores ao pagamento da quantia mensal de 1500,00€ – correspondente ao valor locativo dos imóveis (e de exploração turística dos mesmos) – desde 01/02/2014 até 16/10/2019 e apreciando a questão de saber se ao valor global assim calculado (102.750,00€) deve ser deduzido o valor do sinal de 94.000,00€ (conforme se considerou na decisão recorrida) em termos que permitam concluir – como se fez na decisão recorrida – que os Autores apenas estão obrigados a pagar, com referência a essa indemnização, o valor de 8.750,00€
III.
Na 1.ª instância, julgou-se provada a seguinte matéria de facto:
(do contrato)
A) – AA. e RR. celebraram em 31.01.2014 um contrato que designaram de “contrato promessa de compra e venda” (cf. doc. 1 da pi), por via do qual os AA. prometeram comprar aos RR. e estes prometeram vender os seguintes prédios:
a. Prédio misto sito à ..., freguesia ..., composto por casa de habitação com dois pisos e dois anexos, com a superfície coberta de 186,07 m2 e descoberta de 4.813,93 m2, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...05.º, com a licença de utilização n.º ...09 emitida em 28/09/2009 pela Câmara Municipal ... e terra de semeadura, vinhas, pastagem com fruteiras, oliveiras, videiras de cordão, pinhal e mato com a área de 57400m2, inscrita na matriz predial rústica sob o artigo ...03.º, a confrontar de norte e nascente com Rio Cobral, sul com ... e caminho e a poente com EE e outro, descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o número ...34;
b. Prédio rústico sito à ..., freguesia ..., composto de terra de cultura com videiras, pastagem, pinhal, mato, rocha, casa de habitação, casa de arrumação e moinho, com 49m2 que actualmente serve a casa de arrecadação agrícolas, com a área de 61250m2, a confrontar do norte com caminho, nascente com ..., sul com Rio Cobral e poente com Junta de Freguesia e outros, inscrito na matriz sob o artigo ...3.º e descrito sob o n.º ...06, na Conservatória do Registo Predial .... (admitido por acordo e provado por documento não impugnado alusivo).
B) - Conforme resulta da cláusula segunda os RR. prometeram vender e os AA. prometeram comprar os prédios identificados supra livres de quaisquer ónus ou encargos, sendo estipulado entre as partes o preço global dos dois prédios de 586.000,00€ (quinhentos e oitenta e seis mil euros). (admitido por acordo e provado por documento não impugnado alusivo); e de acordo com a cláusula quarta, a escritura seria realizada em Janeiro de 2016, bastando para tanto que qualquer um dos outorgantes notifique os outros, com a antecedência de 15 dias, indicando o dia, hora e o Cartório Notarial onde a mesma terá lugar, podendo a data de realização ser antecipada por acordo entre todos os outorgantes; nesse caso, será descontado ao preço o montante de €1500, por cada mês de antecipação do contrato e ainda o montante de 250 euros por cada montante mensal de 1500 euros que os segundos outorgantes tiverem pago ao abrigo da alínea a) do nº 3 da clausula 3ª.
C) - AA. e RR., convencionaram a entrega das seguintes quantias a título de sinal e princípio de pagamento:
a. 3000,00€ na data de assinatura do contrato promessa de compra e venda;
b. 27.500,00€ em 31.08.2014;
c. 27.500,00€ em 01.02.2015;
d. Pagamento mensal de 1500,00€ até à data de celebração da escritura de compra e venda, devendo o pagamento ser efectuado até ao dia 8 de cada mês, com início em Fevereiro de 2014– cf. contrato promessa de compra e venda junto sob o doc. n.º1 da pi. (admitido por acordo e provado por documento não impugnado alusivo).
D) - Ficou ainda acordado que os promitentes vendedores, ora Réus podiam resolver imediatamente o referido contrato-promessa no caso de falta de pagamento atempado de algum dos montantes devidos pelos Autores, sendo que nesse caso fariam seus os sinais já recebidos (cfr. doc. 1 junto com a p.i.). (admitido por acordo e provado por documento não impugnado alusivo).
(Da adenda)
E) - Foi celebrado um aditamento (ADENDA) ao contrato promessa de compra e venda- com data do/no dia seguinte- que estipula na designada “Cláusula 4.ª-A” que os promitentes compradores, ora AA., “poderão começar a ocupar os imóveis objecto do presente contrato, sendo que por essa causa não serão considerados possuidores nem poderão usar, em qualquer circunstância, de qualquer direito de retenção, assumindo aqui expressamente que serão meros detentores dos bens” – cf. doc n.º 2 da pi. (admitido por acordo e provado por documento não impugnado alusivo).
F) - Acordaram ainda, nessa adenda, que os Réus poderiam exigir a entrega dos bens aos Autores a qualquer altura, devendo estes proceder à respectiva entrega no prazo de 5 dias a contar desde a realização desse pedido, aplicando-se nesse caso a cláusula penal mencionada para a cessação do contrato (cfr. cláusula 4ª-a -doc. 2 junto com a p.i.). (admitido por acordo e provado por documento não impugnado alusivo).
G) - Ficou assim também convencionado entre as partes que, em caso de cessação do contrato por qualquer causa, nomeadamente por resolução derivada de incumprimento por parte dos promitentes compradores, ora Autores, estes obrigavam-se a entregar os prédios objecto do contrato- promessa aos promitentes vendedores no mesmo estado em que se encontravam quando da celebração da adenda, no prazo de cinco dias a contar desde a data em que a cessação operava os seus efeitos, sob pena de pagarem, por cada dia de atraso na respectiva entrega, a título de cláusula penal, a quantia de 150 euros (cfr. cláusula 4ª B - doc. 2 junto com a p.i.). (admitido por acordo e provado por documento não impugnado alusivo).
H) - Em caso de cessação do contrato, os Autores obrigaram-se também a indemnizar os Réus por todos os danos que tivessem causado nos bens objecto do contrato-promessa (cfr. cláusula 4ª B doc. 2 junto com a p.i.). (admitido por acordo e provado por documento não impugnado alusivo).
I) - Convencionaram ainda, na referida adenda, que os Autores deviam fazer um uso prudente dos imóveis, não podendo locá-los, empresta-los ou cedê-los por comodato, total ou parcialmente, ou cederem a sua posição contratual, sem autorização escrita dos Réus (com excepção dos apartamentos, que poderiam ser rentabilizados para fins turísticos pelos Autores, dando os Réus a sua autorização expressa para essa utilização) – cfr. doc.2. (admitido por acordo e provado por documento não impugnado alusivo).
J) - Os Autores assumiram também a responsabilidade pelo pagamento de todas as despesas que efectuassem, nomeadamente com água e electricidade (cfr. doc. 2 junto com a p.i.). (admitido por acordo e provado por documento não impugnado alusivo).
K) - Os Autores não podiam efectuar benfeitorias nos imóveis sem expressa autorização escrita dos Réus e todas as benfeitorias que fizessem, fossem elas necessárias, úteis ou voluptuárias, ficariam a pertencer aos imóveis, não tendo os Réus direito a qualquer indemnização ou direito de retenção (cfr. doc. 2 junto com a p.i.). (admitido por acordo e provado por documento não impugnado alusivo).
(Dos pagamentos)
L) - Os AA. pagaram a título de sinal e princípio de pagamento as seguintes quantias:
a. 3000,00€ na data de assinatura do contrato promessa de compra e venda, da qual os RR. deram de imediato quitação;
b. 13.750,00€ em 01.09.2014 (doc. 3);
c. 13.750,00€ em 18.10.2014 (doc.4);
d. 27.500,00€ em 26.01.2015 (doc. 5);
e. Pagaram ainda a quantia de 1.500,00€ durante 24 meses, ou seja, desde fevereiro de 2014 até janeiro de 2016, o perfaz o valor de 36.000,00€.
f. De onde resulta que a título de sinal e princípio de pagamento, os AA. pagaram a quantia global de 94.000,00€ (noventa e quatro mil euros) – cf. doc. n.º 1, e 3 a 5 da pi. (admitidos por acordo, com arrimo documental, não impugnado).
(Da escritura definitiva)
M) - O Autores deveriam entregar o remanescente do preço, na data da celebração da escritura definitiva de compra e venda. (admitidos por acordo, provados por documentos - a saber, os doc. nº 1 - contrato e adenda que nesta parte manteve contrato originário).
N) - Foi ainda convencionado que a escritura pública de compra e venda seria realizada em Janeiro de 2016, bastando para tanto que qualquer um dos outorgantes notificasse os outros, com a antecedência mínima de quinze dias, indicando o dia, a hora e o Cartório Notarial onde a mesma se deveria realizar. (cfr. doc. 1 junto com a p.i.). (admitidos por acordo e provado por documentos não impugnado).
(Da comunicação acerca da existência de ónus e desconformidade do objecto, tendo menor área)
O) - No dia 1 de Outubro de 2015, os AA. interpelaram os RR. mediante carta registada com aviso de recepção, para os esclarecerem, sob pena de resolverem o contrato, quanto:
a. A existência de uma hipoteca voluntaria sobre o prédio identificado em. a);
b. O facto de os proprietários confinantes FF e GG reclamarem a existência de um prédio de sua propriedade situado dentro da propriedade prometida vender com a consequente redução da área, bem como a servidão de uma passagem a pé constituída a favor daquele prédio (cf. doc. 7 da pi);
c. A existência de uma servidão de carros e de pé utilizada por outros proprietários vizinhos, no caminho que os AA. julgavam ser privado. cf. doc. n.º 7 da pi – e juntamente com a referida comunicação confrontaram os RR. com as certidões do registo predial, mormente do supracitado artigo matricial ...4 e ...99 de que são proprietários os referidos FF e GG. (admitido por acordo, e conforme documento alusivo, não impugnado).
P) - Os RR. em resposta à referida comunicação, datada de 7 de Novembro de 2015, responderam nos termos constantes do doc. n.º 8 da pi, dizendo em suma que os AA. sabiam que a hipoteca seria extinta aquando da celebração do contrato definitivo, no que concerne à reclamação do prédio por FF e GG não lhes reconhecem qualquer legitimidade - e que desconhecem a existência de qualquer servidão. (admitido por acordo, e conforme documento alusivo, não impugnado).
Q) - Os AA., em face da resposta dos RR. dirigiram nova comunicação, em 17 de Novembro de 2015, na qual reiteraram as questões suscitadas na primeira – cf. doc. 9- e confrontaram os RR. com o facto de conjuntamente terem percorrido a propriedade e aferido dos limites da mesma antes da celebração do contrato promessa, sendo que dentro do perímetro da propriedade que mostraram estava incluída a parte reclamada pelos confinantes FF e GG; que também da segunda vez que AA. e RR. percorreram a quinta, aquando da elaboração do cadastro, estes incluíram dentro do perímetro da propriedade a parte reclamada pelos confinantes FF e GG. (admitido por acordo, e conforme documento alusivo, não impugnado).
R) - Em resposta de 24.12.2015 os RR. manifestaram desconhecimento das questões suscitadas pelos AA. – cf. doc. 10 da pi: referiram estar a averiguar o que se passava com o cadastro e que os documentos que possuíam tinham mais força do que os documentos apresentados pelos vizinhos FF e mulher, uma vez que tinham o mapa que lhe foi entregue quando adquiriram a propriedade, sendo que os vizinhos apenas tinham a inscrição matricial e registral (tal como os Réus), sendo que estas não provam onde começa e acaba uma propriedade; no que diz respeito às alegadas servidões de passagem, referiram que não tinham conhecimento da respectiva existência e que, de qualquer modo, quem invoca a existência das mesmas é que deverá apresentar os documentos de que dispõe e que comprovam a titularidade desse direito, sendo que, até ao momento, não tinha sido apresentada aos Réus qualquer prova, apenas meras alegações. (admitido por acordo, e conforme documento alusivo, não impugnado).
S) - Em 07.01.2016, os Autores apresentaram aos Réus duas soluções: a rescisão do contrato ou a renegociação do preço da quinta, pedindo-lhes expressamente uma resposta por escrito – cf. documento 11 da pi. com tradução em doc. 5 da contestação e bem assim juntada do aditamento mencionado (admitido por acordo, e conforme documentos alusivos, não impugnado):
Acompanhado do seguinte anexo:
T) - Os Réus responderam a comunicação de 7-01-2016 por email datado de 11 de Janeiro de 2016, tendo proposto reunirem-se para conversar, (cf. doc. 6 da contestação)
U- tendo os Autores respondido por email datado do dia seguinte, tendo marcado um encontro para o dia 18 de Janeiro, no escritório da sua Ilustre Advogada na altura, sito em ... (cfr. doc. 6 da contestação).
V- Assim, Autores e Réus reuniram-se no dia 18 de Janeiro de 2016, não sendo possível obter acordo, pois os Réus não aceitaram reduzir o preço de compra da quinta para €325.000 euros.
*
(Da comunicação de resolução e interpelação para restituição)
W- Em 22 de Janeiro de 2016 os AA. dirigiram comunicação aos RR. em que invocaram o incumprimento do contrato promessa de compra e venda por partes destes, dado que não esclareceram as questões supra suscitadas e comunicaram a resolução do contrato– que se encontra junta com a p.i. como doc. 12, na qual os Autores referem: que existe uma hipoteca voluntária que onera um dos prédios, que os vizinhos FF e mulher alegavam que parte da área de um dos terrenos lhes pertencia, que estes vizinhos afirmavam que tinham o direito a uma servidão de passagem a pé sobre um dos terrenos e que havia outros vizinhos (que não especificam) que reclamavam que tinham o direito de servidão de passagem a pé e de carro por outro local das propriedades prometidas vender (cfr. doc. 12 junto com a p.i.); na mesma carta, os Autores concluem dizendo: “Face ao exposto, comunicamos a V. Exªs que expressamente invocamos o vosso incumprimento do contrato, uma vez que a escritura deveria ser outorgada até ao final do mês de Janeiro de 2016, conforme consta da cláusula 4ª do contrato-promessa”; referem ainda, mais à frente, “atento o vosso incumprimento e a nossa total decepção com os problemas apontados, cuja resposta ou solução aguardámos, não resta outra alternativa senão invocar o vosso incumprimento e a inerente impossibilidade de celebrar a escritura prometida este mês de Janeiro de 2016” e ainda “não estamos disponíveis para prorrogar o contrato”; na mesma carta os Autores solicitavam a devolução do sinal. (admitido por acordo, e conforme documento alusivo, não impugnado).
X) - Em resposta à carta dos Autores datada de 22/1/2016, os Réus enviaram uma carta registada com aviso de recepção aos Autores, datada de 4/2/2016, que estes receberam em 19/2/2016, em que vieram afirmar que a resolução operada se encontrava desprovida de fundamento, pelo que era ineficaz, que dessa comunicação resultava a vontade inequívoca de os AA. não celebrarem o contrato prometido, o que (na sua ótica) equivalia a incumprimento definitivo, pelo que faziam seu o sinal prestado e davam-lhes o prazo de cinco dias para deixar os prédios prometidos vender – cf. doc. 14 da pi. (admitido por acordo, e conforme documento alusivo, não impugnado): referem que, tal como já anteriormente tinham referido, a hipoteca seria cancelada no momento da celebração da escritura de compra e venda, como é usual nestas situações (cfr. doc. 14 junto com a p.i.) pois no dia da celebração da escritura estaria presente um representante do banco a quem seria entregue um cheque com o montante em dívida, entregando o mesmo, em troca, o documento para cancelamento da hipoteca (cfr. doc. 14 junto com a p.i.); quanto ao pedaço de terreno reclamado pelos vizinhos FF e mulher, os Réus referiram na mencionada carta que, conforme tiveram oportunidade de referir anteriormente, o terreno prometido vender aos Autores pertence de facto aos Réus (sendo que, na estrema em causa, coincidia com o mapa assinado pelas pessoas que lhes venderam a propriedade) e que os vizinhos nunca realizaram no mesmo qualquer acto de posse nem têm qualquer documento comprovativo de que os limites do seu terreno abrangem o pedaço de terreno em causa (cfr. doc. 14 junto com a p.i.).-sendo um pequeno pedaço de terreno constituído única e exclusivamente por rocha- tendo um mapa assinado pelos vendedores onde o pedaço reclamado pelos ingleses estava incluído e nunca os vizinhos tiveram actos de posse nessa rocha; no que diz respeito a direitos de passagem de terceiros, os Réus referiram que, nos anos em que viveram na quinta, nunca ninguém atravessou, muito menos os referidos vizinhos FF e mulher, sendo certo que não existem quaisquer ónus ou encargos registados para além da supra referida hipoteca; quanto à piscina, se persiste problema seria da responsabilidade, como vendedores, a sua reparação….; e refutam qualquer mora no agendamento da escritura… e “como sabem, encontravamo-nos a reunir os documentos necessários para a celebração da escritura- certificado energético e ficha técnica mas “ vossas excelências estavam a dificultar…” .
Y) - Nesta comunicação, os RR. nada referiram quanto à entrega das chaves. (admitido por acordo e provado por documento não impugnado alusivo), referindo: no entanto que “têm o prazo de cinco dias a contar da recepção desta carta para nos entregarem os prédios…sob pena de pagarem por cada dia de atraso na respectiva entrega, a título de cláusula penal, a quantia de … “(150 euros).
(subsequentes comunicações, no sentido da redução de preço)
Z- Ainda em 27 de Janeiro de 2016, os AA. dirigiram aos RR. a comunicação junta sob o doc. n.º 13 na qual reiteram a solução apresentada em 07.01.2016: insistem numa substancial redução do preço, nos termos que tinham apresentado por email datado de 7/1/2016, acrescentando mais motivos para tal, nomeadamente a proximidade da casa dos vizinhos ingleses, problema da piscina, problema da varanda, problema com os estábulos, etc. e ao contrário do que tinham afirmado na carta datada de 22/1/2016, os Autores afirmaram por este email que afinal não tinham perdido o interesse na compra e venda. (admitido por acordo, e conforme documento alusivo, não impugnado) ( doc. 13 da pi); é acompanhada de pressupostos do novo contrato datado de 7-1-2016… com tradução certificada no reqº refª 5367774) (dos autores):
AA- Em 02.03.2016, os AA. dirigiram mais uma proposta aos RR.- junta sob o doc. n.º 15. (admitido por acordo e provado por documento não impugnado alusivo):
BB- Por carta datada de 16 de Novembro de 2016, os Autores reiteraram que entendiam que o contrato-promessa se encontrava resolvido, conforme missivas anteriores, invocando direito de retenção e requerendo a retirada –em 10 dias- das imagens e contactos da família do domínio da pagina:
CC) - Na sequência do divórcio dos Réus, decretado a 26 de Março de 2015, na Holanda, operou-se a partilha de bens do ex-casal, por escritura de 5 de Abril de 2019, tendo a R. mulher ficado com a propriedade integral de ambos os prédios, conforme doc. n.º 16 (admitidos por acordo e provado por documento alusivo).
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DD) - Na sequência dos mencionados contratos-promessa e adenda, os Autores passaram logo a ocupar os imóveis em 1 de Fevereiro de 2014 e passaram a explorar em seu nome próprio, a partir dessa data, os apartamentos turísticos que faziam parte dos prédios objecto do contrato- promessa. (admitidos por acordo), habitando o prédio urbano, logo iniciando os trabalhos com vista a iniciarem a exploração do negócio pretendido, conforme adenda outorgada.
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(das qualidades da coisa pretendidas pelos promitentes compradores)
EE) - Os Autores propuseram-se comprar aquela propriedade aos Réus, porque a mesma tinha as características que procuravam e que reputavam ideais para habitarem com as filhas e para instalarem o seu negócio de turismo rural: constituída por solo parcialmente rochoso, interpolado por arvoredos e é atravessada pelo rio Cobral, sendo por isso um local tranquilo, harmonioso, puro e de uma beleza assinalável- o que permitiria que os Autores e as suas filhas, bem como os seus clientes fizessem passeios a pé e a cavalo, dentro daquele perímetro perfeitamente delimitado;
FF) - Os Réus garantiram que os prédios identificados supra tinham as dimensões adequadas para o exercício da actividade pretendida e a privacidade desejada pelos AA. para os próprios e para os seus clientes- indicando que a quinta tinha cerca de 16 hectares;
GG) - Sendo tais características - dimensão, beleza e sossego- anunciadas pelos vendedores determinantes para os AA. celebrarem o contrato promessa de compra e venda.
HH) - O preço total acordado para a celebração deste negócio foi determinado em função da venda conjunta dos dois prédios com as áreas anunciadas aproximadas e com inexistência de factores que afectassem a pretendida dimensão, beleza e sossego.
II) - Os AA iniciaram a sua actividade na quinta, e mesmo depois de suspenderem a actividade de exploração dos apartamentos, limparam terrenos e defenderam os prédios dos grandes incêndios de 2017, sempre efectuando os pagamentos dos consumos de luz, cujas facturas eram emitidas em nome dos Réus- enquanto aí residiram.
JJ) – E durante o período negocial que se seguiu à resolução – e apos a data designada para outorga da escritura, - os AA. permaneceram a habitar os prédios, mantendo esperança de concretizar o negócio prometido com ajuste de preço (redução) e como forma de pressão para lhes ser devolvido o sinal.
KK) - Durante o período de tempo em que ocuparam a quinta, os Autores exploraram os apartamentos turísticos aí existentes, em seu nome próprio, durante período não concretamente apurado mas pelo menos até aos incêndios de 15 de Outubro de 2017, tendo recebido os rendimentos dessa exploração, que fizeram seus, - e aí residiram até à saída, ocorrida entre Agosto e Outubro de 2019 (sendo que a entrega das chave ocorreu em 16 Outubro de 2019.- apesar de nada pagarem aos Réus desde Janeiro de 2016.
LL) - Os AA. permitiram que permanecesse activa uma página de internet da Quinta ..., com imagens da família destes, seus contactos e que publicitava o negócio- cf. cópia junta sob o documento n.º 17 e 18 da pi.
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(Dos ónus)
MM) - Aquando do negocio os Autores tiveram a percepção de que sobre o prédio misto incidia uma hipoteca voluntária, constituída em 21.01.2010.
NN) - Após entrarem na detenção da quinta, os Autores tiveram a percepção, de que os vizinhos ingleses - FF e GG,- proprietários do prédio confinante conhecido por Quinta ... reclamavam uma parcela encravada no prédio prometido vender e serventia de passagem, sendo que estes comunicaram em Setembro de 2015 aos Autores que eram proprietários de um prédio sito na ..., freguesia ..., inscrito na matriz predial rústica da aludida freguesia sob o artigo rústico ...4 com a área de 1490m2, tendo enviado aos Autores a localização exacta dessa parcela, em parte situada dentro dos limites propriedade prometida vender – cf. mapa anexo ao doc. n.º 1 com o documento n.º 6 ; e reclamavam também uma servidão de passagem de pé contigua ao rio Cobral, destinada a aceder aquele que atravessa em parte a propriedade prometida, ligando-o à Quinta ....- na parte da quinta a norte do Rio Cobral, na freguesia ....
OO) - Ao entrarem na detenção da quinta, os Autores perceberam que outro proprietário confinante reclamava e utilizava, esporadicamente, uma segunda servidão a pé e de carro para propriedade rústica confinante a poente da parte da quinta situada na freguesia ... – serventia que não atravessa o pontão do Rio Cobral, mas se inicia no ponto oposto da quinta.
PP) - Esta servidão era utilizada por apenas uma a duas pessoas, a pé e por veículos, e corre a mais de uma dezena de metros da casa de hóspedes, só muito esporadicamente sendo utilizado tractor.
QQ) - As dúvidas dos AA. no que respeita aos limites da propriedade mantiveram-se já que os proprietários confinantes ingleses FF e GG, continuaram a reclamar aquele prédio (parcela do art. 44º), e os AA. informaram ainda os RR. que os mesmos procederam à colocação de marcos que incluía aquele prédio continuando a reclamar a propriedade e a serventia a pé.
RR) - Quando adquiriram os prédios aos anteproprietários, foi entregue aos Réus uma planta topográfica com a área que lhes era vendida, feita com recurso a GPS por profissionais da associação “Caule – Associação Florestal da Beira Serra” (cfr. doc. 2 da contestação), tendo os mesmos anexado ao contrato-promessa celebrado com os autores uma planta semelhante (ou seja, feita por GPS pela mesma entidade mas com pequenas alterações em algumas estremas localizadas em sítios diferentes dos que aqui se discute) (cfr. doc. 1 junto com a p.i.).
SS) - A área reclamada pelos vizinhos ingleses-- e que consta da planta junta com a p.i. como doc. 6, não coincide com a área total do respectivo prédio encravado - art. 44- , como se pode observar pela sobreposição entre essa planta e o mapa (feito com GPS) anexo ao contrato-promessa celebrado entre Autores e Réus, sobreposição esta que consta do mapa junto como doc. 3 da contestação, através do qual se verifica que a área sobreposta em causa seria, no máximo, de apenas 280 m2.
TT) - Trata-se de uma pequena área completamente rochosa (cfr. doc. 4) e inclinada e sem qualquer utilidade ou potencialidade agrícola, localizada num dos extremos da propriedade, correspondendo apenas, no máximo, a 0,23% da área registada total (e a 0,175% da área real total, que é de cerca de 16ha).
UU) - Como se pode observar pelo registo predial com o nº ...74 da freguesia ..., referente ao prédio rústico inscrito na matriz da mesma freguesia sob o art. ...4º, este é descrito como “terreno com videiras e pinhal” mas na realidade, não há sinais de ter existido qualquer videira sequer, uma vez que aquele terreno é constituído apenas por rocha.
VV) - Durante o tempo em que os Réus viveram na quinta, desde 2005 até Fevereiro de 2014, raramente os vizinhos ingleses ou seus antecessores passaram pela parcela encravada e caminho de acesso à mesma situado ao longo do rio Cobral- na parte da quinta localizada na freguesia ..., até porque os Réus tinham colocado cercas, por causa dos cavalos, que dificultavam a passagem.
WW) - Foram os Réus, promitentes vendedores quem construiu o pontão sobre o rio Cobral, depois de adquirirem a quinta em 2005, sendo que esse pontão era inexistente há mais de 20 anos e não possibilitava a passagem de qualquer tipo de carro ou trator (atravessar o rio).
XX) – A passagem reclamada pelos outros confinantes, sobre a parte da Quinta a sul do rio, pouco perturbaria o sossego, tranquilidade e privacidade dos Autores ou dos seus hóspedes, até porque o referido Sr. HH, pessoa já idosa, praticamente já não possuía nessa zona propriedade cultivada, pelo que não tinha necessidade de por aí passar com frequência (como aliás efectivamente não passava), procedendo a uma exploração extensiva e esporádica que passava apenas pela apanha de fruta e lenha e ocasional sementeira de milho ou batata.
YY) - AA. e RR. mantiveram as negociações verbais tendentes a ultrapassar os diferendos existentes ao longo de todo o ano de 2016 e os Autores sugeriram até a avaliação dos prédios, de acordo com as características que os mesmos efectivamente tinham, para se encontrar o seu real valor de mercado com vista a concretizar o contrato.
ZZ) - Os Autores deixaram a quinta - entregando as chaves - em 16 de Outubro de 2019.
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AAA)- Os Réus contavam com o dinheiro resultante do produto da venda para reiniciarem a sua vida na Holanda, e a Ré CC viu-se sem meios económicos, tendo vivido numa roulote e à custa de familiares e amigos;.
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BBB) - Entretanto, AA. e R. reactivaram conversações e negociações levadas a cabo directamente por estes, sobretudo entre meados de 2018 e primeiro semestre de 2019.
CCC) - Durante os processos de insolvência do Réu DD e divórcio dos Réus, estes não revelaram disponibilidade para negociações com os AA., chegando a Ré a demorar mais de 6 meses para responder a comunicações dos AA. nesse período; e o Réu, ex marido, nem sequer respondeu.
DDD) - Os prédios foram atingidos pelos grandes incêndios de 2017, tendo ficado destruído estábulo.
EEE) - Só depois de ter procedido à partilha dos prédios objecto do contrato promessa dos autos, a R. teve verdadeiramente condições para concluir as negociações com os AA.
FFF) - A Ré propôs-se, a dado turno, pagar aos Autores a quantia de 3.000 euros, em final de Julho de 2019, quando estes lhe entregassem a quinta, o que não foi aceite.
GGG) - O “valor locativo/ de exploração turística dos imóveis cifrava.se na quantia mensal de €1500,00 (mil e quinhentos euros) à data da outorga do contrato promessa.
HHH) - Quando abordou os Réus, o Autor marido propôs comprar a propriedade no prazo de dois anos, ficando a pagar um valor mensal até essa data, uma vez que não dispunha na altura dos fundos suficientes para adquirir a quinta de imediato, pois tinha feito investimentos recentes numa sua empresa na Alemanha de nome A..., que se dedicava a negócios imobiliários (cfr. doc. 1 da contestação), sendo o mesmo quem contactou os réus em 9 de Dezembro de 2013, tendo mostrado interesse na compra da quinta destes, por ser adequada aos seus cavalos Friesian.
III) - O Autor tinha sido proprietário de uma casa na freguesia ..., a cerca de 1,5 kms da propriedade dos Réus, pelo que conhecia bem a zona, e dedicava- se a negócios imobiliários, estando por isso habituado a negociar nessa área.
JJJ) - Antes da assinatura do contrato-promessa, houve contactos, negociações e reuniões, nomeadamente no local, em Dezembro de 2013, tendo os Autores examinado pessoal e cuidadosamente toda a propriedade e a sua envolvente e acordado, posteriormente, no preço e demais condições que constam do contrato-promessa supra referido, celebrado no dia 31/1/2014, e da respectiva adenda.
KKK) - A quinta dos Réus tem mais de 120.000 m2 (nos documentos tem cerca de 12ha mas de facto tem cerca de 16ha), sendo atravessada pelo rio Cobral, tendo por isso uma área muito extensa que permite fazer passeios a pé e a cavalo.
UUU) - O Autor visitou pessoalmente o local e viu toda a sua envolvente, nomeadamente a casa dos vizinhos ingleses, em Dezembro de 2013.
Não se julgaram provados os seguintes factos:
1- Os Réus garantiram que os prédios identificados supra continham as precisas áreas constantes dos respectivos registos matricial e predial.
2- Aquando da outorga do contrato promessa foi pelos Réus omitido e ocultado que sobre o prédio misto incidia uma hipoteca voluntária, constituída em 21.01.2010.
3- Durante o tempo em que os Autores viveram na quinta, desde 2005 até Fevereiro de 2014 nunca os ingleses ou seus antecessores passaram pela mesma.
4- A parcela reclamada pelos FF e GG situa- se totalmente dentro dos limites propriedade prometida vender – cf. mapa anexo ao documento n.º 1 com o documento n.º 6 da pi., área de 1490m2
5- A servidão que atravessa a parte da quinta localizada a sul e norte do Rio Cobral é utilizada por diversas pessoas a pé e por veículos, e corre ao lado da casa de hóspedes, sendo utilizada sobretudo por tractores.
6- Nela, os veículos circulam ali sobretudo durante a madrugada 5, 6 ou 7 horas da manhã quando se deslocam para trabalhar e regressam ao final da tarde, e o ruído dos veículos perturba o descanso dos AA., mas sobretudo o dos hóspedes que, encontrando-se de férias, não querem ter esse tipo de incómodos.
7- Ao longo do ano de 2016 os Réus acabaram por andar a entreter os Autores com contactos telefónicos esporádicos sem lhes apresentarem uma qualquer solução.
8- Os Autores iniciaram a sua actividade na quinta, mas em face da falta de condições tiveram de suspender.
9- Mesmo apos suspensão da actividade, os Autores fizeram manutenção e reparações quer nas habitações, quer nos estábulos.
10- A existência das servidões de passagem nos prédios prometidos vender e a divergência de áreas conduziram à perda definitiva do interesse dos Autores em celebrar o contrato prometido, afectando de modo relevante as características - dimensão, beleza e sossego- anunciadas pelos vendedores, que foram determinantes para os AA. celebrarem o contrato promessa de compra e venda.
11- Os Réus nunca esclareceram os AA. sobre a existência das servidões de passagem nem sanaram o diferendo tido com os vizinhos confinantes; nem apresentaram uma solução razoável que passaria pela avaliação do real valor de mercado dos prédios, com vista ao ajustamento do preço e à celebração do contrato definitivo.
12- A não concretização do negócio levou inclusivamente à insolvência na Holanda do Réu DD.
13- E os Réus continuaram a ter de pagar o empréstimo bancário que tinham contraído em Portugal, para reconstrução da quinta, não tendo outros rendimentos, ficando numa situação muito precária.
14- Os Autores receberam os rendimentos da exploração dos apartamentos turísticos aí existentes, em seu nome próprio até à data em que restituíram os imóveis aos Réus.
15- Durante os processos de insolvência do R. DD e do divórcio dos RR., nenhum destes esteve disponível para negociações com os AA., pois não tinham qualquer interesse em resolver o assunto nesse ínterim.
16- Os defeitos que um dos prédios urbanos apresentava na varanda e piscina impossibilitaram o imediato arrendamento/turismo de habitação da parte urbana e obrigaram à realização de obras, o que limitou a obtenção do proveito económico dos prédios que os AA. tinham gizado.
17- Foi retirado pelos réus o domínio da página informática da Quinta, o que também impossibilitou qualquer negócio de arrendamento ou hospedagem.
18- Com o aproximar da data agendada para a escritura-os Autores começaram a suscitar levantar uma série de problemas no sentido de conseguirem adquirir a quinta dos Réus por um preço muito inferior (ou de saírem e ser-lhes restituído o que entregaram aos Autores), pressionando-os constantemente para aceitarem as suas irrazoáveis propostas.
19- No período em que AA. e R. mantiveram conversações e negociações - sobretudo entre meados de 2018 e primeiro semestre de 2019, - a Ré aceitou que aqueles permanecessem na propriedade sem contrapartidas, pois a Ré não tinha como restituir o sinal prestado.
20- Os Réus não apresentaram uma solução razoável que passaria pela avaliação do real valor de mercado dos prédios, com vista ao ajustamento do preço e à celebração do contrato definitivo.
21- Os Réus encontravam-se a reunir os documentos necessários para a celebração da escritura, estando nomeadamente a tratar do certificado energético e da ficha técnica de habitação, sendo que os Autores estavam a dificultar a respectiva obtenção.
22- A R. não exigiu qualquer valor aos AA. pela ocupação da quinta, porque qualquer quantia recebida antes poderia ter que ser repartida com o processo de insolvência do R.
23- Os Autores entregaram a quinta em fins de Julho de 2019.
IV.
Apreciemos as questões suscitadas no recurso.
1. Impugnação da matéria de facto (alínea Z)
(…).
2. Incumprimento e resolução do contrato promessa
Importa agora saber se, por força de recusa antecipada do cumprimento, existiu incumprimento definitivo do contrato promessa por parte dos Réus que legitimasse a resolução do contrato por parte dos Autores, ou se, pelo contrário e conforme se considerou na decisão recorrida, foram os Autores que incumpriram o contrato.
Conforme resulta da matéria de facto provada, estamos perante um contrato promessa de compra e venda celebrado em 31/01/2014 e por via do qual os Autores se obrigaram a comprar e os Réus se obrigaram a vender os dois prédios ali identificados, livres de ónus e encargos, mediante o preço de 586.000,00€, tendo ficado estabelecido que o contrato definitivo (a compra e venda) seria celebrado em Janeiro de 2016, sendo que a escritura poderia ser marcada por qualquer uma das partes outorgantes, notificando a outra com a antecedência de 15 dias. Registe-se que os Autores (promitentes compradores) passaram, de imediato (mais concretamente em 01/02/2014), a ocupar os imóveis nas condições contratuais que agora não importa desenvolver, passando, a partir dessa data, a habitar o prédio urbano e a explorar os apartamentos turísticos que faziam parte dos prédios objecto do contrato-promessa, recebendo e fazendo seus os rendimentos dessa exploração.
Entretanto – a partir de Outubro de 2015 (após 20 meses de ocupação dos prédios e 4 meses antes da data que estava estipulada para a celebração do contrato definitivo), os Autores começaram a suscitar algumas questões (sobre as quais pediam esclarecimentos aos Réus) e que se prendiam com a existência de uma hipoteca sobre os prédios, com o facto de os proprietários confinantes reclamarem uma parcela do prédio e com a eventual existência de duas servidões de passagem que, pretensamente, oneravam o prédio. Os Réus prestaram esclarecimentos, informando que a hipoteca seria extinta aquando da celebração do contrato definitivo, que não reconheciam qualquer direito aos proprietários vizinhos em relação à parcela em questão (que pertencia efectivamente ao prédio prometido vender) e que desconheciam a existência de qualquer servidão de passagem. Os Autores insistiram (em Novembro de 2015) pelos esclarecimentos que haviam pedido e os Réus reafirmaram (em Dezembro do mesmo ano) o que já haviam dito anteriormente.
Nesse contexto, os Autores – em 07/01/2016 – propuseram aos Réus a rescisão do contrato ou a renegociação do preço da quinta, propondo para o efeito um valor global de 325.000,00€ (menos 261.000,00€ em relação ao preço que estava previsto).
Na sequência da recusa dessa proposta pelos Réus, os Autores enviaram comunicação em 22/01/2016, procedendo à resolução do contrato e invocando, para o efeito, o incumprimento dos Réus que se traduzia no facto de estes não terem esclarecido as questões que haviam sido suscitadas, a impossibilidade de celebrar o negócio prometido na data prevista e a sua indisponibilidade para prorrogar o contrato. Os Réus comunicaram, por seu turno, mediante carta de 04/02/2016, que aquela resolução não tinha fundamento por não existir incumprimento da sua parte e que aquela declaração equivalia a incumprimento definitivo do contrato, pelo que faziam seu o sinal prestado e solicitavam a entrega dos imóveis.
Sendo esse, em termos resumidos, o quadro factual em que nos movemos, a questão que agora se coloca consiste em saber se a resolução efectuada pelos Autores em 22/01/2016 é (ou não) válida, o que equivale a saber se existia (ou não) uma situação de incumprimento dos Réus que a pudesse legitimar, ou se, pelo contrário, essa declaração corresponde (ela mesma) a um incumprimento definitivo do contrato imputável aos Autores.
De acordo com a sentença recorrida, os Autores não tinham fundamento para resolver o contrato – por não existir, à data da referida declaração, incumprimento dos Réus –, razão pela qual a referida declaração integra (ela própria) um incumprimento definitivo da sua parte (ou seja, dos Autores). Por isso se reconheceu que os Réus tinham o direito de fazer suas as quantias que haviam recebido a título de sinal.
Em desacordo com a decisão – que, conforme se referiu, concluiu pelo incumprimento definitivo do contrato por parte dos Autores – os Apelantes desenvolvem a sua argumentação ao redor da tese (subscrita pelo Prof. Pinto Monteiro em parecer que foi junto aos autos) segundo a qual o credor pode ter a obrigação por incumprida definitivamente e resolver o contrato com esse fundamento antes de sequer vencer o prazo para o seu cumprimento, dizendo que “...o raciocínio desenvolvido pelo Tribunal a quo (...) é incorrecto porque não considera o caso de recusa antecipada de cumprimento (...)” e que “...casos há em que, ainda antes de vencida a obrigação, o devedor manifesta, de forma "certa, séria e segura" (Calvão da Silva, Sinal e Contrato-Promessa, 14.ª ed., p. 127), uma vontade de não cumprir”, sem que seja exigível nesse caso que o credor tenha que aguardar pelo vencimento do prazo e consequente mora do devedor, para poder, então, converter esse atraso em incumprimento definitivo através de uma interpelação cominatória, “...quando já é claro que o devedor não vai -- porque não pode ou porque não quer – cumprir”.
Sendo indiscutível que, à data da resolução efectuada pelos Autores, ainda não havia chegado o momento contratualmente definido para a realização da prestação a que as partes se haviam vinculado (a celebração do negócio prometido), é certo que o eventual incumprimento dos Réus (enquanto facto legitimador da referida resolução) apenas poderia resultar de uma recusa antecipada de cumprimento da sua prestação, nos termos que são sustentados pelos Apelantes.
É certo que a nossa doutrina e jurisprudência tem equiparado ao incumprimento definitivo da obrigação as situações em que, ainda antes do vencimento da obrigação (antes, portanto, do momento em que ela é exigível), já ocorreu uma recusa do devedor ao cumprimento da sua prestação, seja ela uma recusa expressa ou seja uma recusa tácita resultante de circunstâncias que a revelem de modo inequívoco. Tal recusa dispensaria, portanto, o credor da necessidade de aguardar pelo prazo de vencimento e consequente mora do devedor (que já se tinha como certa em face do anterior comportamento do devedor) para o efeito de a poder converter em incumprimento definitivo por força da interpelação admonitória ou cominatória a que se reporta o art.º 808.º do CC. Essa recusa terá que ser, naturalmente, uma declaração (expressa ou tácita) que seja clara, séria, categórica, inequívoca e definitiva do devedor no sentido de que não irá cumprir a sua obrigação (porque não quer ou porque não pode) em termos de tornar totalmente inútil uma qualquer interpelação admonitória com vista ao cumprimento[1]. Com efeito e como refere João Calvão da Silva[2] “...se o comportamento do devedor exprime o real, o firme e deliberado propósito de que não cumprirá por não querer ou não poder, não se justifica que o credor tenha de aguardar a data do vencimento para poder lançar mão dos meios jurídicos que lhe permitam desvincular-se do contrato – espera que seria inútil e até poderia agravar a posição do devedor”.
Mas, apesar de termos como boa e acertada essa doutrina – invocada pelos Apelantes para fundamentar o seu recurso e com apoio no parecer já referido que juntaram aos autos –, a verdade é que ela não foi determinante para a decisão recorrida. Tal tese/doutrina foi, aliás, aceite pela decisão recorrida, sucedendo apenas – e foi esse o fundamento da decisão – que, no caso, se considerou inexistir qualquer declaração ou comportamento dos Réus que pudesse ser entendido como recusa antecipada de cumprimento.
É isso, portanto, que importa saber, ou seja, se, apesar de não ter chegado ainda o momento em que devia ser celebrado o contrato prometido, existiu ou não qualquer declaração ou comportamento dos Réus que pudesse ser entendido como recusa antecipada da sua prestação (a celebração do contrato definitivo) – fosse no sentido de que não a queriam cumprir ou fosse no sentido de que não a podiam cumprir – e que, nessa medida, pudesse legitimar a resolução do contrato que os Autores efectuaram em 22/01/2016.
Sendo inequívoco que nunca existiu qualquer declaração expressa dos Réus no sentido de que não iriam celebrar o negócio prometido (a compra e venda dos imóveis), aquilo que está subjacente ao incumprimento que os Autores imputam aos Réus (com base no qual resolveram o contrato) é o facto de estes não terem esclarecido e solucionado as questões que anteriormente haviam sido suscitadas: a existência de uma hipoteca sobre os prédios, a circunstância de os proprietários confinantes reclamarem uma parcela do prédio e a eventual existência de duas servidões de passagem que, pretensamente, oneravam o prédio. Na perspectiva dos Autores (Apelantes) a falta de solução para essas questões implicava que os Réus estavam impossibilitados de cumprir a prestação a que se haviam obrigado e que correspondia à venda dos prédios, com determinada área e livre de quaisquer ónus e encargos; segundo os Autores/Apelantes, os Réus não estavam – e nunca viriam a estar – em condições de cumprir essa prestação, tendo em conta as servidões que eram reclamadas pelos proprietários confinantes e sendo certo que, ao desvalorizarem as preocupações dos Autores de forma reiterada, clara e determinada, os Réus estavam a afirmar tacitamente (senão expressamente) que não iriam solucionar as questões referidas e que, como tal, não iriam colocar-se em condições de cumprir pontualmente a sua obrigação de celebrar o contrato-prometido nos termos acordados
Será assim?
Pensamos que não.
Começamos por afastar – nos termos em que também o fez a decisão recorrida – a relevância da questão relacionada com a hipoteca. Os Réus esclareceram oportunamente os Autores que tal hipoteca seria extinta aquando da celebração do contrato definitivo (como, aliás, acontece com frequência nos casos de venda de imóveis onerados com hipoteca) e nada fazia supor que tal não viesse a acontecer; não existia, portanto – ou ainda não existia – qualquer incumprimento dos Réus em relação a essa matéria e tão pouco se podia admitir, com um mínimo de probabilidade, que a hipoteca não fosse efectivamente cancelada aquando da celebração da escritura.
A questão relacionada com a parcela do prédio que era reclamada por terceiros (proprietários confinantes) também nos parece ser irrelevante na economia do contrato e para a formação da vontade de contratar, tendo em conta (cfr. alínea TT) da matéria de facto) que está em causa uma pequena área completamente rochosa e inclinada e sem qualquer utilidade ou potencialidade agrícola, localizada num dos extremos da propriedade, correspondendo apenas a 0,175% da área real total dos prédios que é de cerca de 16ha (bem superior, aliás, à que constava da matriz e registo predial). Ainda que essa parcela de terreno não pertencesse aos prédios prometidos vender (o que – importa notar – nem sequer está demonstrado), estaria em causa uma área irrelevante e sem qualquer utilidade prática que não poderia justificar a destruição do contrato. Tão pouco resulta da matéria de facto que essa circunstância (ou seja, a eventualidade – não demonstrada – de essa parcela pertencer a terceiros) fosse susceptível de afectar a privacidade e o sossego que eram pretendidos pelos Apelantes. Em todo o caso, as considerações que faremos de seguida em relação às servidões, valerão também para esta parcela.
Centremo-nos, portanto, nas servidões de passagem, já que são estas que podem configurar um ónus mais relevante.
Ainda que se considere – como consideram os Apelantes e como se considera no parecer que juntaram aos autos, subscrito pelo Prof. Pinto Monteiro – que, ainda que não constitua o dever primário no âmbito de um contrato promessa de compra e venda, o dever de eliminar os ónus ou defeitos da coisa que o promitente se vinculou a transmitir (sem esses ónus ou defeitos) se traduz, não obstante, num dever secundário cujo incumprimento equivale ao incumprimento da prestação principal – na medida em que, sem o cumprimento desse dever secundário, o promitente vendedor não está em condições de celebrar o negócio definitivo nos termos acordados (sem defeitos e ónus) –, a verdade é que, para que se pudesse afirmar que os Réus incumpriram esse dever secundário – e que, por isso, não estavam em condições de celebrar o negócio nos termos em que se haviam vinculado – era necessário, pelo menos, que se tivesse demonstrado a existência desses ónus (as servidões), o que, na verdade, não aconteceu.
Com efeito, se é certo que os Réus – em resposta aos esclarecimentos pedidos pelos Autores – sempre disseram desconhecer a existência de qualquer servidão, esclarecendo que, de qualquer modo, quem invoca a existência das mesmas é que deverá apresentar os documentos de que dispõe e que comprovam a titularidade desse direito, a verdade é que nada resulta da matéria de facto que nos permita concluir pela efectiva existência das referidas servidões. Não consta da matéria de facto – nem dos autos – qualquer documento que titule e comprove esses direitos e a efectiva constituição dessas servidões (tudo indicando que os terceiros que se arrogam esse direito nunca terão apresentado aos Autores qualquer documento nesse sentido) e, portanto, apenas poderiam, eventualmente, estar em causa servidões constituídas por usucapião, sendo certo, no entanto, que não dispomos de factos/elementos que permitam aferir pela sua efectiva constituição.
O que sabemos é que há terceiros (proprietários confinantes) que reclamam um direito de servidão de passagem sobre os prédios prometidos vender, sendo certo, no entanto, que o facto de esses terceiros reclamarem esses direitos não significa que os tenham efectivamente e que as suas pretensões sejam fundadas.
Nessas circunstâncias, não estando provada a efectiva existência de tais servidões, será difícil concluir que os Réus estavam, de facto, impossibilitados de cumprir a sua prestação nos exactos termos em que se haviam vinculado, vendendo os imóveis aos Autores sem quaisquer ónus e, mais concretamente, sem qualquer servidão. Os Réus nunca declararam que não iam cumprir a prestação que haviam prometido (celebração do negócio nos exactos termos previstos no contrato) e, como se disse, nada se provou que permita concluir que não estivessem em condições de cumprir essa prestação, na medida em que – reafirma-se – não está provada a existência das aludidas servidões e, consequentemente, a existência de qualquer ónus sobre os prédios em causa.
É certo, no entanto, que existia um litígio com os vizinhos confinantes cuja resolução poderia vir a culminar no efectivo reconhecimento dessas servidões. Existia, portanto, a possibilidade e o risco de efectiva existência dessas servidões e os Autores, não estando dispostos a aceitar esse risco (que não haviam previsto), pretendiam que os Réus solucionassem essas questões, ou seja, pretendiam – ao que tudo indica – que os Réus eliminassem esse risco no sentido de garantir que os imóveis seriam efectivamente transmitidos livres de ónus e encargos nos termos em que havia sido prometido.
Não obstante se reconheça que a existência desses litígios – com a inerente possibilidade de os prédios estarem efectivamente onerados com servidões de passagens – seja susceptível de afectar o interesse dos Autores (promitentes compradores) no negócio (pelo menos nas condições que haviam sido estabelecidas), é difícil considerar que esses litígios constituam um ónus efectivo que, nessa medida, interferisse com a execução da prestação dos Réus nos exactos termos que haviam sido contratados: a venda dos imóveis sem ónus e encargos (o litigio apenas representava a possibilidade ou risco de existência desses ónus, sendo discutível que representasse, ele próprio, um ónus ou encargo sobre os imóveis).
É, por isso, discutível que os Réus tivessem o dever de eliminar esse risco e solucionar os litígios existentes em termos que permitam afirmar que o incumprimento desse dever equivale a um incumprimento definitivo do contrato promessa.
Não ignoramos que, a par do dever primário ou principal de prestação – que, no caso, correspondia ao dever de emitir a declaração negocial de venda nos termos em que haviam prometido – coexistem outros deveres secundários e acessórios da prestação principal que se destinam a preparar o cumprimento e assegurar a sua perfeita realização[3] e cuja ligação funcional e incindível ao cumprimento da prestação principal permite afirmar que o seu incumprimento equivale ao incumprimento do dever/prestação primário.
Aceitamos, por isso, a posição subscrita no parecer junto aos autos quando nele se considera que, apesar de não constituir o seu dever primário, a eliminação de ónus e defeitos da coisa que o promitente vendedor se vinculou a transmitir sem eles corresponde a dever secundário da prestação que prepara e viabiliza o cumprimento curial do dever primário de vender a coisa livre de ónus e sem cumprimento do qual não se pode ter cumprida a prestação principal. Ou seja, a eliminação dos ónus da coisa é essencial para que se possa ter cumprida a obrigação contratual assumida de “vender a coisa livre de ónus” e, portanto, o promitente vendedor não pode cumprir a obrigação assumida sem que previamente elimine os ónus que porventura incidam sobre a coisa.
Sucede que, no caso e conforme se referiu, não é bem isso que está em causa.
No caso, não sabemos se existem (ou não) ónus sobre os imóveis que os Réus prometeram vender (sem ónus), sendo certo que não resultaram provadas as servidões em causa (não sabemos se elas existem) e, portanto, o que está em causa não é, propriamente, o dever de eliminar os ónus existentes. O que está em causa é o pretenso dever – que os Autores pretendiam impor aos Réus – de “garantir” a inexistência de ónus e encargos, eliminando o risco da sua eventual existência e solucionando os litígios com os vizinhos que reclamavam direitos de servidão.
Ora, como dissemos, é, no mínimo, discutível que essa actuação devesse ser imposta aos Réus como dever secundário de cujo cumprimento estivesse dependente o efectivo cumprimento da prestação primária que haviam assumido de vender os prédios livres de ónus e encargos, até porque, não estando provada a existência de quaisquer ónus, nunca se poderia afirmar que não estavam efectivamente a vendê-los livres de ónus e encargos. Ou seja, aquela actuação dos Réus não era essencial para que a obrigação primária fosse cumprida; o efectivo e adequado cumprimento desta obrigação não estava propriamente dependente daquela actuação, mas sim da circunstância (eventual e incerta) de existirem quaisquer ónus sobre os imóveis. Na verdade, ainda que os Réus omitissem aquela actuação, a prestação a que se haviam vinculado teria sido cumprida se, efectivamente, tais ónus não existissem; a prestação apenas teria sido incumprida – ou não teria sido cumprida em termos adequados – se se viesse a constatar posteriormente a efectiva existência dos ónus em causa, caso em que sempre restaria aos Autores (promitentes compradores) a possibilidade de recorrer ao regime jurídico da venda de bens onerados (arts. 905.º e segs. do CC) e de invocar os direitos aí concedidos.
De qualquer forma, ainda que se considere que os Réus estavam efectivamente vinculados ao apontado dever – garantindo a inexistência das referidas servidões e fazendo as diligências necessárias no sentido de impedir a passagem que estava a ser feita pelos prédios e solucionando o litígio existente com os vizinhos confinantes – não haveria fundamento para concluir que, à data da resolução efectuada pelos Autores, os Réus já haviam incorrido em incumprimento definitivo desse dever, uma vez que nada resulta da matéria de facto provada que nos permita concluir que os Réus tenham recusado em definitivo o cumprimento desse dever ou que, de algum modo, esse cumprimento fosse impossível.
Tendo em conta a posição dos Réus (que negavam a existência das referidas servidões) e a posição dos confinantes (que reclamavam o direito de ali passar), será seguro afirmar que a resolução dessas questões e do litígio existente passava por acordo a estabelecer com os vizinhos ou – com toda a probabilidade – pela necessidade de interposição de uma acção judicial (isso mesmo é reconhecido pelos Autores na carta a que se reporta a alínea WW, onde dizem – em segmento que não foi transposto para a matéria de facto – pensar não ser possível chegar a acordo com os vizinhos).
É certo que a resolução dessas questões poderia ser morosa e não seria expectável que tal sucedesse no curto prazo que ainda faltava para a data estabelecida para a celebração do contrato prometido, importando notar que os Autores apenas deram conhecimento aos Réus dessas questões em 01/10/2015 (4 meses antes da data que estava estipulada para a realização do negócio prometido) e não há prova de que os Réus delas tivessem conhecimento em momento anterior.
De qualquer forma, ainda que a prestação não pudesse já – com grande probabilidade – ser executada dentro do prazo estabelecido, ela continuaria a ser possível e não há prova de que os Réus tenham emitido qualquer declaração (expressa ou tácita) que pudesse ser considerada como declaração clara, séria, categórica, inequívoca e definitiva no sentido de que não iriam cumprir essa prestação e que, como tal, pudesse ser encarada como recusa definitiva do respectivo cumprimento. Não existe, na verdade, qualquer prova de que os Réus alguma vez tivessem afirmado que não pretendiam resolver a situação (designadamente por via judicial) ou que tivessem adoptado qualquer comportamento que evidenciasse essa recusa, tanto mais que não há notícia de que os Autores alguma vez lhe tivessem solicitado expressamente essa prestação. Não havia, portanto, razões para afirmar – como afirmam os Apelantes – que os Réus desvalorizarem as preocupações dos Autores de forma reiterada, clara e determinada, afirmando tacitamente (senão expressamente) que não iriam solucionar as questões referidas e que, como tal, não iriam colocar-se em condições de cumprir pontualmente a sua obrigação de celebrar o contrato-prometido nos termos acordados. Com efeito, na sequência da carta de 01/10/2015 e das comunicações que se lhe seguiram, os Réus prestaram os esclarecimentos que os Autores solicitavam, informando que desconheciam a existência de qualquer servidão e que não havia sido apresentada (pelos pretensos titulares) qualquer prova dessas servidões. Em nenhuma dessas comunicações, os Réus declararam – de forma expressa ou tácita – a sua recusa de encetar as diligências e procedimentos judiciais que fossem necessários para definir a situação das pretensas servidões; tal questão nem sequer chegou, na verdade, a ser colocada, sendo certo que os Autores não solicitaram expressamente essa actuação e os Réus também não se lhe referiram. É certo que, na sequência da comunicação dos Autores, os Réus nada fizeram, de concreto, com vista à resolução daqueles litígios nem manifestaram qualquer intenção de o fazer, mas isso não basta para concluir que se recusavam a fazê-lo em termos que permitam concluir por uma recusa antecipada de cumprimento equiparável a um incumprimento definitivo. A inacção dos Réus traduziria apenas, após o vencimento da obrigação (a data estipulada para a celebração do negócio), uma situação de mora – tendo em conta que a prestação continuava a ser possível (cfr. artº. 804.º, n.º 2, do CC) – mas não um incumprimento definitivo, uma vez que a prestação continuava a ser possível e os Réus não haviam recusado em definitivo o cumprimento, nem haviam assumido qualquer comportamento que revelasse, de modo inequívoco, que não iriam, em definitivo, cumprir a obrigação em causa.
Não existiam, portanto, razões para concluir – ao contrário do que pretendem os Autores/Apelantes – que os Réus não estavam e nunca iriam estar em condições de cumprir a prestação – a que se haviam vinculado – de vender os imóveis livres de ónus e encargos. Poderia haver razões para pensar que os Réus não iriam estar em condições de vender os imóveis livres de ónus e encargos e dos litígios que os envolviam na data que estava aprazada, mas não havia razões para pensar que nunca viessem a estar em condições de o fazer, ainda que com atraso e, consequentemente, com mora.
À data da comunicação de resolução dos Autores (22/01/2016), não existia, portanto, qualquer incumprimento dos Réus, muito menos definitivo, que pudesse legitimar a resolução do negócio por parte dos Autores; ainda não existia uma situação de mora (porque a data prevista para a prestação ainda não estava alcançada); não existindo mora, também não se verificava nenhuma das situações previstas no art.º 808.º e não havia existido qualquer declaração (expressa ou tácita) dos Réus que pudesse ser considerada como recusa antecipada de cumprimento do contrato (fosse em relação à prestação principal ou fosse em relação a qualquer dever secundário, designadamente o que acima referimos). O máximo que, à data, os Autores poderiam perspectivar era uma situação de mora dos Réus (que, em todo o caso, ainda não existia) e a mora, como é sabido, não equivale a incumprimento definitivo e apenas poderia ser convertida em tal por via dos mecanismos previstos no art.º 808.º.
Os Autores não tinham, portanto, fundamento legal para resolver o contrato nos termos em que o fizeram pela citada carta de 22/01/2016, uma vez que não existia qualquer incumprimento dos Réus.
Concluindo-se – como se concluiu – que não existia incumprimento dos Réus e que os Autores não tinham fundamento para resolver o contrato, o que importa agora saber é se – à luz da mesma posição doutrinária e jurisprudencial que é invocada pelos Apelantes com apoio no parecer já identificado que juntaram aos autos – a declaração de resolução efectuada pelos Autores através da carta de 22/01/2016 traduz ou evidencia uma recusa antecipada de cumprimento e, consequentemente, um incumprimento definitivo do contrato imputável aos Autores.
Temos como certo que a mera circunstância de a declaração de resolução do contrato ser ilegal e infundada não basta para concluir pelo incumprimento definitivo do contrato por parte do outorgante que subscreve a declaração[4]. Recuperando as considerações acima mencionadas, tal declaração valerá como recusa de cumprimento da prestação e como incumprimento definitivo se e na medida em que ela evidencie, de forma clara, séria, categórica, inequívoca e definitiva o propósito do declarante de não cumprir a sua obrigação, porque não quer ou porque não pode. Conforme se diz no Acórdão do STJ de 22/05/2018[5], “A declaração resolutiva infundada (...) só representa um incumprimento definitivo quando significa o propósito de não querer ou não poder cumprir”.
É isso, no entanto, que acontece na situação dos autos.
Na verdade, ainda que invoquem um incumprimento contratual da outra parte (os Réus), os Autores evidenciaram, na carta em questão, o seu firme propósito de não celebrar o negócio prometido, já que, aludindo à impossibilidade de celebrar a escritura na data que havia sido estabelecida, dizem também não aceitar e não estar disponíveis para o fazer em momento posterior, afirmando, de forma categórica, que não estão disponíveis para prorrogar o contrato e para aguardar por uma sentença judicial que definisse e resolvesse as questões que haviam suscitado (relacionadas, designadamente, com as servidões que eram reclamadas pelos proprietários confinantes). Ou seja, ao mesmo tempo que manifestavam a sua recusa em celebrar o contrato sem a prévia resolução das referidas questões, recusavam também que o prazo estipulado para a celebração da escritura (que terminava em poucos dias) fosse ultrapassado, apesar de ser certo que a resolução daquelas questões (que colocavam como condição necessária para a celebração do negócio prometido) não poderia ser feita no curto prazo que ainda faltava e exigiria, com toda a probabilidade (conforme reconheceram) a propositura de uma acção judicial sem que estivessem disponíveis para aguardar o seu desfecho.
Era certo, portanto, que os Autores estavam a declarar que não iriam celebrar o negócio prometido: não o celebrariam sem a resolução daquelas questões nem estavam dispostos a aguardar o tempo necessário (que poderia ser mais ou menos longo) para que elas fossem solucionadas.
Refira-se que, com ressalva dos casos em que o prazo estabelecido para o cumprimento é essencial, em virtude de o seu decurso implicar, desde logo, incumprimento definitivo por perda de utilidade ou interesse da prestação (e, no caso dos autos, nada aponta para a essencialidade do prazo estabelecido), o credor não tem, em principio, o direito absoluto de exigir o cumprimento da obrigação na data do respectivo vencimento e de recusar a prestação que lhe seja efectuada em momento posterior. O atraso no cumprimento da obrigação (ainda possível) configura apenas uma situação de mora e essa mora dá ao credor o direito de exigir indemnização pelos prejuízos causados (art.º 804º, n.º 1), sem que lhe dê, no entanto (pelo menos de imediato), o direito de recusar a prestação em momento posterior e o direito de resolver o contrato e de se desvincular das obrigações que também tenha assumido. Para que tal aconteça, é necessário que a mora se converta em incumprimento definitivo nos termos estabelecidos no art.º 808.º, seja porque, em consequência da mora, o credor perdeu o interesse na prestação ou seja porque a prestação não é executada dentro do prazo suplementar que, razoavelmente, seja fixado pelo credor.
Nessas circunstâncias, ainda que se perspectivasse que o negócio prometido não poderia ser celebrado na data aprazada (em virtude de os Réus não estarem em condições de cumprir a sua obrigação nos termos em que se haviam vinculado), os Autores não tinham o direito de recusar a celebração do negócio em momento posterior, como, efectivamente, fizeram na carta a que vimos aludindo, onde afirmaram expressamente a sua indisponibilidade para prorrogar o contrato. Conforme se referiu supra, o máximo que se perspectivava poder vir a ocorrer (na data aprazada) era uma situação de mora dos Réus, na medida em que a prestação continuaria a ser possível e, portanto, os Autores não podiam, sem mais, recusar a celebração do negócio prometido em momento posterior, sem que a mora, assim constituída, tivesse sido convertida em incumprimento definitivo por via dos mecanismos previstos no citado art.º 808.º.
Nessas circunstâncias, quando afirmaram – na carta em questão – a impossibilidade de celebração da escritura na data aprazada (por razões que imputavam aos Réus) e a sua indisponibilidade para prorrogar o contrato e, portanto, para celebrar a escritura em momento posterior, os Autores estavam claramente a afirmar que não iriam cumprir as obrigações assumidas no contrato promessa e celebrar o negócio prometido: não o fariam na data aprazada (porque entendiam não ser possível) e também não o fariam em momento posterior (porque não estavam disponíveis para tal, ou seja, não queriam). Estava em causa, portanto, uma declaração expressa, clara, séria, categórica, inequívoca e definitiva dos Autores no sentido de que não iriam cumprir a sua obrigação e que, nessa medida, corresponde a uma recusa antecipada de cumprimento e, consequentemente, a um incumprimento definitivo do contrato.
É certo que, depois disso – em 27/01 e 02/03 – os Autores enviaram novas comunicações, continuando a manifestar interesse na aquisição dos imóveis. Todavia, o interesse aí manifestado pelos Autores já não se reportava propriamente ao negócio que havia sido prometido e que haviam resolvido (ainda que sem fundamento); agora, os Autores já prescindiam da resolução dos litígios existentes e o que pretendiam era adquirir os imóveis por preço substancialmente inferior ao que havia sido estabelecido no contrato promessa aqui em causa (proposta que, aliás, já haviam feito anteriormente e foi recusada pelos Réus). Estas comunicações e o interesse nelas manifestado não colide, portanto, com a recusa de cumprimento do contrato promessa que haviam manifestado anteriormente; em relação a este contrato promessa e às concretas obrigações nele estabelecidas, a recusa dos Autores mantinha-se: não pretendiam celebrar o negócio nos termos que haviam sido prometidos ainda que os Réus viessem a solucionar os litígios existentes e ainda que viesse a ser reconhecida a inexistência das aludidas servidões, sendo certo que não queriam adquirir os imóveis com os litígios pendentes e também não estavam dispostos a aguardar pela sua resolução.
Foram, portanto, os Autores que incorreram em incumprimento definitivo do contrato, conforme se considerou na decisão recorrida.
Conforme resulta do que acima se expôs, os Réus nunca recusaram a celebração do negócio prometido; ainda que se entendesse que estavam vinculados ao dever (secundário) de solucionar as questões reclamadas pelos Autores e a providenciar pela resolução do litigio com os confinantes, apenas seria expectável que viessem incorrer em mora logo que ultrapassado o momento contratualmente definido para a celebração do negócio por não ser viável a resolução desse litigio até esse momento, sendo certo que, ainda que com atraso, a prestação continuava a ser possível e não haviam feito qualquer declaração (expressa ou tácita) no sentido de recusar o cumprimento desse dever. Foram, na verdade, os Autores que, sem aguardar a constituição em mora por parte dos Réus e fora do contexto previsto no art.º 808.º do CC, inviabilizaram o cumprimento daquele dever, declarando, inequivocamente, que não estavam dispostos a aguardar pela resolução do litigio que eles próprios estabeleciam como condição para a celebração do negócio prometido e que, como tal, não iriam cumprir o contrato.
Assiste, portanto, aos Réus o direito de fazer ser o sinal que os Autores lhe haviam entregado (94.000,00€), conforme disposto no art.º 442.º, n.º 2, do CC, confirmando-se, nessa parte, a decisão recorrida.
3. Direito de retenção
A questão que vem suscitada pelos Autores/Apelantes referente ao direito de retenção desenvolve-se, segundo as suas palavras, nos seguintes pontos:
· Saber se o direito de retenção podia ser convencionalmente afastado (como aconteceu na situação dos autos – cfr. alínea E) da matéria de facto);
· Saber se o direito de retenção permite a utilização do bem.
A resolução dessas questões está, no entanto, prejudicada e não tem qualquer relevância prática, sendo certo que não existe qualquer direito de retenção.
O direito de retenção – com consagração legal nos artigos 754.º e segs. do CC – é um direito real de garantia concedido ao detentor de determinada coisa em garantia de determinados créditos que detenha sobre a pessoa a quem está obrigado a entregar essa coisa e que se traduz, em linhas gerais, na faculdade de recusar a entrega dessa coisa enquanto o seu crédito (garantido pelo referido direito) não for satisfeito. Tais créditos são, em termos gerais, os que resultam de despesas feitas por causa da coisa ou de danos por ela causados (art.º 754.º), bem como os que são indicados no art.º 755.º, onde se inclui designadamente o crédito do beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos temos do artigo 442.º.
O direito de retenção pressupõe, portanto[6]:
i. Que o respectivo titular detenha (licitamente: cfr. art. 756.º, alín. a)) uma coisa que deva entregar a outrem;
ii. Que, simultaneamente, seja credor daquele a quem deve a restituição da coisa;
iii. Que entre os dois créditos exista a conexão exigida nas citadas disposições legais.
Ora, os Apelantes (Autores) não detêm qualquer crédito sobre a Ré (nenhum crédito lhes foi reconhecido); os Autores não detinham qualquer direito de retenção por força do disposto na alínea f) do n.º 1 do art.º 755.º porque, como acima se referiu, não detêm qualquer crédito por incumprimento imputável à outra parte (foram eles que incorreram em incumprimento do contrato) e também não invocaram – nem provaram – qualquer outro crédito por despesas feitas com os imóveis ou danos por eles causados. É certo, por isso, que nunca poderia ser equacionada a possibilidade de existência de qualquer direito de retenção. Consequentemente, é totalmente irrelevante a apreciação das questões que, sobre essa matéria, vêm suscitadas, não importando saber se tal direito podia (ou não) ser convencionalmente afastado e se ele permitia (ou não) a utilização do bem.
4. Cláusula penal – indemnização pela utilização dos imóveis
Analisemos agora a última questão suscitada pelos Autores (referente à indemnização pela utilização dos imóveis) em conjunto com o objecto do recurso subordinado da Ré que se relaciona com a mesma matéria, começando por fazer um enquadramento das questões e dos termos em que elas se colocam.
A Ré havia pedido – em reconvenção – que os Autores fossem condenados, solidariamente, a pagar-lhe, a título de cláusula penal, a quantia diária de 150 euros desde 25/2/2016 até 16/10/2019, o que soma a quantia de 199.350€. Subsidiariamente, para o caso de improcedência dessa pretensão, pedia que os Autores fossem condenados a pagar-lhe, a título de indemnização por danos patrimoniais (violação ilícita do direito de propriedade, ou pelo menos a título de enriquecimento sem causa), a quantia mensal de 1.500,00€, correspondente ao valor locativo dos imóveis (e de exploração turística dos mesmos), desde pelo menos 01/02/2014 até 16/10/2019, o que soma a quantia de 104.250€.
A sentença recorrida absolveu os Autores em relação à primeira pretensão (condenação, a título de cláusula penal, da quantia diária de 150€ desde 25/2/2016 até 16/10/2019, no valor global de 199.350€), mas condenou-os a “pagar à ré a quantia residual de €8750 (oito mil, setecentos e cinquenta euros), a título de indemnização por danos patrimoniais violação ilícita do direito de propriedade dos autores e enriquecimento sem causa, acrescido de juros de mora desde a citação, à taxa legal de juros civis”.
Com vista a esclarecer e enquadrar a condenação dos Autores no pagamento da referida quantia de 8.750,00€, importa referir que, conforme resulta da fundamentação da decisão, ela resulta do seguinte: considerou-se que os Autores reconvindos deviam ser condenados a pagar à Ré reconvinte, “...a título de indemnização por danos patrimoniais (violação ilícita do direito de propriedade dos réus, ou pelo menos a título de enriquecimento sem causa), a quantia mensal de 1500 euros, correspondente ao valor locativo dos imóveis (e de exploração turística, estando os Autores a usufruir os lucros dessa exploração), desde pelo menos 01-02-2014, data em que começaram a ocupar e a usufruir dos imóveis, até ao menos os grandes incêndios de Outubro de 2017, aí se mantendo a residir até à data em que procederam à efectiva e integral desocupação e entrega dos imóveis, o que soma a quantia de 102.750 euros” (julgando-se, portanto, procedente a segunda pretensão da Ré acima mencionada); todavia, apesar de se ter reconhecido que os Autores haviam incumprido o contrato e que, por isso, a Ré tinha o direito de fazer seu o sinal recebido no valor de 94.000,00€, entendeu-se – com percurso argumentativo que confessamos não ter percebido inteiramente – deduzir o valor desse sinal à referida indemnização, condenando-se os Autores ao pagamento do valor remanescente, ou seja, 8.750,00€.
Os Autores – em termos dúbios e sem que se perceba exactamente qual é a concreta alteração da decisão que, no que toca a essa matéria, entendem dever ser efectuada – contestam os cálculos efectuados na decisão recorrida, sustentando, se bem percebemos, que não podia ser considerado o período decorrido entre Janeiro de 2014 e 19/02/2016, uma vez que, nesse período, a utilização era lícita e estava autorizada pelo contrato promessa. Acrescentam que a exploração turística só teve lugar até aos incêndios de Outubro de 2017 e que não abandonaram a quinta em Outubro de 2019 (data da entrega das chaves), mas sim dois meses antes (em Agosto de 2019) e que, todas estas ressalvas diminuem grandemente o dever de restituição, aos Réus, do valor de uso que os Autores fizeram da quinta, caso o Tribunal da Relação considere que esse dever efectivamente existe.
A Ré, por seu turno, vem sustentar – no recurso subordinado que veio interpor – que os Autores deveriam ter sido condenados, conforme havia sido peticionado, a pagar, a título de cláusula penal, a quantia diária de 150 euros desde 25/2/2016 até 16/10/2019, o que soma a quantia de 199.350,00€, acrescida de juros de mora, à taxa legal de juros civis, desde a citação até efetivo e integral pagamento.
Mais sustenta que, ainda que assim não se entenda, deviam os Autores ser condenados na indemnização considerada pela sentença recorrida (102.750,00€), sem descontar o valor da quantia paga a título de sinal (nos termos em que fez a decisão recorrida) na medida em que não há fundamento para tal.
Apreciemos essa matéria e essas questões.
Começamos por referir – dando, nesse ponto, razão à Ré – que não encontramos fundamento legal para deduzir – conforme se fez na decisão recorrida – o valor do sinal de 94.000,00€ (que, anteriormente, se tinha reconhecido que a Ré tinha o direito de fazer seu por força do incumprimento dos Autores) ao valor da indemnização de 102.750,00€ que se entendeu reconhecer à Ré correspondente ao valor locativo dos imóveis (1.500,00€ mensais) durante o período em que os Autores os ocuparam e usaram (desde 01/02/2014). Tão pouco percebemos – como já assinalámos – o exacto percurso argumentativo que conduziu a essa decisão.
Com efeito, se se considera que a Ré tem direito à referida indemnização (correspondente ao valor locativo dos imóveis e por força da ocupação e uso dos imóveis que foi feita pelos Autores), não fará sentido que se deduza a essa indemnização o valor do sinal, na medida em que isso implicaria, na prática, eliminar o direito que a lei atribui à Ré (conforme também se reconheceu e decidiu na sentença recorrida) de fazer seu o sinal que lhe foi entregue por força do incumprimento do contrato promessa que se entendeu ser imputável aos Autores. Com esse procedimento, os Autores apenas estariam a pagar (ou indemnizar) o uso que fizeram dos imóveis, sem que sofressem a consequência que se encontra prevista na lei pelo incumprimento contratual em que incorreram, com a consequente negação à Ré do direito – que a lei lhe atribui – de fazer seu o sinal que lhe havia sido entregue.
De qualquer forma, não valerá a pena, por ora, aprofundar essa questão, uma vez que a pretensão formulada pela Ré referente a essa indemnização havia sido formulada a título subsidiário e, portanto, apenas poderá ser tomada em consideração – e apreciada – caso se julgue improcedente o pedido formulado a título principal (cfr. art.º 554.º do CPC).
Ora, o pedido que a Ré havia formulado a título principal – e cuja procedência vem peticionar no recurso subordinado – reportava-se à cláusula penal que estava prevista no contrato, pedindo a Ré que os Autores fossem condenados, a esse título, a pagar-lhe a quantia global de 199.350,00€.
Importa, portanto, apreciar esta pretensão, uma vez que – conforme se referiu – só a sua improcedência poderá justificar a necessidade de apreciação da pretensão referente à indemnização acima mencionada.
A pretensão em causa radica na cláusula do contrato promessa que foi celebrado entre as partes onde efectivamente se estabeleceu – na cláusula 4.ª-B da adenda – o seguinte:
“Em caso de cessação do contrato por qualquer causa, nomeadamente por resolução derivada de incumprimento por parte dos promitentes compradores, estes obrigavam-se a entregar os prédios objecto do presente contrato aos promitentes vendedores, no mesmo estado em que actualmente se encontram, no prazo de cinco dias a contar desde a data em que a cessação opera os seus efeitos, sob pena de pagarem, por cada dia de atraso na respectiva entrega, a título de cláusula penal, a quantia de cento e cinquenta euros”.
Está em causa, portanto, uma cláusula penal (art.º 810.º do CC) que é dirigida, não propriamente ao incumprimento do contrato promessa, mas sim ao incumprimento (atraso) da obrigação de entrega dos imóveis que recaía sobre os promitentes compradores (os Autores) em caso de cessação do contrato promessa em função do qual lhes havia sido concedida a detenção desses bens, nomeadamente por incumprimento da sua parte.
Ora, à luz da matéria de facto provada, não encontramos fundamento para negar esta pretensão.
Na verdade, conforme resulta do que se disse supra, o contrato promessa cessou por incumprimento dos Autores (promitentes compradores) e, portanto, estavam os mesmos obrigados a entregar os imóveis no prazo de cinco dias a contar da data em que receberam a carta dos Réus (19/02/2016) onde estes, imputando aos Autores o incumprimento definitivo do contrato, solicitavam essa entrega dentro do prazo referido (cinco dias).
A verdade é que os Autores, não só não entregaram os imóveis no prazo de cinco dias, como também não o fizeram nos três anos seguintes e só o fizeram em Outubro de 2019, tendo continuado, além do mais, a usufruir dos imóveis para aí residirem (pelo menos até Agosto de 2019) e para auferir os rendimentos da exploração dos apartamentos turísticos aí existentes (pelo menos até Outubro de 2017).
Refira-se que nada resulta da matéria de facto que possa justificar uma tal actuação por parte dos Autores. Os Autores sabiam que o contrato havia cessado e não tinham qualquer interesse na sua celebração; conforme se referiu supra, o interesse que ainda mantinham já não se reportava a esse contrato (que havia cessado), mas a um contrato diferente por preço substancialmente inferior (cerca de metade) que os Réus não aceitavam. E não era legítimo – nem aceitável – que mantivessem aquela ocupação apenas porque (como se diz na alínea JJ) da matéria de facto) mantinham a esperança de concretizar o negócio com redução do preço e como forma de pressão, uma vez que, além de não se vislumbrarem razões para essa esperança (os Réus sempre haviam recusado essa proposta), essas negociações não justificavam e não legitimavam a ocupação do imóvel, muito menos o seu uso e a sua exploração.
Note-se que os Autores não gozavam sequer de qualquer direito de retenção (conforme se disse supra) sobre os imóveis, mas, de qualquer forma e ainda que, à data, pudessem pensar que o tinham por entender que havia incumprimento dos Réus (ainda que tal não seja de admitir como provável porque, se fosse o caso, tê-lo-iam invocado em garantia do crédito que reclamavam nesta acção e não teriam entregado os prédios antes de virem instaurar a acção, como de facto sucedeu, sendo certo que instauraram a acção em 17/10/2019 e entregaram os imóveis em 16/10/2019), a verdade é que – conforme também reconhecem nas suas alegações – esse direito nunca lhes daria o direito de usar e habitar os imóveis – muito menos o direito de proceder à sua exploração e auferir os respectivos rendimentos – conforme resulta do disposto no art.º 671.º, alínea b), do CC, aplicável por força do disposto no art.º 759.º, n.º 3.
É certo, portanto, que se mostram verificados os pressupostos de funcionamento da aludida cláusula penal que, tendo em conta a duração do atraso no cumprimento da obrigação, ascenderá ao valor peticionado de 199.350,00€.
E não se argumente – como fizeram os Autores (na réplica que apresentaram oportunamente, sendo certo que não responderam ao recurso subordinado) – que existiu acordo das partes no sentido de os Autores permanecerem na propriedade até 31/07/2019 sem qualquer contrapartida. Na verdade, como emerge da matéria de facto e das comunicações (cartas ou emails) juntas aos autos, as conversações entre as partes que ocorreram após a cessação do contrato e no decurso da qual a Ré admitiu a data de 31/07/2019 para a desocupação do prédio tinham apenas em mente a obtenção de um acordo que evitasse a necessidade de recorrer a tribunal e tendo em conta que ambas as partes se arrogavam direitos sobre a outra, acordo esse que nunca foi alcançado. O que estava em causa nesse momento já não era uma negociação tendo em vista a aquisição dos prédios pelos Autores (os Autores não estavam interessados em adquirir os prédios nos termos que constavam do contrato promessa e a Ré não tinha qualquer interesse em vender pelo preço – substancialmente inferior – que os Autores pretendiam); o que estava em causa era apenas – como se disse – uma negociação tendo em vista um acordo das partes que definisse os direitos que a cada uma assistia em resultado da cessação do contrato e que evitasse o recurso o tribunal, não tendo existido qualquer acordo que legitimasse a ocupação dos imóveis pelos Autores (a data de 31/07/2019 inseria-se nesse contexto e visava apenas obter a entrega dos imóveis sem recurso a tribunal, sem que traduzisse, no entanto, um acordo que legitimasse a ocupação que vinha sendo efectuada sem qualquer título). Não tendo sido alcançado qualquer acordo por via da qual as partes tivessem regulado a situação noutros termos, é certo que se mantinham os direitos que a cada uma delas assistisse em resultado da cessação do contrato e, designadamente, o direito da Ré de exigir a cláusula penal que havia sido estabelecida caso lograsse provar os seus pressupostos.
Em todo o caso, essas negociações poderão justificar uma redução da cláusula penal nos termos que iremos concretizar.
Segundo disposto no art.º 812.º do CC, “a cláusula penal pode ser reduzida pelo tribunal, de acordo com a equidade, quando for manifestamente excessiva, ainda que por causa superveniente; é nula qualquer estipulação em contrário”.
Tendo em conta que essa redução não foi peticionada pelos Autores (sendo certo que basearam a sua defesa na inexigibilidade da cláusula penal), a primeira questão que se coloca é a de saber se tal redução pode e deve ser feita oficiosamente pelo Tribunal.
A resposta será, em princípio, negativa. É essa a posição da doutrina e jurisprudência maioritária[7].
Em todo o caso, importará sempre ressalvar a possibilidade de a cláusula penal, pelo seu montante e por força de outras circunstâncias, configurar um abuso de direito, casos em que tal abuso (sendo de conhecimento oficioso) deverá conduzir à redução da cláusula penal sempre que o seu valor, e tendo em conta as concretas circunstâncias do caso, se evidencie como manifestamente excessivo e clamorosamente ofensivo da boa fé e dos bons costumes (cfr. art.º 334.º do CC). Sobre esta matéria, veja-se a posição de Nuno Pinto Oliveira[8] quando refere que o problema de saber se o tribunal tem ou não o dever de reduzir oficiosamente a pena convencional ou excessiva deve resolver-se atendendo à relação entre os artigos 334.º e 812.º.
Revertendo ao caso dos autos, estamos perante uma cláusula penal que, no seu cômputo geral, ascende ao valor de 199.350,00€ (valor que é substancialmente elevado, sobretudo se tivermos em conta que os Autores também são penalizados com a perda do sinal no valor de 94.000,00€).
Registe-se, de qualquer forma, que a cláusula penal fixada (150,00€ por cada dia de atraso na entrega dos imóveis) não é propriamente excessiva, muito menos em termos manifestos.
Na verdade, o excesso que possa estar em aqui em causa não resulta, propriamente, do valor diário fixado para a cláusula penal (que se situa dentro da normalidade), mas sim do período temporal – perfeitamente anormal e atípico – correspondente ao atraso da prestação (mais de três anos). E é precisamente nesse ponto que reside a circunstância que, de algum modo, nos permite afirmar a existência de algum abuso de direito por parte da Ré quando reclama o valor em questão, porque, na verdade, também contribuiu para a situação e permitiu que ela se mantivesse durante todo aquele período. Com efeito, pretendendo – ao que tudo indica – evitar o recurso aos meios judiciais, foi negociando e discutindo com os Autores os termos de um eventual acordo, sem que, durante todo esse período, tivesse tomado medidas mais enérgicas no sentido de pôr fim à ocupação dos imóveis que os Autores vinham mantendo com o propósito (aparente) de pressionar a Ré a um acordo que lhes fosse mais vantajoso, sem que os tivesse intimado de modo mais expresso a desocupar os imóveis e criando, dessa forma, alguma expectativa nos Autores de que legitimava a ocupação e que não lhes iria ser exigida a quantia avultada que agora é reclamada, apesar de continuar a dizer – como resulta das comunicações juntas aos autos (designadamente a de 24/01/2019) – que a utilização do bem continuaria a ser cobrada (1.500,00€ mensais) porque não via razões para que ali morassem gratuitamente. Nessas circunstâncias, a reclamação da totalidade da cláusula penal (de valor substancialmente elevado) excede, de forma que entendemos manifesta, os limites impostos pela boa fé, na medida em que traduz uma conduta de algum modo contrária à anterior conduta da Ré quando compactuou com o prolongamento da situação sem pedir expressamente a entrega dos imóveis.
Admitimos, portanto, pelas razões apontadas, alguma redução do valor global da cláusula penal que seria devida pelos Autores e que, nas circunstâncias descritas, se evidencia como excessiva e desproporcionada.
Resta saber em que medida.
No que toca aos elementos a ponderar para efeitos de redução desse valor, Brandão Proença[9] aponta os seguintes: a importância da obrigação não cumprida, a gravidade objectiva e subjectiva do incumprimento, a situação económica das partes, a conduta agravadora do lesado e as eventuais vantagens retiradas pelo devedor com violação. Segundo Almeida Costa[10] e sem esquecer que a redução não poderá descer abaixo dos danos reais, haverá que ter em conta, entre outros: os danos previsíveis ao tempo da conclusão do contrato e o efectivo prejuízo sofrido pelo credor, os legítimos interesses das partes, inclusive os não patrimoniais; a natureza do contrato e as circunstâncias em que foi realizado, nomeadamente a situação económica e social das partes à data da celebração do contrato, o motivo do incumprimento e a boa ou má fé do devedor.
No caso, além dos evidentes prejuízos que essa detenção (ilegítima) causou à Ré – que, durante todo esse período, ficou privada da utilização dos imóveis e de negociar o seu arrendamento ou a sua venda com outros interessados, tendo ficado, inclusivamente, sem meios económicos e vivendo numa roulotte à custa de familiares e amigos (cfr. alínea AAA) da matéria de facto) –, tal detenção representou também uma evidente e relevante vantagem patrimonial (enriquecimento) que os Autores obtiveram à custa da Ré sem causa justificada, já que, conforme se referiu, não só habitaram os imóveis durante mais de três anos sem nada pagar, como também auferiram e fizeram seus (durante mais de um ano) os rendimentos da exploração dos apartamentos turísticos.
Importa notar, desde logo, que, sendo de 1.500,00€ mensais o valor locativo dos imóveis (cfr. alínea GGG) da matéria de facto), o prejuízo efectivo da Ré resultante da falta de entrega dos imóveis será, no mínimo, de 66.000,00€ (tendo em conta 44 meses de ocupação), pelo que a cláusula penal nunca poderá reduzida para valor inferior. Nessas circunstâncias, ponderando outros prejuízos que a Ré tenha sofrido, ponderando a gravidade e as razões do incumprimento (sendo certo que – conforme resulta da alínea JJ) – os Autores mantiveram a ocupação dos imóveis como forma de pressionar a Ré a vender os imóveis por valor reduzido ou a devolver o sinal, ao qual não tinham direito), ponderando as efectivas e reais vantagens obtidas pelos Autores que, durante mais de um ano, auferiram rendimentos (de valor desconhecido) com a exploração dos imóveis e à custa, portanto, de bens que não lhes pertenciam (pertenciam à Ré), mas ponderando também, nos termos acima mencionados, a conduta da Ré que foi permitindo que a situação se prolongasse, entendemos ser ajustado – em termos de equidade – reduzir a cláusula penal ao valor de 120.000,00€.
Procede, portanto, nessa medida, a pretensão formulada, a título principal, pela Ré.
Procedendo essa pretensão, não há lugar à apreciação do pedido que havia sido formulado a título subsidiário (referente à indemnização por violação ilícita do direito de propriedade ou enriquecimento sem causa) com a consequente revogação da decisão recorrida no segmento em que, a esse título, condenou os Autores a pagar à Ré a quantia de 8.750,00€.
SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):
(…).
V.
Em face de tudo o exposto, decide-se, julgar improcedente o recurso (principal) dos Autores e julgar parcialmente procedente o recurso (subordinado) da Ré e, em consequência:
Ø Revoga-se a sentença recorrida no segmento (constante da alínea e) da decisão) em que condenou os Autores Reconvindos “...a pagar à ré a quantia residual de €8750 (oito mil, setecentos e cinquenta euros), a título de indemnização por danos patrimoniais violação ilícita do direito de propriedade dos autores e enriquecimento sem causa, acrescido de juros de mora desde a citação, à taxa legal de juros civis” (por não haver lugar à apreciação e decisão desse pedido deduzido a título subsidiário);
Ø Revoga-se a sentença recorrida no segmento (constante da alínea d) da decisão) em que absolveu os Autores Reconvindos “...da condenação no pagamento solidário à ré, a título de cláusula penal, a quantia diária de 150 euros desde 25/2/2016 até 16/10/2019, o que soma a quantia de 199.350 euros”, substituindo-se esse segmento por outro em que se condenam os Autores a pagar à Ré, a título de cláusula penal, a quantia global de 120.000,00€ (cento e vinte mil euros), acrescida de juros, à taxa legal, desde a citação e até pagamento;
Ø Confirma-se, em tudo o mais, a decisão recorrida.
As custas do recurso dos Autores serão por eles (Autores) suportadas.
As custas do recurso da Ré serão suportadas por ambas as partes na proporção do respectivo decaimento (60% para os Autores e 40% para a Ré)
Notifique.
Coimbra,
(Maria Catarina Gonçalves)
(José Avelino Gonçalves)
(Chandra Gracias)
[1] Cfr. neste sentido, João Calvão da Silva, Sinal e Contrato Promessa, 12.ª edição, páginas 140 a 143; João Carlos Brandão Proença, Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações, 2011, páginas 256 a 279 e, mais especificamente, a página 277 e Nuno Pinto Oliveira, Princípios de Direito dos Contratos, 2011, páginas 864 a 868. Na jurisprudência, vejam-se, designadamente, os Acórdãos do STJ de 09/05/2024 (processo n.º 1568/22.6T8FNC.L1.S1), de 21/01/2021 (processo n.º 109/19.7T8MAI.P1.S1), de 11/11/2020 (processo n.º 2117/18.6T8VRL.G1.S1), de 22/05/2018 (processo n.º 27800/15.4T8PRT.P1.S1), de 26/09/2013 (processo n.º 564/11.3TVLSB.L1.S1), de 26/04/2012 (processo n.º 743/2001.E1.S1) e de 10/01/2012 (processo n.º 25/09TBVCT.G1.S1), todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[2] Ob. cit., pág. 141.
[3] Cfr. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 4.ª edição, pág. 48 e Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 3.ª edição, págs. 106 e 107.
[4] Cfr. Pinto Oliveira, ob. cit., pág. 867 e Calvão da Silva, ob. cit., pág. 143.
[5] Proferido no processo nº 27800/15.4T8PRT.P1.S1 e disponível em http://www.dgsi.pt.
[6] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Vol. I, 3.ª edição revista e actualizada, pág. 742.
[7] Cfr. Brandão Proença, ob. cit., pág. 397 e Acórdãos do STJ de 16/01/2025 (processo n.º 12492/22.2T8PRT.P1.S1), 07/03/2006 (processo n.º 05A3965) e de 17/04/2008 (processo n.º 08A630), todos disponíveis em https://www.dgsi.pt., bem como a doutrina e jurisprudência aí citada.
[8] Ob. cit., pág. 939.
[9] Ob. cit., pág. 398.
[10] Direito das Obrigações, 4.ª edição, pág. 547.