I – A declaração de insolvência da locatária – sem que haja sequer indicio de que o bem locado tenha sido (ainda que indevidamente) apreendido para a massa – não obsta ao prosseguimento do procedimento cautelar que, com vista à entrega judicial do bem e ao abrigo do art.º 21.º do Dec. Lei n.º 149/95 de 24/06, foi instaurado, antes dessa declaração de insolvência, com fundamento na alegada cessação (por resolução) do contrato de locação financeira em momento anterior, tendo em conta que o bem em causa pertence ao locador e não se integra na massa insolvente.
II – O periculum in mora não é requisito nem pressuposto da providência cautelar de entrega judicial a que se reporta o citado art.º 21.º, não sendo, por isso, exigível a sua alegação e prova.
III – A declaração de resolução efectuada pelo locador mediante carta que, apesar de não ter sido recebida pelo locatário, foi expedida, não só para a morada que constava do contrato, mas também para a morada que correspondia à sua efectiva sede social – e que, nessa medida, não foi recebida por culpa do destinatário (locatário) – considera-se eficaz, nos termos previstos no art.º 224.º, n.º 2, do CC, operando os seus efeitos e determinando, por isso, a resolução e cessação do contrato.
IV – A antecipação do juízo sobre a causa principal nos termos previstos no n.º 7 do art.º 21.º do citado diploma pressupõe a existência nos autos de elementos que, superando a prova sumária e a probabilidade séria que, nos termos nos n.ºs 2 e 4, são bastantes para decretar a providência, sejam suficientes e idóneos para formar um juízo definitivo sobre o direito do locador à entrega do bem nos termos previstos no n.º 1 do citado art.º 21.º, situação que se tem como verificada quando os autos fornecem prova segura (sem necessidade de prova adicional) do contrato de locação, do seu incumprimento e das concretas circunstâncias em que foi efectuada a resolução do contrato por parte do locador, impondo-se apenas extrair as consequências jurídicas desses factos, ao nível, designadamente, da validade e eficácia da declaração resolutiva.
(Sumário elaborado pela Relatora)
I.
O Banco 1..., S.A., com sede na Praça ..., ..., veio instaurar procedimento cautelar contra A... Lda., com sede na Rua ... ... ..., pedindo, ao abrigo do art.º 21º do Decreto-Lei 149/95 de 24 de Junho (com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 30/2008 de 25 de Fevereiro) a entrega judicial do semireboque da marca kogel, modelo cool purfero com carroçaria frigorifica mono-temperatura, Matrícula GD-...02.
Para fundamentar essa pretensão, alegou, em resumo, ter celebrado com a Requerida – em 12/05/2021 – um contrato de locação financeira pelo qual lhe deu em locação o bem acima mencionado pelo prazo de 60 meses com rendas mensais e sucessivas, a primeira no montante de €33.000,00 e as restantes 59 rendas no montante de €1.371,38 acrescidas de IVA à taxa legal em vigor, mais alegando que a Requerida não pagou a renda vencida em 07/11/2023 nem as seguintes, razão pela qual, e conforme previsto no contrato, procedeu à sua resolução por carta registada com aviso de recepção enviada para as moradas conhecidas do Banco e que, não obstante a interpelação feita, a Requerida não procedeu à entrega do bem em questão. Alega, por último, que o referido equipamento está em constante desvalorização, receando, por isso, em face da situação de incumprimento da Requerida, que, quando regressar à sua posse, ele tenha um valor inferior ou tenha perdido totalmente o seu valor.
Tendo sido determinada a sua citação, a Requerida veio deduzir oposição, alegando, no essencial, que o contrato em causa não foi validamente resolvido, uma vez que as cartas, por via das quais a Requerente procedeu à sua resolução, nunca chegaram ao seu poder por motivos que desconhece e independentes da sua vontade, tendo sido devolvidas à Requerente. Sustenta, por isso, que o contrato não se encontra resolvido, pelo que não é exigível a entrega do equipamento. Sustenta, além do mais, que não foi alegada matéria factual que permita concluir-se pela existência de fundado receio de lesão e, muito menos, grave e dificilmente reparável, do direito de propriedade ou outro da Requerente, não estando, por isso, verificados os pressupostos necessários para que possa ser decretada a providência solicitada.
Conclui pela improcedência da pretensão formulada.
Mediante requerimento apresentado em 23/01/2025, veio a Requerida informar que, nessa mesma data, havia sido declarada a sua insolvência, requerendo, com esse fundamento e ao abrigo do disposto no n.º 1 do art.º 88.º do CIRE, a suspensão da instância, pretensão que veio a ser indeferida por despacho proferido em 24/01/2025.
Realizado o julgamento, foi proferida decisão – em 06/02/2025 – onde se decidiu julgar procedente o procedimento cautelar, ordenando-se “...a entrega imediata, à Requerente, na pessoa da fiel depositária indicada e que se nomeia – a saber, B..., Lda,, com sede na Rua ..., ... ... – do semireboque da marca kogel, modelo cool purfero com carroçaria frigorifica mono-temperatura, com a matrícula GD-...02”
Tendo sido ainda determinada a notificação da Requerida para se pronunciar quanto à possibilidade de antecipação do juízo sobre a causa principal (cf. artigo 21.º, n.º 7 do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho), veio a mesma pronunciar-se, dizendo que deveria ser a Sr.ª Administradora de Insolvência a pronunciar-se sobre essa matéria, à luz do disposto no art.º 81.º do CIRE.
Na sequência, foi proferida decisão – em 20/02/2025 – onde se decidiu “...antecipar o juízo sobre o mérito da causa principal, julgando-se definitiva a decisão proferida que decretou a providência cautelar e condenar a requerida A..., LDA na entrega definitiva à Banco 1..., S.A:
a) Do semireboque da marca kogel, modelo cool purfero com carroçaria frigorifica mono-temperatura, com a matrícula GD-...02”.
Inconformada com a decisão, a Requerida veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:
(…).
A Requerente respondeu ao recurso, formulando as seguintes conclusões:
(…).
II.
Questões a apreciar:
As conclusões das alegações da Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – suscitam as seguintes questões:
· Saber se a declaração de insolvência obsta ao prosseguimento dos presentes autos;
· Saber se a decisão recorrida violou o principio do contraditório por não ouvido previamente a Administradora da Insolvência antes da antecipação do juízo sobre a causa principal;
· Saber se existiu erro da decisão proferida sobre a matéria de facto em relação ao ponto 13 dos factos provados e alínea a) dos factos não provados;
· Saber se estão verificados os pressupostos da providência (a resolução do contrato e o periculum in mora)
· Saber se a decisão que antecipou o juízo sobre a causa principal está ferida de nulidade por falta de fundamentação e saber se estavam (ou não) verificados os pressupostos para tal decisão.
III.
Na 1.ª instância, julgaram-se provados os seguintes factos:
1. Em 12-05-2021, no exercício da sua actividade, a Requerente, na qualidade de “Locador”, firmou com a Requerida, então designada C..., Lda., na qualidade de “Locatário”, um acordo escrito denominado de “Contrato de Locação Financeira Mobiliária n.º ...50”.
2. Nos termos do referido acordo, a Requerente comprometeu-se, para além do mais, a adquirir o semi-reboque da marca kogel, modelo cool purferro com carroçaria frigorifica mono-temperatura, com a matrícula GD-...02, escolhido pela Requerida e, bem assim, a ceder-lhe a sua utilização.
3. Por seu turno, a Requerida obrigou-se ao pagamento de uma contrapartida pecuniária mensal, no valor de € 33.000,00 acrescidos de IVA no primeiro mês, e € 1.371,38 acrescidos de IVA nos restantes meses.
4. Ficou ainda convencionado que tal acordo teria uma duração de 60 meses.
5. Do artigo 11.º, n.º 1 das condições gerais do acordo mencionado em 1. consta que “para além dos demais casos de resolução decorrentes da lei e do presente Contrato, este poderá ser resolvido em caso de incumprimento de qualquer uma das obrigações do Locatário se este, interpelado para o efeito por escrito não suprir a sua falta no prazo de dez dias a contar da data da emissão daquela notificação”.
6. Por via do n.º 3 do artigo 11.º das condições gerais do acordo mencionado em 1., as partes convencionaram ainda que “a resolução far-se-á por simples declaração do Locador dirigida ao Locatário, por escrito”.
7. Caso em que, nos termos do n.º 4 do mesmo artigo 11.º, a Requerida ficaria obrigada à restituição do bem locado em bom estado, no prazo máximo de cinco dias a contar da data da resolução.
8. Mais consignaram ainda, no artigo 13.º das condições gerais, que “As notificações ou comunicações entre Locador e o Locatário serão consideradas válidas e eficazes se forem efetuadas para os respetivos domicílios ou sedes sociais tal como identificados neste Contrato ou que, posteriormente, sejam informados, por escrito, à outra parte. Em caso de alteração de domicílio do Locatário deve este comunicar ao Locador a nova morada nos 30 dias subsequentes à alteração, por carta registada com aviso de receção”.
9. A Requerente adquiriu o bem identificado em 2. e procedeu à sua entrega à Requerida.
10. A Requerida deixou de efectuar o pagamento das contrapartidas pecuniárias mensais a que se obrigou a 07-11-2023.
11. Em face da situação descrita em 10. a Requerente enviou à Requerida, a 07-02-2024, carta registada com aviso de recepção, para a morada constante do contrato e para aquela inscrita no registo comercial, com o seguinte teor: “(…) Relativamente ao contrato de locação financeira identificado em epígrafe, constituíram-se V. Exas. em Incumprimento por não terem procedido ao pagamento das seguintes rendas:
Nr. Renda Data vencimento Valor da Renda
29 07/11/2023 1.629,05 Eur.
30 07/11/2023 1.798,92 Eur.
31 07/11/2023 1.798,92 Eur.
32 07/11/2023 7.798,44 Eur.
Nos termos das Condições Gerais do referido contrato, o incumprimento tornar-se-á definitivo, caso V Exas. não façam cessar a mora, repondo a situação que se verificaria se não tivesse havido incumprimento, no prazo de 15 dias, a contar da emissão da presente intimação para cumprimento, com as consequências daí resultantes (…).”
12. A Requerida não procedeu à liquidação das quantias em dívida.
13. Pelo que, no dia 07-03-2024, a Requerente remeteu à Requerida carta registada com aviso de recepção, para a morada constante do contrato e para aquela inscrita no registo comercial, com o seguinte teor “ (…) Não tendo V. Exas, procedido ao pagamento das rendes em débito ao Banco 1..., S.A., no valor global de 7,025.33 €, apesar de interpelados para o fazer no prazo de 15 dias a contar da data de receção da carta enviada em 07/02/2024 incorreram, por isso, em Incumprimento definitivo conforme previsto nas Condições Gerais do contrato de locação financeira.
(…)
Face ao exposto, o Banco 1..., S.A. considera resolvido o contrato de locação financeira identificado em epigrafe (…).
(…)
Para pagamento da quantia em divida, bem como para a entrega do bem, dispõem V. Exas, do prazo de 8 dias a contar da data de receção desta carta. Findo este prazo será imediatamente e sem mais, instaurada a competente ação judicial.”.
14. A Requerente procedeu ao cancelamento do registo do acordo firmando com a Requerida.
15. Até à data, a Requerida não procedeu à restituição do bem identificado em 2.
*
Não se julgou provado o seguinte facto:
a) A Requerida não tomou conhecimento da missiva mencionada em 13. em virtude de causa alheia e independente da sua vontade»
IV.
Apreciemos as questões suscitadas no recurso.
1. A declaração de insolvência e o prosseguimento dos autos
Sustenta a Recorrente que, tendo sido declarada a sua insolvência (no âmbito do processo nº 148/25....), os presentes autos não podiam prosseguir de forma independente da insolvência, tendo em conta que, nos termos do art.º 90.º do CIRE, os credores da insolvência apenas poderão exercer os seus direitos em conformidade com os preceitos do CIRE e tendo em conta que, de acordo com o disposto no art.º 88.º do mesmo diploma, a declaração de insolvência determina a suspensão de qualquer diligência executiva ou providência requerida pelos credores da insolvência que atinjam os bens que integram a massa insolvente e obsta à prossecução de qualquer ação intentada pelos credores de insolvência.
Não lhe assiste razão.
Estamos, no caso, perante a providência cautelar de entrega judicial a que se reporta o art.º 21.º do Dec. Lei n.º 149/95 de 24/06 que tem como pressuposto a cessação do contrato de locação financeira – por resolução ou pelo decurso do prazo sem ter sido exercido o direito de compra – e a constituição da obrigação do locatário, decorrente dessa cessação, de restituir o bem ao locador.
No pressuposto de que se verificam os pressupostos da referida providência (questão que será analisada mais adiante), não está em causa, portanto, um contrato de locação financeira que esteja em vigor à data da declaração de insolvência (esta, como emerge dos autos, apenas veio a ser declarada já na pendência do presente procedimento), mas sim perante um contrato que já cessou a sua vigência (tendo sido já efectuado o cancelamento do ónus na Conservatória do Registo Automóvel) e que, nessa medida, já não releva para a insolvência, nenhuma razão existindo – a não ser lapso ou desconhecimento da situação jurídica do bem – para que o bem em questão seja apreendido para a insolvência (cfr. art.º 149.º do CIRE) por ser certo que o mesmo pertence ao locador, não fazendo parte do património do devedor e não se integrando, por isso, na massa insolvente (cfr. art.º 46.º do mesmo diploma).
É certo que, caso o bem seja (indevidamente) apreendido para a sua massa, é por via do procedimento previsto no art.º 141.º do CIRE ou da acção prevista no art.º 146.º que deve ser decretada a sua separação da massa e a restituição ao proprietário.
Não é isso que acontece no caso dos autos, porquanto não há notícia de que o bem em causa tenha sido efectivamente apreendido para a massa.
Refira-se, por outro lado, que aquilo que se determina no art.º 88.º do CIRE – que, segundo a Apelante, teria sido violado pela decisão – é que são suspensas as providências requeridas pelos credores da insolvência que atinjam os bens integrantes da massa insolvente, o que – reafirma-se – não é o que acontece no caso, uma vez que o equipamento em causa não é um bem integrante da massa: ele não pertence à devedora/insolvente e tão pouco há notícia de que tenha sido (ainda que indevidamente) apreendido para a massa.
O mesmo acontece com o art.º 90.º do CIRE – que, segundo a Apelante, também teria sido violado pela decisão recorrida – uma vez que, no que toca à obrigação de entrega do bem na sequência da cessação do contrato, a Requerente não é credora da insolvência, tendo em conta que apenas está a pedir a entrega de um bem que lhe pertence e que não está integrado na massa.
Nessas circunstâncias, estando em causa um contrato de locação financeira que, alegadamente, cessou (por resolução) antes de declarada a insolvência, não havendo notícia ou indício de que o bem em questão tenha sido apreendido para a massa e não havendo razões para supor que tal tenha acontecido ou venha a acontecer (na medida em que está em causa um bem pertencente a terceiro – no caso, a Requerente/locadora – que não se integra na massa insolvente e que só por lapso ou erro poderia ser apreendido, tanto mais que o ónus em causa já foi cancelado no registo automóvel), é certo que a declaração de insolvência não tem qualquer interferência e não obsta ao prosseguimento do procedimento cautelar que, com vista à entrega judicial do bem, foi instaurado antes dessa declaração de insolvência.
Sobre esta matéria e no mesmo sentido, vejam-se os Acórdãos da Relação de Lisboa de 05/12/2024 (proc. n.º 13796/23.2T8SNT.L1-6), da Relação do Porto de 26/03/2023 (proc. n.º 621/23.3T8VFR.P1), da Relação de Coimbra de 04/04/2017 (proc. n.º 2534/16.6T8LRA.C1)[1]
Improcede, portanto, esta questão.
2. A pretensa violação do princípio do contraditório
Segundo a Apelante, teria sido violado o princípio do contraditório por não ter sido ouvida a Administradora da Insolvência antes da antecipação do juízo da causa principal.
É claro que, tendo em conta o que disse anteriormente, também esta questão terá que improceder, uma vez que, como se disse, esta providência – instaurada, como se referiu, antes da declaração de insolvência e que apenas visa a entrega de um bem que pertence à Requerente e que não se integra na massa insolvente – não diz respeito à insolvência e não se insere na esfera de actuação e nos poderes do administrador da insolvência.
Segundo o disposto no art.º 81.º do CIRE, o administrador da insolvência apenas assume os poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente e apenas assume a representação do devedor para os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência. No caso, como se disse, não está em causa um bem integrante da massa insolvente e, consequentemente, também não está em causa qualquer questão de natureza patrimonial que interesse à insolvência. Tão pouco foi alegado que o bem tivesse sido apreendido – ainda que indevidamente – para a massa insolvente e não há razões para supor que o tivesse sido, uma vez que, reafirma-se, não se integra na massa insolvente.
Subscreve-se, portanto, a decisão recorrida quando nela se afirma – citando o Acórdão da Relação do Porto, de 27/09/2017 (proferido no processo n.º 2222/16.3T8VFR.P1[2]) – que “...o titular do interesse direto em contradizer nos presentes autos –independentemente que estar declarada insolvente – é a sociedade locatária, por os bens se manterem na propriedade do locador e ser ela quem detém os veículos em causa. É na sua esfera jurídica que se repercutirão os efeitos da procedência da presente providência cautelar, uma vez que apenas ela poderá cumprir a eventual ordem judicial de restituição dos veículos”.
A Sr.ª Administradora não tinha, portanto, que ser chamada a pronunciar-se nos autos sobre qualquer questão, razão pela não ocorreu a apontada violação do princípio do contraditório.
3. O pretenso erro na decisão de facto
Sustenta a Apelante que a decisão recorrida incorreu em erro quando julgou provado o facto constante do ponto 13 e quando não julgou provado o facto constante da alínea a).
Na perspectiva da Apelante, teriam sido desconsiderados elementos probatórios essenciais, porquanto não é feita referência ao aviso de recepção da alegada carta de resolução do contrato, apesar de esse documento ser essencial para comprovar que a Recorrente teve efectivo conhecimento dessa resolução em termos de garantir a sua validade. Acrescenta que sem essa prova documental, não se pode ter como demonstrada a efectiva recepção da carta em questão.
Analisemos.
No ponto 13 julgou-se provado que, no dia 07-03-2024, a Requerente remeteu à Requerida carta registada com aviso de recepção, para a morada constante do contrato e para aquela inscrita no registo comercial, com o teor ali referido, julgando-se não provado (alínea a) que a Requerida não tivesse tomado conhecimento da missiva referida em virtude de causa alheia e independente da sua vontade.
Sobre essa matéria, cabe dizer, antes de mais, que a argumentação da Apelante não colide com o que se julgou provado no ponto 13. Com efeito, o que ali se julgou provado foi apenas que a Requerente remeteu à Requerida carta registada com aviso de recepção (com o teor ali mencionado), para a morada constante do contrato e para aquela inscrita no registo comercial e isso está efectivamente demonstrado pelos documentos juntos (cartas remetidas para diversas moradas – designadamente para a morada que constava do contrato e para a morada que consta do registo comercial onde também foi citada para os persentes autos – envelopes com anotação de falta de entrega e consequente devolução ao remetente, respectivos avisos de recepção e consultas efectuadas no site dos CTT). É indiscutível, portanto, que a Requerente remeteu a carta para aquelas moradas e, portanto, nenhuma razão existe para alterar o ponto 13, uma vez que foi apenas esse facto que ali se deu como provado.
É certo, como diz a Apelante, que sem os avisos de recepção – devidamente assinados – não se pode ter como demonstrada a efectiva recepção da carta em questão. Mas isso é matéria que não interfere com o ponto 13 da matéria de facto, uma vez que ali não se julgou provado que as cartas tenham sido recebidas; apenas se julgou provado que elas foram remetidas para as referidas moradas e isso está – indiscutivelmente – provado (questão diferente será a de saber se isso basta para preencher os pressupostos da providência solicitada, mas isso é matéria que já não se prende com a decisão de facto e que será analisada mais adiante).
E também não há razões para julgar provado o facto constante da alínea a). Ainda que os documentos juntos aos autos atestem o facto de a Requerida não ter recebido a carta em questão, a verdade é que, tendo a carta sido remetida para a sua morada/sede/instalações e na ausência de qualquer outra prova, esses elementos probatórios não bastam para afirmar/concluir que a falta de recepção e conhecimento da carta tenha resultado de causa alheia e independente da sua vontade. Nessas circunstâncias, referindo-se na fundamentação da decisão que a Requerida “...não apresentou qualquer elemento probatório susceptível de comprovar os factos tradutores do “caso fortuito” da ou “força maior” a que genericamente alude no seu articulado” e não tendo a Apelante invocado qualquer outro meio probatório que pudesse contrariar o juízo feito em 1.ª instância e que pudesse confirmar o referido caso fortuito ou de força maior, não há razões para julgar provado o facto constante da alínea a).
Improcede, portanto, esta questão, mantendo-se integralmente a decisão da matéria de facto.
4. Pressupostos da providência (a resolução do contrato e o periculum in mora)
Sobre esta matéria, sustenta a Apelante que não se mostram verificados os pressupostos da providência, seja porque não se pode ter como válida a resolução do contrato – dada a falta de efectiva recepção da carta por via da qual se procedeu a tal resolução e a falta de quaisquer elementos que comprovem que a Requerida dela teve efectivo conhecimento –, seja porque não foram alegados nem provados os factos que traduziriam o periculum in mora.
Mais uma vez, falta razão à Apelante.
Vejamos.
Estamos, no caso, como acima se mencionou, perante a providência cautelar de entrega judicial a que se reporta o art.º 21.º do Dec. Lei n.º 149/95 de 24/06 que tem como pressuposto a cessação do contrato de locação financeira – por resolução ou pelo decurso do prazo sem ter sido exercido o direito de compra – e a constituição da obrigação do locatário, decorrente dessa cessação, de restituir o bem ao locador.
Sobre essa matéria, o n.º 1 do citado art.º 21.º dispõe nos seguintes termos:
“Se, findo o contrato por resolução ou pelo decurso do prazo sem ter sido exercido o direito de compra, o locatário não proceder à restituição do bem ao locador, pode este, após o pedido de cancelamento do registo da locação financeira, a efectuar por via electrónica sempre que as condições técnicas o permitam, requerer ao tribunal providência cautelar consistente na sua entrega imediata ao requerente”.
Dispõe, por seu turno, o n.º 4 que “o tribunal ordenará a providência requerida se a prova produzida revelar a probabilidade séria da verificação dos requisitos referidos no n.º 1, podendo, no entanto, exigir que o locador preste caução adequada”.
Resulta, portanto, das citadas disposições legais que esta providência cautelar, além de pressupor o pedido prévio de cancelamento do registo da locação financeira, tem como pressuposto:
· A existência de um contrato de locação financeira;
· A cessação desse contrato por resolução ou pelo decurso do prazo sem ter sido exercido o direito de compra;
· O incumprimento da obrigação por parte do locatário de restituir o bem ao locador na sequência da cessação do contrato.
É certo, portanto, que, ao contrário do que acontece com outras providências, não se exige aqui a alegação e prova do periculum in mora (trata-se de requisito a que a lei não se reporta e que, como tal, não é exigível).
Isso mesmo também refere Abrantes Geraldes[3] – quando afirma o seguinte: “...não se exige a alegação e prova do periculum in mora, o qual resulta implícito da natureza do contrato e da natural e previsível degradação do bem na pendência da acção definitiva (...) basta ao requerente alegar os factos que, de acordo com a situação verificada, legitimem a entrega imediata do bem: a extinção do contrato em consequência da resolução ou da caducidade” (negrito e sublinhado nossos), afirmando mais adiante[4] que “...não se exige a prova de que a manutenção da situação seja causa de lesão ou de perigo de lesão e dificilmente reparável”. Na verdade, como continua dizendo o citado autor, o legislador presumiu que a continuação do bem locado na esfera do locatário, depois de extinto o contrato, era susceptível de afectar, de forma relevante, os interesses do locador, considerando, por isso, que, independentemente de outros requisitos, isso bastava para que a coisa fosse entregue ao locador e para que este pudesse, assim, recuperar os seus poderes sobre a coisa.
Não assiste, portanto, razão à Apelante quando vem pôr em causa a decisão recorrida pelo facto de não terem sido alegados nem provados os factos que traduziriam o periculum in mora. Conforme se disse, esse periculum in mora não é requisito nem pressuposto da providência solicitada e, nessa medida, a Requerente nada tinha que alegar – e provar – sobre essa matéria.
Analisemos agora a resolução do contrato, referindo-se, desde já, que, ao contrário do que sustenta a Apelante, a falta de efectiva recepção da carta por via da qual se procedeu a tal resolução e a falta de qualquer elemento que comprove que a Requerida dela teve efectivo conhecimento não significa que a resolução não se deva como válida e operante.
Na verdade, a resolução em causa – com fundamento no incumprimento da obrigação de pagamento de rendas (rendas que a Requerida deixou de pagar em 07/11/2023 – cfr. ponto 10 da matéria de facto) – foi efectuada nos termos previstos no contrato, ou seja, por declaração escrita (ponto 6 da matéria de facto), mediante carta enviada, não só para a morada que constava do contrato (cfr. ponto 8 da matéria de facto), mas também para a morada que constava do registo comercial e que corresponde à sede actual da Requerida.
É certo que, estando em causa uma declaração que tem um destinatário (sendo, por isso, uma declaração receptícia), ela não se torna imediatamente eficaz e apenas adquire eficácia e opera os seus efeitos nas circunstâncias descritas no art.º 224.º do CC, ou seja, no momento em que chega ao poder do destinatário ou é dele conhecida, considerando-se igualmente eficaz a declaração que só por culpa do destinatário não foi por ele oportunamente recebida.
A eficácia da declaração depende, portanto, e em princípio, de uma de duas coisas: que a declaração tenha chegado ao poder do destinatário (recepção da declaração) ou que tenha chegado ao seu conhecimento. Conforme referem Pires de Lima e Antunes Varela[5] “Não se exige…a prova do conhecimento por parte do destinatário; basta que a declaração tenha chegado ao seu poder. O conhecimento presume-se neste caso, júris et de jure. Mas, provado o conhecimento, não é necessário provar a recepção para a eficácia da declaração”.
Esse princípio ou regra geral é depois adaptado com duas medidas – estabelecidas nos n.ºs 2 e 3 – que visam proteger o declarante e o declaratário, respectivamente, estabelecendo-se no n.º 2, que também se considera eficaz a declaração que só por culpa do destinatário não foi por ele oportunamente recebida (como será o caso de ele se ausentar para parte incerta, de se recusar a receber a carta ou de não a ir levantar na sequência de aviso que para tal lhe tenha sido deixado) e estabelecendo-se no nº 3 que a declaração é ineficaz quando ela é recebida pelo destinatário em condições de, sem culpa sua, não poder ser conhecida[6].
Ora, no caso em análise, apesar de a carta não ter sido efectivamente recebida pela Requerida (nenhuma das cartas – expedidas para as diversas moradas – foi recebida), é certo que, só por culpa sua, tal sucedeu, pois é certo que, além de não ter actualizado a morada junto da Requerente como era sua obrigação (o que determinou a não recepção da carta enviada para a morada que constava do contrato), também não tomou providências para que a correspondência enviada para a morada que correspondia à sua sede fosse efectivamente recebida e não teve o cuidado de providenciar pelo respectivo levantamento, apesar de ter sido avisada para o efeito, conforme declaração aposta na carta.
Assim, ao contrário do que diz a Apelante não foi por qualquer caso fortuito ou de força maior que não recebeu as cartas em questão; as cartas chegaram efectivamente às moradas de destino que correspondiam à morada que constava do contrato e à sua sede actual e, portanto, foi apenas por razões imputáveis à Requerida que elas não foram efectivamente recebidas e conhecidas (a carta enviada para a morada que constava do contrato não foi recebida porque a Requerida não actualizou a sua morada junto da Requerente e a carta enviada para a sua sede não foi recebida por não existir ninguém no local que a tivesse recebido e porque a Requerida não providenciou pelo seu levantamento apesar de ter sido avisada para o efeito).
É certo, portanto, que, à luz do disposto no art.º 224.º, n.º 2, do CC, a referida declaração resolutiva é eficaz e operou os seus efeitos, determinando a resolução e cessação do contrato.
Estão, assim, verificados todos os pressupostos da providência solicitada: tendo sido cancelado o registo da locação financeira, está também demonstrado: que as partes celebraram um contrato de locação financeira, que esse contrato cessou por resolução – válida e eficaz – por parte do locador (com fundamento no incumprimento da obrigação de pagamento das rendas) e que a Requerida (locatária) não restituiu o bem à Requerente (locadora).
5. Pressupostos da antecipação do juízo sobre a causa principal e nulidade da decisão por falta de fundamentação
Sustenta a Apelante que a decisão recorrida padece de nulidade por falta de fundamentação, na medida em que antecipou o juízo sobre a causa principal sem apresentar fundamentação concreta e detalhada sobre a necessidade e adequação dessa antecipação. Mais sustentou que a decisão recorrida errou ao antecipar o juízo sobre a causa principal porquanto não estavam reunidos os elementos necessários, uma vez que a inversão do contencioso pressupõe um juízo de forte probabilidade acerca do desfecho da ação principal, o que, no caso concreto, não pode ser verificado face à inexistência dos elementos probatórios essenciais para sustentar a resolução contratual. Na sua perspectiva, a apreciação definitiva importaria a análise de factos e documentos (os avisos de recepção da alegada missiva enviada a 07.03.2024, no qual alegadamente houve resolução do contrato) que não constam dos autos e tendo em conta que apenas se julgou provado o envio da carta em questão, mas não a sua recepção, subsistindo, portanto, uma incerteza quanto à receção da comunicação que impede a produção dos efeitos jurídicos da resolução contratual.
Pensamos, porém, não estar configurada a apontada nulidade nem o alegado erro de julgamento.
A decisão recorrida insere-se no âmbito do disposto no n.º 7 do citado art.º 21.º, onde se dispõe que, uma vez decretada a providência cautelar “...o tribunal ouve as partes e antecipa o juízo sobre a causa principal, excepto quando não tenham sido trazidos ao procedimento, nos termos do n.º 2, os elementos necessários à resolução definitiva do caso”, pretendendo o legislador por essa via – como se refere no preâmbulo do Dec. Lei n.º 30/2008 de 25/02 (que introduziu essa norma no Dec. Lei 149/95) – evitar acções judiciais desnecessárias, ou seja, a existência de duas acções judiciais (uma providência cautelar e uma acção principal) que, materialmente, têm o mesmo objecto: a entrega do bem locado.
A antecipação desse juízo depende, portanto, de uma única circunstância: a existência nos autos de elementos necessários à resolução definitiva do caso, ou seja, elementos que, ultrapassando a prova sumária e a probabilidade séria que, nos termos nos n.ºs 2 e 4, são bastantes para decretar a providência, sejam suficientes e idóneos para formar um juízo definitivo sobre o direito do locador à entrega do bem nos termos previstos no n.º 1 do citado art.º 21.º em termos que dispensem a sua reapreciação no âmbito de nova acção judicial que nada acrescentaria de novo e que, por isso, se evidenciaria como inútil.
Ora, à luz do exposto, parece-nos ser de afastar, desde logo, a invocada nulidade por falta de fundamentação, já que, dispondo o art.º 615.º, n.º 1, alínea b), do CPC, que a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, vem sendo entendido, de modo praticamente uniforme, pela nossa jurisprudência[7] – que tal nulidade apenas se pode ter como verificada quando falte, em absoluto, qualquer fundamentação (seja ela de facto ou de direito) ou quando exista uma deficiência de fundamentação de tal modo grave que possa e deva ser equiparada a falta absoluta de fundamentação por não cumprir ou respeitar requisitos mínimos que são inerentes à ideia ou noção de “fundamentação”; o que constitui causa de nulidade da sentença não é, portanto, a fundamentação insuficiente e/ou errada, mas sim a total omissão de fundamentação; a sentença nula por falta de fundamentação é aquela que não dá a perceber os concretos fundamentos (de facto ou de direito) da decisão e que, nessa medida, não fornece os elementos básicos para compreender as razões que conduziram o julgador à decisão proferida. E, salvo o devido respeito, não é esse o caso da decisão recorrida, onde se enunciam e justificam, em termos de facto e de direito, os pressupostos da providência em termos que permitem concluir pela justificação da antecipação do juízo sobre a causa principal.
Também não se configura qualquer erro de julgamento, uma vez que os autos e os elementos probatórios que aqui foram trazidos são suficientes e idóneos para formar um juízo definitivo sobre o direito do locador à entrega do bem nos termos previstos no n.º 1 do citado art.º 21.º em termos que dispensam a sua reapreciação no âmbito de nova acção judicial que nada poderia acrescentar de novo e de útil.
Na verdade, ao contrário do que sustenta a Apelante, o juízo em questão não dependia de qualquer prova adicional relacionada com os avisos de recepção da carta por via do qual o locador procedeu à resolução do contrato. Ao contrário do que diz a Apelante, os avisos de recepção estão juntos aos autos, sucedendo apenas que – como também resulta dos autos – os avisos de recepção não foram assinados pela Requerida uma vez que não recepcionou as cartas que, nessa medida, foram devolvidas. A prova assim produzida seria, naturalmente, idêntica em qualquer acção que viesse a ser instaurada e, portanto, não seria necessária qualquer prova adicional, impondo-se apenas extrair as consequências jurídicas desse facto e a sua interferência na validade e eficácia da resolução.
Ora, como acima se referiu, essa circunstância é irrelevante para efeitos de validade e eficácia da resolução do contrato. Uma vez provado que a carta em questão foi enviada, não só para a morada da Requerida que constava que contrato, mas também para a morada que corresponde à sua sede actual, impõe-se considerar, pelas razões acima mencionadas, que a referida declaração (de resolução do contrato) se tornou eficaz, nos termos previstos no art.º 224.º do CC, ainda que não tenha sido efectivamente recebida pela Requerida, porquanto só a si é imputável a falta de recebimento dessa carta.
Os autos fornecem, portanto, todos os elementos necessários – sem que se vislumbrem outros elementos que pudessem ser acrescentados no âmbito de acção judicial a instaurar – para a resolução definitiva do caso, ou seja, para concluir, em definitivo, que a resolução do contrato é válida e operou os seus efeitos, determinado a cessação do contrato e a obrigação (da Requerida/locatária) de entregar o bem em causa à Requerente (locadora), sem que subsista – ao contrário do que sustenta a Apelante – qualquer incerteza no que toca à recepção da comunicação resolutiva (é certo que a Requerida não recepcionou a carta) e à produção dos efeitos jurídicos da resolução contratual (é certo, pelas razões apontadas, que tal resolução operou os seus efeitos).
Assim sendo e em face de tudo o exposto, improcede o recurso e confirma-se a decisão recorrida.
SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):
(…).
V.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas a cargo da Apelante.
Notifique.
Coimbra,
(Maria Catarina Gonçalves)
(Chandra Gracias)
(Anabela Marques Ferreira)
[1] Todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[2] Disponível em https://www.dgsi.pt.
[3] Temas da Reforma do Processo Civil, IV Vol., 2001, pág. 307.
[4] Pág. 309.
[5] Código Civil Anotado, Vol. I, 3.ª edição revista e actualizada, pág. 213.
[6] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág. 213
[7] Neste sentido e entre outros, podem ver-se os Acórdãos do STJ de 18/04/2002 (processo nº 02B737), de 19/12/2006 (processo nº 06B4521), de 21/06/2011 (processo nº 1065/06.7TBESP.P1.S1), de 15/12/2011 (processo nº 2/08.9TTLMG.P1S1) e de 06/07/2017 (processo nº 121/11.4TVLSB.L1.S1), todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.