I – O facto de toda a produção da sociedade insolvente ter passado a ser vendida, quase em exclusividade a uma outra sociedade, que passou a fornecer tais produtos aos anteriores clientes da insolvente, acrescidos de uma margem de comercialização, não envolve, por si só, quaisquer atos de disposição de bens da insolvente ou uma utilização dos bens da sociedade contrária aos seus interesses, para efeitos da al. d), do nº2 do art. 186º do CIRE.
II – As irregularidades contabilísticas só assumem relevância para a qualificação da insolvência como culposa por força da al. h), do nº 2 do art. 186º do CIRE, na medida em que dificulte a compreensão sobre a real situação patrimonial ou financeira da empresa.
III – A suspensão do prazo de apresentação à insolvência previsto no art. 18º do CIRE, decretada pela al. a) do nº 6 do art. 7º da Lei nº 1-A/2000, pressupõe que tal prazo não estivesse já esgotado, ou seja, que a sociedade não se encontrasse já insolvente por razões alheias à pandemia.
IV – A circunstância de existir um administrador de facto afetado pela declaração de insolvência não exclui a afetação do administrador de direito, quando se encontra em causa o incumprimento do dever de apresentação da empresa à insolvência.
V – Com a redação dada ao art.189º, nº 2, al. e), CIRE, a indemnização a suportar pelo administrador afetado pela qualificação da insolvência passou a ter como ponto de partida o montante dos prejuízos sofridos, aproximando-se do regime geral da responsabilidade civil, a apurar com recurso às regras gerais dos artigos 562º, 563º e 566º, nº 2, do Código Civil, passando o montante dos créditos reconhecidos e não satisfeitos a constituir unicamente o seu limite máximo.
VI – O fator que pode e deve ser ponderado e com efeitos determinantes na modelação do valor da indemnização, imprimindo-lhe proporcionalidade é um único: a contribuição causal de cada sujeito para a ocorrência dos danos/ a medida da participação efetiva de cada um.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:
I – RELATÓRIO
Declarada a insolvência de A..., S.A.,
o credor B..., S.A., veio requerer a qualificação da insolvência como culposa com afetação de,
AA;
BB;
CC;
DD e
EE.
Alegando, para o efeito, e em suma, que:
as contas anuais da insolvente, relativas aos exercícios de 2020 e 2021, não foram atempadamente elaboradas, situação que determinou ao agravamento da situação de insolvência.
as contas apresentadas não refletiam a verdadeira situação da empresa, o que permitiu aos responsáveis pela insolvente continuar a sua atividade deficitária, prolongando-a, agravando a situação patrimonial da empresa nos últimos três anos, de modo a criar nos seus parceiros (nomeadamente, Segurança Social), a ilusão de que a A... era uma empresa viável, levando-os a acreditar que tinha sustentabilidade financeira.
a permanência da A... no giro comercial durante o período de 2020-2022 foi determinante para agravar, de forma muito relevante, a situação financeira da empresa e a sua dívida perante terceiros.
caso a empresa se tivesse apresentado à insolvência em 2020, o valor dos créditos reclamados seria substancialmente menor, tendo sido incumprida a obrigação de requerer a declaração de insolvência prevista no artigo 18.º, do CIRE;
nos últimos três anos a gestão da insolvente foi exclusivamente assumida por DD, gerente de facto e de direito da C..., em seu benefício próprio e também desta última empresa;
foi DD quem administrou de facto a insolvente, após a morte de FF, prosseguindo com uma exploração deficitária da A... no interesse pessoal de DD e da C...;
o negócio consubstanciado na comercialização de toda a produção da A... entregue nas mãos da C..., que passou a fazer seus os clientes da A..., teve como resultado um agravamento do passivo da A..., com benefício para a C... e DD;
em resultado do mesmo negócio, a A... deixou de beneficiar das margens que beneficiaria se a venda fosse feita diretamente aos seus clientes originários;
houve bens que foram subtraídos à esfera da A... em proveito pessoal de DD e de FF.
Conclui a Requerente terem sido praticados atos subsumíveis à previsão constante das alíneas a), b), d), f), g) e h), do n. º2, do artigo 186.º, do CIRE, bem como das alíneas a) e b), do n. º3, do mesmo artigo e, como tal, deverá a insolvência ser qualificada como culposa, recaindo a qualificação sobre as pessoas que supra se identificaram.
Por despacho proferido a 17.03.2023 foi declarado aberto o incidente de qualificação de insolvência, tendo sido ordenado o cumprimento do disposto no artigo 188.º, n. º6, do CIRE.
O Administrador de Insolvência emitiu parecer, pugnando pela declaração da insolvência como culposa, com afetação de AA; BB; CC e DD.
Para o efeito, alegou, em síntese:
no período que decorreu desde 25 de janeiro de 2019 até 25 de janeiro de 2022 quem exerceu a gerência de facto da insolvente foi DD, ainda que mantendo uma relação de trabalho dependente sob a veste de diretora fabril;
os administradores de direito da insolvente, que figuraram no período compreendido entre 25 de janeiro de 2019 e 25 de janeiro de 2022, nunca exerceram a gerência de facto da insolvente: AA e CC era pessoas completamente desconhecidas no universo da empresa;
a insolvente foi dirigida/administrada/gerida com uma relação de dependência e submissão a outra empresa, cuja administração manteve ligações com a insolvente, que laborou no mesmo local, beneficiando para os seus fins de toda a estrutura humana e funcional da devedora, incluindo a sua própria imagem, projeção e histórico.
Conclui terem sido praticados atos subsumíveis à previsão constante das alíneas d), f) e g), do n. º2, do artigo 186.º, do CIRE e, como tal, deverá a insolvência ser qualificada como culposa, recaindo a qualificação sobre AA; BB, CC e DD.
O Ministério Público teve vista no processo, pugnando pela qualificação da insolvência como culposa, enquadrável no âmbito da previsão normativa das alíneas b), d), e), f) e g), do n. º2, do artigo 186.º, do CIRE, bem como as alíneas a) e b), do n. º3, do CIRE
BB, AA, EE e DD, vieram deduzir oposição, nas quais impugnaram toda a factualidade alegada em sede de requerimentos e parecer visando a qualificação da insolvência como culposa, pugnando pela declaração da insolvência como fortuita.
III. Decisão
Por todo o exposto, decido qualificar a presente insolvência de A..., S.A., como culposa e, nessa conformidade, decido:
1) - Declarar DD, CC, AA e BB como afetados com a declaração da insolvência como culposa;
2) – Declarar DD e CC inibidos para a administração de patrimónios de terceiros e para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão da sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa pelo período de 4 (quatro anos).
3) Declarar AA e BB inibidos para a administração de patrimónios de terceiros e para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão da sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa pelo período de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses.
4) Condenar os Requeridos DD, CC, AA e BB, solidariamente, a indemnizar os credores da insolvente até ao montante que se vier a apurar e correspondente ao valor dos créditos reconhecidos e não satisfeitos, correspondendo à diferença entre o valor global dos créditos reconhecidos e o valor dos créditos vencidos até 25.01.2019 e não satisfeitos pelo produto da massa insolvente até ao limite associado ao património pessoal do responsável, a quantificar em incidente de liquidação.
5) Não afetar o Requerido EE com a declaração como culposa da presente insolvência, absolvendo o mesmo.
(…).
(…).
(…).
2. Impugnação da matéria de facto
(…).
A – Factos Provados
1. Por sentença datada de 07.12.2022 foi declarada a insolvência de A..., S.A..
2. A sociedade insolvente era uma sociedade anónima, constituída em 14/08/1998, com sede no Largo ..., ..., em ..., e tinha por objeto a produção e comercialização, incluindo a importação e exportação de objetos cerâmicos.
3. A sociedade insolvente tinha o capital social de € 50.000,00, dividido por quinhentas mil ações com o valor nominal de € 0,10.
4. À data da declaração de insolvência o conselho de administração integrava um administrador único – CC -; um fiscal único – D... -; suplentes do fiscal único – GG.
5. Por ação entrada em juízo a 25.03.2015, a Requerida apresentou-se a PER, o qual correu termos neste Juízo de Comércio de Leiria – J2, sob o n.º 1081/15...., tendo exercício funções de Administrador Judicial Provisório o Dr. HH
6. No âmbito do PER foram reconhecidos créditos no valor global de € 11.746.439,43, assim distribuídos: Instituto da Segurança Social - € 2.827.121,23; empréstimos E..., S.A. - € 2.435.377,99; empréstimos Banco 1... - € 34.283,15; Pessoal (trabalhadores) - € 264.656,06; outros credores - € 1.115.702,29; credores subordinados - € 5.069.298,71.
7. No âmbito dos identificados autos de PER foi apresentado plano de recuperação, que foi aprovado e homologado por sentença proferida a 02/10/2015.
8. Nos dois anos anteriores ao PER, 2013-2014, a A... tinha gerado em média um Cash Flow de cerca de € 181 mil euros ano.
9. O decréscimo das receitas já se vinha a verificar desde os anos de 2018 e 2019.
10. As dívidas a terceiros, que em 2015 ascendiam a cerca de € 8 milhões de euros, no ano de 2020 cresceram para o valor de € 10,7 milhões.
11. No ano de 2020 a “A...” apresentou um capital próprio negativo de € - 567.919,88.
12. No ano de 2018 apresentou um resultado liquido positivo de € 975,15; no ano de 2019 apresentou um resultado líquido negativo de € - 243.525,40 e no ano de 2020 apresentou um resultado líquido negativo de € - 693.797,48.
13. A “A...”, no ano de 2018, apresentou um passivo no total de € 8.816.881,03; no ano de 2019 apresentou um passivo no total de € 9.215.333,19; no ano de 2020 apresentou um passivo no total de € 10.703.380,25; no ano de 2021 um passivo total de € 11.840.947,45 e no ano de 2022 um passivo total de 12.496.088,15.
14. Do Plano de Revitalização apresentado resultava que a estratégia proposta passava por alargar o âmbito geográfico de atuação, nomeadamente, nos mercados da Argentina e do Brasil, prevendo-se com isso atingir um crescimento médio das vendas de 4,5% ao ano entre 2015 e 2020. O Plano apresentado pressupunha ainda que a empresa mantinha a comercialização da sua produção e que não perdia a sua margem em benefício de terceiros, seus clientes.
15. No período compreendido entre 25.01.2019 e 25.01.2022 foram, sucessivamente administradores da sociedade:
i. II, na qualidade de vogal, desde 14.09.2016, tendo renunciado à gerência por comunicação recebida pela A... a 18.10.2019;
i. BB, na qualidade de administrador único, nomeado por deliberação de 24.02.2020 e com renúncia comunicada à gerência no dia 28.02.2020.
iii. CC, a partir de 01.06.2020.
15. a) BB e AA nunca atuaram como efetivos administradores da sociedade insolvente.
b) Nunca celebraram qualquer contrato em nome da insolvente.
c) Nunca negociaram com qualquer entidade relacionada com a insolvente.
d) Nunca tomaram conhecimento da atividade da insolvente.
v) A nomeação de BB apenas foi efetuada pelo grau de amizade tido com o falecido Administrador, FF.
w) E para cooptar provisoriamente o lugar, de forma a não deixar vago formalmente o órgão em questão.
16. Anteriormente exerceu funções de administrador da A... FF, que viria a falecer em outubro de 2019.
17. DD foi nomeada para a administração da insolvente, na qualidade de vogal, por deliberação de 21-03-2007, cargo ao qual renunciou por comunicação de 31.07-2007, renuncia que foi averbada ao registo pela Av.2. An12015.03.11.
18. DD é filha de FF e de JJ.
19. Nas mesmas instalações onde laborava a insolvente – na Rua ..., ..., em ... – ... – tinha e tem sede a empresa “C..., Lda.”, que, desde 2015, é a locatária desses imóveis e da qual é gerente DD.
20. A “C..., Lda.” passou a deter essas instalações num momento em que a F..., que permitia o seu uso pela insolvente, entrou em incumprimento com a Caixa Leasing e Factoring – Instituição Financeira de Crédito, S.A. e esta resolveu o contrato de locação financeira que tinha por objeto as instalações onde a Requerida laborava.
21. Foi a “C..., Lda.” quem assumiu este encargo perante aquela instituição financeira e com ela celebrou um novo contrato de locação financeira, sublocando, de seguida, essas mesmas instalações à insolvente mediante contrato de sublocação com prazo certo, com esta celebrado a 01.01.2016, mediante o pagamento de uma renda mensal o valor de € 22.000,00.
22. Com a assunção do contrato de leasing e factoring das instalações, no valor de € 3.200.000,00 pela C..., DD prestou também um aval pessoal naquele valor.
23. A “C...” ao assumir a locação financeira permitiu que a insolvente continuasse a sua laboração, com os respetivos trabalhadores ao seu serviço, impedindo, assim o encerramento imediato da atividade da insolvente.
24. A partir de inícios de 2018, porque a ora insolvente não tinha crédito, tendo pendentes contra si processos de execução e contas bancárias penhoradas, incluindo dívidas ao Estado/Segurança Social, os produtos objeto de produção da fábrica da ora insolvente passaram a ser comercializados pela sociedade “C...”, que se vem a assumir como a cliente principal e quase única da sociedade insolvente.
24.a. Em 02.05.2018 a A... assinou com a C... p “Acordo de Gestão e Encomendas”, cuja cópia se encontra junta aos autos.
25. Resultando entre as duas empresas uma relação de cliente e fornecedor, em exclusividade, em que a ora insolvente tinha como cliente a “C...” e a “C...” tinha como fornecedor a insolvente.
26. A “C...” vendia aos clientes, que até então adquiriam diretamente à A..., a louça que adquiria à ora insolvente, acrescentando-a de uma margem de comercialização.
27. Na prática, a gestão da ora insolvente, a nível dos pagamentos e fornecedores e dos clientes, passou a ser assumida, até à declaração da insolvência, pela “C...”, na pessoa de DD, ainda que esta mantivesse com a insolvente uma relação de trabalho dependente sob a veste de Diretora Fabril.
28. Quem procedia à contratação dos trabalhadores no âmbito da atividade da insolvente era DD.
29. Para a generalidade dos trabalhadores da insolvente, quem assumia a veste de “patrão” era DD, sendo os administradores de AA e BB desconhecidos pela generalidade dos trabalhadores da insolvente e o administrador de CC totalmente desconhecido, incluindo alguns cargos com funções de chefia.
30. No âmbito da atividade da insolvente, e após a relação estabelecida entre as empresas, não existiam contas bancárias que carecessem da assinatura de um qualquer administrador. Os movimentos bancários necessários no âmbito da atividade da insolvente eram assegurados pela “C...”.
31. A A... não tinha acesso a crédito bancário e as contas de que é titular não movimentavam quaisquer fluxos monetários, uma vez que esses fluxos monetários passaram todos nas contas bancárias da sociedade C....
32. Era a “C...”, através de DD, quem diligenciava pelos pagamentos dos salários devidos aos trabalhadores, fornecedores e Estado.
33. Desde a morte de FF, a gestão da A... passou a ser assumida por DD.
34. Sendo esta quem tomava todas as decisões da gestão corrente da A..., nomeadamente, quem decide sobre a oportunidade de negócios a efetuar, obrigações a cumprir, funcionários a contratar ou a despedir e negócios com clientes.
35. Foi DD quem convidou KK a ingressar na A... como Diretor Geral, posição que este assumiu em setembro de 2021, tendo apresentado a demissão em 5 de dezembro de 2022.
36. A produção da A... deixou de ser canalizada para a venda direta da A... aos seus clientes, para passar a ser comercializada aos mesmos clientes pela C..., que recebia a respetiva margem de lucro.
37. A G..., Lda. é detentora de 54% do capital social da A....
38. Do Registo Central de Beneficiário Efetivo resulta que o beneficiário efetivo da G..., Lda. é LL.
39. LL foi empregado H... (hoje I..., S.A.), tendo sido posteriormente transferido para a A..., tendo saído da empresa no ano de 2020 para ir para o Brasil.
40. LL, sem saber, foi apresentado no Registo Central de Beneficiário Efetivo como “dono de todo o capital da sociedade G..., Lda.
41. Este registo foi realizado por EE.
42. A “A...” não era proprietária de quaisquer bens imóveis.
43. Os bens móveis de que a A... era proprietária encontram-se onerados com penhores a favor do ISS, IP, para garantias dos acordos prestacionais que realizados.
44. Nos termos do relatório de gestão referente ao exercício de 2020 é referido, para além do mais, que o ano de 2020 foi caraterizado pela circunstância de ter sido declarada a pandemia Covid 19 com repercussões a nível mundial. A nível da empresa, no ano de 2020, houve efeitos significativos nas diferentes áreas de atuação da empresa, nomeadamente: a nível comercial, cancelamento de encomendas, cancelamento de feiras e consequente diminuição do Volume de negócios; a nível pessoal verificou-se a redução no número de colaboradores e aumento do absentismo motivado pela necessidade de apoio familiar.
45. A dívida da A... junto da segurança Social, até à data da homologação do PER, e no período compreendido entre 01/2008 e 07/2015, ascendia ao valor total de € 1.648.643,75, sendo € 1.102.735,10 a título de contribuições e € 545.908,65, a título de juros de mora.
46. A dívida da A... junto da Segurança Social, após a data da homologação do PER, e no período compreendido entre 04/2016 e 09/2022, ascendia ao valor total de € 3.226.064,81, sendo € 2.856.454,27 a título de contribuições e € 369.610,54, a título de juros de mora.
47. A dívida da A... junto da Segurança Social no ano de 2019 ascendia a cerca de 3,29 milhões de euros; no ano de 2020 a cerca de 3,78 milhões de euros e em janeiro de 2021 a cerca de 3,94 milhões de euros.
48. Relativamente à A... existiram planos prestacionais a correr termos na Secção de Processo Executivo de Leiria, designadamente:
a. Plano prestacional autorizado em execução fiscal, constante do Plano de Revitalização que foi homologado, por sentença proferida em 02/10/2015, no âmbito do processo n.º 1081/15....:
i. A executada incumpriu o plano prestacional n.º 4359/2015, requerido em 2015/08/13 e deferido em 2015/09/21, em 120 prestações; pagou 29 prestações. O plano foi rescindido em 2018.04.23.
ii. Em 2020/04/23 a A... voltou a requerer um novo plano prestacional n.º 2314/2020, que foi deferido em 2020/04/30, em 150 prestações, cumprido até outubro de 2022.
b. Plano prestacional n.º 2314/2020, deferido em 2020/04/30, no âmbito do processo de execução fiscal n.º ...44, incluiu a dívida constante do PER e incluiu a dívida posterior ao ano de 2015 na sequência da apensação dos processos ativos à data do deferimento do acordo prestacional (período contributivo: 2011/10 a 2020/03).
49. A insolvente foi cumprindo o plano prestacional n.º 2314/2020 de julho de 2020 até outubro 2022, sem que durante esse período tenha procedido ao pagamento das contribuições que se venceram ao longo desse período.
50. No âmbito dos autos de insolvência foi reconhecido ao Instituto da Segurança Social, IP – Centro Distrital de Leiria um crédito no valor total de € 4.951.831,54 referente às seguintes contribuições e juros:
i. Contribuições obrigatórias no período compreendido entre junho de 2013 a junho de 2015, com o capital de € 1.053.104,33 e juros no valor de € 534.731,20;
ii. Contribuições obrigatórias de julho de 2015; abril a julho de 2016; setembro a novembro de 2016; abril de 2017; outubro de 2017 a dezembro de 2020, com o capital de € 2.116.755,24 e juros no valor de € 360.646,43;
iii. Contribuições obrigatórias de janeiro a abril de 2021; julho a dezembro de 2021 e fevereiro a novembro de 2022, com o capital de € 851.650,13 e juros no valor de € 34.944,21.
51. No âmbito dos autos de insolvência foram reconhecidos créditos no valor global de € 13.635.915,26, nos quais se inclui o crédito reconhecido ao ISS, IP no valor total de € 4.951.831,54.
52. A insolvente apresentou, mas não fez aprovar, até à data da entrada da ação de insolvência em juízo, contas válidas relativas ao exercício económico de 2020, face à ausência da Certificação Legal das Contas e do Relatório do Fiscal Único.
53. O que veio a acontecer em sede de assembleia geral realizada no passado dia 29.09.2022.
54. Nas contas apresentadas pela insolvente, relativas ao exercício de 2020, na parte relativa à dívida junto da Segurança Social, apenas é referido o capital em dívida, sem que haja qualquer referência aos juros vencidos.
55. Na Nota 19., rúbrica Inventários, consta que se encontravam em 01.01.2020 “produtos e trabalho em curso” no valor de € 2.542.662,15, e em 31.12.2020 “produtos e trabalhos em curso” no valor de € 2.559.149,66.
56. Do Balanço resulta que entre os exercícios de 2019 e 2020 a rubrica “Fornecedores Conta Corrente” aumentou de € 660.308,74 em 2019 para € 1.543.992,42 em 2020.
57. Das contas relativas ao exercício de 2019, a “C...” não constava como credora da insolvente.
58. No âmbito do PER relativo à aqui insolvente, não se encontrava reconhecido qualquer valor a liquidar à C... .
59. Da certificação legal de contas relativa ao exercício de 2020 consta, para além do mais o seguinte relato sobre a auditoria das demonstrações financeiras:
auditámos as demonstrações financeiras anexas da A..., S.A., que compreendem o balanço em 31 de dezembro de 2020 (que evidencia um total de € 11.157.281 e um total de capital próprio negativo de € 567.920, incluindo um resultado líquido negativo de € 693.797), a demostração dos resultados por naturezas, a demonstração das alterações no capital próprio e a demonstração dos fluxos de caixa relativas relativas ao ano findo naquela data (…) Em nossa opinião, exceto quanto aos possíveis efeitos das matérias referidas nos números 1 a 3 da secção “Bases para a opinião com reservas”, e exceto quanto aos efeitos das matérias referidas nos números 4 a 6 da mesma secção, as demonstrações financeiras anexas apresentam de forma verdadeira e apropriada, em todos os aspetos materiais, a posição financeira da A..., S.A. em 31 de dezembro de 2020 e o seu desempenho financeiro e fluxos de caixa relativos ao ano findo naquela data de acordo com as Normas Contabilísticas e de Relato Financeiro adotadas em Portugal através do sistema de normalização contabilística.
60. Da referida certificação legal de contas constam ainda, e para além de outras, as seguintes bases para opinião com reservas:
1. A Entidade não procedeu a contagens físicas de inventários referentes a 31 de dezembro de 2020 e não foi possível através de meios alternativos obter prova de auditoria suficiente a apropriada quanto às quantidades em inventário. Consequentemente, não conseguimos determinar se seriam necessários ajustamentos aos inventários e consequentes alterações nos valores relatados no balanço, na demonstração dos resultados e na demonstração das alterações do capital próprio.
2. A 31 de dezembro de 2020 a rubrica de ativos por impostos diferidos apresenta o montante de 1.336.314euros.
Do referido montante, 271.692euros refere-se ao reconhecimento de ativos por impostos diferidos relativo a prejuízos fiscais. De acordo com a NCRF25 – Imposto sobre o rendimento, a entidade reconhece previamente um activo por impostos diferidos não reconhecido até ao ponto em que se torne provável que os lucros tributáveis futuros permitirão que o activo por impostos diferidos seja recuperado.
O restante montante, 1.064.622 euros, refere-se a ativos por impostos diferidos constituídos sobre a valorização do MEP da subsidiária I..., SA.
Não nos foi disponibilizada documentação que suporte os registos efectuados, pelo que não nos é possível concluir acerca da razoabilidade do saldo apresentado nesta rubrica.
3. A 31 de dezembro de 2020 o balanço apresenta na rubrica “outros créditos a receber” – empréstimos concedidos – I..., SA, o montante de 521.850 euros e a rubrica “outros investimentos financeiros – investimentos em subsidiárias”, apresenta o montante de 1.000.000 euros, relativos a prestações acessórias concedidas em 2006, ambos relativos à participada I..., SA. Devido à inactividade registada por aquela entidade, não estamos em condições de estimar, com um razoável grau de segurança, a probabilidade de recuperação dos referidos saldos, os quais não se encontram ajustados.
4. A aplicação do Método de Equivalência Patrimonial (MEP) à participada I..., SA encontra-se suspenso, assim como a sua actividade. Nesta circunstância a Entidade deveria ter constituído uma perda por imparidade para fazer face à irrecuperabilidade da sua participação, no montante de 200.000 euros, correspondente à sua participação no capital social.
5. A 31 de dezembro de 2020 a rubrica “Estado e outros entes públicos (impostos sobre o rendimento), no activo, apresenta o montante de 36.462 euros, referentes a pagamentos especiais por conta (PEC) que conforme legislação em vigor, não se encontram elegíveis para deduzir. Assim, a rubrica Estado e outros entes públicos encontra-se sobrevalorizada e o resultado líquido subavaliado no referido montante.
61. Com data de 15 de fevereiro de 2007 foi celebrado um contrato de doação no qual intervieram na qualidade de doadores FF e JJ e na qualidade de donatários MM e DD.
62. Por via do referido contrato de doação, os doadores doaram aos donatários equipamentos e materiais fabris e em uso na fábrica da A....
63. No ano de 2022, com o eclodir da guerra na Ucrânia, os preços do gás natural (um dos principais custos de produção da insolvente), aumentaram 1000%.
64. Na sequência da Pandemia COVID 19, no ano de 2021 a insolvente não pode beneficiar de layoff simplificado relativamente aos seus cerca de 160 trabalhadores.
65. Aquando da declaração de insolvência da A... inexistiam salários em atraso.
66. Para a massa insolvente foram apreendidos os bens móveis melhor descritos no auto de apreensão junto ao respetivo apenso de apreensão.
67. A receita obtida com a liquidação dos bens que compunham a massa insolvente ascendeu ao valor global de € 545.017,29.
B – Factos Não Provados
Não se lograram provar quaisquer outros factos com relevo direto para a decisão da causa, designadamente, não se provou que:
a) DD geria a Requerida em seu proveito próprio.
b) O objetivo de DD em colocar KK na posição de Diretor Geral era o de se proteger para o exterior, das contingências e responsabilidades de decisões tomadas enquanto administradora de facto, podendo invocar que, acima de si, recebia instruções do administrador e até do diretor geral.
c) DD controla a G..., Lda.
d) Que o registo referido em 40. dos factos provados tenha sido efetuado a mando de DD.
e) DD escondeu a respetiva participação social na G..., Lda. através de LL com o intuito de obviar à descoberta do seu controlo efetivo, quer por via da participação acionista, quer por via da gestão efetiva, também escondida atrás de um administrador e diretor geral que domina.
f) Tudo num plano delineado com vista a utilizar a A... como escudo, permitindo-se agravar significativamente as dívidas da A... à Segurança Social, que financiava a atividade deficitária, sem perigo de reversão para si.
g) Esvaziando a A... dos seus clientes e ativos em seu benefício pessoal.
h) Em resultado da relação que foi estabelecida entre insolvente e a C..., a margem de lucro correspondente ao exercício da sua atividade de produção e comercialização de cerâmica foi irremediavelmente perdida pela insolvente.
i) O negócio consubstanciado na comercialização de toda a produção da A... entregue nas mãos da C... teve como resultado que a dívida a terceiros ascendesse aos valores que ascendeu nos anos de 2015, 2020 e 2022.
j) Foi a decisão de transferir os clientes para a “C...” que impediu a A... de cumprir com o Plano de Recuperação aprovado em sede de PER.
k) Os únicos beneficiários com este negócio foram DD e “C...”.
l) No contrato de doação referido em 60. dos factos provados encontravam-se listados equipamentos que não existiam na fábrica da A... em 2002 e outros posteriormente adquiridos pela A... à data do contrato.
m) Os sites na internet da “A...” e da “C...” são materialmente iguais.
n) Os funcionários da A... e da C... eram exatamente os mesmos.
o) a s) (eliminados – dados como provados).
t) e u) (eliminado).
v) e h) (dados comi provados).
x) Até que os acionistas procedessem à nomeação de um novo e definitivo administrador.
y) (passou para os factos provados).
z) (eliminado)
aa) Era CC quem, de forma plena e exclusiva, atuava em representação da A..., negociando com entidades externas e com trabalhadores.
bb) CC, como administrador único da A..., reservava para si os poderes de dirigir cada departamento, fiscalizando-o, e questionando trabalhadores com cargos de chefia sobre o andamento dos respetivos trabalhos, tomando decisões sobre caminhos a tomar, autorizando ou não variados investimentos.
cc) Na A..., DD, ocupava apenas o cargo de Diretora de Fábrica.
dd) DD nunca tomou decisões relevantes, nem decisões estratégicas da insolvente, nem decidiu sobre “que negócios fazer ou não fazer”.
Ee) DD nunca fez contratações de trabalhadores, que após as entrevistas feitas pelo departamento de recursos humanos eram propostos à Administração.
ff) A aceitação ou não de novos clientes era decidida pelo departamento comercial.
gg) A negociação de condições de pagamento com clientes e fornecedores era decidida pelo departamento financeiro e tesouraria da insolvente.
hh) A contratação de KK foi feita por CC.
ii) Só posteriormente é que DD e EE tomaram conhecimento que KK havia sido contratado para ocupar a posição de Diretor Geral, pois inicialmente pensaram que ele seria contratado apenas para chefiar a produção de Grés, tendo em conta a sua especialização.
A sentença recorrida veio a considerar a insolvência como culposa, também pela verificação da situação prevista na al. h), do nº2, do artigo 186º CIRE segundo a qual, se considera sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
h) incumprido em termos substanciais a obrigação de manter a contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor.
O tribunal recorrido faz assentar tal juízo na seguinte fundamentação:
(…) A situação prevista na referida alínea h) tem-se, portanto, como verificada quando a contabilidade não permite perceber e compreender a exata e real situação patrimonial e financeira da empresa ou cria dificuldades sérias e relevantes para essa compreensão, seja porque tal contabilidade nem sequer existe (incumprimento absoluto – e, necessariamente, substancial – do dever de manter contabilidade organizada), seja porque a contabilidade existente omite elementos essenciais para aquela compreensão, seja porque contém incorreções ou irregularidades (formais ou materiais) que são suscetíveis de afetar e condicionar, de modo relevante e significativo, aquela perceção e compreensão ou seja porque existe uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade que, obviamente, não reflete a realidade.
No caso dos autos, e com relevância para esta matéria, resultaram provados os seguintes factos:
- A insolvente apresentou, mas não fez aprovar, até à data da entrada da ação de insolvência em juízo, contas válidas relativas ao exercício económico de 2020, face à ausência da Certificação Legal das Contas e do Relatório do Fiscal Único;
- O que veio a acontecer em sede de assembleia geral realizada no passado dia 29.09.2022.
- Nas contas apresentadas pela insolvente, relativas ao exercício de 2020, na parte relativa à dívida junto da Segurança Social, apenas é referido o capital em dívida, sem que haja qualquer referência aos juros vencidos.
- Na Nota 19., rúbrica Inventários, consta que se encontravam em 01.01.2020 “produtos e trabalho em curso” no valor de € 2.542.662,15, e em 31.12.2020 “produtos e trabalhos em curso” no valor de € 2.559.149,66.
- Da certificação legal de contas relativa ao exercício de 2020 consta, para além do mais o seguinte relato sobre a auditoria das demonstrações financeiras: auditámos as demonstrações financeiras anexas da A..., S.A., que compreendem o balanço em 31 de dezembro de 2020 (que evidencia um total de € 11.157.281 e um total de capital próprio negativo de € 567.920, incluindo um resultado líquido negativo de € 693.797), a demostração dos resultados por naturezas, a demonstração das alterações no capital próprio e a demonstração dos fluxos de caixa relativas relativas ao ano findo naquela data (…) Em nossa opinião, exceto quanto aos possíveis efeitos das matérias referidas nos números 1 a 3 da secção “Bases para a opinião com reservas”, e exceto quanto aos efeitos das matérias referidas nos números 4 a 6 da mesma secção, as demonstrações financeiras anexas apresentam de forma verdadeira e apropriada, em todos os aspetos materiais, a posição financeira da A..., S.A. em 31 de dezembro de 2020 e o seu desempenho financeiro e fluxos de caixa relativos ao ano findo naquela data de acordo com as Normas Contabilísticas e de Relato Financeiro adotadas em Portugal através do sistema de normalização contabilística.
- Da referida certificação legal de contas constam ainda, e para além de outras, as seguintes bases para opinião com reservas:
1. A Entidade não procedeu a contagens físicas de inventários referentes a 31 de dezembro de 2020 e não foi possível através de meios alternativos obter prova de auditoria suficiente a apropriada quanto às quantidades em inventário.
Consequentemente, não conseguimos determinar se seriam necessários ajustamentos aos inventários e consequentes alterações nos valores relatados no balanço, na demonstração dos resultados e na demonstração das alterações do capital próprio.
2. A 31 de dezembro de 2020 a rubrica de activos por impostos diferidos apresenta o montante de 1.336.314euros. Do referido montante, 271.692euros refere-se ao reconhecimento de activos por impostos diferidos relativo a prejuízos fiscais. De acordo com a NCRF25 – Imposto sobre o rendimento, a entidade reconhece previamente um activo por impostos diferidos não reconhecido até ao ponto em que se torne provável que os lucros tributáveis futuros permitirão que o activo por impostos diferidos seja recuperado. O restante montante, 1.064.622 euros, refere-se a activos por impostos diferidos constituídos sobre a valorização do MEP da subsidiária I..., SA. Não nos foi disponibilizada documentação que suporte os registos efectuados, pelo que não nos é possível concluir acerca da razoabilidade do saldo apresentado nesta rubrica.
3. A 31 de dezembro de 2020 o balanço apresenta na rubrica “outros créditos a receber” – empréstimos concedidos – I..., SA, o montante de 521.850 euros e a rubrica “outros investimentos financeiros – investimentos em subsidiárias”, apresenta o montante de 1.000.000 euros, relativos a prestações acessórias concedidas em 2006, ambos relativos à participada I..., SA. Devido à inactividade registada por aquela entidade, não estamos em condições de estimar, com um razoável grau de segurança, a probabilidade de recuperação dos referidos saldos, os quais não se encontram ajustados.
4. A aplicação do Método de Equivalência Patrimonial (MEP) à participada I..., SA encontra-se suspenso, assim como a sua actividade. Nesta circunstância a Entidade deveria ter constituído uma perda por imparidade para fazer face à irrecuperabilidade da sua participação, no montante de 200.000 euros, correspondente à sua participação no capital social.
5. A 31 de dezembro de 2020 a rubrica “Estado e outros entes públicos (impostos sobre o rendimento), no activo, apresenta o montante de 36.462 euros, referentes a pagamentos especiais por conta (PEC) que conforme legislação em vigor, não se encontram elegíveis para deduzir. Assim, a rubrica Estado e outros entes públicos encontra-se sobrevalorizada e o resultado líquido subavaliado no referido montante.
Insurge-se a Apelante DD contra o decidido, com a seguinte fundamentação:
- da opinião partilhada pelos dois auditores da insolvente, NN e OO, que são quem analisou profundamente as respetivas contas e possuem extraordinários conhecimentos para sobre elas emitir opinião tecnicamente esclarecida, não será possível concluir que está verificado o circunstancialismo previsto na alínea h), do nº 2 do art.º 186º do CIRE.
aliás, verifica-se até o contrário, que não estão cumpridos tais requisitos, de acordo com os dados disponíveis, sendo necessários níveis de desconformidade muito superiores aos verificados, para que pudessem ser considerados suscetíveis de afetar de modo sério e relevante a exata compreensão patrimonial e financeira da empresa;
não foi dado como provado qualquer facto que ateste que, de eventuais erros, lapsos ou discrepâncias identificadas na contabilidade da insolvente, resultou, sem qualquer dúvida, a impossibilidade de indicar, com segurança, a causa da insolvência e os seus responsáveis.
e isto porque, nenhum dos alegados erros, lapsos ou discrepâncias que constam na contabilidade da insolvente podem ser considerados como substanciais.
A questão a decidir passa, assim, por determinar se os factos selecionados pelo juiz a quo integram um incumprimento substancial do dever de manter contabilidade organizada, por envolverem “prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor.”
Como se afirma no Acórdão deste Tribunal da Relação de 14-03-2023[2], deve entender-se que o incumprimento de tal obrigação é substancial “quando ele afete ou comprometa, de modo relevante, o resultado que se pretende obter com a obrigação em causa. Ora, sabendo-se que a obrigação de manter a contabilidade organizada tem como objetivo criar um instrumento por via do qual se dê a conhecer a real situação patrimonial e financeira da entidade em causa, de modo compreensível (pelo menos para quem tenha os conhecimentos necessários para a interpretar), completo e fiável, o incumprimento dessa obrigação será substancial quando ele inviabiliza ou seja suscetível de afetar e comprometer, de modo sério e relevante, a concretização da quele resultado, ou seja, quando a contabilidade – nos termos em que foi organizada, não fornece uma imagem compreensível, completa e fiável da situação financeira da empesa, seja porque os termos em que foi organizada não permitem ou dificultam, de modo relevante, a exata interpretação e compreensão da situação financeira que ali se pretendeu retratar, seja porque induz à perceção de uma situação financeira que diverge, em termos substanciais e relevantes, da real situação financeira”.
Apresentadas pela insolvente as contas relativas ao exercício de 2020, à data da entrada da ação de insolvência em juízo (25 de janeiro de 2022), as mesmas não se encontravam ainda aprovadas, face à ausência de Certificação legal das contas e do Relatório do fiscal único, aprovação que só veio a ocorrer em Assembleia geral de 29-09-2022 (pontos 52 e 53 dos factos provados).
A aprovação das contas no prazo legal integra um dever distinto daquele cujo incumprimento se pretende punir com o disposto na al. h) do nº2 do art. 186º, constituindo a sua inobservância um fundamento autónomo de qualificação da insolvência como culposa – nº3, al. b), do artigo 186º –, circunstancialismo este que a sentença recorrida analisou separadamente, tendo-o por não verificado.
Como tal, a questão em apreço, passará, unicamente, por determinar se as irregularidades descritas nas “Reservas”, apontadas no Relato sobre a Auditoria das demonstrações financeiras realizada aquando da Certificação Legal de Contas relativa ao exercício de 2020, envolvem “prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor.”
A contabilidade organizada, cuja manutenção é obrigatória para as sociedades comerciais, “deve refletir todas as operações realizadas pelo sujeito passivo e ser organizada de modo que os resultados das operações e variações patrimoniais sujeitas ao regime geral do IRC possam claramente distinguir-se dos das restantes” (artigo 17º, nº3, al. b), do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas), exigindo-se ainda que “todos os lançamentos devam estar apoiados em documentos justificativos, datados e suscetíveis de serem apresentados sempre que necessário” (artigo 123º, nº2, do CIRPC).
Da auditoria das demonstrações financeiras consta que “exceto quanto aos possíveis efeitos das matérias referidos sob os pontos 1 a 3 (…), as demonstrações financeiras anexas apresentam de forma verdadeira e apropriada, em todos os aspetos materiais, a posição financeira da A... em 31 de dezembro de 2020 e o seu desempenho financeiro e fluxos de caixa relativos ao ando findo, naquela data de acordo com as Normas Contabilísticas e de Relato Financeiro adotadas em Portugal através do sistema de normalização contabilística”.
E quais são as exceções e únicos reparos dignos de nota?
- as entidades não procederam à contagem física dos inventários referentes a 31 de dezembro, de modo que não foi possível aferir da correção dos números indicados;
- na rubrica “Estado e outros entes públicos” (impostos sobre o rendimento) apresenta no ativo uma rubrica de 36.462 €, que não se encontrariam elegíveis para deduzir;
os restantes reparos respeitam a ativos por impostos diferidos relativamente a créditos sobre a participada I... S.A., então em inatividade, e da omissão como imparidade da sua participação naquela no capital social daquela sociedade, no valor de 200.000 €.
Não há um único facto dado como provado do qual se possa retirar que tais irregularidades contabilísticas tenham dificultado a compreensão sobre a real situação patrimonial ou financeira da empresa, sendo que, no Parecer que emitiu ao abrigo do disposto no nº6 do artigo 188º do CIRE, o Administrador de Insolvência não faz qualquer referência a irregularidades que tenha encontrado na contabilidade e muito menos que se lhe tenham levantado dúvidas acerca da mesma e da situação da insolvente, não apontando o preenchimento da h) do nº2 do artigo 196º, como fundamento de qualificação da insolvência como culposa.
Assim como, o credor/requerente da abertura do incidente de qualificação da insolvência como culposa, B..., Lda., a única censura que aponta às contas relativas ao período findo em 2020, assenta no facto de, apesar de estarem disponíveis para os acionistas, o Relatório de Gestão, as Contas e o Anexo respeitantes a tal período, não lhes havia sido ainda entregue a Certificação Legal das Contas e o Relatório do Fiscal único.
Não se reconhece, assim, a verificação do circunstancialismo constante da al. h) do nº2 do artigo 186º CIRE.
Por fim, a sentença recorrida tem ainda por preenchido o circunstancialismo previsto na al. a) do nº3, do art. 186º CIRE, com o seguinte teor:
“3. Presume-se unicamente a existência de culpa grave, quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular, tenham incumprido:
a) o dever de requerer a declaração de insolvência.
A decisão recorrida considerou preenchida tal alínea com base nos seguintes fundamentos, que assim se sintetizam:
já desde 2016, a insolvente não cumpria atempadamente com os pagamentos de cotização à Segurança Social (sem prejuízo dos planos prestacionais que foram sendo acordados sem prejuízo de planos prestacionais que foram celebrados, mas que não impediram o crescimento da dívida àquele Instituto, uma vez que as contribuições que se iam vencendo não eram atempadamente pagas, acabando por posteriormente serem englobadas em novo plano prestacional, cuja dívida ia aumentado por força de novas contribuições em dívida e respetivos juros);
o não pagamento das contribuições à segurança social faz presumir a impossibilidade da devedora cumprir a generalidade das suas obrigações vencidas, presumindo-se a situação de insolvência decorridos pelo menos três meses sobre o incumprimento generalizado de tais obrigações (artigo 18º, nº3 do CIRE);
tendo ainda em conta o período relevante para efeitos de qualificação da insolvência, pelo menos desde 25 de janeiro de 2019 (inicio do período relevante para o presente incidente) os sucessivos administradores da sociedade insolvente tinham o dever de a apresentar à insolvência, o que não fizeram;
com o protelamento da apresentação da devedora à insolvência, foram constituídas, pelo menos, novas e significativas dívidas junto do ISS, com novas contribuições e juros de mora;
os requeridos não alegaram nem provaram, como lhes competia os factos tendentes a ilidir a presunção de culpa que sobre eles recaía;
sendo evidente que a situação de insolvência da sociedade insolvente é anterior à pandemia Covid 19, e ainda que esta tenha concorrido para o agravamento da situação de insolvência, a devedora claramente não ficou em situação de insolvência causada pela situação de pandemia, não sendo assim, aplicável ao caso presente, a suspensão que foi consagrada na al. a), nº6, do art. 7º da Lei nº1-A/2000, de 19 de março;
dúvidas não restam da verificação do nexo de causalidade entre a conduta dos gerentes e a situação de agravamento da situação de insolvência da empresa, pois que nas circunstâncias evidenciadas dos autos, era-lhes exigível que tomassem outras precauções. E, ao atuarem de tal forma, agravaram a situação de insolvência, ou seja, no mínimo, os gerentes agiram com negligência grosseira ou culpa grave, contribuindo para o agravamento da situação de insolvência da sociedade, pois que não podiam desconhecer ou ignorar, sem culpa grave, que inexistia qualquer perspetiva séria de melhoria da situação financeira da empresa.
Sustenta a Apelante que o tribunal a quo errou ao considerar verificados os circunstancialismos exigidos pela al. a) do nº3 do artigo 186º, com base nas seguintes ordens de razões:
- a insolvente não incumpriu com nenhum dever de requerer a declaração de insolvência, uma vez que tal obrigação se encontrava suspensa entre 06-04-2020 e 05-07-2023 (Lei nº 4-A/2020, de 6 de abril);
considerar que a suspensão consagrada na al. a) do nº 6 do artigo 7º da Lei 1-A/2020, com a alteração introduzida em 06.04.2020, se aplica somente às situações de insolvência causadas pela pandemia é ir-se muito além da letra e do espírito da lei, não se podendo considerar que tal conclusão resulta de uma interpretação extensiva, dado não ter a correspondência com a letra lei – n.º 2 do artigo 9.º do Código Civil;
tal obrigação existiria assim apenas para a recorrente, entre finais de outubro (data em que o seu pai, administrador único, faleceu) e 06-04-2024, data em que a suspensão da obrigação entrou em vigor;
considerando que as contas poderiam ser legalmente apresentadas até ao final do mês de Julho de 2020, e que mesmo após esse prazo, conhecida a situação de insolvência (nos termos do art.º 3º do CIRE) o administrador teria ainda 30 dias para a requerer;
e sabendo-se também, que a aprovação das contas relativas ao exercício de 2019 foram apenas aprovadas em Assembleia-Geral ocorrida em 01.06.2020, forçoso será concluir-se que, a obrigação da ora Recorrente, de requerer a insolvência da A... contida no art.º 18º do CIRE – na hipótese académica, repita apenas seria por si incumprida, caso não o fizesse no prazo de um mês após o conhecimento das contas da sociedade (o que ocorreu na AG de 01.06.2020), que seria no dia 01.07.2020.
antes desta data, a obrigação era apenas do administrador único até outubro de 2019 – Sr. FF –, uma vez que só ele conhecia (ou tinha obrigação de conhecer) os constrangimentos financeiros da insolvente, mas que veio a falecer, como já indicado, no final de outubro de 2019.
Cumpre apreciar.
Comecemos por analisar a questão de determinar se a suspensão do dever de apresentação da devedora à insolvência, consagrada na al. a) do nº 6 do artigo 7º da Lei 1-A/2020, com a alteração introduzida em 06.04.2020, se aplica somente às situações de insolvência causadas pela pandemia ou se, também, aos casos em que a situação de insolvência lhe é pré-existente.
Uma das medidas excecionais adotadas no contexto da pandemia causada pelo coronavírus e doença COVID-19, foi a suspensão do dever de apresentação do devedor à insolvência decretada pela al. a) do nº6 do artigo 7º da Lei nº1-A/2000, de 19 de março (com a alteração introduzida pela Lei nº 4-A/2020), suspensão decretada com efeitos retroativos desde 09 de março de 2020 (nº2 do artigo 6º do citado diploma) e que assim se manteve até à entrada em vigor da Lei n.º 31/2023, de 4 de julho.
Tal suspensão foi consagrada nos seguintes termos:
Artigo 7º
Prazos e diligências
1 - Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, todos os prazos para a prática de atos processuais e procedimentais que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público (…), ficam suspensos até à cessação da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, a decretar nos termos do número seguinte.
(…)
6. Ficam também suspensos:
a) o prazo de apresentação do devedor à insolvência, previsto no nº1 do artigo 18º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas”
Segundo o nº1 do artigo 18º do CIRE, o devedor deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 30 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência – enquanto impossibilidade de cumprir as suas obrigações vencidas, ou seja, em situação de insolvência atual.
O prazo da apresentação conta-se do conhecimento da situação ou, quando for anterior, do momento em que o devedor a devia conhecer, contendo o nº3 do artigo 18º uma presunção inilidível do conhecimento da insolvência quando ocorra, há pelo menos três meses, o incumprimento generalizado de qualquer das obrigações referidas na al. g), do nº1 do artigo 20º CIRE.
É este prazo de 30 dias para apresentação da empresa à insolvência que o nº6 do artigo 7º da Lei nº1-A/2000, veio suspender, prazo este que retomou o seu curso a 05-07-2023, com a Lei nº31/2023, de 04 de julho.
Ao contrário do sustentado pela Apelante, o elemento literal de tal norma aponta no sentido de que se consagra, não propriamente uma suspensão do dever de apresentação à insolvência, mas, tão só, do prazo que se encontre em vigor.
Como tal, não será de aplicar às empresas em que, à data em que a suspensão inicia os seus efeitos (9 de março de 2020), haviam já incumprido o dever de apresentação à insolvência, ou seja, aquelas empresas em que a sua situação de insolvência atual é anterior à deflagração da pandemia[3].
Tal interpretação é a que melhor se coaduna com os fins visados pelo legislador, como resulta da leitura que a tal respeito é feita na doutrina.
“Com a suspensão do o prazo de apresentação à insolvência, visou-se essencialmente garantir a proteção das empresas, em particular num contexto de crise económica para a qual nada contribuíram, bem como salvaguardar a sustentabilidade geral da economia portuguesa[4]”.
“A necessidade de uma medida que suspenda a obrigação de apresentação à insolvência durante este período é evidente. Os empresários ou administradores das empresas estão, nesta altura, sob fortíssima pressão. Por um lado, sabem que, por uma causa extraordinária, a empresa deixou de ter liquidez e que em breve lhes será impossível fazer face aos compromissos correntes (se não atingiu já essa situação); por outro lado, sabem que se não cumprirem a obrigação de apresentação à insolvência nos trinta dias seguintes à data do conhecimento da insolvência ou à data em que devessem conhecê-la, ficam sujeitos aos efeitos da insolvência culposa [cfr. artigo 18.º, n.ºs 1 e 3, 19.º e 189.º, n.º 2, al. a), e 186.º, n.º 2, do CIRE]. Em quase todas as empresas o ambiente é este. Para grande parte delas, porém, a liquidação patrimonial não é a solução adequada ou justa. É preciso espaço / tempo, para avaliar a situação. É preciso espaço / tempo para identificar as empresas que seriam viáveis não fosse ter ocorrido aquela causa extraordinária e que terão, no futuro, boas perspectivas de retomar o curso normal da actividade económica.[5]”
Maria de Fátima Ribeiro, dá uma resposta direta a tal questão:
“Com a suspensão do dever de apresentação à insolvência, os administradores deixaram de estar sujeitos à eventualidade das consequências que para si acarretaria o atraso na apresentação à insolvência, mesmo que a empresa se encontrasse em insolvência atual (desde que essa situação não existisse já antes da sua entrada em vigor – a norma veio apenas suspender um prazo que se encontrasse em curso[6].
Como resulta do seu elemento literal, só pode ser suspenso o prazo que se encontre em vigor, o que significa que a norma se reporta unicamente a empresas que, encontrando-se em situação de insolvência, o respetivo prazo para apresentação à insolvência estivesse ainda a decorrer.
Regressando ao caso em apreço, decorrendo o período relevante para efeitos da qualificação da insolvência entre 25 de janeiro de 2019 e 25 de janeiro de 2022 (data em que a sua insolvência veio a ser requerida por um credor), quando entra em vigor a suspensão dos prazos de apresentação à insolvência (09 de março de 2020), há muito que a A... se encontrava em situação de insolvência atual (ainda que presumida).
Encontrando-se em atraso os pagamentos à Segurança Social, o plano prestacional nº 4359/2015, deferido pela segurança social em 2015/09/21 (em 120 prestações, das quais foram pagas unicamente 29 prestações), veio a ser rescindido em 2018.04.23, tendo o novo plano prestacional sido deferido unicamente em 2020/04/30. Como tal, quando a 9 de março de 2020, é suspenso o dever de apresentação das empresas à insolvência, há muito havia decorrido o prazo 30 dias para apresentação da empresa à insolvência.
Aliás, o entendimento expresso na decisão recorrida, de que é evidente que “a situação de insolvência da sociedade insolvente é anterior à pandemia Covid 19, e ainda que esta tenha concorrido para o agravamento da situação de insolvência, a devedora não ficou em situação de insolvência causada pela situação da pandemia”, não é aqui posto em causa pela Apelante.
Como tal, é aqui de valorar o incumprimento do dever de apresentação da empresa à insolvência ocorrido entre 25 de janeiro de 2019 e 25 de janeiro de 2022.
com a alteração introduzida ao art. 186.º, n.º 3 do CIRE pelo art. 2.º, n.º 3 da Lei n.º 9/2022, de 11-01, ficou claro que as situações aí tipificadas configuram meras presunções de culpa grave, sem presunção de causalidade quanto à situação de insolvência, exigindo-se, para qualificação da insolvência como culposa, a demonstração, nos termos do art. 186.º, n.º 1, de ter a mesma sido causada ou agravada em consequência dessa conduta;
o Tribunal a quo ignorou os impactos que a pandemia COVID 19 e que a guerra Ucrânia-Rússia, provocaram no normal funcionamento da sociedade Insolvente, o que se comprova pela descida acentuada das vendas do ano de 2019 para o ano de 2020, correspondendo o valor de vendas no ano de 2019 a 4.601.095,83 € e no ano de 2020 a 3.454.330,83 €, o que se consegue também ver pela recuperação que a insolvente consegue efetuar em 2021 e 2022; assim como, no ano de 2022, a guerra na Ucrânia implicou um aumentos dos preços do gás natural em 100%;
não se encontrando ainda preenchido o condicionalismo fáctico subjacente à presunção de existência de culpa grave dos administradores da insolvente, a que alude o nº 3 do citado art.º 186º, tendo por base que todos os contratos tiveram em consideração o estrito interesse da insolvente e a continuação da sua atividade.
Cumpre apreciar.
Começando pelo último argumento, não atinge o sentido da afirmação dos apelantes de que não se encontra preenchido o condicionalismo fáctico, a que alude o nº3 do artigo 186º, invocando o facto de “os contratos terem sido celebrados no interesse do insolvente e tendo em vista a continuação da sua atividade”. Assentando a presunção de culpa grave aí estabelecida, no incumprimento dos deveres descritos nas als. a) e b) – a) do dever de requerer a declaração de insolvência; ou b) da obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, e submete-las à sua aprovação e depósito –, o alegado facto de que os contratos terem sido celebrados no interesse da sociedade, podendo relevar para a verificação de algumas alíneas do nº2 do artigo 186º, nenhuma relevância assumem na determinação do (in)cumprimento do dever de requerer a declaração de insolvência.
Passemos à questão da alegação e prova do nexo de causalidade entre o incumprimento do dever de apresentação à insolvência e os danos decorrentes deste atraso.
É atualmente indiscutido que, face à redação que lhe é dada pela Lei nº9/2022, de 11 de janeiro – “presume-se unicamente a existência de culpa grave” – o nº3 do artigo 186º do CIRE, apenas contém presunções de culpa grave (ilidíveis), sendo ainda necessário provar que tal atuação com culpa grave (presumida) criou ou agravou a situação de insolvência[7], sendo este nexo de causalidade um dos requisitos necessários para aquela qualificação.
Por outro lado, é atribuída aos afetados a faculdade que provar que “não foi a sua conduta ilícita (e presumivelmente culposa) que deu causa à insolvência, ou ao respetivo agravamento, mas sim uma outra razão, externa ou independente da sua vontade – por ex., a conjuntura económica ou as condições de mercado.
Quanto às alegadas consequências da guerra na Ucrânia, nomeadamente no aumento do preço dos combustíveis, nenhuma influencia pode ter tido no agravamento da situação de insolvência da empresa, por se tratar de evento de ocorrência posterior à data de entrada do pedido de declaração de insolvência: o pedido de declaração da insolvência da A... foi apresentado a 25 de janeiro de 2022 e a guerra na Ucrânia iniciou-se com a invasão das tropas russas a 22 de fevereiro de 2022.
Quanto a uma eventual influência da pandemia no agravamento da situação de insolvência da empresa, podemos distinguir, dois períodos: entre 25 de janeiro de 2019 e a declaração do estado de emergência, com fundamento na verificação de uma situação de calamidade pública – decretada Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020 de 18 de março – com efeitos a partir de 19 de março de 2020 –, e o período posterior até janeiro de 2022.
Relativamente ao primeiro período, entre 25 de janeiro de 2019 e 19 de março de 2020 –, as circunstâncias invocadas pelos apelantes não têm qualquer significado, por serem de ocorrência posterior.
Relativamente ao segundo período, durante o qual esteve em vigor o estado de emergência – até 25 de janeiro de 2022 – durante cerca de 1 ano e 10 meses –, podiam os Apelantes alegar e demonstrar que o agravamento da situação de insolvência não decorreu do atraso na apresentação à insolvência, mas unicamente a circunstancias externas.
A sua defesa a tal respeito assenta unicamente na seguinte alegação:
o que facilmente se comprova pela descida acentuada das vendas do ano de 2019 para o ano de 2020, correspondendo o valor de vendas no ano de 2019 a 4.601.095,83 € e no ano de 2020 a 3.454.330,83 €,
o que também se comprova pela recuperação que a insolvente consegue efetuar em 2021 e 2022, aumentando o valor das vendas para 4.884.735,74 € e em 2022 subiram para 5.847.909,94 €.
Contudo, tal versão surge contrariada pelo facto de o passivo ter tido uma subida constante, nos anos de 2018, 2019, 2020, 2021 e 2022, conforme resulta dos factos dados como provados sob o ponto 13:
13. A “A...”, no ano de 2018, apresentou um passivo no total de € 8.816.881,03; no ano de 2019 apresentou um passivo no total de € 9.215.333,19; no ano de 2020 apresentou um passivo no total de € 10.703.380,25; no ano de 2021 um passivo total de € 11.840.947,45 e no ano de 2022 um passivo total de 12.496.088,15.
Assim como, se acha igualmente dado como provado que 9. “O decréscimo das receitas já se vinha a verificar desde os anos de 2018 e 2019”.
De tal matéria, sobressai, que, quando muito, pode ser considerado que a diminuição das vendas ocorrida durante a pandemia constituiu um fator que pode também ter contribuído que o avolumar do passivo da insolvente, a valorar, eventualmente, na determinação das consequências que a qualificação da insolvência como culposa, acarreta para cada um dos afetados, mas sem capacidade para excluir tal qualificação.
Tendo em consideração que o período relevante para a qualificação de insolvência, se restringe aos três anos anteriores à entrada do pedido de insolvência em tribunal – entre 25 de janeiro de 2019 e 25 de janeiro de 2022 –, vejamos se algum dos Apelantes se encontrava obrigado a promover a apresentação da sociedade à insolvência.
ainda que a recorrente fosse considerada administradora de facto, apenas o poderia ter sido após a morte de seu pai, o administrador único, conhecido por todos como “patrão”;
tendo o administrador único falecido em outubro de 2019, a hipotética administração que lhe sucedeu apenas poderia tomar conhecimento após a apresentação das contas;
pese embora as contas de 2019 pudessem ser apresentadas até julho de 2020, foram-no em 01.06.2020.
Se dúvidas houvesse sobre se ao administrador de facto pode ser assacado o incumprimento do dever de apresentação à insolvência ou de elaboração e aprovação de contas, a simples leitura do nº3 do artigo 186º dá resposta a tal questão. Aí se prevê que o incumprimento do dever de requerer a declaração da insolvência ou de apresentação de contas, faz presumir a existência de culpa grave, quer quanto aos administradores de direito, como aos administradores de facto.
No caso em apreço, ainda que consideremos que só a partir de outubro de 2019 (data do falecimento do seu pai), a Apelante assumiu a administração de facto da insolvente, o incumprimento da obrigação de apresentação à insolvência sempre lhe seria imputável entre outubro de 2019 a 25 de janeiro de 2022. E, não se diga que, só depois de aprovadas as contas, o administrador pode ter acesso às mesmas (se tal argumento pode ser válido para os acionistas não o será para a administração que, em qualquer altura pode ter acesso a todos os documentos de contabilidade da empresa e à contabilidade dos anos anteriores) e que, só a partir de então, a Apelante podia conhecer a verdadeira situação da empresa.
Como dispõe o nº1 do artigo 18º do CIRE, o devedor deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 30 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência ou à data em que devesse conhecê-la, conhecimento que se presume, de forma inilidível, decorridos três meses sobre o incumprimento generalizado de obrigações de algum dos tipos referidos na al. g) do nº1 do artigo 20º (nº3 do artigo 18º).
Daí se extrai ser irrelevante o desconhecimento culposo: aquele prazo começa a correr, ainda que o devedor não saiba que se encontra nessa situação, a partir do momento em que deva conhecê-la – presumindo-se inilidivelmente o conhecimento da situação de insolvência assim que decorridos três meses sobre o incumprimento generalizada de obrigações de algum dos tipos referidos na al. g) do nº1 do artigo 20º, entre as quais se salientam as quotizações para a segurança social.
Ainda que consideremos que a Apelante assume as funções de administradora de facto apenas após falecimento do seu pai (outubro de 2019) – pelo que, só partir daí, se encontrava obrigada ao dever de apresentação da A... à insolvência –, necessariamente que, enquanto gerente da C..., por cujas contas bancárias passavam todos os fluxos financeiros da A... (pelo menos desde inícios de 2018), tinha conhecimento dos planos prestacionais respeitantes às dividas à SS, do seu incumprimento e não pagamento das contribuições que se foram vencendo: em outubro de 2019 o último plano prestacional havia sido rescindido, por incumprimento e 23.04.2018, e a dívida da A... junto da SS no ano de 2019 ascendia a 3.2 milhões de euros; é certo que vem a celebrar novo plano prestacional em 23-04-2020 e que foi sendo cumprido até outubro de 2022, mas com incumprimento das contribuições que se foram vencendo.
Concluindo, pelo menos a partir de finais de outubro de 2019, a Apelante DD, na qualidade de administradora de facto da insolvente, encontrava-se sujeita ao dever de presentação da sociedade à insolvência, dever que incumpriu.
considerando o facto provado nº29, conjugado com a matéria dos factos provados sob os ns. 63 a 65, e o teor dos depoimentos das testemunhas NN, PP, QQ, ilibam totalmente o recorrente de qualquer contributo para a situação de insolvência em causa ou sequer o seu agravamento, nos termos do artigo 186º.
Também os Apelantes AA e BB se insurgem contra a decisão que os declarou afetados pela qualificação da insolvência como culposa, invocando nunca terem atuado como efetivos administradores da sociedade insolvente, não tendo tomando conhecimento da situação e da atividade da insolvente.
Atendendo ao período em que cada um deles se manteve em funções na administração da insolvente, o juízo de valor relativamente à atuação de cada um deles é necessariamente distinto:
- AA como vogal no período compreendido entre 25-01-2019 até 18.10.2019 (renúncia comunicada a 10.10.2019);
- BB foi nomeado administrador único por deliberação de 24.02.2020, com renúncia comunicada à gerência no dia 28.02.2020, a renúncia produziu os seus efeitos perante a sociedade, oito dias após tal comunicação, ou seja, a 06 de março de 2020;
- CC, foi nomeado administrador único por deliberação de 01.06.2020, situação que se mantinha à data da instauração do processo de insolvência;
A presunção de responsabilidade relativamente aos gerentes de direito, pressupõe que lhes possa ser assacada a prática de algum dos atos determinantes da qualificação da insolvência como culposa, ainda que por omissão.
Nomeado Administrador único por deliberação de 24-02-2020, e renunciando à gerência 4 dias depois, renúncia que, de imediato, comunicou à sociedade, encontrando-se demonstrado nunca ter qualquer ato em nome da sociedade nem tomado conhecimento da sua atividade, não se pode afirmar que, durante esse período, BB, tivesse a obrigação de se inteirar da situação patrimonial e financeira da sociedade e de a apresentar à insolvência.
Como tal, é de revogar a decisão que decretou a sua afetação pela qualificação da insolvência como culposa.
Quanto a AA, fez parte da administração da sociedade como vogal, no período compreendido entre 25-01-2019 até 18.10.2019 (renúncia comunicada a 10.10.2019), cargo que ocupava desde 14-09-2016, período durante o qual a administração de facto foi exercida pelo também administrador de direito, FF, Presidente da administração.
Quanto ao CC, demandado na qualidade de administrador de direito, nomeado como tal por deliberação de 01.06.2020, manteve-se em tal cargo até à data da formulação do pedido de declaração de insolvência (25.01.2022), período durante o qual a administração de facto foi exercida pela apelada DD.
Levanta-se aqui a questão de saber se, e em que termos, um gerente “de direito” que o não é de facto, pode, ou não, ser abrangido pela qualificação da insolvência como culposa, questão relativamente à qual seguiremos de perto a posição assumida no Acórdão do TRC de 11-10-2016[8], relatado pela também aqui relatora.
Como afirma Alexandre Soveral Martins, “Se há administrador de facto e este é afetado, isso não exclui que o administrador de direito também seja afetado. E vice-versa[9].”
Com a referência nos n. 1, 2 e 3, do artigo 186º aos “administradores de facto ou de direito”, o legislador não visa excluir os administradores de direito que não exerçam as funções de facto mas, ao invés, estender a qualificação a atos praticados por administradores de facto[10].
Com isto, não se pretende afirmar, como regra, que seja irrelevante a circunstância de o administrador de direito não exercer as funções de facto, funções estas que serão exercidas por terceiro.
Tudo dependerá da natureza das infrações registadas, nomeadamente se a violação dos deveres em causa pressupõe um comportamento ativo ou por omissão: por ex., se nos encontrarmos perante a situação prevista nas alíneas a), b) e c), do nº2 do art. 186º, a qualificação só deverá abranger aqueles administradores ou gerentes (de facto ou de direito) que tenham efetivamente destruído, ocultado ou feito desparecer, no todo ou em parte o património do devedor.
O que a lei pretende, por relevantes razões de segurança jurídica, é que haja coincidência, concreta e prática, entre os conceitos de administrador de direito e administrador de facto, pelo que a administração de facto não deixa de ser um fenómeno indesejado: administrador de direito, quando não o é de facto, ainda assim, encontra‐se obrigado a cumprir um conjunto de deveres que impendem sobre os administradores societários em geral[11]. E esse é o caso da obrigatoriedade de elaboração e aprovação das contas, assim como o é a obrigatoriedade de apresentação da sociedade à insolvência, caso se encontre em tal situação.
Um dos pressupostos da qualificação da insolvência como culposa é a verificação uma ação ou omissão de um dos seus gerentes de direito ou de facto[12].
E, de acordo artigo 72º, nº 1, do CSC, “os gerentes ou os administradores respondem para com a sociedade pelos danos a esta causados por atos ou omissões praticados com preterição dos deveres legais ou contratuais, salvo se provarem que procederam sem culpa”.
O artigo 72º, nº1, numa manifestação da responsabilidade contratual, prevê a individualização da responsabilidade – os sujeitos responsáveis são os titulares do órgão administrativo (gerentes ou administradores) e não o próprio órgão. E os gerentes, os administradores ou diretores são responsáveis por factos próprios.
Nas palavras de Coutinho de Abreu[13], os administradores têm “poderes-função”, poderes-deveres. Os deveres impostos aos administradores para o exercício correto da administração começam por ser, como atividade, o dever típico e principal de administrar e representar a sociedade[14], densificado nos deveres fundamentais elencados nas als. a) e b), do artigo 64º do Código das Sociedades Comerciais: o dever de cuidado e o dever de lealdade.
Ricardo Costa[15] chama a atenção para o facto de os deveres legais gerais do art. 64º vincularem como sujeitos passivos, não só, os administradores e gerentes designados pelas formas previstas na lei (designação pela simples qualidade de sócio ou estatutária, nomeação e/ou eleição deliberativa, indicação pelo tribunal, etc.) – os denominados administradores de direito –, mas, também, os administradores de facto, desde que se possam qualificar como tal, em razão da prática de atos próprios do desempenho de funções de administração.
A par de tais deveres fundamentais, a lei societária consagra ainda os chamados deveres legais específicos, que impõem uma atuação ou omissão concreta, entre os quais se destacam, no que aqui nos interessa, convocar ou requerer a convocação de assembleia geral na hipótese de perda de metade do capital social (art. 35º), proceder à substituição dos administradores que “faltem definitivamente” no seio do órgão plural de administração (art. 393º); requerer a declaração de insolvência da sociedade (arts. 18º e 19º do CIRE), elaborar e submeter à apreciação dos sócios o relatório de gestão, as contas do exercício e demais documentos de prestação de contas (arts. 65º, nº1, 263º e 451º); cumprir as obrigações da sociedade relativamente à Administração Fiscal e à Segurança Social.
As principais manifestações (ou subdeveres) do dever de cuidado consistem no (i) dever de controlar, ou vigiar, a organização e a condução da atividade da sociedade, as suas políticas, práticas, etc.; ii) dever de se informar e de realizar uma investigação sobre a atendibilidade das informações que são adquiridas e que podem ser causa de danos, seja por via dos sistemas normais de vigilância, seja por vias ocasionais (produzindo informação ou solicitando-a por sua iniciativa) – subdeveres que se reconduzem ao dever geral e uno e de controlar e vigiar a evolução económico-financeira da sociedade[16].
Sendo o primeiro dever de um administrador exercer, de facto, as funções para as quais foi nomeado, a circunstância de se manter afastado da administração da sociedade e o desconhecimento da situação económico-financeira da mesma, não o ilibam, por si só, de quaisquer responsabilidades no eclodir ou no agravar de uma situação de insolvência.
E, como salienta Nuno Manuel Pinto Oliveira[17], a violação do dever de apresentação à insolvência – constituindo um dever de cuidado para com a sociedade e para com os credores da sociedade –, ao contrário dos deveres especificados no nº2 do artigo 186º, pode ser imputável ao administrador por dolo ou por negligência.
Regressando ao caso em apreço, o facto de o Apelante AA ter nunca atuado como efetivo administrador da sociedade insolvente, e de nunca ter tomado conhecimento da atividade da insolvente, não o isentava das suas obrigações legais, enquanto administrador de direito que foi, de apresentação da sociedade à insolvência ou de se assegurar que tal obrigação era cumprida, constituindo essa ignorância e alheamento dos destinos da sociedade, por si só, uma violação dos deveres gerais que se lhe impunham, enquanto vogal do Conselho de Administração[18].
Enquanto vogal, é o Apelante AA responsável pelo incumprimento do dever de apresentação da empresa à insolvência, durante aqueles cerca de 10 meses.
Assim como, irrelevantes são os factos alegados pelo Apelante CC, como excludentes da sua responsabilidade no incumprimento do dever de apresentação da sociedade à insolvência (que para a generalidade dos trabalhadores da insolvente, quem assumia a veste de patrão era DD, sendo o administrador CC totalmente desconhecido, incluindo alguns cargos com funções de chefia – ponto 29. dos factos provados).
Na qualidade de administrador de direito, nomeado como administrador único da insolvente por deliberação de 01.06.2020, é responsável pelo incumprimento da obrigação de apresentação à insolvência desde a sua nomeação, 01-06-2020, até 25 de janeiro de 2022.
Concluindo, o AA terá de ser responsabilizado pelo incumprimento do dever de apresentação à insolvência entre 21 de janeiro de 2019 e outubro de 2019, a DD pelo incumprimento de tal dever entre finais de outubro de 2019 e 25 de janeiro de 2022, e o CC entre 01.06.2020 e 25 de janeiro de 2022.
A sentença recorrida, considerando que o tribunal não dispõe de elementos para condenar em quantia certa, relegou para liquidação a determinação do montante da indemnização de acordo com os seguintes critérios:
1. O montante da indemnização tem como limite máximo o montante dos créditos reconhecidos e não satisfeitos;
2. A indemnização deverá corresponder essencialmente à diferença entre o valor global dos créditos reconhecidos no âmbito dos presentes autos de insolvência e o valor dos créditos vencidos até 25.01.2019, data em que deveria ter sido apresentada a sociedade devedora à insolvência.
Segundo a Apelante DD, o montante indemnizatório não pode ser definido unicamente pelos dois referidos critérios, devendo este corresponder ao crédito acrescido apenas durante o período em que, eventualmente, se venha a considerar que a ora requerente exerceu a administração de facto e que, como tal, decorra das suas próprias ações:
embora o valor do passivo, considerado de 31.01.2019 a 30.01.2022 tenha aumentado cerca de 253.414, 75 €, é por demais evidente que esse aumento resulta em cerca de 2.500.000,00 € decorrentes dos efeitos da pandemia Covid e em cerca de 804.000,00 €, decorrentes diretamente do aumento do preço do gás em 100%.;
atendendo a que o agravamento derivado do facto de não ter sido concedida isenção de prestação de garantia ao acordo de prestações celebrado em 2020, da totalidade da dívida à segurança social –, se tratou de uma situação absolutamente discricionária da segurança social – impediu a insolvente de requerer o Lay-off, agravando, com tal, a sua situação financeira em mais de 2.500.000 € que efetivamente liquidou em encargos salariais que não teria nesse período em que a sua atividade se tornou absolutamente residual.
caso se mantivessem tais critérios, o montante de indemnização a aplicar resultaria maioritariamente do cálculo de créditos cuja não satisfação a ora requerente é, e foi, totalmente alheia.
Quanto à argumentação da apelante não encontra suporte na matéria dada como provada.
Tendo a declaração de emergência sido declarada a 18 de março de 2020, a matéria dada como provada nos autos não nos permite concluir que a atividade da requerida se tenha tornado “absolutamente residual” (e, ainda que assim fosse, mais grave se afiguraria o prolongar da omissão do dever de apresentação à insolvência de uma empresa que já se encontrava em situação de insolvência em período anterior ao Covid) e que, como tal, os prejuízos teriam sido inferiores se tivesse entrado em Lay-off.
Quanto ao aumento do preço do gás, decorrente da guerra da Ucrânia, não será também de contabilizar, porquanto, como já referido, o início da guerra na Ucrânia é posterior à data da instauração do processo de insolvência.
Por sua vez, também os Apelantes AA e BB se insurgem quanto às sanções que lhe foram aplicadas, por desproporcionais e injustas, alegando que, na determinação da indemnização o tribunal deveria ter tido em consideração os elementos factuais que revelam o grau de culpa e a gravidade da ilicitude dos recorrentes, bem como a contribuição de cada um deles para a criação ou agravamento da insolvência, o que não aconteceu no caso em apreço, pois condenou os visados todos da mesma forma.
Cumpre apreciar
Na sentença que qualifique a insolvência como culposa, o juiz deve “e) condenar as pessoas afetadas a indemnizarem os credores da insolvente até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos, considerando as forças dos respetivos patrimónios, sendo tal responsabilidade solidariedade solidária entre todos os afetados.” (artigo 189º, nº2, al. e), CIRE).
Na aplicação do disposto na al. e), do nº2, o juiz deve fixar o valor das indemnizações devidas ou, caso tal não seja possível em virtude de o tribunal não dispor dos elementos necessários para calcular o montante dos prejuízos sofridos, os critérios a utilizar para a sua quantificação, a efetuar em liquidação de sentença. (artigo 189º, nº4, CIRE).
Com a redação dada à citada al. e) pela Lei nº9/2022, de 11 de janeiro, a indemnização a suportar pelo administrador afetado pela qualificação da insolvência deixou de corresponder ao “montante dos créditos não satisfeitos”, montante esse que deixou de ser o critério do cálculo da indemnização, passando a constituir apenas o seu limite máximo[19].
Na ausência de qualquer critério específico, e prevendo o nº4 do artigo 189º do CIRE, como ponto de partida, o montante dos prejuízos sofridos, aproximando-se do regime geral da responsabilidade civil, a apurar com recurso às regras gerais dos artigos 562º, 563º e 566º, nº2, do Código Civil – a medida da indemnização não pode ser superior ao dano dos credores que tenha sido causado pelo facto ilícito causado à pessoa afetada.
O fator que pode e deve ser ponderado e com efeitos determinantes na modelação do valor da indemnização, imprimindo-lhe proporcionalidade é um único: a contribuição causal de cada sujeito para a ocorrência dos danos/ a medida da participação efetiva de cada um[20].
Sendo solidária a responsabilidade dos sujeitos afetados [artigo 189º, nº1, al. e)], significa que se poderá exigir de qualquer um dos sujeitos o pagamento da indemnização até ao valor que lhe foi fixado, o que quer dizer que os termos distintos em que cada um está obrigado relevam logo nas relações externas[21].
Estando em causa a violação do dever de requerer a declaração de insolvência, face à alteração coordenada dos artigos 186º e 189º, ns. 2 e 3, do CIRE, “a responsabilidade pela violação do dever de requerer a declaração de insolvência da sociedade administrada será (só poderá ser) uma responsabilidade pela diferença entre a situação em que o património dos credores sociais se encontra e a situação em que o património dos credores se encontraria, se o administrador tivesse requerido a declaração de insolvência da sociedade administrada dentro dos prazos legais”[22].
Resultando do exposto no ponto 3. deste acórdão, apenas assumir relevância para a qualificação da insolvência como culposa, o incumprimento do dever de apresentação da sociedade/devedora à insolvência decorrido entre 25 de janeiro de 2019 e 25 de janeiro de 2022:
- o AA só pode ser responsabilizado pelos danos resultantes do incumprimento de tal dever no período que decorre entre 25 de janeiro de 2019 e outubro de 2019 – ou seja, pela diferença em que o património da insolvente se encontraria se se tivesse apresentado à insolvência a 25 de janeiro de 2019 e a data em que se tornou eficaz a sua renúncia à gerência;
- a DD pelos danos resultantes do incumprimento de tal dever entre finais de outubro de 2019 e 25 de janeiro de 2022, ou seja, pela diferença em que o património da insolvente se encontraria caso tivesse apresentado a sociedade à insolvência em finais de outubro de 2019 e a data da instauração do processo de insolvência,
- o CC pelos danos resultantes do incumprimento de tal dever entre 01-06-2020 e 25 de janeiro de 2022, ou seja, pela diferença em que o património da insolvente se encontraria caso tivesse apresentado a sociedade à insolvência entre 01-06-2020 e a data da instauração do processo de insolvência.
Quanto à argumentação contida nas alegações de recurso dos Apelantes BB e AA, de que, a não consideração do grau de culpa e da gravidade da ilicitude dos recorrentes, na determinação do montante da indemnização, viola o princípio da proporcionalidade e da proibição do excesso, não é de dar razão aos Apelantes.
É certo que o artigo 189º, nº2, al. a), do CIRE, determina que, a sentença que qualifique a insolvência como culposa, deve identificar as pessoas afetadas pela qualificação, “fixando, sendo o caso, o respetivo grau de culpa”.
Contudo, o grau de culpa e a gravidade da ilicitude dos administradores não são considerados pela al. e), do nº2, e pelo nº4, do artigo 189º, CIRE, como suscetíveis de influenciar o montante da indemnização aos credores.
Assim como, no âmbito do regime geral de responsabilidade civil, apenas no caso de mera culpa, é conferido ao juiz a faculdade de fixar, recorrendo à equidade, uma quantia indemnizatória inferior à que corresponderia aos danos causados, segundo o critério geral do artigo 562º do Código Civil (artigo 494º do CC).
A possibilidade de aplicação de tal norma nunca se colocará nesta sede, uma vez que só a existência de atuação dolosa ou com culpa grave é suscetível de determinar a qualificação da insolvência como culposa e a consequente obrigação de indemnizar os danos causados aos credores.
Uma vez reconhecida a existência de culpa grave – seja pela sua demonstração efetiva, nos termos do nº1 do artigo 186º, seja pela ocorrência de uma das presunções inilidíveis de culpa grave do seu nº2, ou ainda, de uma das circunstâncias previstas no nº3, sem que o afetado logre ilidir a presunção nela contida (demonstrando que a sua conduta apesar de ilícita, não foi gravemente culposa) – como um dos pressupostos necessários à qualificação da insolvência como culposa, não faz sentido a invocação de circunstâncias de facto “que revelam o grau de culpa e a gravidade da ilicitude” para efeitos de diminuição do valor a indemnizar.
“Porque a insolvência culposa pressupõe sempre o dolo ou a culpa grave, ou seja, um comportamento especialmente censurável, ponderar o grau de culpa dos sujeitos para efeitos de limitar a indemnização não só não é muito coerente com o disposto na lei civil (artigo 494º do CC) como não é muito útil: todos terão agido de forma particularmente reprovável, sendo as diferenças no plano da imputação subjetiva inevitavelmente insignificantes[23]”.
Também Nuno Pinto de Oliveira[24] desvaloriza a utilidade da fixação de tal grau de culpa para efeitos de correção da indemnização (grau de culpa que será relevante, por ex., para a determinação do período da inibição para o exercício do comércio ou para a administração de patrimónios de terceiro): “Estando em causa a insolvência culposa, no sentido do artigo 186º, nº1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o fator grau de culpa da pessoa afetada não terá (pensamos que não deverá ter) grande importância para a limitação do dever de indemnizar. O princípio (de ordem publica) da não exclusão /da não limitação da responsabilidade por culpa qualificada (= por dolo ou culpa grave) faz com que o grau de culpa do administrador seja irrelevante ou quase irrelevante”.
Procedem, assim, parcialmente, as alegações dos recorrentes.
Pelo exposto, acordam os juízes da 1ª Secção do tribunal da Relação de Coimbra em:
I. Julgar a apelação de CC improcedente.
II. Julgar a apelação de BB e AA e a apelação de DD, parcialmente procedentes:
- revogando a decisão que decretou a afetação de BB pela qualificação de insolvência como culposa, absolvendo o mesmo.
- mantendo a decisão de afetação de DD, CC e AA, pela declaração da insolvência como culposa, altera-se o ponto 4. da decisão recorrida:
4. Condenando os requeridos, DD; CC e AA, solidariamente, a indemnizar os credores da insolvente até ao montante dos créditos reconhecidos e não satisfeitos, até ao limite associado ao património pessoal de cada um dos responsáveis, a quantificar em incidente de liquidação, em montante:
a) quanto à Requerida DD, correspondente à diferença entre o valor global dos créditos vencidos à data da morte de FF e o valor dos créditos vencidos até 25 de janeiro de 2022,
b) quanto ao Requerido AA, correspondente à diferença entre o valor global dos créditos vencidos a 25 de janeiro de 2019 e os créditos vencidos até 18 de outubro de 2019;
c) quanto ao Requerido CC, correspondente à diferença entre o valor global dos créditos vencidos a 01 de junho de 2020 e os créditos vencidos até 25 de janeiro de 2022.
Mantendo-se, no mais a decisão recorrida, nomeadamente, as medidas de inibição decretadas em 1ª instância, relativamente a cada um dos afetados pela qualificação de insolvência.
O CC suportará as custas da sua apelação; as custas da Apelação deduzida pelos Apelantes BB e AA serão suportadas pelo Apelante AA e pela Massa Insolvente, a meias e em partes iguais; e as custas da Apelação da Apelante DD serão suportadas por esta e pela massa insolvente, a meias e em partes iguais (sem prejuízo da eventual concessão do benefício do apoio judiciário).
Registe e notifique.
Coimbra, 13 de maio de 2025
V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC.
(…).
[1] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2ª, 3ª ed., p. 736-737.
[2] Acórdão relatado por Catarina Gonçalves, e em que é aí adjunta a aqui relatora, disponível in www.dgsi.pt.
[3] Chamando-se a atenção para a data de 31 de dezembro de 2019, utilizada pelo legislador como determinante para a possibilidade de recurso ao PEVE – aplicável a empresas que se encontrem em situação de insolvência atual por força da pandemia, desde que suscetível de viabilização, tendo um ativo superior ao passivo a 31 de dezembro de 2019.
[4] Marco Carvalho Gonçalves, “Atos processuais e prazos no âmbito da pandemia da doença Covid-19, pp. 15-16, in https://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/65830/1/Atos%20processuais%20e%20prazos%20no%20%C3%A2mbito%20da%20pandemia%20da%20doen%C3%A7a%20Covid-19%20%28Marco%20Gon%C3%A7alves%29.pdf
[5] Catarina Serra, “Covid-19/Para uma legislação para a crise das empresas em tempos de “crise total”, disponível em https://observatorio. almedina.net/index.php/2020/04/03/covid-19-para-uam-legislacao-para-a-crise-das-empresas-em-tempos-de-crisetotal.
[6] Maria de Fátima Ribeiro, “Os Deveres dos Administradores na Crise da Covid-19”, pp. 270-271. , e “Direito em tempos de pandemia: o processo extraordinário de viabilização de empresas” https://openbooks.ucp.pt/ucp/catalog/view/58/446/2853
[7] Cfr., entre outros, Alexandre Soveral Martins, “um Curso de Direito da Insolvência”, Vol. I, 4ª ed. – 2022, p. 572.
[8] Acórdão disponível in www.dgsi.pt.
[9] “Um Curso de Direito da Insolvência”, Vol. I, p. 579. No sentido de que a existência de um administrador de facto não afasta os deveres, a legitimidade, nem consequentemente, a responsabilidade dos administradores que sejam só nominais, se pronuncia igualmente, Maria de Fátima Ribeiro, “Responsabilidade dos administradores meramente nominais pelos actos praticados por administrador de facto”, in Revista de Direito Comercial, 2022, 519-556, e “Consequências do atraso na apresentação à insolvência, de pessoas coletivas e de pessoas singulares”, in Revista de Direito Comercial, 29-03-2023, pp. 622-623, www.revistadedireitocomercial.com.
[10] Neste sentido, Acórdão do TRC de 28-05-2013, relatado por Albertina Pedroso, disponível in www.dgsi.pt. e Manuel Carneiro da Frada, “A Responsabilidade dos Administradores na Insolvência”, p. 13, disponível in https://portal.oa.pt/publicacoes/revista-da-ordem-dos-advogados/ano-2006/ano-66-vol-ii-set-2006/doutrina/manuel-a-carneiro-da-frada-a-responsabilidade-dos-administradores-na-insolvencia/
[11] Rui Estrela de Oliveira, “O Incidente de qualificação da insolvência, a insolvência culposa” e-book do CEJ, Coleção Ações de Formação, Insolvência e consequências da sua declaração”, 2013.
[12] Segundo Nuno Manuel Pinto Oliveira, o termo “atuação” deve interpretar-se como sinónimo de comportamento ou de facto, compreendendo atuações positivas e atuações negativas, encontrando-se entre as omissões relevantes, a infração do dever de contabilidade organizada [art.186º, nº2, al. h)], do dever de apresentação [art. 186º, nº2, al. i)], ou do dever de requerer a declaração de insolvência [183º, nº3, al. a)] – Responsabilidade Civil dos Administradores pela Insolvência Culposa”, I Colóquio de Direito da Insolvência de Santo Tirso”, Almedina, p. 197.
[13] Responsabilidade Civil dos Administradores da Sociedade”, 2ª ed., Almedina 2010, p. 25, nota 38.
[14] Ricardo Costa, “Código das Sociedades Comerciais em Cometário”, Coord. de Jorge Coutinho de Abreu, Vol. I, Arts. 1º a 84º, p. 727.
[15] “Código das Sociedades Comerciais Anotado”, Vol. I, p. 730.
[16] Ricardo Costa, Código das Sociedades (…), p. 732.
[17] “Responsabilidade pelo dever de apresentação à insolvência”, p. 234.
[18] António Menezes Cordeiro destaca, entre os deveres de cuidado prescritos no artigo 64º, a par da disponibilidade e da competência técnica, o de conhecimento da atividade da sociedade – “Os Deveres fundamentais dos administradores das sociedades (artigo 64º, nº1 do CSC)” – disponível in https://portal.oa.pt/publicacoes/revista-da-ordem-dos-advogados/ano-2006/ano-66-vol-ii-set-2006/doutrina/antonio-menezes-cordeiro-os-deveres-fundamentais-dos-administradores-das-sociedades/
[19] Nuno Manuel Pinto Oliveira, “Responsabilidade pelo dever de apresentação à insolvência”, VI Congresso de Direito da Insolvência, Coord. Catarina Serra, Almedina, p. 259.
[20] Catarina Serra, “O incidente de qualificação da insolvência depois da Lei nº 9/2022 – Algumas observações ao regime com ilustrações de jurisprudência”, Revista Julgar nº 48, Setembro – Dezembro 2022, pp. 28 a 31.
[21] Catarina Serra, “O Incidente de Qualificação da Insolvência (…), p. 29.
[22] Nuno Manuel Pinto Oliveira, “Responsabilidade pelo dever de apresentação à insolvência”, in VI Congresso de Direito da Insolvência, p. 264.
[23] Catarina Serra, “O incidente de qualificação da insolvência depois da Lei nº 9/2022 (…)”, p. 28.
[24] “Responsabilidade Civil dos Administradores. Entre Direito Civil, Direito das Sociedades e Direito da Insolvência”, Coimbra 2015, p. 222