I - Mostra-se legítima a recusa do Banco, ao abrigo do dever de segredo bancário, em prestar informações sobre uma conta bancária, titulada por uma das partes na ação, que não deu consentimento para o Banco fornecer a informação.
II - Na ponderação do interesse preponderante, prevalece o interesse na administração da justiça sobre o interesse privado, o que justifica a dispensa de sigilo bancário para o Banco fornecer os movimentos a débito e crédito na conta bancária, para aferir se o ato foi praticado a título oneroso ou gratuito.
SUMÁRIO[1] (art.º 663º/7 CPC):
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Acordam neste Tribunal da Relação do Porto (5ª secção judicial – 3ª Secção Cível)
I. Relatório[2]
Por apenso ao processo de execução - Apenso C) -, que segue os seus termos como embargos de terceiro, figuram como:
- Embargante: A..., LDA., sociedade comercial com sede na Rua ..., ..., ... ..., com o número único de identificação e de pessoa coletiva ...08; e
- Embargados: AA, morador na Praceta ..., ..., ... ...;
BB, Rua ..., ... ...;
CC, Rua ..., ... ...; e
B..., S.A., com sede na rua ..., ... ....
A embargante veio requerer a suspensão da execução e que se ordenasse o levantamento da penhora sobre o direito à herança de que era titular o executado CC, por óbito de DD, o qual pertence à Embargante que o adquiriu por cessão de quota hereditária, cujo direito está já judicialmente reconhecido.
“1-Para prova do alegado nos artigos 6, 7, 8, 9 e 10 para efeito de qualificação do ato em causa é oneroso ou antes gratuito por doação de quinhão hereditário, REQUERE-SE que seja oficiado ao Banco 1...- Balcão ..., morada: Estrada ..., ..., ..., .... ... ... os seguintes elementos:
-Todos movimentos da conta bancaria da embargante A... Lda nº ...06-6, com discriminação da identificação dos depositantes, destino dos pagamentos, identificação da origem da provisão/financiamento da conta e de quem efetuou levantamentos/transferências durante o período de tempo que medeia desse a abertura de conta referida ate á presente data”.
“- Enunciação dos Temas de prova [artigo 593.º, n.º 2, al. c)] –
Cabe apurar:
. circunstancialismo, vontade, intenção na celebração pelas partes do negócio em questão;
. anterioridade do crédito do embargado ao negócio;
. impossibilidade para o embargado exequente de obter a satisfação integral do seu crédito ou agravamento dessa impossibilidade;
. consciência da embargante e dos embargados executados do prejuízo causado ao embargado exequente que a cessão causou a este e/ou conluio entre aqueles (e respetivo contexto envolvente)”.
“Exmos. Senhores,
Em resposta ao V/ofício à margem m. id., a Banco 1..., notificada para informar aos autos em epígrafe, vem, no entanto, indicar que os elementos solicitados por V. Exa. legitimamente se encontram sujeitos a sigilo bancário, nos termos do artigo 78º do Regime Geral de Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei nº. 298/92, de 31 de dezembro, na sua versão mais recente, pelo que não poderá a Banco 1... revelá-los sem o consentimento dos seus clientes ou sem decisão judicial que ordene o levantamento do sigilo bancário, nos termos da Lei Processual Penal, sob pena de incorrer nos crimes de abuso de confiança e de violação de segredo.
Assim, pede-se, mui respeitosamente, que a Banco 1... seja notificada da legítima declaração de autorização, ou nos termos dos art.º 519º, nº. 3 – c) e nº. 4 do C.P.C. e o 135º do C.P.P. da decisão de levantamento de sigilo bancário”.
O pagamento do preço pela embargante suscita sérias dúvidas como já referido no ponto 6º da contestação. A embargante na data da formalização da cessão do quinhão hereditário (13/09/2021) já tinha alegadamente pago o preço do quinhão hereditário em 10 prestações tendo começado a primeira em 12.04.2019 e a última em 25.08.2021, por transferência bancária de conta alegadamente da A....
As contas são ambas da instituição bancária Banco 1... e há sérias dúvidas quanto à origem do financiamento da conta da embargante nº...06-6, até porque a conta do vendedor/executado é do mesmo Banco da mesma agência sendo o número da conta quase igual só mudando os últimos 2 números, o que levanta suspeitas sobre se foi a mesma pessoa que através de contas diferentes criadas no mesmo banco efetuou transferências entre as mesmas para dar a aparência que foi a cessionária, embargante quem pagou o preço da cessão aos cedentes, embargados/executados.
A sociedade A..., (embargante) não apresentou qualquer movimento de contas ou negócios que justifiquem ou demonstrem como tinham 50.000,00 (cinquenta mil euros) – preço da aquisição do quinhão hereditário.
Concluem que o Levantamento do Sigilo Bancário e a obtenção dos elementos requeridos demonstra-se imprescindível para a descoberta da verdade e a necessidade de proteção dos bens jurídicos em causa.
Demonstra-se pertinente para a descoberta da verdade e para a boa decisão da causa perceber e esclarecer a ligação da conta da A... S.A. e a conta do CC, isto porque constata-se que o número da conta - ...06-6 (cujo titular é a A...) e a conta nº...07-4 (cujo titular é CC) são ambas do Banco 1..., mesmo balcão de ... e os números de ambas as contas são o mesmo com exceção dos dois últimos números.
As duas contas têm os mesmos números com exceção dos últimos dois o que como já alegado no art.11 da contestação e 33 da reconvenção levanta suspeitas sobre se foi a mesma pessoa que através de contas diferentes, criadas no mesmo Banco que efetuou transferências entre as mesmas, com o objetivo de dar a aparência que efetivamente foi a cessionária/embargante quem pagou o preço da cessão aos cedentes embargados/executados – CC e mulher BB.
Constata-se que a movimentação da conta nº...06-6, configurada como conta da empresa A..., Lda. apresenta movimentos apenas e só para o pagamento do preço da cessão.
Assim, eram depositados montantes coincidentes, com os que depois eram imediatamente transferidos para a conta de CC (cf. no doc. nº12 junto com os embargos de terceiro). Esta factualidade, leva a crer que a A..., Lda. era financiada pelo próprio CC, ele é que depositava o dinheiro para o pagamento das prestações e este era transferido para a sua conta que depois voltava a levantar, para voltar a depositar na conta da A....
Para sustentar esta factualidade, temos a certidão da empresa que demonstra que não houve qualquer registo contabilístico nas contas da A... de entradas e saídas de dinheiros, nem registadas quaisquer transações no período desde a sua constituição (3 de abril de 2019) até à presente data – cf. certidão permanente atualizada com o código de acesso ...67 e das de prestação de contas que ora se juntam (docs. 1,2 e 3).
Termina por pedir que o Levantamento de Sigilo Bancário seja extensível à conta de CC nº...07-4 também como já referido do Banco 1....
“Veio o embargado AA suscitar o incidente de quebra de sigilo bancário, na sequência da resposta da entidade bancária Banco 1...- Balcão ... face ao seu pedido feito no ponto I do requerimento probatório e há muito deferido em despacho saneador, ou seja:
"1-Para prova do alegado nos artigos 6,7,8,9 e 10 para efeito de qualificação do ato em causa é oneroso ou antes gratuito por doação de quinhão hereditário, REQUERE-SE que seja oficiado ao Banco 1...- Balcão ..., morada: Estrada ..., ..., ..., .... ..., ... os seguintes elementos:
-Todos movimentos da conta bancaria da embargante A... Lda. nº ...06-6, com descriminação da identificação dos depositantes, destino dos pagamentos, identificação da origem da provisão/financiamento da conta e de quem efetuou levantamentos/transferências durante o período de tempo que medeia desse a abertura de conta referida ate á presente data."
Como tal, veio o embargado requerer "ao Tribunal da Relação do Porto a dispensa do Banco 1... da observância do dever de segredo relativo ao período compreendido durante o período de tempo que medeia desde a abertura da conta nº...06-6, com discriminação da identificação dos depositantes, destino dos pagamentos, identificação da origem da provisão/financiamento da conta/financiamento da conta e de quem efetuou levantamentos/transferências durante o período referido até à presente data."
O embargado AA tem apoio judiciário conforme decorre do seu requerimento posterior.
Assim sendo, na sequência do despacho proferido anteriormente, sendo certa a recusa da entidade bancária em prestar as informações requeridas pelo embargado/exequente e face à falta de consentimento da executada/embargante, com certidão dos articulados, saneador, resposta do Banco 1...- Balcão ... e requerimento da executada recusando o consentimento, instrua como apenso, como incidente para quebra do sigilo profissional e após remeta os autos ao Venerando Tribunal da Relação do Porto nos termos do art.º 417º,nº4 do Código de Processo Civil e 135º, nº3 do Código de Processo Penal.
Dê conhecimento do presente despacho às partes”.
“Face aos fundamentos aduzidos no despacho de 21.02.2025, defere-se a reformulação do pedido do levantamento do sigilo bancário conforme requerido pelo exequente/embargado, ou seja, requerer ainda que ao Douto Tribunal da Relação do Porto a dispensa do Banco 1... da observância do dever de segredo relativo ao período compreendido durante o período de tempo que medeia desde a abertura da conta nº...06-6,e da conta nº...07-4 com discriminação da identificação dos depositantes, destino dos pagamentos, identificação da origem da provisão/financiamento das contas/financiamentos das contas e de quem efetuou levantamentos/transferências durante o período referido até à presente data.
Remeta certidão do requerimento de 21.02.2025 do exequente/embargado e do presente despacho ao Tribunal da Relação do Porto a fim de ser junto ao incidente de quebra de sigilo bancário.
Notifique”.
1. Delimitação do objeto do incidente
A questão a decidir consiste em saber se deve ser ordenado o levantamento do sigilo bancário em relação às seguintes contas no Banco 1...:
- nº ...06-6 titulada por A..., LDA.; e
- nº...07-4 titulada por CC.
Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os seguintes factos provados no tribunal da primeira instância:
- A embargante detém uma conta bancária na Banco 1... sob a referência nº...28.10.002606-6.
- Em sede de despacho saneador constam como temas da prova:
“. circunstancialismo, vontade, intenção na celebração pelas partes do negócio em questão;
. anterioridade do crédito do embargado ao negócio;
. impossibilidade para o embargado exequente de obter a satisfação integral do seu crédito ou agravamento dessa impossibilidade;
. consciência da embargante e dos embargados executados do prejuízo causado ao embargado exequente que a cessão causou a este e/ou conluio entre aqueles (e respetivo contexto envolvente)”.
- Banco 1... invocando o dever de sigilo bancário veio requerer a sua dispensa, indicando os seguintes fundamentos:
“Em resposta ao V/ofício à margem m. id., a Banco 1..., notificada para informar aos autos em epígrafe, vem, no entanto, indicar que os elementos solicitados por V. Exa. legitimamente se encontram sujeitos a sigilo bancário, nos termos do artigo 78º do Regime Geral de Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei nº. 298/92, de 31 de dezembro, na sua versão mais recente, pelo que não poderá a Banco 1... revelá-los sem o consentimento dos seus clientes ou sem decisão judicial que ordene o levantamento do sigilo bancário, nos termos da Lei Processual Penal, sob pena de incorrer nos crimes de abuso de confiança e de violação de segredo.
Assim, pede-se, mui respeitosamente, que a Banco 1... seja notificada da legítima declaração de autorização, ou nos termos dos art.º. 519º, nº. 3 – c) e nº. 4 do C.P.C. e o 135º do C.P.P. da decisão de levantamento de sigilo bancário”.
- A embargante A..., LDA notificada não concedeu autorização para o Banco 1... prestar as informações solicitadas.
- O juiz do tribunal “a quo” considerou legítima a escusa ao abrigo do art.78º do DL 298/92, de 31 de dezembro justificando-se a sua dispensa.
- Em 13 de março de 2025 proferiu-se o despacho que se transcreve:
“Face aos fundamentos aduzidos no despacho de 21.02.2025, defere-se a reformulação do pedido do levantamento do sigilo bancário conforme requerido pelo exequente/embargado, ou seja, requerer ainda que ao Douto Tribunal da Relação do Porto a dispensa do Banco 1... da observância do dever de segredo relativo ao período compreendido durante o período de tempo que medeia desde a abertura da conta nº...06-6,e da conta nº...07-4 com discriminação da identificação dos depositantes, destino dos pagamentos, identificação da origem da provisão/financiamento das contas/financiamentos das contas e de quem efetuou levantamentos/transferências durante o período referido até à presente data”.
No presente incidente de dispensa de segredo bancário está em causa apurar se é legítimo ao Banco 1..., recusar as informações solicitadas invocando o dever de sigilo bancário e a ser legítima a escusa, se nas concretas circunstâncias se justifica dispensar o segredo bancário.
O juiz do tribunal “a quo” considerou relevante para a boa decisão da causa a obtenção de tais elementos de prova.
As instituições bancárias, ainda que terceiros em relação ao processo, estão obrigados ao dever de cooperação.
O dever de cooperação para a descoberta da verdade consagrado no art.º 417º/1 CPC determina que:
“Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados.”
A recusa de colaboração faz incorrer o faltoso nas sanções previstas no nº2 do citado preceito – multa, inversão do ónus da prova.
Contudo, nos termos do art.º 417º/3 CPC, a recusa mostra-se legítima nas seguintes circunstâncias:
“a) Violação da integridade física ou moral das pessoas;
b) Intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações;
c) Violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado, sem prejuízo do disposto no nº 4. “
No nº 4 determina-se o procedimento a seguir quanto à legitimidade da escusa e dispensa do dever de sigilo profissional ou de funcionários públicos invocado, remetendo-se para as normas do processo penal:
“4. Deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado”.
Quanto à possível quebra dos deveres de sigilo propriamente dito, a lei de processo remete inteiramente para o estatuído no Código de Processo Penal sobre tal tema, por se entender que não seria viável estabelecer no âmbito das ações cíveis um sistema mais facilitado ou menos solene de apreciação das escusas apresentadas.
No domínio do processo penal, o art.º 135º/3 CPP prevê o procedimento a adotar e competência para a decisão, nomeadamente, o critério a seguir na apreciação do pedido de dispensa de sigilo (ressalvadas as possibilidades do segredo religioso e do segredo de Estado – art.º 135º e 137º CPP).
Estatui o art.º 135º CPP:
“1 - Os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos.
2 - Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento.
3 - O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.
4 - Nos casos previstos nos n.os 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável.
5 - O disposto nos n.os 3 e 4 não se aplica ao segredo religioso.
Suscitada a escusa, como refere LOPES DO REGO podem configurar-se três situações:
- invocada a escusa e havendo dúvidas fundadas sobre a invocação, é ao juiz da causa (sublinhado nosso) que compete proceder às averiguações necessárias e – caso conclua pela ilegitimidade da escusa – determinar a forma de cooperação requerida;
- sendo a escusa fundada em sigilo efetivamente existente, é ao tribunal imediatamente superior (sublinhado nosso) àquele em que o incidente se tiver suscitado que incumbe decidir da efetiva prestação da cooperação requerida, com preterição do dever de sigilo, face ao princípio da prevalência do interesse preponderante;
- estando em causa sigilo profissional, a decisão do tribunal (sublinhado nosso) é tomada ouvido o organismo representativo da profissão com ele relacionada, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a tal organismo seja aplicável[3].
Decorre do art.º135º/4 CPP que a escusa com fundamento em sigilo profissional efetivamente existente deve ser suscitada junto do Tribunal de 1ª instância e cumpre ao Tribunal da Relação decidir o incidente de dispensa do sigilo “segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos”.
Neste quadro legal constata-se existirem duas situações distintas:
- as de legitimidade de escusa; e
- as de ilegitimidade de escusa da prestação de informações às autoridades judiciárias.
A escusa é legítima quando resulta do cumprimento de um dever legal, no caso o dever de confidencialidade.
A escusa é ilegítima quando o facto ou elemento solicitado não estiver compreendido no âmbito do sigilo profissional ou quando tiver havido consentimento do sujeito passivo.
O nº 2 do art.º 135ºCPP reporta-se ao caso da ilegitimidade da escusa, o que pode ocorrer quando os elementos em causa não estão legalmente cobertos pelo segredo ou porque houve autorização do titular.
Prevê a norma nessa hipótese que o próprio tribunal onde ela é efetuada ordena, oficiosamente ou a pedido, a prestação das informações.
Nas situações de legitimidade da escusa, a qual resulta de os elementos estarem abrangidos pelo segredo e não existir autorização, a obtenção das informações já não poderá ser determinada sem a ponderação dos interesses que se mostram em confronto: de um lado, os interesses protegidos pelo segredo profissional, do outro, os interesses na realização da justiça, a ser efetuado no âmbito do incidente de quebra do segredo profissional, o qual deverá ser suscitado no tribunal imediatamente superior àquele onde a escusa tiver ocorrido.
O dever do sigilo bancário insere-se no âmbito dos deveres de sigilo profissional a que estão sujeitas todas as entidades que prestem serviços a outrem, no que toca às relações dessas entidades com os seus clientes, bem como, todos os atos que digam respeito à vida da instituição e que as respetivas administrações não queiram que sejam conhecidas.
A natureza jurídica do sigilo ou segredo bancário vai buscar apoio no art.26º/1 CRP (intimidade da vida privada e familiar) e art.º 25ºCRP (integridade moral das pessoas), pois através da análise dos movimentos de contas de depósitos ou dos movimentos com cartões, pode seguir-se a vida dos cidadãos e facultar tais elementos a terceiros é pôr termo à intimidade das pessoas e o desrespeito pelo segredo bancário põe ainda em causa a integridade moral das pessoas atingidas. A revelação de depósitos, movimentos e despesas pode ser fonte de pressão, de troça ou de suspeição.
O segredo bancário deriva também de uma relação contratual, como dever acessório, imposto pela boa-fé (art.º 762º/2 CC)[4].
O regime do sigilo bancário foi estabelecido pelo Regulamento Administrativo aprovado pelo Decreto de 25 de janeiro de 1847, depois pelos artigos 1º, n.ºs 1 e 2, e 6º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 47 909, de 7 de setembro de 1967. Após, pelos artigos 63º, n.º1 e 64º do Decreto-Lei n.º 644/75, de 15 de novembro, depois pelos artigos 7º e 8º do Decreto-Lei n.º 729-F/75, de 22 de dezembro, de seguida pelo Decreto-Lei n.º 2/78, de 9 de janeiro e, atualmente, pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de dezembro que regula o processo de estabelecimento e o exercício da atividade das instituições de crédito e das sociedades financeiras (tendo este último diploma sofrido já diversas alterações, ultimamente pelo DL 357-A/2007 de 31 de outubro e pelo DL 1/2008 de 3 de janeiro e Lei 36/2010 de 02/09).
O segredo bancário é ainda tutelado pela Lei de Proteção de Dados Pessoais.
O REGULAMENTO (UE) 2016/679 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO de 27 de abril de 2016 relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados e que revoga a Diretiva 95/46/CE (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados) passou a prever:
Artigo 4º Definições
Para efeitos do presente regulamento, entende-se por:
1) «Dados pessoais», informação relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável («titular dos dados»); é considerada identificável uma pessoa singular que possa ser identificada, direta ou indiretamente, em especial por referência a um identificador, como por exemplo um nome, um número de identificação, dados de localização, identificadores por via eletrónica ou a um ou mais elementos específicos da identidade física, fisiológica, genética, mental, económica, cultural ou social dessa pessoa singular;
2) «Tratamento», uma operação ou um conjunto de operações efetuadas sobre dados pessoais ou sobre conjuntos de dados pessoais, por meios automatizados ou não automatizados, tais como a recolha, o registo, a organização, a estruturação, a conservação, a adaptação ou alteração, a recuperação, a consulta, a utilização, a divulgação por transmissão, difusão ou qualquer outra forma de disponibilização, a comparação ou interconexão, a limitação, o apagamento ou a destruição;
3) «Limitação do tratamento», a inserção de uma marca nos dados pessoais conservados com o objetivo de limitar o seu tratamento no futuro;
[…]
7) «Responsável pelo tratamento», a pessoa singular ou coletiva, a autoridade pública, a agência ou outro organismo que, individualmente ou em conjunto com outras, determina as finalidades e os meios de tratamento de dados pessoais; sempre que as finalidades e os meios desse tratamento sejam determinados pelo direito da União ou de um Estado-Membro, o responsável pelo tratamento ou os critérios específicos aplicáveis à sua nomeação podem ser previstos pelo direito da União ou de um Estado-Membro;
[…]
9) «Destinatário», uma pessoa singular ou coletiva, a autoridade pública, agência ou outro organismo que recebem comunicações de dados pessoais, independentemente de se tratar ou não de um terceiro. Contudo, as autoridades 4.5.2016 L 119/33 Jornal Oficial da União Europeia PT públicas que possam receber dados pessoais no âmbito de inquéritos específicos nos termos do direito da União ou dos Estados-Membros não são consideradas destinatários; o tratamento desses dados por essas autoridades públicas deve cumprir as regras de proteção de dados aplicáveis em função das finalidades do tratamento; […]
Art. 5º Princípios relativos ao tratamento de dados pessoais
1.Os dados pessoais são:
a) Objeto de um tratamento lícito, leal e transparente em relação ao titular dos dados («licitude, lealdade e transparência»);
b) Recolhidos para finalidades determinadas, explícitas e legítimas e não podendo ser tratados posteriormente de uma forma incompatível com essas finalidades; o tratamento posterior para fins de arquivo de interesse público, ou para fins de investigação científica ou histórica ou para fins estatísticos, não é considerado incompatível com as finalidades iniciais, em conformidade com o artigo 89º/1 («limitação das finalidades»);
c) Adequados, pertinentes e limitados ao que é necessário relativamente às finalidades para as quais são tratados («minimização dos dados»);
d) Exatos e atualizados sempre que necessário; devem ser adotadas todas as medidas adequadas para que os dados inexatos, tendo em conta as finalidades para que são tratados, sejam apagados ou retificados sem demora («exatidão»); 4.5.2016 L 119/35 Jornal Oficial da União Europeia PT (1)Diretiva (UE) 2015/1535 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de setembro de 2015, relativa a um procedimento de informação no domínio das regulamentações técnicas e das regras relativas aos serviços da sociedade da informação (JO L 241 de 17.9.2015, p. 1).
e) Conservados de uma forma que permita a identificação dos titulares dos dados apenas durante o período necessário para as finalidades para as quais são tratados; os dados pessoais podem ser conservados durante períodos mais longos, desde que sejam tratados exclusivamente para fins de arquivo de interesse público, ou para fins de investigação científica ou histórica ou para fins estatísticos, em conformidade com o artigo 89º, nº 1, sujeitos à aplicação das medidas técnicas e organizativas adequadas exigidas pelo presente regulamento, a fim de salvaguardar os direitos e liberdades do titular dos dados («limitação da conservação»);
f) Tratados de uma forma que garanta a sua segurança, incluindo a proteção contra o seu tratamento não autorizado ou ilícito e contra a sua perda, destruição ou danificação acidental, adotando as medidas técnicas ou organizativas adequadas («integridade e confidencialidade»);
2.O responsável pelo tratamento é responsável pelo cumprimento do disposto no nº 1 e tem de poder comprová-lo («responsabilidade»).
Art. 38º
5.O encarregado da proteção de dados está vinculado à obrigação de sigilo ou de confidencialidade no exercício das suas funções, em conformidade com o direito da União ou dos Estados-Membros.
O regulamento foi transposto para a ordem jurídica interna pela Lei 58/2019 de 08 de agosto, que garante a execução interna do referido Regulamento, na qual se passou a prever:
- Artigo 2.º - Âmbito de aplicação
1 — A presente lei aplica -se aos tratamentos de dados pessoais realizados no território nacional, independentemente da natureza pública ou privada do responsável pelo tratamento ou do subcontratante, mesmo que o tratamento de dados pessoais seja efetuado em cumprimento de obrigações legais ou no âmbito da prossecução de missões de interesse público, aplicando –se todas as exclusões previstas no artigo 2.º do RGPD.
Artigo 10.º Dever de sigilo e confidencialidade
1 — De acordo com o disposto no n.º 5 do artigo 38.º do RGPD, o encarregado de proteção de dados está obrigado a um dever de sigilo profissional em tudo o que diga respeito ao exercício dessas funções, que se mantém após o termo das funções que lhes deram origem.
2 — O encarregado de proteção de dados, bem como os responsáveis pelo tratamento de dados, incluindo os subcontratantes, e todas as pessoas que intervenham em qualquer operação de tratamento de dados, estão obrigados a um dever de confidencialidade que acresce aos deveres de sigilo profissional previsto na lei.
Artigo 20.º - Dever de segredo
1 — Os direitos de informação e de acesso a dados pessoais previstos nos artigos 13.º a 15.º do RGPD não podem ser exercidos quando a lei imponha ao responsável pelo tratamento ou ao subcontratante um dever de segredo que seja oponível ao próprio titular dos dados.
2 — O titular dos dados pode solicitar à CNPD a emissão de parecer quanto à oponibilidade do dever de segredo, sem prejuízo do disposto no Capítulo VII.
O regime previsto no DL 298/92, de 31 de dezembro, com a redação do DL 222/99 de 22 de junho, regula o estabelecimento e o exercício da atividade de duas categorias de entidades, as instituições de crédito e as sociedades financeiras, caracterizando as primeiras como as empresas cuja atividade consiste em receber do público depósitos ou outros fundos reembolsáveis, a fim de os aplicarem por conta própria mediante a concessão de crédito (art.º 1º e 2º).
Determina o art.º 78º do citado diploma que: “Os membros dos órgãos de administração ou de fiscalização das referidas instituições de crédito, os seus empregados, mandatários, comitidos ou outras pessoas que lhe prestem serviços a título permanente ou ocasional não podem revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou às relações dela com os seus clientes, cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços”.
Estão, designadamente, sujeitos a segredo: “os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias, o qual não cessa com o termo das funções ou serviços” (artigo 78º, n.º 2 e 3, pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de dezembro, na redação da Lei 1/2008 de 03/01).
O dever de segredo, no entanto, não é absoluto.
O art.º 79.º do mesmo diploma, prevê que:
“1. Os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo bancário podem ser revelados desde que tenha havido autorização do cliente, ou quando se esteja perante as hipóteses aí expressamente previstas ou em qualquer outra disposição legal que expressamente limite o dever de sigilo.
2. Fora do caso previsto no número anterior, os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo só podem ser revelados:
a) Ao Banco de Portugal, no âmbito das suas atribuições;
b) À Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, no âmbito das suas atribuições;
c) Ao Fundo de Garantia de Depósitos e ao Sistema de Indemnização aos Investidores, no âmbito das respetivas atribuições;
d) Às autoridades judiciárias, no âmbito de um processo penal;
e) À administração tributária, no âmbito das suas atribuições;
f) Quando exista outra disposição legal que expressamente limite o dever de segredo”.
Por motivos de interesse público e com especial incidência no âmbito do direito penal e fiscal, a lei limita o dever de sigilo nas seguintes situações:
> branqueamento de capitais (DL 313/93, de 15/09 e DL 325/95, de 2/12);
>tráfico de droga (DL 15/93, de 22/01);
> corrupção e criminalidade económica e financeira (Lei n.º 36/94, de 29/09 e Lei 5/2002, de 11/01;
> cheques sem provisão (DL 454/91, de 28/12 e DL 316/97, de 19/11;
> terrorismo, peculato, associação criminosa, contrabando, tráfico e viciação de veículos furtados, lenocínio e tráfico de menores e contrafação de moeda e títulos equiparados (Lei n.º 5/2002, de 11/01).
Conclui-se, assim, que a dispensa do segredo bancário pode resultar:
- da expressa autorização do cliente (art.º 79º citado e art.º 195º CP);
- dos limites impostos pela lei; e
- de decisão do tribunal superior, com fundamento no princípio da prevalência do interesse preponderante.
Retomando o caso dos autos.
O embargado AA veio requerer a dispensa de sigilo bancário em relação a movimentos nas seguintes contas:
- conta nº...06-6 titulada por A..., LDA.; e
- conta nº...07-4 titulada por CC.
Alegou que as duas contas foram constituídas no Banco 1....
Apenas em relação à conta nº...06-6 titulada por A..., LDA. veio o Banco recusar-se a fornecer as informações solicitadas e requereu a dispensa de sigilo. O titular da conta não autorizou a prestação das informações, conforme resulta dos factos provados.
Em relação à outra conta, o tribunal não solicitou qualquer informação junto do banco, motivo pelo qual não veio o banco pronunciar-se sobre as mesmas, nem requereu a dispensa de sigilo. Refira-se, ainda, que ao próprio titular da conta não foi solicitada autorização ou consentimento para prestar as informações, o que a acontecer e ter sido concedida, dispensaria qualquer incidente de dispensa de sigilo.
Conclui-se que não estão preenchidos os pressupostos para apreciar o incidente, quanto às informações a obter junto do banco em relação à conta nº...07-4 titulada por CC, executado e embargado, porque não ocorreu qualquer recusa de prestar tais informações, com fundamento em sigilo profissional, nem foi formulado pela entidade bancária o pedido de dispensa de sigilo.
Quanto às informações solicitadas na outra conta nº...06-6 titulada por A..., LDA. (embargante) justifica-se conceder a dispensa.
Na presente ação visa a embargante o levantamento da penhora do direito e ação na herança aberta por óbito de DD, afirmando que por cessão adquiriu esse direito ao sucessor do falecido, o executado CC.
O exequente veio contestar e em reconvenção invocou a impugnação pauliana, pretendendo demonstrar que a cessão apenas visou colocar o exequente numa posição mais difícil para cobrar o crédito, questionando o efetivo pagamento do preço da cessão.
Constituem temas da prova:
. circunstancialismo, vontade, intenção na celebração pelas partes do negócio em questão;
. anterioridade do crédito do embargado ao negócio;
. impossibilidade para o embargado exequente de obter a satisfação integral do seu crédito ou agravamento dessa impossibilidade;
. consciência da embargante e dos embargados executados do prejuízo causado ao embargado exequente que a cessão causou a este e/ou conluio entre aqueles (e respetivo contexto envolvente).
O embargado/exequente veio requerer, para efeito de qualificação do ato em causa como oneroso ou antes gratuito, por doação de quinhão hereditário, que fosse oficiado ao Banco 1... - Balcão ..., morada: Estrada ..., ..., ..., ... ... ..., que indicasse todos os movimentos da conta bancária da embargante A... Lda. nº ...06-6, com discriminação da identificação dos depositantes, destino dos pagamentos, identificação da origem da provisão/financiamento da conta e de quem efetuou levantamentos/transferências durante o período de tempo que medeia desse a abertura de conta referida até à data corrente.
O juiz do tribunal “a quo” considerou relevante para a discussão da causa diligenciar no sentido de obter tais informações.
Mostra-se legítima a escusa do Banco 1..., porque está obrigado ao segredo pois não pode revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou às relações dela com os seus clientes, cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços.
Efetivamente, o Banco tem acesso à titularidade de contas bancárias, podendo informar quem são os seus titulares, movimentos e valores. O titular da conta não concedeu autorização para prestar tal informação.
Resta, assim, ao tribunal pronunciar-se sobre o levantamento do sigilo ponderando o interesse preponderante.
Nas relações privadas o levantamento do sigilo, como refere MENEZES CORDEIRO: “[…] só pode ocorrer em conjunturas muito particulares, impondo-se uma concreta ponderação de interesses, nunca devendo a quebra do sigilo, ir além do necessário”[5].
Nesse sentido, pronunciou-se, entre outros, o Ac. Rel. Porto de 19 de junho de 2006[6], onde se refere: “[h]á[…]neste tipo de situações cíveis, de analisar-se, caso a caso, se a quebra do sigilo é mais importante do que a manutenção do dever de sigilo, cuja proteção constitucional encontra a sua raiz no “direito à identidade pessoal, à imagem, à reserva da identidade da vida privada e familiar” e “às garantias efetivas contra a obtenção e utilização abusivas[…] de informações relativas às pessoas e famílias”, a que se refere o art.º 26.º da Constituição da República Portuguesa no capítulo dos direitos, liberdades e garantias”.
Desta forma, na avaliação do interesse que em concreto irá prevalecer refere LOPES DO REGO que: “cumpre ao Tribunal atuar segundo critérios prudenciais, realizando uma cautelosa e aprofundada ponderação dos delicados e relevantes interesses em conflito: por um lado, o interesse na realização da justiça e a tutela do direito à produção da prova pela parte onerada; por outro lado, o interesse tutelado com o estabelecimento do dever de “sigilo”, maxime “o interesse da contraparte na reserva da vida privada, a tutela da relação de confiança que a levou a confiar dados pessoais ao vinculado pelo sigilo e a própria dignidade do exercício da profissão.
[…] Daqui decorre que a dispensa do invocado sigilo dependerá sempre de um juízo concreto, fundado na específica natureza da ação e na relevância e intensidade dos interesses da parte que pretende obter prova através daquela dispensa […][7]”.
Na situação concreta, resulta dos factos apurados que o juiz do tribunal “a quo” entendeu relevante para a apreciação da matéria de facto controvertida que o Banco forneça os elementos solicitados.
Tais informações destinam-se a apurar quem procedeu ao depósito de valores necessários para garantir o pagamento do preço devido pela aquisição do quinhão hereditário, quando está comprovado que a embargante não exerceu qualquer atividade.
Verificando-se um conflito entre dever de sigilo que impende sobre as instituições de crédito e financeiras e o de cooperação para a realização da justiça, que visa satisfazer interesses bem mais relevantes, mesmo no âmbito do processo civil, deverá o mesmo ser dirimido no sentido da quebra ou levantamento de tal segredo.
Essa solução está conforme a uma certa hierarquização dos direitos garantidos constitucionalmente e em consonância com as normas atinentes à colisão de direitos, insertas no art.º 335° do Código Civil, aplicáveis, porque, “in casu”, a quebra do sigilo afeta interesses privados e visa a realização da justiça num caso em que também se discutem interesses dessa ordem, se bem que, aqui, a ênfase tenha de ser posta no interesse público dos tribunais disporem de todos os elementos para decidirem de acordo com a verdade das coisas; ou seja, de um lado temos particulares que gozam do direito à reserva da vida privada e dos dados pessoais (art.º 26°, 1 e 2, 35°, 4 e 7, da Constituição da República Portuguesa (CRP), e 80° Cód. Civil), e, do outro, também particulares a quem tem de ser garantido o “acesso ao direito e aos tribunais, para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos”, impondo-se assegurar-lhes que a causa em que são partes “seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo”, de modo a que se apure a “verdade” e se consiga a “justa composição do litígio” (art.º 20º, 1 e 4, da Constituição da República Portuguesa, art.º 417° do Código de Processo Civil)[8].
Mas a questão tem de colocar-se, ainda, e com maior ênfase, num outro plano onde cumpre considerar o interesse público na administração da justiça, constitucionalmente cometida aos tribunais (art.º 20°, 1, 4 e 5, e 202°, 1 e 2, da CRP). Ora, integrando a administração da justiça uma das funções soberanas do Estado, mal se entenderia que lhe fossem postos entraves em nome de interesses privados[9].
Não resulta dos factos apurados, que a situação em causa esteja a coberto de qualquer limite ao dever de segredo bancário.
Nestas circunstâncias ordenar a realização da diligência viola o dever de segredo bancário imposto à entidade bancária, o que constitui uma nulidade, nos termos do art.º 195º/1, conjugado com o art.417º/3/ c) CPC.
Resulta de igual forma, dos factos apurados, que o meio de prova em causa mostra-se relevante, ainda que não determinante, para apreciar a concreta questão em litígio encontrando-se a instituição bancária numa posição privilegiada para fornecer tais informações por ter acesso às mesmas na sua atividade.
A falta destes elementos de prova tornará mais difícil ao julgador apreciar a posição das partes nos autos e realizar a Justiça que se espera.
Por outro lado, as informações bancárias solicitadas estão devidamente determinadas e definidas.
Verifica-se, assim, que é patente a colisão entre o interesse público de administrar a Justiça e o interesse privado do titular da conta bancária de ver garantida a confidencialidade da sua situação bancária com o correlativo dever do Banco-réu, na qualidade de instituição bancária, manter o sigilo.
A necessidade de descoberta da verdade material e a justa composição do litígio, de modo a que se realize a Justiça, no caso concreto, exigem que se dispense o Banco do dever de segredo bancário, a fim de que prontamente possa remeter ao tribunal os documentos.
O interesse na administração da Justiça prevalece, assim, sobre o interesse privado e por esse motivo, justifica-se dispensar o dever de segredo bancário.
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em deferir, em parte, o incidente e nessa conformidade:
- indeferir o incidente, por não se mostrarem reunidos os pressupostos, quanto às informações solicitadas em relação à conta nº...07-4 titulada por CC.
- ao abrigo do art.º 417º, 4 do Código de Processo Civil e art.135º/3 do Código de Processo Penal, dispensar o Banco 1... do dever de segredo bancário devendo fornecer todos movimentos da conta bancaria da embargante A... Lda. com o nº ...06-6, com discriminação da identificação dos depositantes, destino dos pagamentos, identificação da origem da provisão/financiamento da conta e de quem efetuou levantamentos/transferências durante o período de tempo que medeia desde a abertura de conta referida ate à presente data.
Porto, 12 de maio de 2025
(processei, revi e inseri no processo eletrónico – art.º 131º, 132º/2 CPC)
Assinado de forma digital por
Ana Paula Amorim
Juiz Desembargador-Relator
Eugénia Cunha
1º Adjunto Juiz Desembargador
Jorge Martins Ribeiro
2º Adjunto Juiz Desembargador
_____________________________________
[1] Texto escrito conforme o Novo Acordo Ortográfico de 1990.
[2] Consultou-se, via Citius, o Apenso C) para elaborar o relatório. O acesso foi concedido pelo juiz do tribunal de 1ª instância.
[3] CARLOS FRANCISCO DE OLIVEIRA LOPES DO REGO Comentários ao Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 1999, pág. 363.
[4] ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO Manual de Direito Bancário, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2008, pág. 265.
[5] ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO Manual de Direito Bancário, ob. cit., pág. 273.
[6] Ac. Rel. Porto 19 de setembro de 2006, Proc. 0623992, Nº convencional JTRP00039477, acessível em www.dgsi.pt.
[7] CARLOS FRANCISCO DE OLIVEIRA LOPES DO REGO Comentários ao Código de Processo Civil, ob. cit., pág. 363-364.
[8] Cf. Ac. Rel. Porto 12 de setembro de 2011, Proc. 3553-06.6TJVNF-D.P1– publicado em www.dgsi.pt .
[9] Ac. Rel. Coimbra 06 de abril de 2010, Proc. 120-C/2000.C1 – acessível em www. dgsi.pt.