CONTRA-ORDENAÇÃO
FUNDAMENTAÇÃO
CONTRADIÇÃO INSANÁVEL
Sumário

- Existe contradição insanável da fundamentação quando se dá como provado um facto e se considera facto diverso no âmbito da fundamentação de direito, sem, contudo, se lograr entender a respetiva razão, fazendo, por isso, operar o artigo 410.º, n.º 2, al. b) do CPP aplicável ex vi artigo 41.º, n.º 1, do RGCO).

Texto Integral

Acordam na Seção da Propriedade Intelectual, Concorrência, Regulação e Supervisão do Tribunal da Relação de Lisboa:
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I - Relatório
LUXAIR, SA apresentou, no dia 16 de agosto de 2024, recurso de impugnação judicial da decisão proferida pela ANAC- Autoridade Nacional da Aviação Civil, que a condenou nos seguintes termos:
“- Assim, nos termos das disposições legais e fundamentos mencionados, decidiu o Conselho de Administração em aplicar à Luxair, SA uma coima única no valor de Euros 12.000,00 (doze mil euros).”
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Por sentença, proferida a 27 de janeiro de 2025, foi a referida impugnação judicial julgada nos seguintes termos:
“Nestes termos e pelos fundamentos expostos, julga-se procedente o recurso interposto por LUXAIR S.A., melhor identificada nos autos, e, por conseguinte, revoga-se a decisão da autoridade administrativa, absolvendo-se a recorrente da prática, negligente, de uma contraordenação ambiental grave nos termos do artigo 28.º, n.º 2, alínea f) do Regulamento Geral do Ruído, publicado no Decreto-Lei n.º 9/2007, de 17 de janeiro e, por conseguinte, do pagamento de uma coima no valor de € 12.000,00 (doze mil euros).
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Inconformada com tal decisão, veio o Ministério Público, a 10 de fevereiro de 2025, interpôr recurso da mesma para este Tribunal da Relação, formulando as seguintes conclusões:
“1. Vem o presente recurso interposto da sentença proferida pelo Juiz 1 do TCRS que, em síntese, absolveu a visada «Luxair, S.A.» da prática de uma contraordenação ambiental grave, prevista e punida pelo artigo 28º nº 2 al. f) do Regulamento Geral do Ruído – incluso no DL 9/2007, de 10/01 – e consubstanciada, conforme o decidido pela ANAC, na aplicação de uma coima no valor de 12 000,00€ (doze mil euros).
2. A sentença ora posta em crise padece, salvo o devido respeito, de um notório erro de apreciação da prova, bem como de consequente uma contradição, ao nível da fundamentação, em especial no que toca aos factos provados e não provados.
3. Vícios estes que desde já se invocam nos termos do artigo 410º nºs 2 als. b) e c) do Código de Processo Penal.
4. Neste mesmo sentido destacam-se os seguintes parágrafos da sentença recorrida:
Factos provados
«2. Nessa data [13/02/2021], pelas 17h17, a arguida enviou um e-mail aos coordenadores de voo e logística do aeroporto de Faro, com o seguinte teor:
“Caros todos Conforme acordado telefonicamente, vimos solicitar a vossa ajuda para obter uma extensão para o nosso voo conforme detalhado infra: LG … AGP – FAO …-… – hora estimada de chegada – 2320Z, 65 pessoas; LG … FAO – LUX …- … – hora estima de partida – 0000X, 70 pessoas. Agradecemos a vossa resposta”»;
«3. Pelas 18h26, a Coordenação Operacional do aeroporto de Faro, com o conhecimento do gestor operacional e da supervisão de passageiros, enviou email, com o seguinte teor: “Boa tarde. As autoridades do aeroporto de Faro autorizam como pedido”»;
«4. A referida operação foi realizada, pela aeronave identificada, às 00h42+1h UTC do dia 14 de fevereiro de 2021, tendo saído de calços às 00h31+1h UTC».
Factos não provados
«a. Que a arguida, ao atuar do modo descrito, não observou o dever de cuidado a que estava adstrita e de que era capaz»;
5. Ora, da análise de tais parágrafos da sentença recorrida chega-se, sem grande embargo, à conclusão de que o tribunal recorrido entendeu existir uma qualquer e efectiva ‘causa de justificação’ da conduta da recorrente, que teve como base a autorização dada pelas autoridades do aeroporto de Faro;
6. Justamente no sentido de levar a cabo as suas operações de aterragem e descolagem de acordo com a solicitada extensão da faixa horária para o período entre as 23h20m, do dia 13/02/2021 e as 0h00m, já do dia 14/02/2021.
7. Sucede, contudo, que o tribunal recorrido obnubilou um pequeno, mas importante pormenor: a circunstância de o tempo UTC+1 se referir ao dito «horário de Verão» e não ao de Inverno.
8. Com efeito, as considerações feitas pelo tribunal recorrido relativamente àquilo que seria a hora local de Faro (LT, ou «local time») – e que estão abundamente descritas no próprio texto da sua fundamentação (nomeadamente onde se diz o seguinte: «Atendeu-se também ao teor dos e-mails trocados entre a arguida e a Coordenação Operacional do aeroporto de Faro, juntos pela recorrente na fase administrativa, dos quais resulta um pedido da arguida para extensão do voo em causa nos seguintes termos: LG … AGP – FAO …- … – hora estimada de chegada – 2320Z e LG … FAO – LUX …- … – hora estimada de partida – 0000X, a que corresponde em LT: 00h20 e 01h00, respetivamente; ou seja, para um horário noturno, compreendido entre as 00h00 e as 06h00, e a autorização para o efeito por parte da Coordenação Operacional do aeroporto de Faro» [aqui patente o erro de conversão, face ao que já se demonstrou acima e o que se dirá mais abaixo] – laboram num clamoroso erro, porquanto no chamado «horário de inverno», não existe o tradicional avanço de uma hora (UTC+1) que ocorre no último Domingo de Março e vigora até ao último Domingo de Outubro de cada ano – talqualmente o que se encontra previsto quer na legislação europeia, quer nacional –, e que faz coincidir a hora local (LT) com a hora UTC.
9. Dito de outro modo, os factos aqui em apreço tiveram lugar em Fevereiro de 2021, onde a hora local foi sempre a coincidente com a hora UTC, porque em pleno «horário de inverno»:
23h20UTC (23h20m LT) e 00h00m UTC (00h00m LT).
10. Ou seja, deveria o tribunal recorrido levado em estrita consideração – e sem quaisquer juízos especulativos sobre possíveis ressalvas comunicadas pelo aeroporto de Faro, apontando para a violação da proibição 20º nº 1 do Regulamento Geral do Ruído, independentemente da autorização concedida – o simples facto de não existir, no mês de FEVEREIRO, qualquer desfasamento da hora local com o tempo UTC;
11. Sendo então certo que a extensão solicitada e autorizada – e foi simplesmente disso mesmo que se tratou, de uma mera extensão da faixa horária – apenas dizia respeito ao período entre as 23h20m e as 00h00m, num mês em que o tempo local de Faro – ou seja, Portugal Continental – coincidia com o Tempo Universal Coordenado (UTC).
12. Desta feita, vale o mesmo por dizer que nunca as autoridades do aeroporto de Faro - certamente conhecedoras das normas em vigor e do facto de ainda não se encontrar publicada qualquer portaria como a contemplada no artigo 20º nº 2 do Regulamento Geral do Ruído – concederiam uma autorização, com ou sem ressalva para eventuais violações de normas ambientais, em clara «contravenção» com a proibição de operação de voos entre as 00h00m e as 06h00m, conforme o previsto no artigo 20º nº 1 do Regulamento Geral do Ruído.
13. Pelo que a aeronave da visada, ao ter saído de calços às 00h31m e descolado às 00h42m, já do dia 14/02/2024, incumpriu com a proibição prevista no artigo acima elencado, e cometeu assim a contraordenação imputada pela ANAC na sua decisão administrativa.
14. De resto, e recapitulando o próprio tema do «motivo de força maior» - não abordado directa e expressamente pela sentença recorrida e que só chega a ser levantado pela recorrente em virtude de se ter constatado o total desrespeito, ou falta de pontualidade sempre exigível, com a extensão horária que lhe tinha sido concedida para a descolagem até às 00h00m –, haverá que dizer-se que, para além da já apontada circunstância de não se encontrar publicada qualquer portaria que elenque, ao nível do dito Regulamento, quais as excepções para a realização das operações de aterragem e descolagem, no período entre as 00h00m e as 06h00m, o certo é que mesmo lançando mão do que se encontra previsto no artigo 9º nº 6 do DL 109/2008, de 26/06, nunca a conduta da recorrente poderia ser tida como «desculpável» ou «não censurável» e isenta de sanção.
15. Na verdade, logo da letra de tal norma e no que diz respeito às «aeronaves que se encontrem em situações urgentes, tendo em conta razões meteorológicas, de falha técnica ou de segurança de voo» - cfr. artigo 9º nº 6 al. a) –, consegue extrair-se, de acordo com as regras da experiência, a hipótese – a mais adequada e razoável – relativa àquelas situações em que tais aparelhos se encontram em pleno voo;
16. Casos em que efectivamente as aeronaves podem sofrer, de forma súbita e inesperada, um qualquer incidente:
i) seja ao nível dos motores (um incêndio num reactor, uma avaria no movimento das asas, uma falha de combustível), dos instrumentos de navegação (avaria do piloto automático, falha do GPS ou do altímetro);
ii) seja até no que diz respeito às próprias condições de segurança da aeronave em si mesmo considerada – não sendo assim tão inimaginável, infelizmente, a ocorrência, por exemplo, de um sequestro por terroristas – em tempos mais recuados conhecidos como ‘piratas do ar’;
e de onde venha a resultar – fruto de tais constrangimentos que se consubstanciam numa verdadeira disrupção do que se encontrava planeado – um forçoso rearranjo da operação previamente planeada para uma determinada faixa horária, dada a situação de verdadeira emergência assim constatada.
17. De qualquer forma, o certo é que de todos os elementos constante dos autos não se extrai qualquer documento onde a visada aponte de forma expressa as dificuldades técnicas que acaba por invocar na sua impugnação judicial.
18. O que sempre lhe seria exigível, não por via de uma inversão do ónus da prova, nunca permitida, mas sim – e caso tivesse sido essa a verdadeira situação (ou seja, operar no período entre as 0h00m e as 06h00m; o que nunca esteve em causa, uma vez que a extensão autorizada sempre contemplou o horário de inverno, ao contrário do que foi dado assente, erroneamente pelo tribunal recorrido) – por ser sua obrigação registar todos os incidentes técnicos e dar conta dos mesmos às entidades a quem solicita alterações dos horários previstos.
19. Ou seja, também neste conspecto deveria o tribunal recorrido ter dado devida atenção ao que foi constatado no processo administrativo, justamente no sentido de que nunca a Luxair apresentou, por exemplo, o «Technical Log», onde tais problemas técnicos estariam registados de forma expressa e concreta.
20. Deste modo, tudo se resume ao seguinte: nos termos da autorização solicitada e transcrita no parágrafo 2. dos factos provados, a aeronave da recorrente não cumpriu com tal operação, tendo ultrapassado, em muito, no tocante à descolagem as 00h00m.
21. Isto é, face ao solicitado e consciente das suas contingências, sempre a recorrente deveria ter tomado todas as providências para que a descolagem da sua aeronave ocorresse até às 00h00m, hora local de Faro e coincidente com o tempo UTC.
22. Pelo que, face ao exposto, mal andou o tribunal recorrido ao não dar como provado que à visada foi sempre exigível outro tipo de cuidado, em ordem a respeitar quer o por si solicitado e autorizado pelo Aeroporto de Faro, quer, acima de tudo, o que se encontrava e encontra consagrado no artigo 20º nº 1 do Regulamento Geral do Ruído.
23. Sendo certo que, a não poder até contemplar-se um claro dolo eventual explícito em toda a sua conduta, o tribunal recorrido deveria – caso não tivesse errado na apreciação da prova, nos termos acima expostos – ter dado como assente que a visada agiu com manifesta negligência.
24. Pelo que, revelado o erro notório na apreciação da prova e a consequente contradição entre factos provados e não provados – tendo sempre como premissa a questão de, nos dias 13 e 14/02/2021, vigorar localmente o «horário de inverno» coincidente com a hora UTC – deve a sentença recorrida ser substituída por acórdão que confirme o sentido sancionatório da decisão administrativa.
25. Foram violadas, entre outras, as normas dos artigos 20º nº 1 e 28º nº 2 al. f) do Regulamento Geral de Ruído.
Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, e em consequência ser a sentença recorrida substituída por Acórdão que confirme o sentido sancionatório da decisão da autoridade administrativa – nomeadamente no tocante ao quantum da coima concreta aplicada –, imputando à visada Luxair, S.A. a prática da contraordenação ambiental grave prevista e punida pelo artigo 28º nº 2 al. f) do Regulamento Geral do Ruído.”
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Admitido o recurso, respondeu a Autoridade Nacional da Aviação Civil (ANAC), a 5 de março de 2025, apresentando as seguintes conclusões:
“A..O Ilustre Procurador da República do Ministério Público recorreu da sentença do Tribunal a quo que revogou “(…) a decisão da autoridade administrativa, absolvendo-se a Recorrente da prática, negligente, de uma contraordenação ambiental grave nos termos do artigo 28.º, n.º 2, alínea f) do Regulamento Geral do Ruído (…) e por conseguinte, do pagamento de uma coima no valor de € 12.000,00 (doze mil euros)”.
B. O Tribunal a quo formou a sua convicção nos elementos documentais juntos pela Recorrente na fase administrativa, dando relevância à comunicação de incumprimento e comentários da Entidade Nacional de Coordenação de Faixas Horárias, aos Códigos IATA de atraso, bem como aos emails trocados entre a Recorrente e a Coordenação Operacional do aeroporto de Faro, que foram juntos na fase administrativa, dos quais resulta um pedido para extensão do voo, e a autorização para o efeito por parte da Coordenação Operacional do aeroporto de Faro.
C. Considerou, assim, o tribunal a quo que tendo a Recorrente solicitado um pedido de alteração dos horários para um horário nocturno e tendo recebido autorização para o efeito, que não se pode concluir que a Recorrente não tenha observado o dever de cuidado a que estava vinculada e de que era capaz, afastando assim a consciência da ilicitude do facto na medida que a Recorrente recebeu a devida autorização para aterrar e descolar em horário nocturno, razão pela qual tal facto não pode ser considerado censurável.
D. Ora, como bem nota o Ilustre Procurador do Ministério Público nas suas alegações de recurso, o Tribunal a quo “entendeu existir uma qualquer e efetiva «causa de justificação» da conduta da Recorrente, que teve como base a autorização dada pelas autoridades do aeroporto de Faro”.
E. Reforçando que o Tribunal a quo, considerou, em erro, que a Hora Local (LT) no aeroporto de Faro em fevereiro de 2021 tinha um avanço de mais uma hora (UTC+1).
G. Efectivamente, nos termos do artigo 1º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 17/96, de 8 de Março, “A hora legal em Portugal continental coincide com o tempo universal coordenado (UTC) no período compreendido entre a 1 hora UTC do último domingo de Outubro e a 1 hora UTC do último domingo de Março seguinte (hora de Inverno).”.
H. Mencionando ainda que, “as considerações feitas pelo tribunal recorrido relativamente àquilo que seria a hora local de faro (LT, ou «local time») – e que estão abundamente descritas no próprio texto da sua fundamentação (nomeadamente onde se diz o seguinte: «atendeu-se também ao teor dos emails trocados entre a arguida e a Coordenação Operacional do aeroporto de Faro, juntos pela Recorrente na fase administrativa dos quais resulta um pedido da arguida para a extensão do voo em causa (…). Dito de outro modo, os factos aqui em apreço tiveram lugar em fevereiro de 2021, onde a hora local foi sempre a coincidente com a hora UTC, porque em pleno «horário de inverno»”.
I. Resulta da informação recebida do Aeroporto de Faro e da Entidade Nacional de Coordenação de Faixas Horárias que a Recorrente tinha uma faixa horária atribuída para descolagem do Aeroporto de Faro, no dia 13 de fevereiro de 2021, às 19h00 UTC (19h00 LT), com a aeronave de marcas de nacionalidade e matrícula LX-LGN.
J. No entanto, a operação veio a ser realizada pela aeronave identificada, às 00h42 UTC (00h42 LT), do dia 14 de fevereiro de 2021, tendo saído de calços às 00h31 UTC (00h31 LT), portanto, na estação Inverno IATA (cf. artigo 2º, alínea e) do Decreto-Lei n.º 109/2008, de 26 de Junho).
L. Nos termos do artigo 3.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 109/2008, de 26 de Junho o Aeroporto de Faro foi designado como sendo um aeroporto com horários facilitados no período de IATA Inverno.
K. O Regulamento (CEE) n.º 95/93 do Conselho de 18 de janeiro de 1993 define, na alínea i) do seu artigo 2.º, o que se entende por aeroporto facilitado como sendo “um aeroporto com riscos potenciais de congestionamento em certos períodos do dia, da semana ou do ano, que poderão ser resolvidos através da cooperação voluntária entre as transportadoras aéreas, e onde foi designado um facilitador de horários para facilitar as operações das transportadoras aéreas que operam ou tencionam operar serviços nesse aeroporto.”.
L. Decorre do artigo 6.º, n.º 4 do mesmo Regulamento, a diferença entre aeroportos facilitados e coordenados, designadamente, enquanto naquele o facilitador de horários fiscaliza a conformidade das operações com o horário que recomenda ao operador aéreo, neste o coordenador fiscaliza a conformidade das operações com as faixas horárias que atribui aos operadores aéreos.
M. Assim, o facto de a Recorrente ter descolado do Aeroporto de Faro, no dia 14 de fevereiro de 2021, pelas 00h42 UTC (00h42 LT), em violação da faixa horária previamente recomendada, para as 19h00 UTC (19h00 LT) do dia 13 de fevereiro de 2021, não consubstancia a prática de qualquer contraordenação aeronáutica por violação do Decreto-Lei n.º 109/2008, de 26 de junho, alterado pelo Decreto-Lei n.º 96/2018, de 23 de novembro, tendo sido arquivada tal factualidade.
N. No que tange à realização de descolagem em período nocturno, e matéria da impugnação judicial, e, por conseguinte, do presente recurso, o Decreto-Lei n.º 9/2007, de 17 de Janeiro veio proceder à publicação do Regulamento Geral do Ruído, que visa estabelecer o regime de prevenção e controlo da poluição sonora, visando a salvaguarda da saúde humana e o bem-estar das populações (cfr. artigo 1º).
O. De acordo com o artigo 26º, alínea b) do referido Regulamento são competentes para a fiscalização das normas previstas, entre outras, a “entidade responsável pelo licenciamento ou autorização da actividade”, sendo, quanto a esta matéria a Recorrida.
P. De acordo com o artigo 20º, n.º 2 do Regulamento Geral do Ruído, é possível através de portaria conjunta dos membros do Governo responsáveis pelas áreas dos transportes e do ambiente, serem definidas excepções à proibição de operar no período entre as 00h00 LT e 06h00 LT.
Q. No entanto, até à presente data não foi publicada qualquer portaria daquela natureza no que ao Aeroporto de Faro diz respeito.
R. Nessa medida, o aeroporto d Faro é uma infra-estrutura em que todas as operações estão proibidas no período compreendido entre as 00h00 LT e as 06h00 LT.
S. No caso em análise, a referida operação de descolagem ocorreu às 00h42 UTC (00h42 LT) do dia 14 de fevereiro de 2021.
T. Assim, relativamente à operação de descolagem realizada no dia 14 de fevereiro de 2021, existiu a prática de contra-ordenação ambiental grave nos termos do artigo 28º, n.º 2, alínea f) do Regulamento Geral do Ruído, punível com coima.
U. No caso da operação em causa não se verificou a existência de qualquer circunstância que possa constituir motivo de força maior e, assim, excluir a ilicitude.
V. Em sede de recurso de impugnação judicial, a Recorrente, afirmou que a operação foi solicitada e autorizada pelo Aeroporto de Faro.
W. Em rigor, o aeroporto autorizou apenas uma extensão do horário de funcionamento à operadora para esta poder operar/descolar (cfr. fls 36 – Doc. 1 junto pela defesa).
X. As justificações apresentadas pela Recorrente, relativamente à realização da operação de descolagem do voo LG378 durante o período nocturno de dia 14 de Fevereiro de 2021 (quando estava programada para o dia 13 de Fevereiro), não são consubstanciam motivo de força maior;
Y. Razão pela qual, não assiste razão à Recorrente quando alega que estava convicta que realizava o voo com autorização do Aeroporto.
Z. Até porque, enquanto transportadora aérea certificada tinha a obrigação de conhecer as regras aplicáveis à actividade que escolheu exercer, e, in casu, as regras relativas à utilização das infra-estruturas aeroportuárias em Portugal, que, além do mais estão explanadas em língua inglesa no AIP Portugal (que é público e de livre acesso).
AA. Reforça-se o anteriormente mencionado: que a operação foi realizada no Aeroporto de Faro, um aeroporto facilitado no período Inverno IATA, e que, até à presente data não foi publicada qualquer portaria que excepcione a proibição total de operar no período entre as 00h00 LT e as 06h00 LT naquela infra-estrutura.
BB. Logo, a Recorrente não podia nunca considerar que estava autorizada a operar em situação normal porque essa autorização é legalmente impossível.
CC. Até porque, a operação não foi realização numa situação de força maior.
DD. Ainda relativamente aos argumentos da Recorrente, foi referido também que o atraso verificado teve origem por questões técnicas, relacionados com a substituição da aeronave no Aeroporto do Luxemburgo, impossibilitando a realização do voo como estava programado no dia 13 de fevereiro de 2021.
EE. A Recorrente justifica que: “A aeronave registada com a matrícula LX-LBT ficou “AOG” (Aircraft on Ground), portanto, em terra por questões técnicas. Por esse motivo, a arguida tomou a decisão de enviar a aeronave LX-LGU no voo triangular para os aeroportos de Málaga e depois Faro, para recolher os passageiros de volta ao Luxemburgo. Ora, face ao atraso significativo de início da operação em Málaga pelos motivos supra expostos, tal implicou um igualmente significativo atraso na saída do aeroporto de Faro, mais concretamente, 5h31m de atraso.”.
FF. Os argumentos apresentados não foram devidamente comprovados, com prova documental (por exemplo através do “Technical Log” da aeronave que demonstre problemas técnicos);
GG. As justificações apresentadas pela Recorrente relativamente à realização de descolagem, em período nocturno do voo LG378, que estava programado para o dia 13 de fevereiro de 2021, não podem colher, pois, por um lado, não teve autorização para descolar em horário noturno (desde logo porque, como já vimos essa autorização não é possível), teve sim, uma extensão do horário para poder operar, por outro lado, o atraso ocorrido, por questões técnicas, não são consideradas como motivo de força maior.
HH. Adicionalmente, bem sabia a arguida, até porque opera com regularidade para o aeroporto de Faro, que todas as operações estão proibidas no período compreendido entre as 00h00 LT e as 06h00 LT.
II. A Recorrente nunca poderia ter actuado convicta de que a operação que pretendia realizar se encontrava a coberto da legalidade, porque autorizada pela autoridade aeroportuária, e, assim, confiado que tal autorização excluía a punibilidade da sua conduta, uma vez que sabe que no aeroporto de Faro são proibidas todas as operações nocturnas entre as 00h00 e as 06h00!
JJ. Pelo que, no caso em apreço, não se acompanha a sentença quando refere que a arguida/Recorrente realizou o voo em causa convicta da legalidade da sua atuação, porquanto autorizada para o efeito, uma vez que a mesma nunca poderia obter uma autorização para uma operação que se encontra proibida.
KK. Ainda que o Aeroporto de Faro tenha permitido a operação no que respeita à utilização de uma faixa horária, tanto mais que se tratava de Aeroporto com horário facilitado no período Inverno IATA, nunca poderia ser dada uma autorização para operação no período nocturno não fundamentada (e evidenciada) em circunstâncias de força maior, a qual consubstanciaria violação da lei.
LL. Também não se acompanha a sentença quando refere que “Diferente seria se o voo tivesse sido autorizado com a advertência de que, não obstante a permissão, não constituindo o motivo invocado qualquer facto/motivo de força maior, a arguida estaria a praticar uma infração sancionada nos termos do artigo 28.º, n.º 2, alínea f) do Regulamento Geral do Ruído, publicado no Decreto-Lei n.º 9/2007, de 17 de janeiro.”, porquanto, por um lado, o desconhecimento da lei não aproveita ninguém, e, por outro, estamos perante uma transportadora que opera regularmente no Aeroporto de Faro pelo que é plenamente conhecedora das regras de funcionamento de tal infra-estrutura, que, além do mais, se encontram divulgados em língua inglesa no AIP Portugal.
MM. A sentença padece, assim, de um erro notório de apreciação da prova, bem como de uma consequente contradição entre factos provados e não provados, nos termos do artigo 410º do n.º 2 alíneas b) e c) do Código de Processo Penal.
Nestes termos, e no mais que V. Ex.as mui doutamente suprirão, deve o recurso ser julgado procedente, assim se fazendo a Acostumada Justiça!”
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A Luxair, SA, não respondeu ao recurso.
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Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Senhor Procurador Geral Adjunto, declarou acompanhar a posição do “Ministério Público de 1.ª instância”.
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II - Questões a decidir
Considerando que o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. os artigos 119º, n.º 1, 123º, n.º 2 e 410º, n.º 2, als. a), b) e c) do Código de Processo Penal) e considerando que nos termos do artigo 75.º, n.º 1, do RGCO, este Tribunal apenas conhece de matéria de direito, importa conhecer das seguintes questões:
- Nulidade da sentença por existência de contradição insanável da fundamentação;
- Nulidade da sentença por existência de erro notório na apreciação da prova.
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III - Fundamentação
A - Factos provados
A decisão recorrida deu como provados os seguintes factos:
1. LUXAIR, S.A., transportadora aérea, tinha uma faixa horária atribuída para descolagem do Aeroporto de Faro no dia 13 de fevereiro de 2021, às 19h00 UTC, com a aeronave de marcas de nacionalidade e matrícula LXLGN.
2. Nessa data, pelas 17h17, a arguida enviou um e-mail aos coordenadores de voo e logística do aeroporto de Faro, com o seguinte teor:
“Caros todos
Conforme acordado telefonicamente, vimos solicitar a vossa ajuda para obter uma extensão para o nosso voo conforme detalhado infra:
LGAGP FAO- … hora estimada de chegada 2320Z, 65 pessoas; LGFAO LUX- … hora estima de partida 0000X, 70 pessoas. Agradecemos a vossa resposta.”.
3. Pelas 18h26, a Coordenação Operacional do aeroporto de Faro, com o conhecimento do gestor operacional e da supervisão de passageiros, enviou e-mail, com o seguinte teor:
“Boa tarde
As autoridades do aeroporto de Faro autorizam como pedido.”.
4. A referida operação foi realizada, pela aeronave identificada, às 00h42+1h UTC do dia 14 de fevereiro de 2021, tendo saído de calços às 00h31+1h UTC.
5. Por decisão da ANAC, transitada em julgado, no âmbito do processo de contraordenação n.º …/…, em 03/09/2019, a arguida foi condenada no pagamento de uma coima de €2.500,00, por mandato ilegítimo, a título de negligência, com pena suspensa.
6. A Luxair SA encontra-se classificada como uma grande empresa.
B - Factos não provados
A decisão recorrida não deu como provados os seguintes factos:
a. Que a arguida, ao atuar do modo descrito, não observou o dever de cuidado a que estava adstrita e de que era capaz.
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IV - O Direito
O Ministério Público pugna que a sentença em crise padece de contradição insanável da fundamentação, em particular da matéria de facto provada e da não provada e, ainda, de erro notório na apreciação da prova.
Estando em causa o recurso de despacho judicial que conheceu da impugnação judicial de uma decisão administrativa proferida em processo de contraordenação, o disposto no artigo 75º, n.º 1, do DL n.º 433/82, de 27/10 (RGCO) estabelece que “se o contrário não resultar deste diploma, a 2.ª instância apenas conhecerá da matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões”.
Não obstante, o artigo 410.º, n.º 2, do Código Processo Penal, aplicável por força do artigo 41.º do RGCO, determina que “mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recuso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) erro notório na apreciação da prova.”
Ora, é também com base nestas disposições que o Recorrente suscita a intervenção deste tribunal.
Vejamos se lhe assiste razão.
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Para se verificar a insuficiência da matéria de facto para a decisão, “a matéria de facto apurada no seu conjunto terá de ser incapaz para, em abstrato, sustentar a decisão condenatória ou absolutória tomada pelo tribunal. “A afirmação do vício ora em causa, importa, sim, sempre, uma adequada perspectiva do objecto do processo, cujos confins são fixados pela acusação e/ou pronúncia complementada pela pertinente defesa. (…) Se se constatar que o tribunal averiguou toda a matéria postulada pela acusação/defesa pertinente – afinal o objecto do Processo – ainda que toda ela tenha porventura obtido resposta de «não provado», então o vício de insuficiência está afastado. Os factos pertinentes obtiveram resposta do tribunal, a matéria de facto é bastante para a decisão”.
Assim, apenas quando da própria decisão não decorrem elementos fácticos suficientes para que se possa adotar aquela solução jurídica, em virtude de o Tribunal ter deixado de dar resposta a um facto essencial que integre o objeto do processo, é que se poderá considerar estarmos perante uma insuficiência da matéria de facto.
Nesta medida, “a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada não se confunde com a insuficiência da prova para a matéria de facto dada como provada: ali, o que se critica é o facto de o tribunal não ter investigado e apreciado todos os factos que podia e devia, carecendo a decisão de direito de suporte fáctico bastante; aqui, censura-se o facto de o tribunal ter dado como provados factos sem prova suficiente”(cfr. Ac. do STJ de 7 de junho de 2023, proferido no âmbito do processo 8013/19.2T9LSB.L1.S1, in www.dgsi.pt).
Tal vício ocorre, assim, quando analisada a peça processual, a conclusão nela contida extravasa as premissas por a matéria de facto provada ser insuficiente para fundamentar a solução de direito encontrada, sempre na economia da decisão.
Por sua vez, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, apenas se verificará quando, analisada a matéria de facto, se chegue a conclusões antagónicas entre si e que não possam ser ultrapassadas, ou seja, quando se dá por provado e como não provado o mesmo facto, quando se afirma e se nega a mesma coisa ao mesmo tempo, ou quando simultaneamente se dão como provados factos contraditórios ou quando a contradição se estabelece entre a fundamentação probatória da matéria de facto, sendo ainda de considerar a existência de contradição entre a fundamentação e a decisão.
O STJ, sobre a alínea b) do n.º 2 do artigo em análise, decidiu que abrange “dois vícios distintos:
- A contradição insanável da fundamentação; e
- A contradição insanável entre a fundamentação e a decisão.
No primeiro caso incluem-se as situações em que a fundamentação desenvolvida pelo julgador evidencia premissas antagónicas ou manifestamente inconciliáveis. Ocorre, por exemplo, quando se dão como provados dois ou mais factos que manifestamente não podem estar simultaneamente provados ou quando o mesmo facto é considerado como provado e como não provado. Trata-se de “um vício ao nível das premissas, determinando a formação deficiente da conclusão”, de tal modo que “se as premissas se contradizem, a conclusão logicamente correcta é impossível”.
Por seu turno, a contradição entre a fundamentação e a decisão abrange as situações em que os factos provados ou não provados colidem com a fundamentação da decisão. É o vício que se verifica, por exemplo, quando a decisão assenta em premissas distintas das que se tiveram como provadas.
Finalmente, o erro notório na apreciação da prova “consiste num vício de apuramento da matéria de facto, que prescinde da análise da prova produzida para se ater, somente, ao texto da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum.
Na lição do Prof. Germano Marques da Silva, regras da experiência comum, “são generalizações empíricas fundadas sobre aquilo que geralmente ocorre. Tem origem na observação de factos, que rotineiramente se repetem e que permite a formulação de uma outra máxima (regra) que se pretende aplicável nas situações em que as circunstâncias fáticas sejam idênticas. Esta máxima faz parte do conhecimento do homem comum, relacionado com a vida em sociedade.”. In " Curso de Processo Penal", Verbo, 2011, Vol. II, pág. 188.
Verifica-se o erro notório na apreciação da prova quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum.
Existe, designadamente, “... quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida”. - Cf. Conselheiros Leal-Henriques e Simas Santos, obra citada, 2.º Vol., pág. 740 e, no mesmo sentido, entre outros, os acórdãos do STJ de 4-10-2001 (CJ, ASTJ, ano IX, 3º, pág.182 ) e acórdão da Rel. Porto de 27-9-95 ( C.J. , ano XX , 4º, pág. 231).
Por esta razão, na fundamentação da sentença, para além da enumeração dos factos provados e não provados, deve constar uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal (art.374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal).
Este erro na apreciação da prova tem de ser ostensivo, que não escapa ao homem com uma cultura média.
Dito de outro modo, o requisito da notoriedade do erro afere-se pela circunstância de não passar despercebido ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente Cf. Prof. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341) (cfr. Ac. TRC de 10 de julho de 2018, proferido no âmbito do processo n.º 26/16.2GESRT.C1, in www.dgsi.pt).
Tais vícios têm, como se assinalou, que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da decisão que, por isso, quanto a eles, terá que ser autosuficiente.
Mas não pode incluir-se na insuficiência da matéria de facto, no erro notório na apreciação da prova, ou na contradição insanável da fundamentação, a sindicância que os recorrentes possam pretender fazer/efectuar à forma como os factos dados como provados foram julgados ou enquadrados juridicamente ou sequer àquela como o Tribunal Recorrido valorou a prova produzida perante si, valoração que aquele tribunal é livre de fazer, de harmonia com o preceituado no artigo 127.º, do Código Processo Penal.
Dito de outra forma, aqueles vícios têm de resultar do texto da decisão recorrida e não de elementos processuais a ela estranhos, ainda que produzidos no âmbito da discussão judicial do caso, designadamente depoimentos testemunhais, pelo que, a insuficiência da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação, ou contradição entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova devem resultar de per si do texto da decisão recorrida e ser analisados em função do aí consignado, conjugado com as regras de experiência.
“Por isso, fica excluída da previsão do preceito toda a tarefa de apreciação e ou valoração da prova produzida, em audiência ou fora dela, nomeadamente a valoração de depoimentos, mesmo que objecto de gravação, documentos ou outro tipo de provas, tarefa reservada para o conhecimento do recurso em matéria de facto” (CCP Comentado, 3.ª Ed revista, António Henriques Gaspar e outros, p. 1291), objecto de recurso que em matéria contraordenacional está excluído do Tribunal de 2ª instância, conforme decorre do referido art. 75º nº 1 do RGCO.
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Contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão.
O Ministério Público pugna ainda que a decisão padece de contradição insanável da fundamentação, em particular entre os factos provados e os não provados, tendo, para o efeito, alegado que:
“… o tribunal recorrido entendeu existir uma qualquer e efectiva ‘causa de justificação’ da conduta da recorrente, que teve como base a autorização dada pelas autoridades do aeroporto de Faro;
6. Justamente no sentido de levar a cabo as suas operações de aterragem e descolagem de acordo com a solicitada extensão da faixa horária para o período entre as 23h20m, do dia 13/02/2021 e as 0h00m, já do dia 14/02/2021.
7. Sucede, contudo, que o tribunal recorrido obnubilou um pequeno, mas importante pormenor: a circunstância de o tempo UTC+1 se referir ao dito «horário de Verão» e não ao de Inverno.
8. Com efeito, as considerações feitas pelo tribunal recorrido relativamente àquilo que seria a hora local de Faro (LT, ou «local time») – e que estão abundamente descritas no próprio texto da sua fundamentação (nomeadamente onde se diz o seguinte: «Atendeu-se também ao teor dos e-mails trocados entre a arguida e a Coordenação Operacional do aeroporto de Faro, juntos pela recorrente na fase administrativa, dos quais resulta um pedido da arguida para extensão do voo em causa nos seguintes termos: LG … AGP – FAO …- … – hora estimada de chegada – 2320Z e LG … FAO – LUX -…- … – hora estimada de partida – 0000X, a que corresponde em LT: 00h20 e 01h00, respetivamente; ou seja, para um horário noturno, compreendido entre as 00h00 e as 06h00, e a autorização para o efeito por parte da Coordenação Operacional do aeroporto de Faro» [aqui patente o erro de conversão, face ao que já se demonstrou acima e o que se dirá mais abaixo] – laboram num clamoroso erro, porquanto no chamado «horário de inverno», não existe o tradicional avanço de uma hora (UTC+1) que ocorre no último Domingo de Março e vigora até ao último Domingo de Outubro de cada ano – talqualmente o que se encontra previsto quer na legislação europeia, quer nacional –, e que faz coincidir a hora local (LT) com a hora UTC.
9. Dito de outro modo, os factos aqui em apreço tiveram lugar em Fevereiro de 2021, onde a hora local foi sempre a coincidente com a hora UTC, porque em pleno «horário de inverno»:
23h20UTC (23h20m LT) e 00h00m UTC (00h00m LT).
10. Ou seja, deveria o tribunal recorrido levado em estrita consideração – e sem quaisquer juízos especulativos sobre possíveis ressalvas comunicadas pelo aeroporto de Faro, apontando para a violação da proibição 20º nº 1 do Regulamento Geral do Ruído, independentemente da autorização concedida – o simples facto de não existir, no mês de FEVEREIRO, qualquer desfasamento da hora local com o tempo UTC;
11. Sendo então certo que a extensão solicitada e autorizada – e foi simplesmente disso mesmo que se tratou, de uma mera extensão da faixa horária – apenas dizia respeito ao período entre as 23h20m e as 00h00m, num mês em que o tempo local de Faro – ou seja, Portugal Continental – coincidia com o Tempo Universal Coordenado (UTC).
12. Desta feita, vale o mesmo por dizer que nunca as autoridades do aeroporto de Faro - certamente conhecedoras das normas em vigor e do facto de ainda não se encontrar publicada qualquer portaria como a contemplada no artigo 20º nº 2 do Regulamento Geral do Ruído – concederiam uma autorização, com ou sem ressalva para eventuais violações de normas ambientais, em clara «contravenção» com a proibição de operação de voos entre as 00h00m e as 06h00m, conforme o previsto no artigo 20º nº 1 do Regulamento Geral do Ruído.
13. Pelo que a aeronave da visada, ao ter saído de calços às 00h31m e descolado às 00h42m, já do dia 14/02/2024, incumpriu com a proibição prevista no artigo acima elencado, e cometeu assim a contraordenação imputada pela ANAC na sua decisão administrativa.
Por sua vez, a ANAC, a este respeito, refere que:
“E. Reforçando que o Tribunal a quo, considerou, em erro, que a Hora Local (LT) no aeroporto de Faro em fevereiro de 2021 tinha um avanço de mais uma hora (UTC+1).
G. Efectivamente, nos termos do artigo 1º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 17/96, de 8 de Março, “A hora legal em Portugal continental coincide com o tempo universal coordenado (UTC) no período compreendido entre a 1 hora UTC do último domingo de Outubro e a 1 hora UTC do último domingo de Março seguinte (hora de Inverno).”.
H. Mencionando ainda que, “as considerações feitas pelo tribunal recorrido relativamente àquilo que seria a hora local de faro (LT, ou «local time») – e que estão abundamente descritas no próprio texto da sua fundamentação (nomeadamente onde se diz o seguinte: «atendeu-se também ao teor dos emails trocados entre a arguida e a Coordenação Operacional do aeroporto de Faro, juntos pela Recorrente na fase administrativa dos quais resulta um pedido da arguida para a extensão do voo em causa (…). Dito de outro modo, os factos aqui em apreço tiveram lugar em fevereiro de 2021, onde a hora local foi sempre a coincidente com a hora UTC, porque em pleno «horário de inverno»”.
I. Resulta da informação recebida do Aeroporto de Faro e da Entidade Nacional de Coordenação de Faixas Horárias que a Recorrente tinha uma faixa horária atribuída para descolagem do Aeroporto de Faro, no dia 13 de fevereiro de 2021, às 19h00 UTC (19h00 LT), com a aeronave de marcas de nacionalidade e matrícula LX-LGN.
J. No entanto, a operação veio a ser realizada pela aeronave identificada, às 00h42 UTC (00h42 LT), do dia 14 de fevereiro de 2021, tendo saído de calços às 00h31 UTC (00h31 LT), portanto, na estação Inverno IATA (cf. artigo 2º, alínea e) do Decreto-Lei n.º 109/2008, de 26 de Junho).”
Importa desde já referir que se concorda com a verificação do apontado vício, ainda que não nos termos em que vem invocado.
Efetivamente, a sentença em crise deu como provado que o pedido de extensão para o voo foi efetuado para as 23h20m e 00h00m, respetivamente, para a aterragem e descolagem no aeroporto de Faro (facto 2), e que o mesmo foi objeto de deferimento pela Coordenação Operacional do aeroporto de Faro (facto 3).
Porém, em sede de fundamentação da matéria de facto, o Tribunal a quo concluiu que aquelas horas “correspondem em LT: 00h20 e 01h00, respetivamente” e, por isso, que a autorização concedida pela Coordenação Operacional do aeroporto de Faro corresponda ao horário noturno, ou seja, compreendido entre as 00h00 e as 06h00. (destaque nosso)
Mais concluiu, já em sede de direito, que em resultado da referida autorização que, repita-se, assumiu reportar-se ao horário noturno, “agiu em conformidade com essa autorização … convicta da legalidade da sua atuação” e realizou o voo em causa no horário constatado, sem consciência da ilicitude do facto, porquanto acoberta da autorização concedida.
Entendemos, pois, que o Tribunal a quo assumiu em sede da aplicação do direito um facto diverso daquele que consta do elenco dos factos provados.
Mais entendemos que a “correspondência” efetuada pelo Tribunal a quo, em sede de fundamentação, não se mostra justificada, ou seja, não se alcança da leitura da decisão o que levou o Tribunal a concluir pela dita correspondência.
Dito de outra forma, ficamos sem saber se tal “correspondência” se deve a lapso do requerimento ou mesmo da concessão, ao fuso horário ou ainda a outro motivo.
Naturalmente que admitimos como mais plausível que se refira ao fuso horário, pois que dá conta da LT (local time/hora local) como sendo mais uma hora reportada às horas solicitadas.
Aliás, também admitimos que a correspondência tenha por base a própria decisão administrativa, pois que esta dá como provado que “a operação veio a ser realizada pela aeronave identificada, às 00h42 + 1h UTC do dia 14 de fevereiro de 2021” e depois, também no âmbito da matéria de facto provada, assinala que “os factos sub judice terem ocorrido no período em que a hora legal em Portugal Continental coincide com o tempo universal coordenado (UTC)”.
Porém, como referimos, não é certo que seja este o fundamento que levou o Tribunal a quo a estabelecer a referida correspondência, tanto mais que é inequívoco que decorre da lei (DL n.º 17/96, de 8 de março) que a hora legal em Portugal Continental coincide com o tempo universal coordenado (UTC) no período de inverno, ou seja, no período compreendido entre a 1 hora UTC do último domingo de outubro e a 1 hora UTC do último domingo de março seguinte, pelo que, nessa medida, mal se compreenderia aquela correspondência.
Também julgamos que, tendo presente a tese da defesa, não se entende o “convencimento” da Arguida no caso da autorização ter sido concedida para as 23h20m e as 00h00, pois nada tem a ver com a 1h42, a que se refere, ou mesmo com a 00h42, a que se refere o MP, sendo certo, que também a sentença, deu como provado as 00h42 + 1h (UTC) do dia 14 de fevereiro de 2021.
De outro modo, em abono da verdade, também não se nos afigura cristalino que a autorização de uma autoridade, sem mais, justifique uma conduta ou exclua a sua ilicitude, nomeadamente se esta tiver sido despoletada por pedido/ informações fornecidas pelo “infrator” que se venha a concluir não terem correspondência com a realidade.
Dito isto, importa que o Tribunal a quo materialize a “correspondência”, concretizando-a, se for o caso, em sede da matéria de facto, por forma a se poder aquilatar o horário a que se reporta a autorização concedida.
Finalmente, importa dar conta que se afigura inútil/ prejudicado conhecer do pugnado erro notório na apreciação da prova, na medida em que, como resulta do recurso, está intimamente ligado à analisada contradição insanável da fundamentação.
Assim, concluímos, pois, pela verificação do vício da contradição insanável da fundamentação (artigo 410.º, n.º 2, al. b) do Código de Processo penal, aplicável ex vi artigo 41.º, n.º 1, do RGCO).
Face a todo o exposto, julga-se procedente o recurso apresentado pelo Ministério Público, anulando-se a sentença recorrida e determinando-se a respetiva reformulação, após pronúncia e motivação sobre a hora em que foi solicitada autorização para aterrar e descolar no aeroporto de Faro, ponderando, para o efeito, a necessidade de o fazer através da realização da audiência de julgamento ou de simples despacho (cfr. artigo 64.º, n.º 1, do RGCO).
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V - Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, decidir:
- julgar verificado o alegado vício de contradição insanável da fundamentação;
- e, em consequência, anular a sentença;
- devolver os autos ao Tribunal a quo para, ponderada a necessidade de realização da audiência de julgamento ou de simples despacho, apurar as horas para que foi concedida a extensão para a aterragem e descolagem do voo objeto dos autos e, em conformidade, conhecer novamente do mérito da impugnação judicial.
Sem custas.
Notifique.
*** Lisboa, 14 de maio de 2025
Bernardino Tavares
Armando Manuel da Luz Cordeiro
Carlos M. G. de Melo Marinho