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PRINCÍPIO DA CULPA
Sumário
I. O nosso processo penal é orientado no sentido decorrente do chamado princípio da culpa, segundo o qual não haverá condenação por crime sem que esteja estabelecida a culpa do seu agente. Isto, ao contrário do que pode intuir-se ser um simples princípio de abstracção e estudo, constitui, no entanto, o mais exigente dos princípios do direito penal, uma vez que dele dependem quase todos os restantes: só há culpa se, perante um julgamento leal e perante a demonstração através da prova permitida e recolhida de forma lícita, para além de qualquer dívida, se apurar que o agente agiu com dolo ou, nos casos em que releve, com negligência, pois que só assim o Tribunal pode impor uma sanção adequada, pacificar a comunidade e impor ao caso o efeito de julgado. Conseguem contar-se os princípios ínsitos no que acaba de se dizer? Serão, porventura, quase todos os do direito e do processo penal. E a importância disto não tem só que ver com a certeza e segurança do direito e com as implicações do caso julgado, já por si de extrema importância. Estes são, de facto, os princípios estruturantes de um Estado de direito democrático. Não pode haver hesitações a este respeito. Não pode haver maior ou menor probabilidade de culpa. Não pode haver relativismos quanto ao estabelecimento da culpa penal. A culpa, ou é decorrente dos factos sem dúvidas ou, na dúvida, tem de se decidir a favor da absolvição do arguido. II. Entre uma quase verdade provada (ainda que verdadeira de facto) e uma inverdade a distância é curta e cheia de possíveis cambiantes. Pelo que só nos serve uma verdade inteira, inequívoca, que possa – e só assim pode – afirmar a decisão de culpabilidade com a robustez da legalidade com que deve ser proferida uma decisão que condene o agente, e para que seja essa decisão credível e aceite pelos destinatários dela, pois que só assim se realiza o fim da Justiça. Menos do que isto não serve a nobreza de uma decisão judiciária criminal. Ao transigir-se nestes princípios fundamentais está a aceitar-se a aleatoriedade como princípio de entendimento. E isso é absolutamente inadmissível. A Justiça não se pode realizar a qualquer custo. Por isso, é mais justo deixar em liberdade um culpado [contra quem a prova não se afirmou com suficiente força em julgamento] do que punir um inocente [porque a prova se julgou menos bem ou teve na sua base vícios que corromperam a sua natureza].
Texto Integral
Acordam os juízes da 3ª Sec. Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa.
Relatório
Pelo Juízo Central Criminal de Sintra – J5 – foi proferido Acórdão que decidiu do seguinte modo: (…) Pelo exposto, o Tribunal Colectivo acorda considerar parcialmente procedente, a pronúncia e, consequentemente: 1. Absolve o arguido AA do crime de furto qualificado, previsto e punido pelo artigo 203.º, n.º 1 e artigo 204.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, pelo qual vinha pronunciado (factos relativos ao dia 12.02.2021). 2. Condena o arguido pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelo artigo 203.º, n.º 1 e artigo 204.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão. 3. Condena o arguido no pagamento das custas do processo, fixando a taxa de justiça em três UC’s (artigos 513º, nºs 1 a 3 e 514º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Penal e artigo 8º, nº 9 do Regulamento das Custas Processuais). 4. Julga totalmente improcedente o pedido de indemnização civil formulado pelo Instituto Nacional de Emergência Médica, I.P., e, em consequência, absolve o arguido/demandado do pedido. 5. Julga procedente o pedido de indemnização civil formulado por BB e, em consequência, condena o arguido/demandado no pagamento ao demandante da quantia de € 530,00, acrescida de juros de mora à taxa legal a contar desde 25.06.2021, até integral pagamento. 6. Custas cíveis pelo demandante Instituto Nacional de Emergência Médica, I.P., e quanto ao pedido indemnizatório deduzido por BB, custas cíveis pelo arguido/demandado, sempre sem prejuízo da isenção prevista no artigo 4.º, n.º 1, al. n), do RCP. (…)
Inconformado, o arguido interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões: (…) 1. Da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada – Vício da alínea do art.º 410.º n.º 2 alínea a) do CPP.O douto acórdão a pág. 9 considerou, a dado passo: que “na segunda situação, relativa ao dia 26 de Maio de 2021 existe uma imagem de quem conduzia o veículo matrícula ..-CZ-.., junta aos autos a fls. 168. Esclareceu a testemunha CC tratar-se do mesmo indivíduo que nas vigilâncias que efetuaram viam sempre a conduzir o veículo ..-CZ-.., tendo-o identificado como sendo o. Arguido, cuja fotografia se encontra junta aos autos a fls.78, na base de dados do IMTT” (sic). 2. É consabido que uma fotografia de alguém, desgarrada de qualquer outro meio de prova onde opere o necessário nexo de causalidade, não basta para a condenação dessa mesma pessoa. 3. No caso “subjuditio” não se trata de apurar apenas quem era ou deixava de ser o tal indivíduo que eventualmente pudesse conduzir essa viatura. 4. Mas não existe o necessário nexo de causalidade, ou seja, a relação fática entre o aparecimento do tal indivíduo e o cometimento do furto. 5. Não constando da gravação vídeo e respectivos fotogramas insertos nos autos, imagens do arguido a cometer qualquer crime 6. Nem tido sido produzida na audiência qualquer prova de que terá havido qualquer contacto telefónico entre a pessoa que conduzia o veículo e o autor do furto (o indivíduo mais novo). 7. Aliás, como dos autos consta, o arguido não foi sujeito sequer a reconhecimento pessoal, tendo-se estabelecido apenas (em audiência e através da testemunha ST), uma “comparação” de imagens, que o Tribunal acolheu, na sequência da qual o acórdão dá como assente tratar-se de uma só e mesma pessoa. 8. Pelo que existe nítida insuficiência para a decisão da matéria de facto provada – ou seja, o vício constante da alínea a) do n.º 2 do art.º 410.º do CPP. Sem conceder, 9. DA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO. Cumprimento do art.º 412.º n.º 3 do CPP: Concretos pontos que se consideram incorrectamente julgados. – Os itens 17 a 29 da Matéria de Facto provada – pág. 4 e 5). Concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida: O depoimento da testemunha militar da GNR CC. As provas que devem ser renovadas – Audição da testemunha CC. DEPOIMENTO DA TESTEMUNHA CC (militar da GNR – CC – doravante designado CC) – Que aqui se dá por reproduzido, para todos os efeitos legais (pág. 6 a 15 desta Motivação). 10. Como é sabido, não se pode desgarrar determinada frase ou expressão usada num depoimento de uma testemunha, sob pena de se “desconsiderar” a globalidade desse mesmo depoimento. 11. Sobretudo num caso como o dos autos em que o depoimento da testemunha durou mais de meia hora. 12. Analisando o referido depoimento, convirá relembrar “ab initio” que por a testemunha não ter assistido ao furto, (tendo apenas visualizado as imagens dos autos e procedido a verificações de identidade do proprietário do veículo e alguma vigilância ao mesmo), o seu depoimento reveste natureza por assim dizer “analítica”, discreteando sobre a eventual conformação das características dos suspeitos visados nas imagens vídeo existentes nos autos (fotogramas) com a pessoa do arguido. 13. É por isso um depoimento mais “opinativo” do que factual, com toda a carga de subjetividade a ele inerente, o que ressalta das variadas expressões do apontado depoimento por nós selecionadas, nos termos do art.º 412.º n.º 4 CPP, sobretudo as que veem indicadas a “negrito”. 14. De notar que a testemunha em causa, naqueles momentos em que efetuou vigilância ao mesmo, (ao então condutor do veículo) visionou-o a conduzir o veículo, mas sem que das mesmas (vigilâncias) tivesse verificado a prática de qualquer furto. 15. É dentro deste contexto que se deverá ter em conta tudo o que a testemunha foi referindo, (expressões já elencadas “supra” nesta Motivação), mesmo quando, a insistência da M.ª juiz Presidente chega a afirmar que terá “identificado” o arguido.), muito embora o rosto do mesmo não seja visível nos fotogramas existentes nos autos. 16. Posto isto, dado o conteúdo do depoimento da testemunha CC (CC) e de acordo com o estipulado no art.º 412.º n.º 3 do CPP ou seja, tendo em conta as passagens que a defesa considerou mais relevantes no caso dos autos sendo essas as passagens em que se funda a impugnação – terá de concluir-se pela impossibilidade do reconhecimento da culpabilidade do arguido. 17. Assim, nessa apontada Transcrição e quanto ao furto 2.º de 26 DE MAIO DE 2021, “Depois, viram a pessoa, compararam com as imagens?” (min 18m.12s). Ao que CC responde: “Não. Da carta de condução” (min. 18.17s). Nova pergunta do Digno MP: “Mas comparando com as imagens do Auchan”? (18m. 26s): CC Responde: CC:18m.29s: “Na primeira situação, o indivíduo mais jovem é que entrou no Auchan, ou seja, as imagens é ao longe, não dá para ver a descrição…” 18. “No segundo caso, na segunda situação, quando chegam a nós, as imagens preservadas eram as do Parque de Estacionamento (do Auchan) mas tinha-nos interessado terem sido preservadas também as do interior… mas não foi, e isso porque o indivíduo que nas imagens… e eu posso tentar identificar onde é que está, que entra no estabelecimento…as características parecem corresponder ao senhor AA (ao min. 19m.05). 19. Novamente, a indagação do Digno MP: (ao min. 19m.14): MP: “Viu as imagens…seguindo as imagens... conseguiu perceber se essa pessoa que estava filmada ao longe, foi aquela que entrou”? CC:19m.17s: “Não, porque depois não foram preservadas as imagens do interior do “Auchan”. Continuando, a 19m.23 CC: “O furto ocorreu no Parque de Estacionamento. Prosseguindo: “As imagens dentro do Auchan já não estavam preservadas. Digno MP: (Ao m.in19.44): “aquilo que diz é o que foi na segunda situação” (26 Maio)? Min 20.01s: CC “Sei que foi no Segundo Auto de Visionamento” 20. JÁ A INSTÂNCIAS DA M.ª JUIZ Presidente: A partir do min. 20.14:20m.14M.ª Juiz Presidente, dirigindo-se à testemunha: “Estas imagens de fls. 168 “correspondem em termos de estatura, corpulência, cabelo com entradas “é calvo”, correspondia àquele indivíduo calvo que viu conduzir o veículo? CC: 20m.54: “exactamente”. Mas mais adiante (dirigindo-se ainda à testemunha) a M.ª Juiz questiona-a: 21.45 “… estou a referir-me (à pessoa) da carta de condução. 21.55 “um indivíduo para os seus cinquenta e… tinha características físicas muito parecidas com o…”? (22mi.08) CC responde: (22m.14): “Como eu disse, lá está… Esta imagem não é completamente esclarecedora.” 21. E aos 22min. 20 CC refere: “Eu vendo o indivíduo que conduzia, identifico-o com este “M.ª Juiz Presidente: “Vendo-o identifica”? CC: Tem as mesmas características.” 22.Mais adiante e a instâncias do mandatário do arguido que lhe pergunta (min30.34): “Aí o senhor já não tem a certeza se a pessoa corresponde ao AA”? Resposta da testemunha CC “Não” (min. 30.35). E acrescenta: “Foi o que eu disse” (min 30.41) “As características do indivíduo que eu vejo correspondem às do senhor AA...a idade…a estatura” e acrescenta:(min 31.05): “Mas não dá para ver a fisionomia”). E ainda: (Em relação ao fotograma com a figura suspeita inserta nos autos): Min 32.27: “O fotograma aí, parece ...e está à sombra…” 23. RESUMINDO: - Violação do art.º 127.º do CPP:A testemunha, militar da GNR, CC, quando lhe é solicitado que compare a imagem existente nos autos com a pessoa do arguido (que o viu a conduzir o automóvel, ou a sair de sua casa), afirma que “as características correspondem na altura, na estatura”, mas que não pode assegurar que «se trate da mesma pessoa, pois a fisionomia da pessoa suspeita não se vê com exactidão no fotograma (“está à sombra”.(SIC).Sendo também isso precisamente o que se retira dos autos. 24. E é nesse contexto que se tem de entender a expressão – usada pela testemunha em resposta à M.ª Juiz Presidente e “supra” elencada que “identifica” o arguido, na frase “eu vendo o indivíduo que conduzia, identifico-o com este”. 25. Ora tal “identificação” rodeada das reticências que o depoimento apresenta, não bastaria para que o Tribunal pudesse concluir sem mais, que se trataria de facto da mesma pessoa. 26. Uma coisa é a pessoa em causa (ou seja, o arguido) ser semelhante na estatura, na corpulência, na espécie de calvície, outra é tratar-se sem qualquer sombra de dúvida, da mesma pessoa. 27. Para um juízo de culpabilidade não pode – ou não deve – existir qualquer dúvida. 28. Sendo que o depoimento da testemunha em causa (como toda a prova indiciária que os autos já apresentavam anteriormente) não é suficientemente robusta para que o douto Tribunal não tivesse qualquer dúvida quanto ao facto de se tratar da mesma pessoa. 29. Note-se que nunca foi feito qualquer reconhecimento pessoal… * * * * 30. Por todas estas razões – e uma vez analisada a prova produzida em audiência pela apontada testemunha, CC, terá de se concluir pela manifesta insuficiência de prova segura quanto à culpabilidade do arguido. 31. Nessa medida o acórdão terá violado o disposto no art.º 127.º do CPP (fazendo interpretação extensiva do mesmo preceito quando, apesar de reconhecer que “conclui-se tratar-se de um indivíduo com características físicas similares às do arguido” (a página 10 do douto acórdão – parágrafo quarto), ainda assim considera que se trata afinal da mesma pessoa, dada a “identificação” operada pela testemunha CC… 32. O que não se coaduna, por esse facto, com a conclusão do acórdão ao observar que operou a mesma valoração (de culpabilidade do arguido) “sempre de acordo com o juízo das regras da experiência comum neste tipo de situações”. ( assim, a pág.. 10 – 1.º parágrafo). 33. Reconhecimento ou identificação sumária? Refere o já citado preceito (art.º 147.º do CPP), que o “reconhecimento por fotografia, filme ou gravação realizado no âmbito da investigação criminal só pode valer como meio de prova quando for seguido de reconhecimento efectuado nos termos do n.º 2”. 34. Ora o que se passou nos autos não foi um qualquer reconhecimento, mas a afirmação de uma testemunha que diz que “identifica o arguido”. E identifica através de uma fotografia (fotograma). 35. Foi através de pesquisa de base de dados (IMTT - Carta de condução) que se conseguiu uma fotografia do arguido. A testemunha refere que a pessoa visualizada no vídeo do Auchan “corresponde” à pessoa que conduzia o veículo. 36. Ou seja, identifica através da comparação de videovigilância, através da comparação de um extracto de um filme, do qual se extraiu um determinado fotograma. 37. Nessas circunstâncias “tal só tem valor de prova quando se lhe seguir o reconhecimento por contacto pessoal, i. e. o reconhecimento presencial a que alude o corpo do art.º 147.º no dizer do ilustre Procurador FERNANDO GAMA LOBO in CPP Anotado Almedina- 3.ª Edição, 2019 – a pág. 272/273 (Em anotação ao art.º 147.º CPP). 38. Por isso não assiste razão no douto acórdão, ao considerar e já em sede de fundamentação “Motivação da decisão sobre a matéria de facto” – a pág. 7 e 9 o seguinte: “Esclareceu a testemunha CC tratar-se do mesmo indivíduo que nas vigilâncias que efetuaram viam sempre a conduzir o veículo ..- CZ-.. …”. O que, como se viu “supra” não será assim. 39. A testemunha nunca usou de qualquer juízo assertivo quanto a essa questão e jamais afirmou “tratar-se, sem qualquer dúvida, do mesmo indivíduo”. No mais, a expressão utilizada no recorrido acórdão “tendo-o identificado como sendo o arguido” (a página 9) não pode ser desligada de todo o contexto em que foi proferida, aliada ao facto de uma alegada e não comprovada “identificação” por filme ou fotografia de nada valer por não ter sido seguida de reconhecimento pessoal. 40. A testemunha em causa (CC), militar da GNR fala que no seu entender a pessoa que viu a conduzir o veículo tinha semelhanças, ou que “correspondia” e que “identifica”, valendo o que vale uma “identificação” não pessoal… 41. Como aliás todas as passagens transcritas “supra” e em negrito dão conta. Assim, Não tendo sido efectuado reconhecimento pessoal e não tendo a testemunha inquirida afirmado perentoriamente (pelas razões que exaustivamente se deu conta), que se trataria da mesma pessoa, aliado à má qualidade dos fotogramas onde se visualiza o indivíduo suspeito, carecia o Tribunal de fundamento idóneo para a condenação do arguido. 42. Violação do princípio “in dubio pro reo”. A apropriação não é visível nas imagens da Câmara vídeo: Como resulta das imagens dos autos, nunca é visível a apropriação ilícita levada a cabo pelo seu autor (furto). 43. Deste modo, o douto acórdão ao considerar provado ter sido o arguido o autor do furto violou o princípio axiológico do nosso Direito Penal Adjectivo, ou seja, o princípio in dubio pro reo, porque existindo dúvida, dela deveria beneficiar o arguido, não podendo a dúvida, a imprecisão ou a falta de assertividade, servir para a condenação do arguido. 44. Ainda sem conceder, Da Impugnação da Matéria de Direito (cumprimento do art.º 412.º n.º 2 a) e b) CPP) a) Normas jurídicas violadas: art.º 127.º e 355.º do CPP; art.º 147.º do CPP e art.º 50.º, 51.º do CP. b) O sentido da interpretação da norma no recorrido acórdão e o sentido em que ela devia ter sido interpretada: na melhor interpretação deste preceito, (o art.º 127.º CPP), devendo subsistir dúvidas sobre o reconhecimento do arguido, duvidas essas patentes no depoimento da apontada testemunha CC, ( e inexistindo qualquer reconhecimento pessoal), de acordo com o disposto nos art.º 127.º e 147.º CPP “a contrario” o depoimento dessa testemunha não deveria ter sido valorado para o efeito da culpabilidade do arguido. c) Da violação do princípio. “in dubio pro reo”. Por todo o exposto “supra” mostra-se ter sido violado este mesmo princípio. 45. Da natureza da pena – da pena suspensa. Sem conceder a tudo o que fica exposto, mesmo em caso de outra ser a interpretação deste Venerando Tribunal da Relação, (o que se considera ainda assim apenas como mera hipótese), sempre a condenação em pena efectiva não deveria ter lugar. Dado “prima faciae” o tempo já decorrido, - vários anos - ou a própria natureza do crime e a relativa intensidade do dolo. 46. Pese embora as condenações anteriores, de há uns anos a esta parte que o arguido não tem tido problemas com a Justiça, tendo inclusive emigrado para a Alemanha, (daí a razão de ter sido julgado na ausência, com a douta permissão do Tribunal). Como os autos dão conta. Em busca de melhor emprego. Sem olvidar que o arguido vive com sua Mãe, octogenária e doente, da mesma cuidando. 47. O que aliado ao valor em causa (cerca de 500€) deveria ser bastante para uma condenação em pena suspensa na sua execução, eventualmente sujeita a regime de prova. 48. Ao assim não ter decidido terá o douto acórdão violado, por erro de interpretação, o disposto no art.º 50.º, 51.º, 52.º e 53.º do Código Penal. Nestes termos – e nos mais de Direito aplicáveis, - não tando pelo sucintamente alegado como pelo que V.Ex.ª Venerandos Desembargadores decerto hão-de suprir, dando provimento à Motivação Recursiva e declarando os apontados vícios, absolvendo o arguido ou, ainda sem conceder condenando-o em pena suspensa, exercerão V.Ex.ª a melhor e mais criteriosa JUSTIÇA! (…)
O Ministério Público na primeira instância respondeu ao recurso, concluindo do seguinte modo: (…) 1. Nos presentes autos não existiu prova legal ou tarifada que se impusesse ao tribunal, cabendo-lhe apreciar a prova segundo as regras de experiência comum e da livre convicção que sobre ela forma (artigo 127.º do Código de Processo Penal). Na fundamentação do douto acórdão proferido, o Tribunal Coletivo recorrido enumerou os factos provados e não provados e expôs de forma completa, os motivos de facto que fundamentaram a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a sua convicção. 2. O Recorrente insurge-se contra a matéria de facto dada como provada no douto acórdão sustentando que a prova produzida não permitia que se dessem como provados os factos de 17) a 29) da matéria de facto que traduzem, em suma, no facto pelo qual foi condenado no dia 26.05.2021. 3. O recorrente cumpriu o ónus de impugnação a que alude o artigo 412º, nº 3 do CPP, efetuando através da transcrição de alguns excertos das declarações da testemunha CC, militar da GNR, o recorrente procura essencialmente contrapor a sua convicção sobre essa prova pessoal produzida àquela que, de acordo com a regra da livre apreciação da prova ínsita no artigo 127º do Código de Processo Penal, foi formada pelo tribunal a quo. Nesse desiderato, aponta falta de interpretação, das declarações prestadas pelas testemunhas militares da GNR, pelo tribunal. 4. Em rigor, as questões suscitadas pelo recorrente redundam, assim, numa mera discordância em relação à forma como o tribunal apreciou e valorou a prova produzida. 5. Com efeito, ao contrário do que alega o recorrente, o Tribunal Coletivo foi claro, explicito e elucidativo ao fundamentar as razões pelas quais atribuiu credibilidade às declarações prestadas pela testemunha CC, militar da GNR e restantes testemunhas. 6. Sucede que, ao atacar a deliberação recorrida com base na credibilidade que o Tribunal Coletivo deu, ou não, às declarações testemunhas, em particular do militar da GNR CC, o recorrente põe em causa a norma ínsita no artigo 127º do Código de Processo Penal, que determina que o juiz julgue segundo as regras de experiência e a sua livre apreciação. 7. De acordo com este princípio, o tribunal é livre de dar credibilidade a determinados depoimentos, em detrimento de outros, desde que a opção seja devidamente explicitada e convincente de acordo com aquelas duas vertentes. 8. É por isso que, como se vem reconhecendo, pacificamente, na jurisprudência dos nossos tribunais superiores, só nos casos em que as provas concretamente indicadas pelo recorrente imponham decisão diversa da recorrida, devem os tribunais superiores proceder a tal alteração – cfr. artigo 412º, nº 3, al. b) do Código de Processo Penal. Tal não é manifestamente, o caso dos presentes autos. 9. Lendo a fundamentação sobre a matéria de facto do douto acórdão, não se vislumbra que o Tribunal a quo tenha chegado a qualquer estado de dúvida sobre a prática pelo arguido dos factos dados como provados e que este impugna. 10. Assim, o que resulta daquela decisão é um estado de certeza do Tribunal a quo recorrido relativamente à prática pelo recorrente dos factos dados como provados, pelo que está deste modo afastada a violação pelo Tribunal recorrido do princípio “in dúbio pro reo” associado ao princípio da presunção de inocência. 11. Perante o exposto, e tal como sufragado supra, consideramos definitivamente fixada a matéria de facto, nos termos que constam da douta decisão recorrida. 12. Vem ainda o recorrente, alegar que após o reconhecimento fotográfico se lhe seguiria o reconhecimento pessoal, sob pena de não ter valor como prova. Parece-nos que, a ser feito qualquer reconhecimento pessoal teria que ser feito pelos ofendidos ou outras testemunhas, que no caso concreto inexistem testemunhas presenciais dos factos. 13. A investigação levada a cabo pelo órgão de polícia criminal apurou a identificação do arguido através da prova carreada para os autos. Assim, geralmente, a prova por reconhecimento será realizada em fase de inquérito que, à luz do artigo 262º do CPP consiste no “conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles”. 14. Sendo normalmente delegada nos OPC a realização de determinados atos, sendo-lhes conferida autonomia técnica e tática. Desta forma, a prova por reconhecimento integra um conjunto de diligências a realizar no inquérito pelo OPC, por consistir num ato delegável, nos termos dos artigos 267º e 270º do CPP. Ainda na fase de instrução, da responsabilidade do juiz de instrução, é frequente haver delegação de competências nos OPC para este efeito (artigo 288º do CPP). 15. O artigo 145º, nº 5 do CPP define o eventual reconhecimento fotográfico como um passo prévio ao reconhecimento físico integrante da investigação, não possuindo autonomia como meio de prova e, por isso, não se sujeitando aos requisitos do regime geral do “reconhecimento físico”. Por não estar sujeito aos formalismos referidos, pode mesmo ser mostrada uma só fotografia e, se mostradas várias, não terão de obedecer a qualquer similitude com o suspeito a identificar. 16. Todavia, entendemos que na presente situação, não se trata de reconhecimento pessoal ou fotográfico, mas sim de diligências encetadas pelo OPC a fim de apurar a identificação dos autores dos factos. Nesta medida, os militares encarregues da investigação, não poderiam proceder eles próprios ao reconhecimento pessoal do arguido. Nem tão pouco os ofendidos poderiam efetuar qualquer reconhecimento quer fotográfico quer pessoal, uma vez que nada presenciaram dos factos. 17. Daí não se entender a pretensão do recorrente com tal diligência de reconhecimento pessoal, que refere que teria que ser efetuada. 18. Considerando todos os apontados fatores, não pode o Recorrente fundamentadamente aspirar a tratamento punitivo mais perto dos limites mínimos do que aquele que lhe foi aplicado pelo Tribunal e mais uma vez suspensa a sua execução, depois de ter registado no seu CRC crimes de idêntica natureza, entre outros. 19. A pena aplicada não deixa transparecer qualquer inobservância dos critérios contemplados nos artigos 71º, nºs 1 e 2 do CP, nem desrespeito pelas finalidades das penas, consagradas no artigo 40º, nº 1 do mesmo código. 20. As exigências de prevenção geral que no caso se suscitam, permitiram a aplicação ao arguido da pena de prisão efetiva, inexistindo qualquer prognose favorável de que o arguido não praticará novos crimes, atendendo ao já extenso percurso criminal registado. Pelo exposto, estamos absolutamente de acordo com as razões expendidas pelo Tribunal a quo, pelo que entendemos que a pena de prisão de um ano efetiva aplicada ao arguido, se mostra adequada. 21. Pelo exposto, deverá manter-se incólume, por não merecer qualquer censura, a matéria de facto fixada em 1ª instância. Nestes termos e, nos mais de Direito, deverão V. Exas. negar provimento do recurso interposto pelo arguido. Vossas Excelências não deixarão, porém, de fazer a acostumada JUSTIÇA! (…)
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O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo.
Uma vez remetido a este Tribunal, o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de subscrever a resposta ao recurso e, como tal, pugnando pela improcedência do recurso.
Razão pela qual se prescindiu do cumprimento do art.º 417º, nº 2 do Cód. Proc. Penal.
Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, teve lugar a Conferência.
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Objecto do recurso
Resulta do disposto conjugadamente nos arts. 402º, 403º e 412º nº 1 do Cód. Proc. Penal que o poder de cognição do Tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação.
Além destas, o Tribunal está ainda obrigado a decidir todas as questões que sejam de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afectem a decisão, nos termos dos arts. 379º nº 2 e 410º nº 3 daquele diploma, e dos vícios previstos no art.º 410º nº 2 do mesmo Cód. Proc. Penal, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito, tal como se assentou no Acórdão do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995 [DR, Iª Série - A de 28.12.1995] e no Acórdão para Uniformização de Jurisprudência nº 10/2005, de 20.10.2005 [DR, Iª Série - A de 07.12.2005].
Das disposições conjugadas dos arts. 368º e 369º, por remissão do art.º 424º, nº 2, ambos do mesmo Cód. Proc. Penal, resulta ainda que o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela seguinte ordem preferencial:
Em primeiro lugar, das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão (art.º 379º do citado diploma legal);
Em segundo lugar, das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela chamada impugnação alargada, se deduzida [art.º 412º], a que se segue o conhecimento dos vícios enumerados no art.º 410º nº 2 sempre do mesmo diploma legal.
Finalmente, as questões relativas à matéria de direito.
Ora, o arguido, nas conclusões do recurso, fixa o objecto de apreciação requerida nas seguintes questões:
- Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada – vício do artigo 410º, nº 2, al. a) do CPP [muito embora impugne a matéria de facto cumprindo os requisitos do art.º 412º do mesmo diploma];
- Violação do princípio in dubio pro reo;
- Violação das regras de escolha e determinação da pena – pena suspensa.
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Fundamentação
O Tribunal recorrido fixou a matéria de facto do seguinte modo: (…) Com relevância, resultaram provados os seguintes factos: 1. Por volta das 16h30 do dia 13 de Fevereiro de 2021, dois indivíduos do sexo masculino cuja identidade não foi possível apurar, dirigiram-se até ao parque de estacionamento do Centro Comercial Auchan, situado na Rua ..., ..., fazendo-se transportar na viatura de matrícula ..-CZ-.., de marca Honda. 2. Era sua intenção, conforme plano previamente traçado entre ambos, retirar e apoderar-se de dinheiro e objectos de valor que viessem a encontrar nos veículos aí estacionados. 3. Com esse objectivo, um dos indivíduos cuja identidade não se logrou apurar estacionou a viatura num local distante da entrada do estabelecimento, de modo a não ser visualizado pelas câmaras de videovigilância, saiu da mesma e passou a deambular pelo parque de estacionamento em busca de uma oportunidade para poder concretizar as suas intenções. 4. Por seu turno, um dos outros indivíduos cuja identidade não se logrou apurar deslocou-se para o interior do estabelecimento, levando consigo um telemóvel a fim de receber instruções. 5. Ao deambular pelo parque de estacionamento, um dos indivíduos cuja identidade não se logrou apurar apercebeu-se da chegada da viatura KIA de matrícula ..-OX-.., pertencente a DD. 6. Assim sendo, esse indivíduo cuja identidade não se logrou apurar deslocou-se até junto do local onde esta última viatura foi estacionada, e ficou a observar os seus ocupantes a saírem da mesma e a abrirem as portas e a bagageira. 7. De igual modo, verificou que DD havia colocado uma mochila no interior da bagageira. 8. Desse modo, o indivíduo cuja identidade não se logrou apurar, verificou que no interior desta viatura se encontravam objectos de valor dos quais se poderia apoderar. 9. Após, o indivíduo cuja identidade não se logrou apurar seguiu os ocupantes da viatura até à entrada do Centro Comercial, de modo assegurar-se de que efectivamente os mesmos aí iriam permanecer durante algum tempo. 10. Além disso, telefonicamente, solicitou ao seu acompanhante de identidade desconhecida que ficasse a observar as referidas pessoas e que o avisasse se as mesmas viessem, entretanto, a deslocar-se novamente para junto do Kia. 11. De seguida dirigiu-se até junto do Kia e, de modo não concretamente apurado, abriu a porta traseira do lado esquerdo, após o que rebateu o banco e retirou a mochila que se encontrava na bagageira. 12. Do interior da mochila, indivíduo cuja identidade não se logrou apurar retirou: - 1 computador da marca Lenovo, avaliado no valor de cerca de 400,00 euros; - 1 nota de 5,00 euros; - 1 cabo de ligação do computador, um rato de computador e 1 modem, tudo no valor total de cerca de 32,00 euros; 13. Do interior do porta-luvas, o indivíduo cuja identidade não se logrou apurar retirou 1 telemóvel Samsung J+, cujo valor não se logrou apurar. 14. De seguida, o indivíduo cuja identidade não se logrou apurar dirigiu-se de novo para a viatura Honda, levando consigo os referidos bens ao mesmo tempo que telefonicamente solicitou ao seu acompanhante de que o regressasse rapidamente até junto de si, o que o mesmo fez. 15. Após, o indivíduo cuja identidade não se logrou apurar e o seu acompanhante ausentaram-se rapidamente do local levando consigo os objectos retirados da viatura de DD, os quais integraram no seu património, bem sabendo que agiam contra a vontade dos seus donos e que a sua conduta era proibida e punida por lei. 16. Os bens mencionados em 12, com excepção da nota de 5 euros, apesar de se encontrarem na posse de DD, eram propriedade do Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM). * 17. No dia 26 de Maio de 2021, cerca das 20h30, o arguido AA, acompanhado por pessoa do sexo masculino cuja identidade não se logrou apurar, dirigiu-se até ao parque de estacionamento do Auchan em .... 18. Era sua intenção, conforme plano previamente traçado entre ambos, retirar e apoderar-se de dinheiro e objectos de valor que viessem a encontrar nos veículos aí estacionados. 19. O arguido fez-se transportar na viatura de matrícula ..-CZ-.., por si conduzida, a qual estacionou, mantendo-se no seu interior de modo a obervar a chegada de outros veículos. 20. Assim, o arguido logrou aperceber-se da chegada da viatura de matrícula ..-RI-.., pertencente e conduzida por BB, bem como que o respectivo condutor a pretendia estacionar numa das filas de lugares próprias para o efeito. 21. Logo o arguido dirigiu a sua viatura para o mesmo local, estacionando-a na mesma fila em que a viatura de matrícula ..-RI-.. se encontrava, com três carros de permeio, ficando a observar o comportamento do seu ocupante. 22. Depois saiu desse local e passou pela referida viatura de matrícula ..-RI-.. várias vezes, até se assegurar que o respectivo ocupante, BB, se havia ausentado e dirigido para o interior do Centro Comercial. 23. O arguido AA estacionou a sua viatura e seguiu no encalço de BB. 24. Verificando que BB iria permanecer algum tempo no referido estabelecimento, o arguido telefonou para o seu acompanhante, o qual havia ficado no parque de estacionamento, e informa-o de que agora podia dirigir-se até à viatura de matrícula ..-RI-.. e retirar bens de valor que aí se encontrassem. 25. O referido indivíduo, dirigiu-se então até junto da viatura de matrícula ..-RI-.., abriu a porta do passageiro da frente, que havia ficado destrancada, após o que abriu o porta-luvas, retirando a quantia de 530,00 euros que aí se encontrava guardada. 26. De seguida, o mesmo indivíduo dirigiu-se de novo para a viatura Honda, levando consigo a referida quantia monetária, ao mesmo tempo que telefonou para o arguido pedindo-lhe que regressasse rapidamente até junto de si, o que o mesmo fez. 27. Após, o arguido e o seu acompanhante ausentaram-se rapidamente do local levando consigo a quantia monetária retirada da viatura de matrícula ..-RI-.., a qual integraram no seu património. 28. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, em comunhão de esforços e intentos com o referido indivíduo de identidade desconhecida, com o propósito de fazer seus os referidos 530,00 euros, aos quais sabia não ter direito, tendo consciência que actuava contra a vontade do respectivo proprietário. 29. Mais sabia que a sua conduta era reprovável e punida por lei. * (Mais se provou): 30. BB nunca recuperou os € 530,00. 31. O certificado do registo criminal do arguido averba as seguintes condenações: a. No processo n.º 4197/01.4P8LSB, por decisão de 01-06-2004, transitada em julgado a 16-06- 2004, pela prática, em 02-11-2001, de um crime de furto simples, previsto e punido pelo artigo 203.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 75 dias de multa. A pena foi declarada extinta, pelo pagamento, por despacho de 22-02-2006. b. No processo n.º 349/02.8SYLSB, por decisão de 11-12-2007, transitada em julgado a 14-01- 2008, pela prática, em 12-07-2002, de um crime de furto simples, previsto e punido pelo artigo 203.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 80 dias de multa. A pena foi declarada prescrita, por despacho transitado em julgado em 14-01-2018. c. No processo n.º 54/10.1TASAT, por acórdão de 28-06-2013, transitada em julgado a 20-11- 2013, pela prática, em 21-05-2010, de um crime de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelo artigo 171.º, n.º 2, do Código Penal, na pena de 7 anos de prisão. Por decisão do TEP de 05.02.2020, com efeitos reportados a 26.12.2019, foi convertida em definitiva a liberdade condicional e declarada extinta a pena de prisão. 32. O arguido AA, de 61 anos de idade, vive com mãe, octogenária, situação pessoal e familiar que mantinha à data dos factos. 33. A relação intrafamiliar é descrita pelo arguido como positiva e de apoio recíproco. 34. O arguido mantém igualmente uma relação de proximidade afetiva com a irmã. 35. O arguido tem dois filhos em comum com a sua ex-mulher, de respetivamente, 36 e 31 anos de idade e um neto de dois anos. 36. O casal divorciou-se em março de 2010, estando por essa altura a viver em ..., Castro Daire donde a ex-mulher do arguido é natural. 37. O arguido cumpriu pena efetiva de prisão entre 26/12/2012 e 03/07/2018 e esta circunstância não se traduziu num corte relacional com os seus filhos, que o visitavam regularmente e com quem sempre manteve contacto. 38. Em contexto prisional, o arguido beneficiou de acompanhamento psicológico. 39. O arguido AA possui o 9.º ano de escolaridade, que concluiu em idade adulta, em contexto prisional com a frequência com aproveitamento, do curso Educação e Formação de Adultos (EFA B2+B3), conferindo-lhe equivalência ao 3º ciclo do ensino básico e no ano transato, fez formação profissional de manobrador de máquinas, considerando que esta iniciativa lhe poderia ser útil em termos de uma nova oportunidade de trabalho. 40. No presente, o arguido trabalha como motorista de táxi, sem vínculo contratual, atividade que mantém desde que saiu em liberdade condicional, a 3/07/2018. 41. Nesta fase, o arguido mantém uma condição de precariedade laboral e coloca a hipótese de emigrar para trabalhar no sector da construção civil, como manobrador de máquinas. 42. Durante alguns anos da sua vida ativa, trabalhou como motorista de mercadorias de longo curso, não tendo revalidado essa licença de condução. 43. No plano económico, o arguido obtém um rendimento médio mensal que ronda os 500,00 Euros, auferindo a sua mãe uma pensão de reforma de 600,00 Euros e pagam de renda de casa 54,00€. 44. O arguido sofre de diabetes, problema de saúde que mantém sob controlo medicamentoso e vigilância médica. 45. Durante o cumprimento da pena de prisão, apresentou um comportamento normativo, isento de registos disciplinares, com investimento nas habilitações escolares e participação em atividades de valorização pessoal e beneficiou de liberdade condicional entre 3/07/2018 e 26/12/2019. 46. Assim como demonstrou compromisso com a medida de flexibilização da pena e cumprimento das obrigações a que estava vinculado. II. b) Matéria de facto não provada. Com relevância para a decisão não se logrou provar: 1. Que o arguido tenha tido qualquer intervenção ou participação na factualidade provada relativa ao dia 13.02.2021. 2. Que o computador da marca Lenovo tinha o valor de 1.000,00 euros. 3. Que o cabo de ligação do computador, o rato de computador e o modem, tinham o valor total de 55,00 euros. 4. Que tenha sido em consequência de qualquer comportamento do arguido que o Instituto Nacional de Emergência Médica, I.P. teve prejuízo patrimonial com a subtração do computador da marca Lenovo e com o cabo de ligação do computador, o rato de computador e o modem. (…)
O Tribunal recorrido fundamentou a decisão de facto do seguinte modo: (…) O Tribunal formou a sua convicção com base na valoração crítica de todos os elementos probatórios carreados aos autos, analisados à luz das regras da experiência comum e tendo por pano de fundo o princípio da livre apreciação da prova (art.º 127.º do CPP). No que tange aos factos ocorridos no dia 13 de Fevereiro de 2021, valorou-se o depoimento objectivo e escorreito da testemunha DD, enfermeira do INEM, que esclareceu ter estacionado a sua viatura KIA, de matrícula ..-OX-.., no parque de estacionamento do Centro Comercial Auchan e, quando regressou ao veículo, constatou que do seu interior tinham subtraído os objectos que se consideraram provados e uma nota de € 5,00, não logrando esclarecer o valor seu telemóvel, cujo vidro já estava danificado. No que tange ao valor dos bens do INEM que se encontravam afectos à enfermeira DD, valorou-se o depoimento da testemunha EE, responsável na área informática do INEM, tendo esclarecido que o computador da marca Lenovo à data dos factos valeria cerca de 400,00 euros e que o cabo de ligação do computador, o rato de computador e o modem, valeriam um total de 32,00 euros. Nesta parte mais se valorou-se a factura junta aos a fls. 292. Relativamente aos factos ocorridos no dia 26 de Maio de 2021, valorou-se as declarações isentas e objectivas do demandante BB, que esclareceu ter estacionado a sua viatura com a matrícula ..-RI-.., no parque de estacionamento do Centro Comercial Auchan e quando regressou o veículo constatou que do seu interior tinham subtraído a quantia monetária de 530,00 euros que ali deixara, bem como esclareceu, de forma credível, as razões pelas quais tinha tal montante no interior do veiculo. Mais se valorou o depoimento da testemunha CC, militar da GNR, tendo esclarecido que após terem conhecimento da primeira denúncia por subtração de bens/valores do interior da viatura estacionada no parque de estacionamento do Centro Comercial Auchan, através das imagens da videovigilância identificaram o veículo envolvido nos furtos - matrícula ..-CZ-.., de marca Honda (cf. consulta de veículo de fls. 22 e 23) - e diligenciaram no sentido de apurar a identidade do seu utilizador habitual. Através do Seguro do veículo tomaram conhecimento da identidade do tomador do Seguro e sua residência (cf. detalhes “Segurnet” de fls. 29, sendo a morada aí indicada a mesma que o arguido indicou como sendo a sua residência, quando presto TIR, junto aos autos a fls. 261), efectuaram vigilâncias e viram em todas as situações um mesmo indivíduo, com idade superior a 50 anos, a sair do prédio, entrar no veículo e efectuar a sua condução, indo recolher um indivíduo mais jovem em Lisboa, que entrava na viatura. Nesta parte valoraram-se os relatórios de diligência externa de fls. 58 e 59 - relativa à vigilância efectuada em 21.05.2021, - de fls. 60 – relativa à vigilância efectuada em 22.05.2021 -, de fls. 67 a 70 – relativa à vigilância efectuada em 31.05.2021 -, de fls. 186 a 197 – nesta situação o veículo foi visto, pelos militares da GNR, a circular em S. Pedro do Estoril e desde logo decidiram segui-lo. Constataram que o tomador do veículo era muito mais jovem do que o indivíduo que em todas as situações conduzia o veículo e através de diligências efectuadas concluíram que o condutor do veículo era o pai do tomador do Seguro. Nesta parte mais se valorou a certidão do assento de nascimento do tomador do Seguro, junto aos autos em 15.11.2024, resultando do mesmo que o arguido é pai do tomador do Seguro (FF). Esclareceu que as duas situações ocorridas no parque de estacionamento do Centro Comercial Auchan são similares, no entanto nas imagens relativas ao dia 13 de Fevereiro de 2021, consegue-se visualizar perfeitamente o veículo de matrícula ..-CZ-.., de marca Honda, não sendo visível a matrícula da viatura KIA de matrícula ..-OX-... Não obstante, atendendo à informação prestada pela denunciante/testemunha DD quanto ao local onde estacionara o seu veículo automóvel e marca, modelo e características da viatura, conseguiram identificá-lo. Já no que que tange aos factos ocorridos no dia 26 de Maio de 2021, a matrícula dos dois veículos - ..-CZ-.. e ..-RI-.. - é perfeitamente visível. Esclareceu que os ofendidos denunciavam os factos pressupondo que tinham deixado os veículos destrancados, pois não havia danos na viatura, nem indícios de arrombamento, estando esta testemunha convicta que teriam utilizado um inibidor de sinal (aparelho electrónico que impede que a porta do veículo seja trancada quando se aciona o controlo remoto para o trancar e acionar o seu alarme), no entanto, dos autos não existe nenhuma prova concreta da utilização desse aparelho. Nas imagens da primeira situação o arguido não aparece visível (não é visível quem conduz a viatura), porém, na segunda situação, relativa ao dia 26 de Maio de 2021 existe uma imagem de quem conduzia o veículo matrícula ..-CZ-.., junta aos autos a fls. 168. Esclareceu a testemunha CC, tratar-se do mesmo indivíduo que nas vigilâncias que efectuaram viam sempre a conduzir o veículo ..-CZ-.., tendo-o identificado como sendo o arguido, cuja fotografia se encontra junta aos autos a fls. 78, na base de dados do IMTT. Cumpre dizer que a testemunha CC em julgamento foi confrontada com os autos de visionamento de imagens de fls. 42 a 56, relativas ao dia 13.02.2021 e de fls. 161 a 175, relativas ao dia 26.05.2021, as quais foram cuidadosamente analisadas em julgamento e sendo das mesmas que se retira toda a dinâmica e sequência de actos dos indivíduos que tiraram os bens do interior dos dois veículos e que se considerou provado, sempre de acordo com o juízo das regras da experiência comum neste tipo de situações. A testemunha GG, militar da GNR, prestou depoimento em termos similares ao do seu colega CC, tendo participado em duas diligências externas de vigilância ao veículo de matrícula ..-CZ-.., tendo visualizado o seu condutor. HH, funcionária da responsável de segurança do supermercado Auchan de ..., a exercer funções à data dos factos no Auchan de …, na sequência da comunicação para preservação das imagens, procedeu à sua gravação e entregou-as às autoridades. Pese embora o arguido não tenha comparecido em julgamento, do fotograma do indivíduo que conduzia o veículo automóvel matrícula ..-CZ-.. ao dia 26.05.2021 - subtração dos bens do interior do veículo matricula ..-RI-.. -, conjugado com a fotografia do arguido que se encontra junta aos autos a fls. 78, da base de dados do IMTT e as fotografias do cartão de cidadão do arguido, de fls. 211, 358, 359 e 360, conclui-se tratar-se de um indivíduo com características físicas similares às do arguido. Ademais resultou das vigilâncias efectuadas pelos militares da GNR que o arguido era o utilizador habitual do veículo matrícula ..-CZ-... Isto posto, da conjugação da prova este Tribunal formou a sua convicção no que tange à actuação do arguido nos factos ocorridos no dia 26 de Maio de 2021. Já quanto aos factos ocorridos no dia 13 de Fevereiro de 2021, pese embora o modus operandi, tenha sido o mesmo que no dia 26 de Maio de 2021, não existe nenhum fotograma no qual seja visível o indivíduo que conduzia o veículo automóvel matrícula ..-CZ-.. e que teve intervenção dos factos, pelo que, fazendo apelo ao princípio in dubio pro reo, considerou-se não provado que o arguido tivesse alguma participação nesses factos. Por sua vez, a prova dos factos atinentes ao elemento subjectivo resultou dos respectivos factos objectivos, analisados à luz das regras da lógica e da experiência comum, atentas as concretas circunstâncias do caso, designadamente a forma de actuação empreendida no caso vertente, sendo certo que qualquer cidadão medianamente diligente e sagaz, como se presume ser o caso do arguido, sabe que os factos em equação nos presentes autos constituem crime. No que tange aos antecedentes criminais do arguido, valorou-se o respectivo certificado de registo criminal e no que concerne à factualidade atinente à sua situação pessoal, familiar e condições sócio-económicas valorou-se o respectivo relatório social junto aos autos e que não foi contrariado por qualquer outro meio de prova. (…)
Especificamente quanto à pena aplicada e forma de cumprimento, considerou o Tribunal recorrido: (…) O crime de furto qualificado, p. e p. pelo art.º 204.º, n.º 1, al. b), do Código Penal é cominado com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias. Uma vez que o crime em apreço estatui uma alternativa entre pena de prisão e pena de multa, importa em primeiro lugar proceder à escolha entre a pena privativa da liberdade e a pena pecuniária. Neste contexto, rege o art.º 70.º do Código Penal, estabelecendo que sendo ao crime aplicável, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o Tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. No momento em que elege a pena principal, o Tribunal articula as necessidades de prevenção geral e de prevenção especial, atendendo a um critério de adequação e suficiência face às necessidades de punição. Actuam, por conseguinte, nesta escolha as necessidades dos fins das penas, que são, segundo dispõe o n.º 1 do art.º 40.º do Código Penal, “a protecção de bens jurídicos” (prevenção geral) “e a reintegração do agente na sociedade” (prevenção especial). Actua-se no âmbito da prevenção geral positiva ou de integração quando se reforça na comunidade o sentimento da validade e da segurança face às normas jurídicas violadas, e no da prevenção especial positiva ou de socialização quando a pena é dirigida à ressocialização ou reintegração do agente e perante a qual o julgador efectua um juízo de prognose quanto aos efeitos desta na futura conduta do delinquente. Ou seja, a opção por uma medida privativa da liberdade só deverá ser tomada por uma razão de prevenção especial de socialização, ligada à prevenção do cometimento de futuros crimes, ou por razões fundadas em exigências inultrapassáveis de tutela do ordenamento jurídico. No caso sub judice as exigências de prevenção geral são elevadas, tendo em conta o crescente número de crimes de furto de bens do interior de veículos que se verificam e o alarme social causado, bem como a necessidade de a norma violada ser revigorada através da reafirmação e reforço da sua vigência e da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida (estabilização contrafáctica da validade e vigência da norma violada). No que tange às exigências de prevenção especial, in casu, verifica-se que o arguido, à data da prática dos factos – 26-05-2021 - já tinha sido condenado: a. No processo n.º 4197/01.4P8LSB, por decisão de 01-06-2004, transitada em julgado a 16-06- 2004, pela prática, em 02-11-2001, de um crime de furto simples, previsto e punido pelo artigo 203.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 75 dias de multa. A pena foi declarada extinta, pelo pagamento, por despacho de 22-02-2006. b. No processo n.º 349/02.8SYLSB, por decisão de 11-12-2007, transitada em julgado a 14-01- 2008, pela prática, em 12-07-2002, de um crime de furto simples, previsto e punido pelo artigo 203.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 80 dias de multa. A pena foi declarada prescrita, por despacho transitado em julgado em 14-01-2018. c. No processo n.º 54/10.1TASAT, por acórdão de 28-06-2013, transitada em julgado a 20-11-2013, pela prática, em 21-05-2010, de um crime de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelo artigo 171.º, n.º 2, do Código Penal, na pena de 7 anos de prisão. Por decisão do TEP de 05.02.2020, com efeitos reportados a 26.12.2019, foi convertida em definitiva a liberdade condicional e declarada extinta a pena de prisão e, no entanto, em 26- 05-2021, após cumprimento dessa pena de prisão efectiva, voltou a praticar o crime de furto qualificado em que é condenado os presentes autos. Do percurso de vida do arguido, reflectido nas supra referidas condenações, resulta à saciedade que aquele tem pautado o seu comportamento por um total alheamento e indiferença relativamente às advertências contidas nas decisões proferidas, revelando-se ineficazes as penas anteriormente sofridas, pelo que as necessidades de prevenção especial são muito expressivas e, consequentemente, a condenação em pena de multa seria totalmente incapaz de assegurar todas as finalidades da punição, mormente, a prevenção especial negativa (dissuasão da prática de futuros crimes) e positiva (ressocialização do agente). Em face do exposto, opta-se pela aplicação da pena de prisão. Decorre do artigo 71º do Código Penal em conjugação com o referido art.º 40.º do mesmo diploma legal que a determinação da medida da pena, far-se-á em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. O quantum de culpa constituirá sempre o limite máximo da pena a aplicar, em nome do princípio segundo o qual, não pode haver pena sem culpa e a medida da culpa determinará a medida da pena - art.º 40º, n.º 2 Código Penal. Mais se atenderá a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele, designadamente as enunciadas no n.º 2 do referido artigo 71º. Assim sendo, em resultado daquilo que foi possível apurar em sede de audiência de julgamento, em desfavor do arguido militam as seguintes circunstâncias: - o dolo é directo, na sua modalidade mais gravosa; - o grau de ilicitude dos factos cometidos pelo arguido é mediano, atendendo ao valor do montante monetário furtado – 530,00 euros -, de significado mediano (atendendo a que se trata de crime de furto qualificado), montante esse que nunca veio a ser recuperado pelo ofendido; - a completa ausência de qualquer vislumbre de arrependimento e de consciência critica quanto ao seu comportamento; - os antecedentes criminais do arguido, supra referidos, reveladores do reiterado cometimento de crimes contra o património e ainda um crime de abuso sexual de criança. São favoráveis ao arguido as seguintes circunstâncias: - tendo 61 anos de idade, dispõe de integração familiar e profissional, trabalhando como motorista de táxi. Isto posto, considerando criticamente todas as sobreditas circunstâncias, entendemos ser adequado, justo e necessário aplicar ao arguido a pena de 1 (um) ano de prisão. Da suspensão da execução da pena de prisão: Conforme resulta do artigo 50.º do C.P, a execução da pena é suspensa se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao facto e às circunstâncias deste, se concluir por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do agente, isto é, que a simples censura do facto e a ameaça da sanção realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Deste modo, a suspensão da execução da prisão consubstancia uma pena de substituição das penas privativas de liberdade, com um particular sentido pedagógico e de ressocialização. Aqui, há uma pena que efectivamente pronunciada pelo Tribunal, não chega a ser cumprida, por se entender que a simples censura do facto e a ameaça da pena bastarão para realizar as finalidades da punição previstas no artigo 40.º do Código Penal. A suspensão de pena traduzir-se-á, pois, numa oportunidade de ressocialização, esperando-se que o condenado observe uma conduta correcta durante o período de suspensão. No caso dos autos, as necessidades elevadas de prevenção especial derivadas da circunstância do percurso criminoso do arguido, o qual, para além de ter sido condenado em penas de multa, pelo cometimento de dois crimes de furto, cumpriu uma pena de sete anos de prisão por um crime de abuso sexual de criança e, não obstante, veio a revelar-se incapaz de manter uma conduta fiel ao direito após a restituição à liberdade, persistindo na prática de um crime de furto qualificado, entende-se que não estão verificados os necessários requisitos para a suspensão da execução da pena de prisão, encontrando-se inviabilizado qualquer prognóstico favorável de que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Acresce que a completa ausência de qualquer vislumbre de arrependimento e de consciência critica quanto ao seu comportamento, leva-nos a concluir que já há muito tempo passou a oportunidade de afastar este arguido da criminalidade através da aplicação de penas de substituição e que estamos perante um caso em que se impõe o cumprimento efectivo da pena de prisão aplicada ao arguido e num estabelecimento prisional. Com efeito, o seu passado criminal e a ausência de qualquer arrependimento, leva-nos a concluir que a aplicação de qualquer outra pena de substituição não se revela adequada ao caso. (…)
Vejamos, então, na perspectiva desta Relação se merece acolhimento a pretensão do arguido recorrente.
• Da invocada insuficiência para a decisão da matéria de facto provada – vício do artigo 410º, nº 2, al. a) do CPP [muito embora cumprindo os requisitos da impugnação nos termos do disposto pelo art.º 412º desse diploma legal]:
Diz o arguido1 que o acórdão a pág. 9 considerou, a dado passo: que “na segunda situação, relativa ao dia 26 de Maio de 2021 existe uma imagem de quem conduzia o veículo matrícula ..-CZ-.., junta aos autos a fls. 168. Esclareceu a testemunha CC tratar-se do mesmo indivíduo que nas vigilâncias que efetuaram viam sempre a conduzir o veículo ..-CZ-.., tendo-o identificado como sendo o Arguido, cuja fotografia se encontra junta aos autos a fls.78, na base de dados do IMTT” (sic), quando se sabe que uma fotografia não pode levar à condenação de alguém sem que se estabeleça o nexo de causalidade entre essa pessoa e os factos, o que não acontece.
Mais diz que o arguido não foi visto a cometer o crime, não foi contactado para o referido efeito e não foi reconhecido como autor ou co autor dos factos, razão ela qual, nenhuma relação se estabelecendo entre aquela imagem e estes factos ou entre estes e o arguido recorrente, a matéria de facto provada não chega para a condenação que acabou por ser feita.
Fundamentalmente, estão em causa os seguintes factos: (…) 17. No dia 26 de Maio de 2021, cerca das 20h30, o arguido AA, acompanhado por pessoa do sexo masculino cuja identidade não se logrou apurar, dirigiu-se até ao parque de estacionamento do Auchan em .... 18. Era sua intenção, conforme plano previamente traçado entre ambos, retirar e apoderar-se de dinheiro e objectos de valor que viessem a encontrar nos veículos aí estacionados. 19. O arguido fez-se transportar na viatura de matrícula ..-CZ-.., por si conduzida, a qual estacionou, mantendo-se no seu interior de modo a observar a chegada de outros veículos. 20. Assim, o arguido logrou aperceber-se da chegada da viatura de matrícula ..-RI-.., pertencente e conduzida por BB, bem como que o respectivo condutor a pretendia estacionar numa das filas de lugares próprias para o efeito. 21. Logo o arguido dirigiu a sua viatura para o mesmo local, estacionando-a na mesma fila em que a viatura de matrícula ..-RI-.. se encontrava, com três carros de permeio, ficando a observar o comportamento do seu ocupante. 22. Depois saiu desse local e passou pela referida viatura de matrícula ..-RI-.. várias vezes, até se assegurar que o respectivo ocupante, BB, se havia ausentado e dirigido para o interior do Centro Comercial. 23. O arguido AA estacionou a sua viatura e seguiu no encalço de BB. 24. Verificando que BB iria permanecer algum tempo no referido estabelecimento, o arguido telefonou para o seu acompanhante, o qual havia ficado no parque de estacionamento, e informa-o de que agora podia dirigir-se até à viatura de matrícula ..-RI-.. e retirar bens de valor que aí se encontrassem. 25. O referido indivíduo, dirigiu-se então até junto da viatura de matrícula ..-RI-.., abriu a porta do passageiro da frente, que havia ficado destrancada, após o que abriu o porta-luvas, retirando a quantia de 530,00 euros que aí se encontrava guardada. 26. De seguida, o mesmo indivíduo dirigiu-se de novo para a viatura Honda, levando consigo a referida quantia monetária, ao mesmo tempo que telefonou para o arguido pedindo-lhe que regressasse rapidamente até junto de si, o que o mesmo fez. 27. Após, o arguido e o seu acompanhante ausentaram-se rapidamente do local levando consigo a quantia monetária retirada da viatura de matrícula ..-RI-.., a qual integraram no seu património. 28. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, em comunhão de esforços e intentos com o referido indivíduo de identidade desconhecida, com o propósito de fazer seus os referidos 530,00 euros, aos quais sabia não ter direito, tendo consciência que actuava contra a vontade do respectivo proprietário. 29. Mais sabia que a sua conduta era reprovável e punida por lei. (…)
Tendo o Tribunal a quo fundamentado esta decisão de facto do seguinte modo: (…) Relativamente aos factos ocorridos no dia 26 de Maio de 2021, valorou-se as declarações isentas e objectivas do demandante BB, que esclareceu ter estacionado a sua viatura com a matrícula ..-RI-.., no parque de estacionamento do Centro Comercial Auchan e quando regressou o veículo constatou que do seu interior tinham subtraído a quantia monetária de 530,00 euros que ali deixara, bem como esclareceu, de forma credível, as razões pelas quais tinha tal montante no interior do veiculo. Mais se valorou o depoimento da testemunha CC, militar da GNR, tendo esclarecido que após terem conhecimento da primeira denuncia por subtração de bens/valores do interior da viatura estacionada no parque de estacionamento do Centro Comercial Auchan, através das imagens da videovigilância identificaram o veículo envolvido nos furtos - matrícula ..-CZ-.., de marca Honda (cf. consulta de veículo de fls. 22 e 23) - e diligenciaram no sentido de apurar a identidade do seu utilizador habitual. Através do Seguro do veículo tomaram conhecimento da identidade do tomador do Seguro e sua residência (cf. detalhes “Segurnet” de fls. 29, sendo a morada aí indicada a mesma que o arguido indicou como sendo a sua residência, quando presto TIR, junto aos autos a fls. 261), efectuaram vigilâncias e viram em todas as situações um mesmo indivíduo, com idade superior a 50 anos, a sair do prédio, entrar no veículo e efectuar a sua condução, indo recolher um indivíduo mais jovem em Lisboa, que entrava na viatura. Nesta parte valoraram-se os relatórios de diligência externa de fls. 58 e 59 - relativa à vigilância efectuada em 21.05.2021, - de fls. 60 – relativa à vigilância efectuada em 22.05.2021 -, de fls. 67 a 70 – relativa à vigilância efectuada em 31.05.2021 -, de fls. 186 a 197 – nesta situação o veículo foi visto, pelos militares da GNR, a circular em S. Pedro do Estoril e desde logo decidiram segui-lo. Constataram que o tomador do veículo era muito mais jovem do que o indivíduo que em todas as situações conduzia o veículo e através de diligências efectuadas concluíram que o condutor do veículo era o pai do tomador do Seguro. Nesta parte mais se valorou a certidão do assento de nascimento do tomador do Seguro, junto aos autos em 15.11.2024, resultando do mesmo que o arguido é pai do tomador do Seguro (FF). Esclareceu que as duas situações ocorridas no parque de estacionamento do Centro Comercial Auchan são similares, no entanto nas imagens relativas ao dia 13 de Fevereiro de 2021, consegue-se visualizar perfeitamente o veículo de matrícula ..-CZ-.., de marca Honda, não sendo visível a matrícula da viatura KIA de matrícula ..-OX-... Não obstante, atendendo à informação prestada pela denunciante/testemunha DD quanto ao local onde estacionara o seu veículo automóvel e marca, modelo e características da viatura, conseguiram identificá-lo. Já no que que tange aos factos ocorridos no dia 26 de Maio de 2021, a matrícula dos dois veículos - ..-CZ-.. e ..-RI-.. - é perfeitamente visível. Esclareceu que os ofendidos denunciavam os factos pressupondo que tinham deixado os veículos destrancados, pois não havia danos na viatura, nem indícios de arrombamento, estando esta testemunha convicta que teriam utilizado um inibidor de sinal (aparelho electrónico que impede que a porta do veículo seja trancada quando se aciona o controlo remoto para o trancar e acionar o seu alarme), no entanto, dos autos não existe nenhuma prova concreta da utilização desse aparelho. Nas imagens da primeira situação o arguido não aparece visível (não é visível quem conduz a viatura), porém, na segunda situação, relativa ao dia 26 de Maio de 2021 existe uma imagem de quem conduzia o veículo matrícula ..-CZ-.., junta aos autos a fls. 168. Esclareceu a testemunha CC, tratar-se do mesmo indivíduo que nas vigilâncias que efectuaram viam sempre a conduzir o veículo ..-CZ-.., tendo-o identificado como sendo o arguido, cuja fotografia se encontra junta aos autos a fls. 78, na base de dados do IMTT. Cumpre dizer que a testemunha CC em julgamento foi confrontada com os autos de visionamento de imagens de fls. 42 a 56, relativas ao dia 13.02.2021 e de fls. 161 a 175, relativas ao dia 26.05.2021, as quais foram cuidadosamente analisadas em julgamento e sendo das mesmas que se retira toda a dinâmica e sequência de actos dos indivíduos que tiraram os bens do interior dos dois veículos e que se considerou provado, sempre de acordo com o juízo das regras da experiência comum neste tipo de situações. A testemunha GG, militar da GNR, prestou depoimento em termos similares ao do seu colega CC, tendo participado em duas diligências externas de vigilância ao veículo de matrícula ..-CZ-.., tendo visualizado o seu condutor. HH, funcionária da responsável de segurança do supermercado Auchan de ..., a exercer funções à data dos factos no Auchan de …, na sequência da comunicação para preservação das imagens, procedeu à sua gravação e entregou-as às autoridades. Pese embora o arguido não tenha comparecido em julgamento, do fotograma do indivíduo que conduzia o veículo automóvel matrícula ..-CZ-.. ao dia 26.05.2021 - subtração dos bens do interior do veículo matricula ..-RI-.. -, conjugado com a fotografia do arguido que se encontra junta aos autos a fls. 78, da base de dados do IMTT e as fotografias do cartão de cidadão do arguido, de fls. 211, 358, 359 e 360, conclui-se tratar-se de um indivíduo com características físicas similares às do arguido. Ademais resultou das vigilâncias efectuadas pelos militares da GNR que o arguido era o utilizador habitual do veículo matrícula ..-CZ-... Isto posto, da conjugação da prova este Tribunal formou a sua convicção no que tange à actuação do arguido nos factos ocorridos no dia 26 de Maio de 2021. (…)
Primeira constatação: à falta de declaração confessória do arguido, que nem compareceu a julgamento, o Tribunal formará a sua livre convicção (art.º 127º do Cód. Proc. Penal) de acordo com as provas que, sendo legais (arts. 124º e 125º do mesmo diploma), permitam dela extrair conclusão sobre a culpabilidade do arguido.
Que provas foram essas?
O Tribunal a quo diz: o depoimento do demandante BB que não assistiu ao crime; o depoimento da testemunha CC, militar da GNR, que também não presenciou o crime; os relatórios de diligência externa de fls. 58 e 59 - relativa à vigilância efectuada em 21.05.2021 - de fls. 60 – relativa à vigilância efectuada em 22.05.2021 -, de fls. 67 a 70 – relativa à vigilância efectuada em 31.05.2021 -, de fls. 186 a 197 – nesta situação o veículo foi visto, pelos militares da GNR, a circular em S. Pedro do Estoril e desde logo decidiram segui-lo; a certidão do assento de nascimento do tomador do Seguro, junto aos autos em 15.11.2024, resultando do mesmo que o arguido é pai do tomador do Seguro (FF); o depoimento da testemunha GG, militar da GNR, em termos similares ao do seu colega CC, tendo participado em duas diligências externas de vigilância ao veículo de matrícula ..-CZ-.., tendo visualizado o seu condutor, sem que tenha presenciado os factos; o depoimento de HH, funcionária da responsável de segurança do supermercado Auchan de ... que procedeu à gravação das imagens de videovigilância e entregou-as às autoridades e que, também ela, nada presenciou dos factos, bem como a fotografia do arguido que se encontra junta aos autos a fls. 78.
Segunda constatação e resumindo nesta parte, sem qualquer prova directa do envolvimento do arguido nos factos, o Tribunal a quo teve de procurar reconstruir, de todos estes instrumentos indirectos e fontes indirectas de conhecimento, a verdade dos factos.
Como chegou lá?
O dono do veículo RI disse que o estacionou no local identificado nos autos e o mesmo foi assaltado, tendo-lhe sido subtraídos bens; depois destes factos, a GNR investigou e tomou devida nota de que, aquando daquele cometimento, uma outra viatura teria passado pelo local, o veiculo CZ; prosseguiram a investigação por pesquisas, tendo adquirido conhecimento de que o tomador de seguro desse carro CZ era um sujeito, que o conduzia habitualmente, e a quem fizeram quatro vigilâncias; porém, dessas vigilâncias, todas, note-se, posteriores ao crime, resultou que foi apenas observada pelo OPC que o tomador do seguro que tinham identificado não era o condutor do veículo naqueles dias; pelo contrário, nesses quatro momentos de vigilância, quem conduzia o referido carro era o aqui arguido, que identificaram através de uma fotografia que se encontra no processo [esta retirada da base do IMT e compatibilizada também com as que estão ainda juntas a fls. 211, 358, 359 e 360, da base de dados da identificação civil].
Terceiro elemento: nas imagens de videovigilância [fotogramas] é visível que a viatura que circula junto ao local do assalto é o referido CZ, em cuja imagem de fls. 168 o OPC identifica o mesmo indivíduo que viu conduzir a viatura naquelas vigilâncias, ou seja, o aqui arguido.
Ora, o que o arguido diz é que, independentemente de ser sua a imagem da fotografia/fotograma que coincide com a pessoa (ele) que está também na fotografia de fls. 168, não foi visto a cometer o crime, pelo que tal fotograma não pode servir para estabelecer a autoria deste crime.
Se virmos o processo, conseguimos perceber que nada foi apreendido ao arguido, na posse do arguido, que o relacione com os factos; não havendo imagens dos factos, porque o local concreto em que estava a viatura assaltada não se encontra coberto pelas imagens constantes dos autos, a circunstância de o arguido passar pela câmara de vigilância ao volante dessa viatura não explica, só por si, o envolvimento do arguido nesses factos; ainda assim, dando de barato que a imagem que o OPC identifica é realmente do arguido, já que nenhum elemento probatório confirma esse que é um depoimento do OPC; no entanto, valendo o que vale, e é muito porque se trata de testemunha idónea e sem interesse no desfecho dos autos, é um elemento único que, apesar de tudo, apenas demonstra que, na data do assalto à referida viatura, o arguido foi visto no local a circular ao volante do CZ.
De facto, nenhum outro elemento de prova é mencionado pelo Tribunal a quo para sustentar a sua convicção de facto, pelo que se conclui que o Tribunal de julgamento formou a sua convicção com base nesse elemento de prova, uma vez que o dono da viatura a nada assistiu.
E é isso que diz claramente: (…) Relativamente aos factos ocorridos no dia 26 de Maio de 2021, valorou-se as declarações isentas e objectivas do demandante BB, que esclareceu ter estacionado a sua viatura com a matrícula ..-RI-.., no parque de estacionamento do Centro Comercial Auchan e quando regressou o veículo constatou que do seu interior tinham subtraído a quantia monetária de 530,00 euros que ali deixara, bem como esclareceu, de forma credível, as razões pelas quais tinha tal montante no interior do veiculo. Mais se valorou o depoimento da testemunha CC, militar da GNR, tendo esclarecido que após terem conhecimento da primeira denuncia por subtração de bens/valores do interior da viatura estacionada no parque de estacionamento do Centro Comercial Auchan, através das imagens da videovigilância identificaram o veículo envolvido nos furtos - matrícula ..-CZ-.., de marca Honda (cf. consulta de veículo de fls. 22 e 23) - e diligenciaram no sentido de apurar a identidade do seu utilizador habitual. Através do Seguro do veículo tomaram conhecimento da identidade do tomador do Seguro e sua residência (cf. detalhes “Segurnet” de fls. 29, sendo a morada aí indicada a mesma que o arguido indicou como sendo a sua residência, quando presto TIR, junto aos autos a fls. 261), efectuaram vigilâncias e viram em todas as situações um mesmo indivíduo, com idade superior a 50 anos, a sair do prédio, entrar no veículo e efectuar a sua condução, indo recolher um indivíduo mais jovem em Lisboa, que entrava na viatura. Nesta parte valoraram-se os relatórios de diligência externa de fls. 58 e 59 - relativa à vigilância efectuada em 21.05.2021, - de fls. 60 – relativa à vigilância efectuada em 22.05.2021 -, de fls. 67 a 70 – relativa à vigilância efectuada em 31.05.2021 -, de fls. 186 a 197 – nesta situação o veículo foi visto, pelos militares da GNR, a circular em S. Pedro do Estoril e desde logo decidiram segui-lo. Constataram que o tomador do veículo era muito mais jovem do que o indivíduo que em todas as situações conduzia o veículo e através de diligências efectuadas concluíram que o condutor do veículo era o pai do tomador do Seguro. Nesta parte mais se valorou a certidão do assento de nascimento do tomador do Seguro, junto aos autos em 15.11.2024, resultando do mesmo que o arguido é pai do tomador do Seguro (FF). Esclareceu que as duas situações ocorridas no parque de estacionamento do Centro Comercial Auchan são similares, no entanto nas imagens relativas ao dia 13 de Fevereiro de 2021, consegue-se visualizar perfeitamente o veículo de matrícula ..-CZ-.., de marca Honda, não sendo visível a matrícula da viatura KIA de matrícula ..-OX-... Não obstante, atendendo à informação prestada pela denunciante/testemunha DD quanto ao local onde estacionara o seu veículo automóvel e marca, modelo e características da viatura, conseguiram identificá-lo. (…)
Qual é a reserva que esta fundamentação suscita?
Precisamente aquela que o arguido sumariza dizendo faltar a prova do nexo de imputação do facto ao agente.
Ou seja, ainda que se possa conceder em que o arguido esteve naquele local, naquela circunstância, conduzindo o veículo referido CZ, que elemento permite ligar o assalto ao arguido?
Não se diga que é apenas esse, pois que esse não chega.
Basta pensar na quantidade de possibilidades que esta conjugação nomeada pelo Tribunal recorrido deixa em aberto para se perceber que isso não basta: e se o arguido foi buscar a pessoa que assaltou efectivamente o carro? E se o arguido, indo buscar essa pessoa ao local, não sabia do assalto? E se o arguido, indo ao local, teve o azar dos diabos de não ter sido ele efectivamente a assaltar a viatura, sendo, porém, ele o visionado [se é que era, porque isso não é também certo]? E se o arguido, muito embora estando ali com intenção de assaltar o carro, chegou lá e alguém já o tinha feito antes dele? Ou decidiu então não o fazer e foi embora e, por coincidência, alguém o fez depois disso?
Muito embora algumas destas possibilidades possam parecer inverosímeis neste contexto, o facto é que o Tribunal a quo deixou um hiato demasiado grande entre o facto objectivo e a sua autoria para se preencher com a fundamentação por que optou.
Não seria ilegal estabelecer factos com recurso a presunção. No entanto, a presunção deve integrar ainda o silogismo judiciário e não assentar em elementos desconexos ou em circunstâncias que apareçam avulsas no contexto circunstancial.
Esclarecendo.
Era lícito ao Tribunal de julgamento, por exemplo, decidir que o arguido era o autor do furto se, havendo prova para isso, estabelecesse o seguinte raciocínio: do local onde estava o carro assaltado, sem vigilância, as câmaras só mostram o acesso do CZ que o arguido conduzia; o assalto aconteceu, pois, entre o momento em que o dono estacionou o RI e o momento em que ali voltou, sendo que nenhuma outra viatura ou pessoa ali passou no entretanto, à excepção, precisamente, do CZ.
A autoria dos factos estava estabelecida, pois que ainda que fosse alguém que o arguido levasse escondido na bagageira do CZ, por exemplo, ele seria sempre co-autor.
Ainda assim, e para além da clareza com que esses elementos teriam de resultar do julgamento [não da prova no processo, mas da sua efectiva ponderação para efeitos de decisão], tinha de resultar da fundamentação de facto que o Tribunal presumiu o que podia presumir e porque razão o fez.
Neste caso, porém, salta-se da circunstância de o OPC dizer que a pessoa que se viu perto do local do assalto é semelhante ao arguido, porque o conhece de fotografia pelo registo do IMT e porque o viu em quatro vigilâncias posteriores, para o estabelecimento da verdade processual que conclui ser ele o autor dos factos.
E onde ficam as possibilidades todas que acima vimos?
Nenhuma delas se mostra afastada pela fundamentação do Tribunal a quo, o que significa, a ser assim, que a fundamentação de facto da decisão recorrida não é suficiente, como se compreende (conclusão a que o arguido chega e invoca).
Tanto mais quando, não estado a falar-se de um parque privado com acesso controlado, pelo menos quanto ao número dos frequentadores, está em causa o parque de estacionamento de um estabelecimento de hipermercado (Auchan) em …, com todas as decorrências em termos de número de frequentadores que daí decorram.
Por via das limitações que decorrem da fundamentação com que o Tribunal a quo garantiu a sustentação da sua decisão de facto, e porque a natureza da impugnação o permite, fomos aqui ouvir a prova.
Dois depoimentos fundamentais para a decisão, tal como o Tribunal recorrido conclui: os militares da GNR CC e GG.
O segundo diz logo no início que foi mais o seu colega [CC] quem esteve com a investigação do que o próprio.
E ambos descrevem o modo como chegaram ao arguido como autor deste furto: viram o CZ no parque de estacionamento do referido Auchan pelas imagens de videovigilância; viram a matrícula, pesquisaram, deram com o nome do tomador de seguro que perceberam ser jovem; fizeram quatro vigilâncias à morada/viatura desse indivíduo e viram, dessas quatro vezes, um outro indivíduo mais velho a conduzir a mesma; este, ia buscar o mais novo à zona da Praça do Chile; chegando o OPC à conclusão, pela foto do registo da carta de condução do IMT que a foto do arguido apresentava semelhanças com a imagem da pessoa que conduzia nessas alturas a referida viatura.
Isto dizem em comum estas testemunhas, sem prejuízo de a primeira ter sido a única delas a estar completamente dedicada à recolha desses elementos.
Mais diz a primeira, a que teria estado mais directamente envolvida na investigação, que só viram as imagens do referido dia (do assalto em 26 de Maio) respeitantes ao exterior do Auchan em que (não se vendo qualquer pessoa a assaltar a viatura que, aliás, nem sabem como foi aberta, desconfiado do uso de um inibidor de sinal) não se consegue identificar quem conduz a viatura em causa (CZ), parecendo mesmo que quem entra no centro comercial é o mais velho, portanto, supostamente o aqui arguido, mas não puderam confirmar isto porque o Auchan já não tinha preservadas as imagens do interior do centro comercial para confirmarem quem ali entrou. Ou seja, se quem entrou no Auchan estava a vigiar o dono da viatura assaltada, e este era o arguido, ou alguém semelhante a ele, quem e quando exactamente assaltou a viatura do ofendido?
Ora, o arguido é identificado pela testemunha CC porque tem características físicas semelhantes – idade, estatura e sendo meio calvo, sendo certo que não sabe dizer sequer a concreta cor de cabelo do mesmo -, e se aproximam das da pessoa que viram conduzir o CZ também nas quatro vigilâncias (sendo que em pelo menos duas delas perderam a viatura durante o seguimento), características essas compatíveis, ainda, com as da pessoa que está retratada na referida foto [do arguido] no IMT já que, como sabemos, o arguido foi julgado na ausência e não há reconhecimentos feitos.
Atente-se.
O nosso processo penal é orientado no sentido decorrente do chamado princípio da culpa, segundo o qual não haverá condenação por crime sem que esteja estabelecida a culpa do seu agente.
Isto, ao contrário do que pode intuir-se ser um simples princípio de abstracção e estudo, constitui, no entanto, o mais exigente dos princípios do direito penal, uma vez que dele dependem quase todos os restantes: só há culpa se, perante um julgamento leal e perante a demonstração através da prova permitida e recolhida de forma lícita, para além de qualquer dívida, se apurar que o agente agiu com dolo ou, nos casos em que releve, com negligência, pois que só assim o Tribunal pode impor uma sanção adequada, pacificar a comunidade e impor ao caso o efeito de julgado.
Conseguem contar-se os princípios ínsitos no que acaba de se dizer? Serão, porventura, quase todos os do direito e do processo penal.
E a importância disto não tem só que ver com a certeza e segurança do direito e com as implicações do caso julgado, já por si de extrema importância.
Estes são, de facto, os princípios estruturantes de um Estado de direito democrático.
Não pode haver hesitações a este respeito.
Não pode haver maior ou menor probabilidade de culpa.
Não pode haver relativismos quanto ao estabelecimento da culpa penal.
A culpa, ou é decorrente dos factos sem dúvidas ou, na dúvida, tem de se decidir a favor da absolvição do arguido.
E, com o devido respeito, nada na prova relativa às circunstâncias de 21 de Maio é escorreito e claro, permitindo uma decisão sobre a culpabilidade do arguido que possa dizer-se ser certa e segura.
Não há como transigir neste aspecto fundamental.
Entre uma quase verdade provada (ainda que verdadeira de facto) e uma inverdade a distância é curta e cheia de possíveis cambiantes. Pelo que só nos serve uma verdade inteira, inequívoca, que possa – e só assim pode – afirmar a decisão de culpabilidade com a robustez da legalidade com que deve ser proferida uma decisão que condene o agente, e para que seja essa decisão credível e aceite pelos destinatários dela, pois que só assim se realiza o fim da Justiça.
Menos do que isto não serve a nobreza de uma decisão judiciária criminal.
Ao transigir-se nestes princípios fundamentais está a aceitar-se a aleatoriedade como princípio de entendimento. E isso é absolutamente inadmissível.
A Justiça não se pode realizar a qualquer custo. Por isso, é mais justo deixar em liberdade um culpado [contra quem a prova não se afirmou com suficiente força em julgamento] do que punir um inocente [porque a prova se julgou menos bem ou teve na sua base vícios que corromperam a sua natureza].
Neste processo - e aceitando-se embora o esforço enorme que os OPC fazem na investigação, quase sempre sem adequados meios sobretudo humanos, aceitando que é absolutamente difícil para um cidadão comum ver-se prejudicado na sua vida por meliantes que praticam actos criminosos sem que lhe venha uma satisfação adequada na maioria das vezes também das instituições que os devem proteger e guardar -, o que temos são diversas circunstâncias sobre as quais se mostra aparente uma história que, no entanto, se fez de fragmentos dispersos, opostos e incongruentes.
Temos conjecturas e não certezas.
Um arguido identificado por fotograma que nem sequer mostra relação com qualquer acto ilegal por referência a uma foto do IMT [não há qualquer imagem de actos relacionados com o furto em que esteja o arguido ou, ainda que concedendo onde não pode conceder-se, mesmo alguém parecido com o mesmo], e por comparação a quatro vigilâncias de datas posteriores aos factos que se julgam [sem que se estabeleça rigorosamente sequer que a pessoa que se viu nas vigilâncias é, de facto, a mesma que se viu no parque de estacionamento do hipermercado]. Um arguido que nem sequer foi ouvido [porque julgado na ausência] e nem ninguém tem a certeza de ser a pessoa que conduziu sequer o carro que se presume ter estado envolvido no assalto e que, em rigor, não se sabe bem como foi feito.
Como se compreende, não chega para se estabelecer a tal relação do arguido com os factos ou, simplificando, a culpa do arguido que possa levar à sua condenação.
Em rigor, o que o Tribunal a quo apurou, apesar de todo o seu esforço, que é evidente na gravação, e em concreto, foi que na referida data foi assaltado um carro que estava estacionado no parque público de acesso ao centro comercial Auchan de … e o que foi subtraído.
O resto, são possibilidades, dúvidas que a prova não veio esclarecer.
Como tal, de acordo com a prova produzida em julgamento, a factualidade aqui impugnada pelo arguido devia ter sido dada como não provada por dúvidas quanto a si, aplicando-se, nessa decorrência, o princípio in dubio pro reo.
Posto que assim seja,
Em face da prova produzida em audiência, que importa aqui ponderar nos termos atrás expressos, impõe-se reconfigurar os factos provados e não provados na parte posta em crise neste recurso.
O que se faz nos seguintes termos, passando os factos provados a configurar-se do seguinte modo:
[factos provados que se mantêm porque não impugnados neste recurso]
1. Por volta das 16h30 do dia 13 de Fevereiro de 2021, dois indivíduos do sexo masculino cuja identidade não foi possível apurar, dirigiram-se até ao parque de estacionamento do Centro Comercial Auchan, situado na Rua ..., ..., fazendo-se transportar na viatura de matrícula ..-CZ-.., de marca Honda.
2. Era sua intenção, conforme plano previamente traçado entre ambos, retirar e apoderar-se de dinheiro e objectos de valor que viessem a encontrar nos veículos aí estacionados.
3. Com esse objectivo, um dos indivíduos cuja identidade não se logrou apurar estacionou a viatura num local distante da entrada do estabelecimento, de modo a não ser visualizado pelas câmaras de videovigilância, saiu da mesma e passou a deambular pelo parque de estacionamento em busca de uma oportunidade para poder concretizar as suas intenções.
4. Por seu turno, um dos outros indivíduos cuja identidade não se logrou apurar deslocou-se para o interior do estabelecimento, levando consigo um telemóvel a fim de receber instruções.
5. Ao deambular pelo parque de estacionamento, um dos indivíduos cuja identidade não se logrou apurar apercebeu-se da chegada da viatura KIA de matrícula ..-OX-.., pertencente a DD.
6. Assim sendo, esse indivíduo cuja identidade não se logrou apurar deslocou-se até junto do local onde esta última viatura foi estacionada, e ficou a observar os seus ocupantes a saírem da mesma e a abrirem as portas e a bagageira.
7. De igual modo, verificou que DD havia colocado uma mochila no interior da bagageira.
8. Desse modo, o indivíduo cuja identidade não se logrou apurar, verificou que no interior desta viatura se encontravam objectos de valor dos quais se poderia apoderar.
9. Após, o indivíduo cuja identidade não se logrou apurar seguiu os ocupantes da viatura até à entrada do Centro Comercial, de modo assegurar-se de que efectivamente os mesmos aí iriam permanecer durante algum tempo.
10. Além disso, telefonicamente, solicitou ao seu acompanhante de identidade desconhecida que ficasse a observar as referidas pessoas e que o avisasse se as mesmas viessem, entretanto, a deslocar-se novamente para junto do Kia.
11. De seguida dirigiu-se até junto do Kia e, de modo não concretamente apurado, abriu a porta traseira do lado esquerdo, após o que rebateu o banco e retirou a mochila que se encontrava na bagageira.
12. Do interior da mochila, indivíduo cuja identidade não se logrou apurar retirou:
- 1 computador da marca Lenovo, avaliado no valor de cerca de 400,00 euros;
- 1 nota de 5,00 euros;
- 1 cabo de ligação do computador, um rato de computador e 1 modem, tudo no valor total de cerca de 32,00 euros;
13. Do interior do porta-luvas, o indivíduo cuja identidade não se logrou apurar retirou 1 telemóvel Samsung J+, cujo valor não se logrou apurar.
14. De seguida, o indivíduo cuja identidade não se logrou apurar dirigiu-se de novo para a viatura Honda, levando consigo os referidos bens ao mesmo tempo que telefonicamente solicitou ao seu acompanhante de que o regressasse rapidamente até junto de si, o que o mesmo fez.
15. Após, o indivíduo cuja identidade não se logrou apurar e o seu acompanhante ausentaram-se rapidamente do local levando consigo os objectos retirados da viatura de DD, os quais integraram no seu património, bem sabendo que agiam contra a vontade dos seus donos e que a sua conduta era proibida e punida por lei.
16. Os bens mencionados em 12, com excepção da nota de 5 euros, apesar de se encontrarem na posse de DD, eram propriedade do Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM).
[factos provados decorrentes da impugnação feita neste recurso]
17. No dia 26 de Maio de 2021, cerca das 20h30, indivíduos cuja identidade se não apurou em concreto, dirigiram-se até ao parque de estacionamento do Auchan em ....
18. Com intenção de retirarem e apoderar-se de dinheiro e objectos de valor que viessem a encontrar em veículos aí estacionados.
19. Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, circulou no local a viatura de matrícula ..-CZ-.., conduzida por pessoa cuja identidade se não apurou em concreto, a qual estacionou, mantendo-se um ocupante no seu interior.
20. Tal indivíduo ter-se-á apercebido da chegada da viatura de matrícula ..-RI-.., pertencente e conduzida por BB ao local.
21. Tendo o referido BB entrado no Centro Comercial, um dos indivíduos que ocupavam a viatura CZ entrou também naquele complexo comercial, ficando outro dentro da viatura que estava estacionada.
[mantendo-se a restante factualidade provada também aqui não impugnada]
(…)
E passa a matéria de facto não provada a ter-se do seguinte modo:
[a que já assim constava]
1. Que o arguido tenha tido qualquer intervenção ou participação na factualidade provada relativa ao dia 13.02.2021.
2. Que o computador da marca Lenovo tinha o valor de 1.000,00 euros.
3. Que o cabo de ligação do computador, o rato de computador e o modem, tinham o valor total de 55,00 euros.
4. Que tenha sido em consequência de qualquer comportamento do arguido que o Instituto Nacional de Emergência Médica, I.P. teve prejuízo patrimonial com a subtração do computador da marca Lenovo e com o cabo de ligação do computador, o rato de computador e o modem.
[e a que decorre da fundamentação supra e desta decisão]
5. No dia 26 de Maio de 2021, cerca das 20h30, o arguido AA, acompanhado por pessoa do sexo masculino cuja identidade não se logrou apurar, dirigiu-se, ou não, até ao parque de estacionamento do Auchan em ....
6. Era sua intenção, ou não, e conforme plano previamente traçado entre ele e o acompanhante, retirar e apoderar-se de dinheiro e objectos de valor que viessem a encontrar nos veículos aí estacionados.
7. O arguido fez-se, ou não, transportar na viatura de matrícula ..-CZ-.., por si conduzida, a qual estacionou, mantendo-se no seu interior de modo a observar a chegada de outros veículos.
8. O arguido logrou, ou não, aperceber-se da chegada da viatura de matrícula ..-RI-.., pertencente e conduzida por BB, bem como que o respectivo condutor a pretendia estacionar numa das filas de lugares próprias para o efeito.
9. O arguido dirigiu, ou não, a sua viatura para o mesmo local, estacionando-a na mesma fila em que a viatura de matrícula ..-RI-.. se encontrava, com três carros de permeio, ficando, ou não, a observar o comportamento do seu ocupante.
10. Depois, o arguido saiu, ou não, desse local e passou pela referida viatura de matrícula ..-RI-.. várias vezes, até se assegurar que o respectivo ocupante, BB, se havia ausentado e dirigido para o interior do Centro Comercial.
11. O arguido AA estacionou, ou não, a sua viatura e seguiu no encalço de BB.
12. Verificando que BB iria permanecer algum tempo no referido estabelecimento, o arguido telefonou para o seu acompanhante, o qual havia ficado no parque de estacionamento, e informa-o de que agora podia dirigir-se até à viatura de matrícula ..-RI-.. e retirar bens de valor que aí se encontrassem.
13. O referido indivíduo, dirigiu-se, ou não, até junto da viatura de matrícula ..-RI-.., abriu a porta do passageiro da frente, que havia ficado destrancada, ou não, após o que abriu o porta-luvas, retirando a quantia de 530,00 euros que aí se encontrava guardada.
14. De seguida, o mesmo indivíduo dirigiu-se, ou não, de novo para a viatura Honda, levando consigo a referida quantia monetária, ao mesmo tempo que telefonou para o arguido pedindo-lhe que regressasse rapidamente até junto de si, o que o mesmo fez.
15. Após, o arguido e o seu acompanhante ausentaram-se, ou não, rapidamente do local levando consigo a quantia monetária retirada da viatura de matrícula ..-RI-.., a qual integraram, ou não, no seu património.
16. O arguido agiu, ou não, livre, deliberada e conscientemente, em comunhão de esforços e intentos com o referido indivíduo de identidade desconhecida, com o propósito de fazer seus os referidos 530,00 euros, aos quais sabia não ter direito, tendo consciência que actuava contra a vontade do respectivo proprietário.
30. Mais sabia que a sua conduta era reprovável e punida por lei.
A fundamentação da decisão de facto, na parte não impugnada neste recurso mantém-se como no acórdão recorrido em tudo que não seja contrariado pelo que antecede, sendo que na parte impugnada será a que se deixou supra.
Atento a que eram estes os factos que levaram à única condenação do arguido pelo crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203º, nº 1 e 204º, nº 1, al. b) do Cód. Penal, por cujo cometimento foi condenado no acórdão recorrido na pena de 1 (um) ano de prisão, e tendo em conta a procedência do recurso na parte antecedente, impõe-se concluir três outras coisas:
Primeira, que a alteração da matéria de facto aqui feita por aplicação do princípio in dubio pro reo impõe a consequente decisão de absolvição, em iguais termos e fundamentos, do arguido quanto ao crime por que havia sido condenado na decisão recorrida, pois que os factos provados não permitem integrar, objectiva ou subjectivamente, o referido tipo de crime.
Segunda, que fica prejudicado o conhecimento das restantes questões trazidas a recurso.
Terceira, que falecendo o estabelecimento da responsabilidade por acto criminalmente relevante, soçobra também a condenação no pedido de indemnização que dependia da condenação do arguido pela prática do crime e em que é demandante BB.
O que terá os competentes reflexos nas custas do processo.
Pelo exposto, importa dar provimento ao recurso interposto pelo arguido, daí retirando as respectivas consequências na parte cível e de custas, procedendo este Tribunal à alteração da matéria de facto nos termos acima expostos, para que, sem reserva, se remete.
Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente o recurso interposto por AA, alterando-se a matéria de facto provada e não provada nos termos acima expostos, para que integralmente se remete, e que importa a absolvição do arguido quanto ao crime por que foi condenado em primeira instância, bem como quanto ao pedido de indemnização deduzido pelo respectivo ofendido/demandante, mantendo-se a decisão recorrida no restante que se não oponha ao que antecede.
Sem custas criminais (art.º 513º, nº 1 do Cód. Proc. Penal).
Custas cíveis pelo decaimento no pedido a cargo do demandante BB, fixando a taxa de justiça no mínimo e sem prejuízo da isenção de pagamento de que possa beneficiar.
Notifique.
Lisboa, 21 de Maio de 2025
Texto processado e revisto.
Redacção sem adesão ao AO
Hermengarda do Valle-Frias
Ana Paula Grandvaux – vencida na deliberação - declaração de voto que segue.
Rosa Vasconcelos
Voto vencida, pelas seguintes razões que passo a explicitar:
Foi interposto recurso pelo arguido AA, relativamente à decisão da 1ª instância, que o condenou pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelo artigo 203º, nº 1 e artigo 204º, nº 1, al. b), do Código Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão e julgou procedente o pedido pedido de indemnização civil formulado por BB e, em consequência, condenou o arguido/demandado no pagamento ao demandante da quantia de € 530,00, acrescida de juros de mora à taxa legal a contar desde 25.06.2021, até integral pagamento.
No Acórdão proferido por esta Relação nestes autos, em apreciação desse recurso – onde a signatária intervém na qualidade de 1ª Adjunta -, foi decidido julgar provido o recurso do arguido na acção penal e absolver o mesmo, em nome do princípio in dubio pro reo, da prática do crime de furto qualificado pelo qual vinha condenado e julgar improcedente o pedido cível deduzido pelo ofendido BB, absolvendo o arguido desse mesmo pedido e condenando o demandante nas custas cíveis. A signatária concorda com a decisão de absolvição do arguido na acção criminal, em nome do princípio in dubio pro reo, nos termos constantes do referido Acórdão, mas já não se concorda, com a decisão que julgou improcedente o pedido de indemnização cível formulado pelo ofendido, absolvendo o demandado do pedido cível formulado e condenando o demandante nas custas cíveis, sendo que a nossa posição não foi aceite pelos restantes membros do Colectivo, dando assim azo ao presente voto de vencida.
Em nosso entendimento e salvo o devido respeito pelo entendimento contrário, que foi aquele que vingou maioritariamente nos presentes autos, não se pode confundir uma apreciação de mérito, isto é, a apreciação do pedido cível formulado pelo ofendido, que implica analisar se ficaram provados os respectivos pressupostos (existência comprovada de uma acção ilícita praticada pelo agente, de um dano sofrido pelo ofendido e de um nexo de imputação causal entre o facto ilícito e o dano sofrido), com uma decisão que afecta apenas a instância cível e seria aquela que deveria ser proferida nos presentes autos.
Ora nos presentes autos, a decisão a proferir na acção cível, nunca poderia ser a de absolvição do arguido/demandadodo pedido cível formulado pelo ofendido, porque o Tribunal não pode apreciar/resolver a pretensão do demandante de ser ressarcido civilmente dos danos causados na sequência do crime imputado ao arguido, na medida em que tal apreciação/resolução, se tornou supervenientemente impossível. E tornou-se supervenientemente impossível, porque logo que o arguido/demandado é absolvido da prática do crime objecto destes autos, cessa a causa que pode fundar a dedução pelo ofendido (directamente lesionado pela prática de um crime), de um pedido cível no processo crime, uma vez que como é sabido, o pedido de indemnização cível, enxertado no processo penal, apenas pode ser formulado com base na prática de um crime (princípio da adesão consagrado no art.º 71º do CPP).
Deste modo, no Acórdão agora em apreciação, proferido em sede de recurso, em nosso entender, na sequência da decisão de absolvição in dubio do arguido na acção crime, o que se deveria ter decidido no âmbito da acção cível, seria uma absolvição da instância do demandado, por impossibilidade superveniente da lide (art.º 277º e) do CPC aplicável ex vi do art.º 4º do CPP).
Essa decisão, que tem a ver apenas com uma cessação da instância cível (em que não há, portanto, qualquer apreciação/julgamento de mérito, relativamente ao pedido formulado pelo ofendido/demandante), é completamente distinta de uma decisão de improcedência e consequente absolvição do pedido cível, que por maioria, ficou consignada no Acórdão.
A decisão de improcedência do pedido cível e consequente absolvição do arguido/demandado, tem necessariamente por base uma apreciação/julgamento dos pressupostos do pedido cível formulado pelo ofendido nos autos e nessa medida, é a nosso ver contraditória com o decidido relativamente à absolvição in dubio do arguido na acção criminal.
Existe assim quanto a nós, e salvo o devido respeito por entendimento diverso, uma evidente contradição no Acórdão da Relação aqui em apreciação, porquanto resulta da decisão de absolvição in dubio do arguido, quanto à prática do imputado crime de furto, ficar inviabilizada/impossibilitada a apreciação pelo Tribunal relativamente ao mérito do pedido cível formulado pelo ofendido, BB - isto é, o Tribunal deixa de poder apreciar, se ficaram provados ou não uma acção lícita e culposa e um nexo de imputação do facto ilícito ao agente, que são os pressupostos em que assentou a formulação desse mesmo pedido, pelo que nunca poderá emitir decisão de absolvição do arguido do pedido cível.
Acresce ainda, que a decisão deabsolvição do demandado da instância cível, por impossibilidade superveniente da lide neste processo crime, não importaria a condenação do ofendido/demandante em quaisquer custas na acção cível e por outro lado, não obstaria a que no futuro, o mesmo pudesse vir a demandar o causador dos alegados danos (aqui arguido), numa acção cível autónoma, se assim o entendesse (art.º 279º/1 do CPC).
Ana Paula Grandvaux
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1. O destaque é nosso.