I – A cláusula penal pode ser objeto de um duplo controlo: através do instituto do abuso do direito (artigo 334.º do Código Civil) que incide sobre a legitimidade do exercício do direito de a invocar, ou através do artigo 812.º do Código Civil, que consagrando um princípio de proporcionalidade ou de equilíbrio, impede cláusulas penais manifestamente excessivas.
II - A redução da cláusula penal deve obedecer a critérios de equidade, à natureza e finalidade do negócio, ao fim visado pela cláusula penal, à gravidade do incumprimento, aos interesses das partes e à sua situação económica, ao grau de culpa das partes, etc
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
I – Relatório
1. C..., Unipessoal, Lda.., com sede na Rua ..., ..., veio intentar a presente ação declarativa com processo comum contra A.N.S. Construções, Lda., com sede na Rua ..., pedindo que a Ré seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 88.962,28, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 8%, desde a data de vencimento das faturas em causa e sobre o respetivo capital, até efetivo e integral cumprimento.
Alegou para o efeito, em síntese, que se dedica à prestação de serviços na área da construção civil e que a Ré se dedica a construções, promoções e venda de empreendimentos.
No exercício das respetivas atividades comerciais, forneceu à Ré, a pedido desta, vários serviços de construção civil de trolharia, com matéria prima, incluída no prédio a esta pertencente, constituído por 10 frações, sito na Rua ..., na freguesia de ..., concelho de ....
Para além dos trabalhos descritos na memória descritiva, prestou, ainda, a pedido da Ré, outros trabalhos de menor monta, cuja necessidade se foi revelando ao longo da realização da obra e que melhor se encontram descriminados na segunda parte da fatura n.º 29 de 20.09.2022, e ascenderam ao valor de € 16.836,25.
A prestação dos aludidos serviços ocorreu entre maio de 2020 e maio de 2022 e o seu custo total ascendeu a €279.280,41, conforme melhor decorre do extrato de conta corrente emitido, aduzindo ainda que todos os trabalhos realizados pela A. foram fiscalizados pela Ré, através da empresa M..., Lda., por esta contratada para o efeito.
Após os trabalhos efetuados emitiu a fatura n.º ...7, de 31.12.2021, no valor de € 61.500,00, e a fatura n.º 29, de 20/09/2022, no valor de € 49.699,29, correspondente ao remanescente dos trabalhos referidos na memória descritiva junta como documento n.º 1 e aos trabalhos extraordinários que no decurso da obra lhe foram solicitados pela Ré, não tendo esta procedido ao pagamento de nenhuma daquelas faturas, encontrando-se atualmente em dívida € 88.962,28.
2. Notificada a Ré veio apresentar contestação com reconvenção, alegando em suma, a existência de várias vicissitudes na execução do contrato pela Autora, com demora na conclusão dos trabalhos e desconformidades entre a obra feita e em relação ao acordado ou às qualidades exigíveis para os trabalhos, de acordo com as regras técnicas e a função da mesma; interpelou a Autora para proceder à reparação dos defeitos e para concluir a obra, invocando vários danos sofridos por causa do atraso na conclusão da obra.
Termina pedindo a improcedência da ação e que seja declarado extinto por compensação o crédito da Autora, com todas as legais consequências; e bem assim que seja julgado procedente o pedido reconvencional deduzido pela Ré/reconvinte contra a Autora/reconvinda e em consequência:
a) Ser a Autora/reconvinda condenada a pagar à Ré/reconvinte a quantia de 119.500 €, acrescidos de juros legais, deduzindo-se o valor do crédito compensado da Autora;
b) Ser a Autora/reconvinda condenada a reparar os defeitos que subsistem na cobertura e nas varandas do prédio.
A Ré veio desistir do pedido reconvencional formulado em b) acima transcrito, desistência devidamente homologada por sentença.
A Autora veio apresentar réplica, pugnando pela improcedência da reconvenção e a sua consequente absolvição do pedido.
Teve lugar a audiência de julgamento que decorreu com observância das formalidades legais.
1. A final foi proferida decisão do seguinte teor:
«Julgo a presente acção e reconvenção parcialmente procedentes, por provadas, e em consequência:
- Condeno a R. no pedido formulado pela A., ou seja, condeno a R. a pagar à A. a quantia de € 88.962,28 ( oitenta e oito mil novecentos e sessenta e dois euros e vinte e oito cêntimos), sendo que a esta quantia deve ser deduzido o valor de € 88.962,28 (oitenta e oito mil novecentos e sessenta e dois euros e vinte e oito cêntimos), por força de operar compensação de créditos, por procedência parcial da reconvenção apresentada, absolvendo-se as partes do demais peticionado».
2. Não se conformando com o assim decidido veio a Autora recorrer para o Tribunal da Relação, que decidiu, após eliminação do facto provado n.º 46, paralisar o direito da ré a exigir a cláusula penal acordada, por tal consistir num abuso do direito nos termos do artigo 334.º do Código Civil:
«Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente e, consequentemente, revogando a decisão recorrida absolve-se a autora/apelante do pedido reconvencional que contra ela a ré/apelada havia formulado.
3. A.N.S. Construções, Lda, ré nos presentes autos, não se conformando com o acórdão do Tribunal da Relação, veio interpor Recurso de Revista, para o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 671.º, n.º 1 do CPC, subindo nos próprios autos, com efeito devolutivo, nos termos dos artigos 675.º, nº 1 e 676.º, n.º 1, ambos do CPC, formulando conclusões, que aqui se consideram integralmente transcritas, as quais termina, peticionando que o presente recurso seja julgado totalmente procedente, seja revogado o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto e «substituído por decisão que condene a aqui recorrida/autora nos termos em que foi condenada em primeira instância, sendo a sentença proferida em primeira instância repristinada, por ser da mais inteira JUSTIÇA».
4. A Autora, C..., Unipessoal, Lda.., apresentou contra-alegações, em que pugna pela manutenção do decidido, e, subsidiariamente, caso o presente recurso de revista venha a merecer provimento, seja apreciada, nos termos do disposto no artigo 636º, n.º 1 do CPC, a questão referente à redução por equidade da cláusula penal, pugnando a autora para que caso se considere válida a cláusula penal invocada pela ré, a mesma, para ser justa e equitativa, seja reduzida a 10% do montante de €88.962,28 fixado pelo tribunal de 1.ª instância.
5. Sabido que, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso, a questão a decidir é a de saber se o exercício do direito da Recorrente de acionar a clausula penal é abusivo, nos termos do artigo 334.º do Código Civil, e, em caso de resposta negativa a esta questão, saber se a cláusula penal deve ser reduzida, conforme alegado em sede de ampliação de objeto de recurso.
II -Fundamentação
A) É a seguinte a matéria de facto que o tribunal recorrido deu como provada:
1. A autora dedica-se à prestação de serviços na área da construção civil.
2. A ré, inicialmente designada por Construções Ribpais, Lda., dedica-se a construções, promoções e venda de empreendimentos.
3. No exercício das respetivas atividades comerciais, a autora forneceu à ré, a pedido desta, vários serviços de construção civil de trolharia, com matéria prima incluída, melhor descriminados no orçamento (junto como documento n.º 1 e que se dá por integralmente reproduzido), no prédio a esta pertencente, constituído por 10 frações, sito na Rua ..., na freguesia de ..., concelho de ....
4. Para além dos trabalhos descritos no suprarreferido orçamento, a autora prestou, ainda, a pedido da ré, outros trabalhos que não foram inicialmente previstos e melhor se encontram descriminados na segunda parte da fatura n.º 29 de 20.09.2022.
5. A prestação dos aludidos serviços ocorreu entre maio de 2020 e dezembro de 2021 e o seu custo total ascendeu a €279.280,41, (cf. extrato de conta corrente emitido pela autora, junto como documento n.º 2 e se dá como integralmente reproduzidos).
6. Todos os trabalhos realizados pela autora foram fiscalizados pela ré, através da empresa M..., Lda., por esta contratada para o efeito.
7. À medida que ia realizando os trabalhos e adquirindo a respetiva matéria prima para o efeito, a autora lavrava um auto de medição, com a descriminação dos serviços prestados até então, o qual enviava à entidade fiscalizadora para aprovação, a qual, por sua vez, instruía a ré sobre o respetivo pagamento, sendo emitida, para o efeito, a respetiva fatura.
8. À medida que iam sendo realizados os trabalhos orçamentados, a autora enviava à entidade fiscalizadora da obra–M..., Lda., o respetivo auto de medição;
9. Assim aconteceu com os autos de medição 1 a 8 (juntos como documento n.º 3 e que se dão como integralmente reproduzidos).
10. Conforme melhor resulta dos Autos de Medição, em cada auto de medição encontram-se previstos, além dos trabalhos orçamentados, outros pequenos trabalhos, mormente de apoio às diferentes empreitadas, não previstos no orçamento e que iam sendo realizados pela autora, cujo custo era apresentado para aprovação da ré.
11. Conforme auto de medição n.º 2, verifica-se que os trabalhos incluídos no orçamento aparecem discriminados numa parte e os trabalhos de pequena monta, prestados, designadamente, para apoio a outras artes e não incluídos no orçamento inicial, mas realizados no período correspondente a cada auto, aprecem referidos infra.
12. Razão pela qual, o valor total das faturas emitidas é ligeiramente superior ao valor do orçamento.
13. A ré comunicou à autora, através da entidade fiscalizadora M..., Lda., a aprovação dos aludidos autos de medição 1 a 7 e a autora emitiu as respetivas faturas, as quais aquela pagou.
14. Relativamente ao auto de medição n.º 8, no valor de € 52.291,64, a autora enviou-o, em 05.04.2021, à entidade fiscalizadora, tal qual aconteceu com os anteriores, mas nunca obteve da parte desta a validação para emissão da fatura.
15. A R. entregou à autora, em 15 de julho de 2021 a quantia de €18.450,00 e em 12 de outubro de 2021, a quantia de €7.995,00.
16. A partir dessa data–outubro de 2021-a autora não obteve da ré qualquer outro pagamento.
17. A A. emitiu a fatura n.º 57 de 31.12.2021, no valor de €61.500,00 (Cf. documento n.º 4 junto com a petição e se dá como integralmente reproduzido).
18. Além da aludida fatura n.º 57, de 31.12.2021, no valor de €61.500,00, a ré também não pagou à autora a fatura n.º 29, de 20.09.2022, no valor de €49.699,29, correspondente ao remanescente dos trabalhos referidos no orçamento junto como documento n.º 1 e a trabalhos extraordinários que no decurso da obra lhe foram solicitados pela ré (Cf. documento n.º 5 junto com a petição inicial e se dá como integralmente reproduzido).
19. Alem dos pequenos trabalhos que iam sendo realizados ao longo da obra e que eram contemplados em cada auto de medição, a autora realizou, a pedido da ré, vários trabalhos que não estavam previstos no orçamento inicial.
20. Tais trabalhos encontram-se descriminados na segunda parte da fatura n.º 29 de 20.09.2022 (cf. documento n.º 5 junto com a petição inicial) e ascenderam a €16.836,25 (quantia à qual acresce IVA).
21. Todos os trabalhos descriminados na aludida fatura, demolir e erguer novas paredes, alterar pedras já colocadas, edificar tetos falsos, refazer degraus, colocar telas, entre outros, foram solicitados pela ré, fiscalizados e aceites pela entidade fiscalizadora M..., Lda. e a maior parte foi até precedida da respetiva orçamentação (cf. doc. 6 junto pela A. com a petição).
22. A ré não liquidou a fatura de € 61.500,00 emitida em 31.12.2022;
23. A autora, procedeu à emissão da fatura n.º 29, no valor de €49.699,29, correspondente ao remanescente dos trabalhos referidos no orçamento junto como documento n.º 1 e aos trabalhos extraordinários supramencionados.
24. No mês de setembro de 2022, a autora tomou conhecimento que das 9 frações que pertenciam á ré (sendo que inicialmente eram 10, mas uma foi entregue a um sócio como contrapartida da cessão da sua quota) esta já tinha vendido 6 entre os meses de junho e agosto desse ano.
25. As únicas frações que a ré mantinha no prédio da empreitada realizada pela autora eram duas lojas, com um valor de mercado inferior relativamente aos apartamentos para habitação, e uma fração para habitação, mas a qual já estaria negociada.
26. A autora avançou com um procedimento cautelar de arresto, o qual, inicialmente veio a ser decretado, mas que após a oposição foi levantado, por se apurar que a aqui ré era titular de outros dois terrenos para construção, com valor suficiente para garantir a divida reclamada pela aqui autora.
27. No âmbito do aludido procedimento cautelar, a aqui ré, com base num contrato junto como documento n.º 7, alegou que a autora se tinha atrasado na entrega da obra.
28. Conforme decorre do próprio texto do aludido documento n.º 7, existiam vários trabalhos a realizar pela autora que só poderiam ser feitos após conclusão de outras artes.
29. Alguns dos trabalhos que a A. tinha de realizar estavam dependentes de outros empreiteiros, como o serralheiro, o eletricista, o picheleiro e o carpinteiro.
30. Existiram algumas vicissitudes que afetaram o curso da empreitada como por exemplo, depois de efetuada a caixa do elevador de acordo com o projeto, a mesma teve que ser completamente refeita, porque chegado o instalador do equipamento, a fiscalização veio a dar conta que o mesmo não cabia naquelas medidas.
31. A entidade fiscalizadora M..., Lda. enviou, em 01.09.2021, a vários empreiteiros o email junto como Doc. 8, do qual decorre que existiam vários com atrasos nas respetivas empreitadas, e, em particular, o carpinteiro, o vidraceiro e o serralheiro.
32. Ao longo da obra, a própria Ré foi solicitando à autora trabalhos que não estavam inicialmente previstos (cf. Doc. 9 junto com a petição, o qual se dá por reproduzido).
33. Em 12.01.2023 a ré enviou uma carta à autora alegando a compensação do seu crédito com a suposta indemnização a que tem direito pelo atraso na obra.
34. Carta, à qual a autora respondeu e cuja resposta se junta como documento n.º 10.
35. A ré não pagou as faturas n.º 57 e 29, que somam a quantia de €111.199,29
36. Na pendência do aludido procedimento cautelar, a autora teve conhecimento através da própria ré, que esta entregou a um agente de execução nomeado numa ação executiva intentada contra aquela por um dos subempreiteiros que esteve na obra e ao qual não teve meios para pagar, o valor de € 22.237,01, [quantia a ser descontada ao aludido montante de € 111.199,29, pelo que a divida atual da ré cifra-se em €88.962,28].
37. A fatura nº 29, datada de 20.09.2022, junta à P.I. como doc.5, nunca foi apresenta e/ou remetida à Ré e foi emitida à sua revelia.
38. A Ré contratou com a Autora a execução dos serviços da arte de trolha, na construção de um edifício constituído em propriedade horizontal, sito na Rua ..., freguesia de ..., concelho de....
39. O valor da empreitada foi de 207.500,00 €, acrescido de IVA.
40. A Autora iniciou a execução da empreitada no início de 2020 e à medida que a ia executando elaborava autos de medição, que remetia para validação pela empresa fiscalizadora da obra, M..., Lda., na pessoa do Eng. AA.
41. Após a validação do auto de medição pela M..., Lda., a Autora emitia a respetiva fatura e a Ré procedia ao seu pagamento.
42. O auto de medição nº8, datado de 05.04.2021 não foi validado pela M..., Lda., porque não estava de acordo com os trabalhos executados.
43. Razão pela qual a Autora não emitiu a respetiva fatura.
44. Na sequência deste auto e devido aos atrasos provocados pelo ritmo lento a que a obra estava a ser executada pela Autora, foi celebrado o contrato junto à petição inicial como doc.7.
45. Em abril de 2021, o Eng. AA, fiscal de obra, efetuou um levantamento dos trabalhos que estavam por executar e em atraso por parte da Autora, tendo o seu sócio-gerente aposto pelo seu próprio punho as datas em que se comprometia a finalizar cada um desses trabalhos, tendo sido acordada uma clausula penal de 1.000 €, por cada dia de atraso na sua execução.
46. Facto eliminado pelo Tribunal da Relação
47. Na reunião realizada na sede da Ré para a assinatura do citado Contrato (Doc. 7 junto à P.I.), ficou combinado que as contas seriam acertadas nessa data da conclusão da obra, 30.06.2021.
48. A Autora não concluiu a obra em 30.06.2021, continuando a sua execução a um ritmo lento e muitas vezes parado, em setembro de 2021 não estavam prontos os trabalhos dos carpinteiros, dos vidraceiros e dos serralheiros.
49. As faturas emitidas pela Autora em 09.07.2021, no montante de 18.450 €, e 12.10.2021, no montante de 7.995,00 €, corresponderam a adiantamentos solicitados pela Autora, que a Ré acedeu, não aos trabalhos executados até então.
50. Nessas datas, a Autora tinha trabalho executado não faturado em valor superior ao valor dessas faturas.
51. Razão pela qual estas faturas não tiveram o prévio auto de medição.
52. A Ré só retardou o pagamento à Autora devido aos atrasos que esta provocou na conclusão do prédio.
53. No final de 2021, foi comunicado ao gerente da Autora que a Ré só lhe voltava a fazer pagamentos quando o mesmo concluísse a obra.
54. O gerente da Autora conformou-se com esta posição da Ré, consciente que estava dos atrasos na execução da obra, por ele muitas vezes assumido nas reuniões semanais em obra.
55. A fatura datada de 31.12.2021 não foi remetida à Ré na data da sua emissão.
56. Só no final de março de 2022, através duma consulta no e-fatura, a Ré tomou conhecimento da emissão desta fatura, datada de 31.12.2021.
57. Contactado de imediato o legal representante da Autora, referiu que emitiu essa fatura por recomendação do seu contabilista para equilibrar as contas de 2021.
58. Remetendo-a à Ré por e-mail datado de 23.03.2022, (conforme e-mail junto como doc.1 com a contestação).
59. Razão pela qual esta fatura apenas foi lançada na contabilidade da Ré em 31.03.2022, (cf. extrato de conta corrente junto como doc.2 com a contestação).
60. A Autora nunca solicitou à R. o pagamento desta fatura.
61. O grosso da empreitada da Autora ficou concluída em maio de 2022, tendo ficado por executar alguns acabamentos, nomeadamente colocação de tela asfáltica na cobertura e outros pequenos retoques e reparações, bem como acabamentos das lojas.
62. A Autora ficou de concluir esses acabamentos para se acertarem as contas finais.
63. Não obstante a Ré ter começado a outorgar as escrituras de compra e venda das frações em julho, foi atrasando o pagamento à Autora porque havia acabamentos na obra por concluir.
64. Havia partes da cobertura que a Autora ainda não tinha colocado tela de isolamento.
65. Há muito que a Autora se tinha comprometido a executar estes acabamentos, mas foi adiando sem qualquer justificação.
66. Em meados de setembro, o gerente da Autora esteve na sede da Ré para apresentar contas.
67. Nessa reunião, o gerente da Autora comunicou à Ré que o seu crédito era de 108.000,00 €.
68. Não apresentou qualquer discriminação das contas, nomeadamente auto de medição final e discriminativo dos trabalhos extra que estavam incluídos naquele valor.
69. Foi-lhe solicitado que apresentasse as contas devidamente detalhadas para serem validadas pela M..., Lda., como estava acordado.
70. O gerente da Autora comprometeu-se a apresentar as contas devidamente detalhadas.
71. Foi-lhe ainda comunicado que a Ré iria outorgar a escritura de compra e venda da fração correspondente ao 2º Dt.º até ao final desse mês de setembro e que então se acertariam as contas.
72. E que para esse efeito deveria concluir os acabamentos que faltavam executar no prédio, nomeadamente na cobertura.
73. Foi-lhe também comunicado que a Ré iria dar cumprimento à penhora de créditos a que se alude no item 58º da P.I.
74. A escritura do 2º Dt.º foi outorgada no dia 29.09.2022, (cf. escritura que se junta como doc.3 com a contestação).
75. No dia 04.10.2022, a Ré procedeu ao pagamento da penhora de créditos e deu conhecimento à Autora (cf. e-mail junto como doc.4 da contestação).
76. A Ré tentou contactar o legal representante da Autora para acerto de contas, mas não atendeu o telemóvel.
77. No dia 06.10.2022, a Ré solicitou mesmo contacto por e-mail (cf. cópia junta como doc.5 com a contestação).
78. No dia 21.09.2022, a Administração de Condomínio interpelou a Ré para estas anomalias, na cobertura do prédio (cf. e-mail junto como doc.6 com a contestação).
79. Este e-mail foi remetido para a Autora, que dias depois reparou essas anomalias na cobertura colocando tela.
80. Colocou, mas com as primeiras chuvas intensas, como ocorreu nesta semana de 14 a 18 do mês de novembro passado, a água infiltrou-se no interior do prédio, pela claraboia de acesso à cobertura e pela caixa de elevadores, fazendo com que o elevador estivesse inoperacional, pois aquelas infiltrações fizeram ativar o sistema de segurança, que bloqueou o elevador (cf. fotos juntas como doc.7 a 11 com a contestação).
81. O legal representante da Autora decidiu por moto próprio emitir a fatura datada de 20.09.2022, no montante de 49.699,29 € e avançar com um procedimento cautelar de arresto contra a Ré.
82. Até à data de hoje, a Ré não recebeu da Autora esta fatura.
83. Apenas teve conhecimento da sua emissão ao ser citada para a providência cautelar de arresto.
84. Não foi lançada até hoje na sua contabilidade-doc.2, porque não lhe foi facultado o original.
85. Por carta datada de 12.01.2023, a Ré interpelou a Autora, entre outros, para remeter à M..., Lda. o auto de medição final, bem como nota discriminativa dos trabalhos extra executados, (cf. carta junta como doc.12 com a contestação).
86. A Autora, por e-mail datado de 23.01.2023, remeteu à M..., Lda. a discriminação dos trabalhos extra, conforme solicitado (cf. doc. 13 junto com a contestação).
87. Não remeteu o auto de medição final da obra.
88. Por e-mail datado de 01.02.2023, a M..., Lda. respondeu a acusar a receção do discriminativo dos trabalhos extra, que estava em análise para validação, e reiterou o pedido para a Autora remeter o auto de medição final da obra (cf. e-mail junto como doc.14 da contestação).
89. Até à presenta data a Autora não apresentou o auto de medição final da obra, nem apresentou qualquer justificação para essa omissão.
90. A Ré não aceita a fatura datada de 20.09.2022, não só porque nunca lhe foi entregue, e porque não tem subjacente qualquer auto de medição.
91. Logo que a Autora emitia a fatura, o pagamento era efetuado no imediato.
92. Foram os sucessivos e reiterados atrasos na execução da obra por parte da Autora, que obrigaram a Ré a tomar a posição de que só lhe pagaria na conclusão da obra.
93. A Ré cumpriu, pontualmente com todos os restantes empreiteiros que prestaram serviços nesta obra.
94. A Autora iniciou a execução da empreitada no prédio da Ré no início de maio de 2020 e terminou em maio de 2022.
95. Em abril de 2021 faltava concluir cerca de 40% da empreitada e até 04.02.2021, a Autora tinha faturado pelos trabalhos executados 115.146€ + IVA(Faturas de 30.06.2020; 30.09.2020; 31.10.2020; 31.11.2020, 31.12.2020; 07.01.2021 e 04.02.2021) – Doc.2, sendo que o valor total da empreitada ascendia a 207.500 € + IVA.
96. Como as sucessivas e insistentes interpelações à Autora para acelerar a execução da obra, nomeadamente nas reuniões semanais em obra, não estavam a sortir efeitos, em abril de 2021 Autora e Ré assinaram o contrato junto à P.I. como doc.7 acima mencionado.
97. A última data aposta pelo gerente da Autora naquele contrato, é a do ponto 1.2.4., que é 30.06.2021.
98. A Autora não concluiu a obra em 30.06.2021, continuando a sua execução a um ritmo lento e muitas vezes parado.
99. No Contrato junto à Petição Inicial como doc.7, A Autora obrigou-se ao pagamento à Ré de 1.000 € por cada dia de atraso na conclusão da empreitada em causa, a titulo de clausula penal compulsória.
100. Por vezes passavam-se dias e dias sem que a Autora colocasse qualquer trabalhador em obra.
101. A Autora andou largos meses com apenas 2 ou 3 trabalhadores em obra e apenas em período pós-laboral, uma ou duas horas por dia após as 17:00 horas e aos sábados de manhã.
102. Sendo este o ritmo que a obra foi sendo executada durante largos meses e até maio de 2022.
103. Todas as quartas feitas de manhã, efetuavam-se reuniões em obra, em que estava presente o dono obra, um representante da M..., Lda. e os empreiteiros que estavam em obra.
104. O legal representante da Autora comparecia quase sempre a essas reuniões.
105. Nessas reuniões, o legal representante da Autora era sempre pressionado para que acelerasse e concluísse a sua empreitada, não só pelo dono e fiscal de obra, mas também pelos restantes empreiteiros que estavam dependentes da execução dos trabalhos da Autora.
106. A Autora sabia que as 8 frações destinadas à habitação estavam vendidas e que era urgente a sua finalização.
107. Os promitentes compradores pressionavam insistentemente a Autora para concluir a obra.
108. A Autora só concluiu o grosso da obra em maio de 2022.
109. A Autora colocou a tela na cobertura no final de setembro de 2022.
110. Logo com as primeiras chuvas de novembro as águas infiltraram-se no interior do edifício por deficiente aplicação da tela asfáltica na cobertura.
111. A Ré foi recentemente interpelada por vários proprietários para problemas de infiltrações de água existentes nos tetos das varandas.
112. No contrato celebrado com a ré em 23.04.2021–documento n.º 7 junto com a p.i.– a autora fez constar no campo da tabela assinalado para «data final de conclusão dos trabalhos»: «5 dias após o carpinteiro acabar».
113. Nesse mesmo documento consta, expressamente:
“1.2.5 Execução de pintura em paredes. Garagem + escada + cave + hall de entrada + sala comum + quartos + cozinha + hall comum + circulação + escadas caixa de escadas no final do trabalho – 5 dias após o carpinteiro acabar (…)
1.3.5 Execução de pintura em tetos. Hall de entrada + sala comum + quartos + hall comum + circulação + cozinha + banho + cave + escadas – 5 dias após o carpinteiro acabar”.
114. Conforme melhor resulta do email de 01.09.2021, junto com a petição inicial como documento n.º 8, o qual foi enviado pela empresa fiscalizadora M..., Lda. ao dono da obra e aos empreiteiros na sequência de uma das reuniões semanais feitas em obra:
“40. Regista-se um atraso muito grande na instalação das cozinhas;
(…)
42. Solicita-se o regresso imediato à obra.
(…)
As carpintarias verticais e horizontais deverão finalizar os seus trabalhos rapidamente, sendo a montagem das cozinhas fulcral no cumprimento do planeamento.
O vidraceiro deverá nas próximas duas semanas instalar os guarda-corpos exteriores e as divisórias em vidro interiores.
Os serralheiros deverão finalizar os seus trabalhos até ao final do mês de setembro”.
115. Em 09.11.2021, (cf. email junto como documento n.º 9 na p.i.), a ré solicitou-lhe novos trabalhos.
116. Em janeiro de 2022, a ré solicitou à A. a retificação de alguns trabalhos, algumas das quais já eram pedidas pelos compradores (cf. Doc. 1 junto com a réplica).
117. A licença de utilização do prédio foi emitida pela competente Câmara Municipal, em 22.05.2022.
118. A autora, em setembro de 2022, a pedido da ré, deslocou se ao prédio para isolar os furos que foram efetuados por outrem.
Factos não provados
A) Face ao silêncio da M..., Lda. quanto ao aludido auto de medição, a autora interpelou o Eng. AA, representante legal daquela entidade, que lhe comunicou que a ré estaria a atravessar dificuldades financeiras e que lhe tinha dado instruções para não proceder à respetiva validação.
B) Face a essa situação, a autora contactou diretamente a ré e solicitou-lhe o pagamento dos trabalhos realizados até então, revelando que não tinha condições para continuar a empreitada caso não obtivesse liquidação dos montantes correntes, dado que a falta de liquidez não lhe permitia suportar o pagamento dos salários dos seus trabalhadores em obra.
C) A autora enviou a aludida fatura à ré logo na data da sua emissão, mas esta nunca procedeu à sua liquidação.
D) Chegados a março de 2022, o representante legal da ré–Dr. BB, ... e pessoa em quem a autora depositava confiança, telefonou-lhe a solicitar a reparação de trabalhos (situação que aquela imediatamente corrigiu).
E) A partir de abril de 2021, a Ré começou a atrasar os pagamentos o que fez com que alguns empreiteiros também fossem atrasando os seus trabalhos.
F) Assim, aconteceu com um subempreiteiro contratado pela autora–Sr. CC–o qual chegou a recusar continuar o seu trabalho enquanto não recebesse.
G) Como a ré bem sabe, todos os aludidos fatores acabaram por contribuir para que as coisas não corressem como previsto, o que aliás, é comum e sucede na quase totalidade das empreitadas de grande monta, como a dos autos.
H) Até à prolação da aludida decisão, nunca a ré interpelou a autora, por si ou pela M..., Lda., por escrito ou verbalmente, acerca dos prazos de entrega da obra ou do alegado atraso que agora e só depois de lhe ser solicitado judicialmente o pagamento, lhe imputa.
I) …mas sim resultante de uma multiplicidade de fatores relacionados com a própria dimensão da obra, as condições climáticas, a disponibilidade dos materiais e o curso das diferentes artes/ofícios.
B) O Direito
1. A Autora e a Ré celebraram um contrato de empreitada, nos termos do artigo 1207.º do Código Civil, para que a autora, empresa de construção civil, prestasse à Ré vários serviços de construção civil e de fornecimento de matéria prima, na edificação de um prédio constituído em propriedade horizontal e composto por dez frações, que se destinavam a ser vendidas pela Ré, empresa que se dedicava à promoção e venda imobiliária.
A Autora iniciou a execução da empreitada no prédio da Ré no início de maio de 2020 e terminou em maio de 2022.
Está em causa saber se a ré, dona da obra, está a agir em abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, quando invoca, em reconvenção, uma cláusula penal acordada com a autora, em abril de 2021, segundo a qual a autora teria de pagar à ré 1000 euros por cada dia de atraso na entrega da obra.
Quer o tribunal de 1.ª instância, quer o Tribunal da Relação entenderam que a ré devia à autora uma quantia de € 88.962,28 (oitenta e oito mil novecentos e sessenta e dois euros e vinte e oito cêntimos), a título de trabalhos de construção civil não pagos, e condenaram a ré a pagar esse valor à autora, sem juros.
Mas a sentença, em virtude dos factos que atestam sucessivos atrasos na obra imputáveis à autora, procedeu à compensação do valor em dívida com o montante a pagar pela autora à ré a título da cláusula penal, que reduziu, por razões de equidade, ao mesmo montante das faturas não pagas.
O fundamento do tribunal de 1.ª instância foi o seguinte:
«(…)
Por acordo escrito levado a efeito entre A. e R. em 23 de Abril de 2021, acordaram que o termo dos trabalhos se situaria em 30/6/2021. Os factos apurados, com as explanações acima adiantadas, permitem-nos concluir à exaustão que a A. não cumpriu com as obrigações para si decorrentes deste último contrato, com ênfase para o facto de não ter procedido à execução dos trabalhos da sua arte de forma constante, reiterada, diligente e regular, pelo que, sem justificação, verificou-se um atraso relevante na obra em relação ao plano de trabalhos, mesmo somando a 30/6/21 mais 5 dias necessários para a A. terminar quaisquer trabalhos após findar a arte de carpintaria.
(…)
No nosso caso resulta incontornável que, mesmo com os trabalhos a mais pedidos pela R. (nem a A. demonstrou que atrasos causaram as obras extra), o atraso registado pela A. procede de culpa da A., sendo que as demais artes se atrasaram por culpa da A., que trazia em obra um número assaz reduzido de empregados, pelo que a A. não logrou afastar a presunção de culpa na ocorrência da sua demora, sendo pois os atrasos na execução imputáveis à A., atrasos que derivaram daquela actuação da A., tendo a R. logrado fazer a prova dos factos do seu invocado contra-crédito ( cfr. Art. 342º do C.C.).
(…)
Nestes termos, o Tribunal optará por uma redução equitativa, no conforto do alicerçado no Art. 812º, do CC, porquanto a cláusula convencionada traduz uma desproporção ostensiva a demandar decisão mandatória que a reduza, não obstante ter sido estipulada pelas partes no âmbito da sua inquestionável liberdade contratual.
Assim sendo, bisando o que já acima deixamos desenhado, a R. tem que pagar à A. a quantia de € 88.962,28, não se condenando nos juros peticionados desde a data pedida, pois a R. teve razões para sustar o pagamento, como vimos.
O pedido reconvencional da R. procede, mas também parcialmente, reduzindo-se o mesmo equitativamente nos seguintes termos: Convocando estes últimos ensinamentos e raciocínio expendido, o Tribunal reduz o valor da cláusula penal convencionada entre as partes para a quantia que se entende justa e equitativa de € 88.962,28.
(…)
Assim, àquele valor que a R. tem que pagar deve ser operada a compensação do valor que entendemos que a A. deve pagar à R., decorrente da aplicação da cláusula penal acordada entre as partes e peticionada em sede de reconvenção, mas reduzida nos termos acima ponderados, operando-se a compensação de créditos, conforme declaração e opção pretendida pela R. expressamente declarada em sede de contestação/reconvenção, estribada nos Arts. 847º e 848º do C.P.C».
Já o acórdão da Relação paralisou o exercício do direito de a ré invocar a cláusula penal, considerando verificados os pressupostos do abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, nos termos do artigo 334.º do Código Civil, condenando a ré ao pagamento do valor das faturas em atraso no montante de 88.962, 28 euros, sem qualquer compensação de créditos.
O acórdão da Relação fundamentou a sua decisão na circunstância de ter eliminado o facto provado n.º 46, segundo o qual «A última data aposta pelo gerente da Autora, que seria a da conclusão da obra, é a do ponto 1.2.4., que é 30.06.2021», e, bem assim, numa apreciação distinta da matéria de facto, sustentando que «(…) a existência de trabalhos extra levados a cabo pela autora/apelante a pedido da ré/apelada, não podem deixar de ter causado alguns atrasos em relação aos prazos a que aquela se havia comprometido, ilação que se extrai, sem margem para qualquer dúvida, do quadro factual supratranscrito (cf. artigo 349.º do CCivil).
Por último cumpre realçar que depois da assinatura do contrato em 23/04/2021 onde se estipulou a cláusula penal compulsória, e durante o tempo decorrido nesse ínterim até à conclusão do grosso da empreitada em março de 2022 (cf. ponto 61. dos factos provados), não consta da fundamentação factual que a ré apelada tenha confrontado a apelante com o acionamento da citada cláusula penal.
Efetivamente não o fez, nomeadamente, na reunião realizada entre as partes já em meados de setembro de 2022 (antes da autora recorrer às vias judiciais e intentar o procedimento cautelar ) quando a autora lhe comunicou que o valor total em débito era de € 108.000,00 (cf. pontos 66., 67., 71, 72. e 74.), antes pelo contrário, o que daí resulta é que cumpridos determinados procedimentos (auto de medição final e discriminativo dos trabalhos extra) acertariam as contas, ou seja, só no âmbito da providência cautelar, como resulta da leitura da oposição aí deduzida, é que a ré/apelada traz a terreiro a questão da cláusula penal e novamente em 12/01/2023 na carta que endereçou à autora/apelante (cf. ponto 33. dos factos provados), isto é, pouco mais de um mês antes de ter dado entrada em juízo a presente ação-07/02/2023».
Assim, conclui o acórdão recorrido que «Desta forma, quando na presente ação a ré/apelada reclama o pagamento da quantia convencionada, a título de cláusula penal, age em oposição à confiança que a apelante firmou nas expectativas alicerçadas nas vicissitudes por que passou a execução do contrato, prenunciadoras da neutralização do eventual direito daquela, consubstanciando uma situação de inequívoco abuso de direito, na modalidade do “venire contra factum proprium” sendo, pois, ilegítimo».
2. A figura do abuso do direito tem sido utilizada como uma válvula de escape para evitar os resultados injustos que a aplicação estrita da lei pode causar. Como se refere em Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 18-12-2008 (proc. 08B2688), “a figura do abuso do direito surge como um modo de adaptar o direito à evolução da vida, servindo como válvula de escape a situações que os limites apertados da lei não contemplam por forma considerada justa pela consciência social, em determinado momento histórico, ou obstando a que, observada a estrutura formal do poder conferido por lei, se excedam manifestamente os limites que devem ser observados, tendo em conta a boa fé e o sentimento de justiça em si mesmo.”
Todavia, para que seja aplicado este instituto, não bastam conceções subjetivas de justiça, ou, até, que seja de facto produzida uma qualquer forma de injustiça ou de desequilíbrio entre as partes.
Como se concluiu no Acórdão deste Supremo Tribunal, de 12-01-2021 (proc. n.º 2689/19.8T8GMR-B.G1.S1), «I - O abuso de direito não significa uma desaplicação de normas com base numa remissão genérica para sentimentos de justiça. Os tribunais exigem a prova rigorosa dos seus elementos constitutivos e a ponderação dos valores sistemáticos em jogo, de acordo com modelos experimentados ao longo da história pelo labor da jurisprudência».
No mesmo acórdão, refere-se que “o instituto do abuso do direito tem sofrido uma forte evolução e alargamento na sua aplicação, e pressupõe um conjunto de critérios, emergentes do sistema jurídico, suscetíveis de uma aplicação rigorosa e objetiva, com base no labor jurisprudencial intenso verificado nas últimas décadas nos tribunais portugueses e o contributo da doutrina para a construção dogmática da figura”.
Para que seja aplicado o instituto do abuso do direito, é, pois, necessário, in casu, que os factos provados sejam inequívocos no sentido de demonstrarem a má fé da agora ré e que o exercício do seu direito de invocar a cláusula penal acordada constitui um venire contra factum proprium contra uma situação de investimento da confiança feita pela autora.
Como se afirma no Acórdão deste Supremo Tribunal, de 12-11-2023 (proc. n.º 1464/11.2TBGRD-A.C1.S1), «(…) não existe no direito civil um princípio geral de proibição do comportamento contraditório». Esta modalidade de abuso do direito tem subjacente um problema de interesses em conflito que importa resolver e exige um conjunto de requisitos baseados na doutrina jurídica da confiança, tal como expõe Menezes Cordeiro (in Tratado de Direito Civil, Português, vol. I, Parte Geral, Tomo IV, 2005, p. 292):
«1 – Uma situação de confiança conforme com o sistema e traduzida na boa fé subjetiva e ética, própria da pessoa que, sem violar os deveres de cuidado que ao caso caibam, ignore estar a lesar posições alheias;
2 – Uma justificação para essa confiança, expressa na presença de elementos objectivos capazes de, em abstrato, provocarem uma crença plausível;
3 – Um investimento de confiança consistente em, da parte do sujeito, ter havido um assentar efetivo de actividades jurídicas sobre a crença consubstanciada;
4 – A imputação da situação de confiança criada à pessoa que vai ser atingida pela protecção dada ao confiante; tal pessoa, por acção ou omissão, terá dado lugar à entrega do confiante em causa ou ao factor objectivo que a tanto conduziu»
A análise destes requisitos deve decorrer da análise da globalidade dos factos provados e não apenas de segmentos dos mesmos, sopesando as características do contrato em causa e a forma como correu a sua execução, bem como o contexto jurídico e sócio-económico subjacente à sua celebração e execução.
3. Em primeiro lugar, na análise dos factos, entendemos que a eliminação do facto provado n.º 46 quanto à data do termo da obra em junho de 2021 não é decisiva para considerar que não houve atrasos na obra, nem qualquer incumprimento da parte da autora. Note-se que o facto n.º 47 afirma que «Na reunião realizada na sede da Ré para a assinatura do citado Contrato (Doc. 7 junto à P.I.), ficou combinado que as contas seriam acertadas nessa data da conclusão da obra, 30.06.2021», e no facto n.º 97, afirma-se que «A última data aposta pelo gerente da Autora naquele contrato, é a do ponto 1.2.4., que é 30.06.2021». Ou seja, continua na matéria de facto provada a haver indícios de que a data de 30 de junho de 2021 foi o momento acordado para a conclusão da obra. Desde logo, a matéria de facto atesta, expressamente nos factos n.º 44 e 45, que a celebração do novo acordo entre as partes para estipular uma cláusula penal se ficou a dever a um ritmo lento do trabalho da autora:
- «44. Na sequência deste auto e devido aos atrasos provocados pelo ritmo lento a que a obra estava a ser executada pela Autora, foi celebrado o contrato junto à petição inicial como doc.7.
- 45. Em abril de 2021, o Eng. AA, fiscal de obra, efetuou um levantamento dos trabalhos que estavam por executar e em atraso por parte da Autora, tendo o seu sócio-gerente aposto pelo seu próprio punho as datas em que se comprometia a finalizar cada um desses trabalhos, tendo sido acordada uma clausula penal de 1.000 €, por cada dia de atraso na sua execução».
No facto n.º 48, refere-se também o ritmo lento em que a autora laborava: «48. A Autora não concluiu a obra em 30.06.2021, continuando a sua execução a um ritmo lento e muitas vezes parado, em setembro de 2021 não estavam prontos os trabalhos dos carpinteiros, dos vidraceiros e dos serralheiros».
Segundo o facto provado n.º 61, o grosso da empreitada só ficou pronta em maio de 2022, tendo ficado por executar alguns acabamentos, nomeadamente colocação de tela asfáltica na cobertura e outros pequenos retoques e reparações, bem como acabamentos das lojas, tendo sido esta circunstância que motivou o não pagamento de algumas faturas por parte da ré, conforme atestam os factos provados seguintes:
- 63: «Não obstante a Ré ter começado a outorgar as escrituras de compra e venda das frações em julho, foi atrasando o pagamento à Autora porque havia acabamentos na obra por concluir.
- 64. Havia partes da cobertura que a Autora ainda não tinha colocado tela de isolamento.
- 65. Há muito que a Autora se tinha comprometido a executar estes acabamentos, mas foi adiando sem qualquer justificação».
Por outro lado, há factos provados que indicam atrasos nas obras imputáveis à autora e criadores de constrangimentos para todas as outras artes, em especial, para a ré que tinha prazos de escritura de venda dos imóveis para cumprir.
A matéria de facto também indica que as faturas não pagas pela ré foram um meio de pressão sobre a autora para que diligenciasse pelo cumprimento de prazos e entrega da obra, como atestam os seguintes factos provados:
«52. A Ré só retardou o pagamento à Autora devido aos atrasos que esta provocou na conclusão do prédio.
53. No final de 2021, foi comunicado ao gerente da Autora que a Ré só lhe voltava a fazer pagamentos quando o mesmo concluísse a obra.
54. O gerente da Autora conformou-se com esta posição da Ré, consciente que estava dos atrasos na execução da obra, por ele muitas vezes assumido nas reuniões semanais em obra».
Sendo certo que não se demonstrou que a ré fosse incumpridora nos pagamentos, pois segundo o facto provado n.º 91, logo que a Autora emitia a fatura, o pagamento era efetuado no imediato, não tendo assim sucedido em relação a algumas faturas por causa dos atrasos (facto n.º 52) ou porque a autora não apresentava o auto de medição à empresa contratada pela ré para fiscalizar a obra nem justificava essa omissão (factos provados n.º 89 e 90), não tendo nunca cobrado a fatura de 31-12-2021 (facto provado n.º 56). Os factos n.º 92 e 93 reiteram que «Foram os sucessivos e reiterados atrasos na execução da obra por parte da Autora, que obrigaram a Ré a tomar a posição de que só lhe pagaria na conclusão da obra», e que «A Ré cumpriu, pontualmente com todos os restantes empreiteiros que prestaram serviços nesta obra».
4. Temos por certo que a factualidade do presente caso, ao nível da causa dos atrasos na entrega da obra, é dúplice, no sentido em que ambas as partes assumiram comportamentos suscetíveis de causar atrasos na obra: em síntese, a ré pediu trabalhos extraordinários já depois de estar vencida a data acordada para a conclusão da empreitada e alguns dos atrasos (mas nem todos) da autora ficaram a dever-se a atrasos das outra artes; a autora trabalhava a um ritmo lento, colocando, a partir de certa altura, apenas 2 ou 3 trabalhadores em obra e em horário pós-laboral, gerando problemas na obra e junto dos empreiteiros das outras artes e pondo em causa os compromissos da ré em relação à data das escrituras.
Vejamos:
4.1. Ao longo da obra, a ré pediu trabalhos extraordinários à autora, não previstos no Orçamento original (facto provado n.º 32), alguns deles já depois de junho de 2021 (facto provado n.º 115), tendo a ré solicitado também, em janeiro de 2022, à Autora a retificação de alguns trabalhos, alguns das quais já eram pedidos pelos compradores (facto provado n.º 116). Todavia, a matéria de facto não apresenta dados objetivos suficientes para concluir que esta foi a causa do atraso da obra. Por outro lado, em relação aos trabalhos pedidos após junho de 2021, que se destinavam a retificações de trabalhos anteriores, estes não relevam para aferir do alegado comportamento contraditório da autora. Mas deve ser ponderado, em relação aos restantes trabalhos pedidos após junho de 2021, se consubstanciam ou não um comportamento contraditório com a invocação posterior das cláusula penal, o que haverá de fazer-se tendo em conta a globalidade dos factos.
Nos termos dos factos provados n.º 28 e 29, existiam vários trabalhos a realizar pela autora que só podiam ser feitos após conclusão de outras artes, confirmando o facto n.º 31, que efetivamente houve atrasos nas outras artes. Todavia, este facto dado como provado não contém mais dados para se poder tirar uma conclusão quanto à causalidade destes atrasos para o atraso global da obra. É que também ficou provado que, nas reuniões que tinham lugar na obra, o legal representante da Autora era sempre pressionado para que acelerasse e concluísse a sua empreitada, não só pelo dono e fiscal de obra, mas também pelos restantes empreiteiros que estavam dependentes da execução dos trabalhos da Autora (facto provado n.º 105).
Provou-se que a autora não concluiu a obra em 30.06.2021, continuando a sua execução a um ritmo lento e muitas vezes parado (facto provado n.º 98). Por vezes passavam-se dias e dias sem que a Autora colocasse qualquer trabalhador em obra (facto provado n.º 100). A Autora andou largos meses com apenas 2 ou 3 trabalhadores em obra e apenas em período pós-laboral, uma ou duas horas por dia após as 17:00 horas e aos sábados de manhã (Facto provado n.º 101). Sendo este o ritmo a que a obra foi sendo executada durante largos meses e até maio de 2022 (Facto provado n.º 102). A Autora sabia que as 8 frações destinadas à habitação estavam vendidas e que era urgente a sua finalização (Facto provado n.º 106).
A restante matéria de facto atesta também o incómodo gerado em todos os sujeitos ligados à obra:
«107. Os promitentes compradores pressionavam insistentemente a Autora para concluir a obra.
108. A Autora só concluiu o grosso da obra em maio de 2022.
109. A Autora colocou a tela na cobertura no final de setembro de 2022.
110. Logo com as primeiras chuvas de novembro as águas infiltraram-se no interior do edifício por deficiente aplicação da tela asfáltica na cobertura.
111. A Ré foi recentemente interpelada por vários proprietários para problemas de infiltrações de água existentes nos tetos das varandas».
4.2. Temos, pois, de proceder a uma ponderação global de todos os factos, não ignorando que o abuso do direito pressupõe um comportamento censurável ao nível da má fé e que o recurso a esta figura não pode ser banalizado como uma espécie de “varinha mágica” para resolver litígios.
Assim, ponderada cuidadosamente a matéria de facto acima exposta, entendemos que, diferentemente do afirmado pelo acórdão recorrido, foi o comportamento da autora a principal causa do atraso na conclusão da obra e do mal-estar gerado nos outros empreiteiros e até nos adquirentes das frações após a sua venda. O próprio gerente da autora, nas reuniões que tiveram lugar na obra, assumiu essa responsabilidade, visível também na circunstância de aceitar subscrever um acordo com a ré que continha uma cláusula penal de 1.000,00 euros por cada dia de atraso.
5. Nesta sede, há que ter em conta, para além da factualidade acima exposta, que a ré apenas invocou a cláusula penal, segundo o facto provado n.º 33, em 12.01.2023, enviando à ré uma carta à autora, alegando a compensação do seu crédito com a suposta indemnização a que tem direito pelo atraso na obra, tendo voltado a fazê-lo no âmbito do aludido procedimento cautelar intentado pela autora para se fazer pagar das faturas em falta (facto provado n.º 27), bem como na presente ação, em que deduziu reconvenção.
Embora este comportamento da ré seja contraditório com a circunstância de a ré ter pedido alguns trabalhos após a data em que era suposto estar concluída a obra, a proibição de comportamentos contraditórios, conforme já afirmado na resenha jurisprudencial acima apresentada, não é um princípio geral de direito, nem é suficiente para estarmos perante um venire contra factum proprium, figura cujo tratamento jurídico não tem uma resposta geral e que sempre dependerá de uma apreciação casuística dos factos de cada caso e de critérios de ponderação de interesses.
Como se afirma no Acórdão deste Supremo Tribunal, de 12-11-2023 (proc. n.º 1464/11.2TBGRD-A.C1.S1), «São pressupostos desta modalidade de abuso do direito – venire contra factum proprium – os seguintes: a existência dum comportamento anterior do agente susceptível de basear uma situação objectiva de confiança; a imputabilidade das duas condutas (anterior e actual) ao agente; a boa fé do lesado (confiante); a existência dum “investimento de confiança”, traduzido no desenvolvimento duma actividade com base no factum proprium; o nexo causal entre a situação objectiva de confiança e o “investimento” que nela assentou».
Ora, analisando a presença ou ausência destes requisitos na matéria de facto do caso, concluímos que faltam, para que a proteção da confiança da autora fosse possível e paralisado o direito de a ré invocar a cláusula penal, dois requisitos: i) a “boa fé do confiante”, pois, a autora sabe que atrasou a obra e que potenciou prejuízos na esfera jurídica da ré como se ilustrou na análise dos factos do caso acima tratada e ii) o “investimento de confiança” consistente, pois não houve qualquer atividade jurídica desenvolvida pela autora baseada na crença de que a ré não exerceria a cláusula penal.
Assim, há que notar que, em primeiro lugar, no quadro factual do caso concreto, a circunstância de a ré não ter de imediato exercido o direito de acionar a cláusula penal, criando a expetativa, junto da autora, de que prescindia de o fazer, não significa uma renúncia tácita a esse direito, nem sequer uma intenção de não o exercer. Pode assumir uma multiplicidade de significados, sendo que o mais provável é tratar-se de uma atitude de tolerância de alguém que já se considerava compensado pelo facto de ter exercido a exceção de não cumprimento do contrato, recusando pagar algumas faturas como forma de pressão para reduzir os atrasos e para compensar prejuízos. Podendo esta atitude de invocar a cláusula penal tardiamente não ser a mais correta, sobretudo se exercida para além da data da conclusão da obra, ainda assim, não se pode dizer que mereça um juízo de censura ético-jurídico intenso e suscetível de constituir um venire contra factum proprium, violador da boa fé, dos bons costumes ou da finalidade económico-social do direito, e, portanto, proibido pelo artigo 334.º do Código Civil. Relembre-se que, no quadro factual do caso concreto, foram sucessivos os atrasos da autora que implicaram adiamentos na data das escrituras e reclamações de alguns promitentes-compradores, bem como trabalhos deficientes que tiveram de ser corrigidos já depois de os compradores estarem a habitar as frações. Neste contexto, a confiança e as expetativas da autora de que a ré não invocaria a citada cláusula não merecem ser protegidas pelo instituto do abuso do direito, porque comparando as condutas de ambas as partes, à luz da boa fé, não se verifica uma gravidade maior da conduta da ré do que aquela que foi a conduta da autora, que até se afigura como a mais inconsistente e contraditória na execução do contrato, na medida em que o seu representante prometia e não cumpria. Para além disto, os atrasos sistemáticos presumem-se culposos, por força do artigo 799.º, n.º 1, do Código Civil, presunção de culpa, que não foi ilidida pela autora e que é aplicável em todas as ações em que se torne necessário provar que o devedor incumpriu culposamente a obrigação e também quando o credor invoca a cláusula penal estipulada entre as partes.
No presente caso, afigura-se que qualquer das partes está, tão-só, a defender os seus interesses por via da ação, a autora, e por via da reconvenção, a ré, pelo que decidimos que não tem intervenção o instituto do abuso do direito para paralisar o direito da ré de invocar a cláusula penal.
Mas para além do controlo da legitimidade da cláusula penal através do instituto do abuso do direito, esta pode ser controlada no tocante ao seu valor através do artigo 812.º do Código Civil.
6. Assim, decidida a invocabilidade pela ré da cláusula penal, importa agora equacionar a possibilidade da sua redução equitativa, pedida pela autora, em sede de ampliação do objeto do recurso.
Não temos dúvidas que o montante da cláusula penal, tal como entendeu o tribunal de 1.ª instância, não pode ser calculado com base num critério aritmético de 1000 euros por cada dia de atraso, por tal valor ser manifestamente excessivo ou desproporcionado, acabando por ser muito superior ao valor da obra, o que ofenderia a justiça comutativa e seria abusivo e opressivo, ofendendo a própria autonomia privada e os bons costumes. Aliás, nem foi isso que pediu a recorrente, que se limitou a pugnar pela repristinação da sentença, que imputou à cláusula penal um valor equivalente ao das faturas não pagas pela ré, 88.962,28 euros, assim obtendo uma compensação dos créditos com o resultado de nenhuma das partes ter de pagar à outra qualquer valor.
A autora vem agora pedir que a cláusula penal determinada pelo tribunal de 1.ª instância seja reduzida a 10% do seu valor, argumentando que o valor da empreitada foi de 207.500,00 €, e que o valor da cláusula penal decretada representa cerca de 45% do valor da obra.
Dispõe o artigo 810.º do Código Civil que «As partes podem fixar por acordo o montante da indemnização exigível: é o que se chama cláusula penal».
A cláusula penal é uma estipulação através da qual uma das partes se obriga a cumprir determinada prestação em dinheiro, em caso de não cumprimento definitivo ou de cumprimento defeituoso da obrigação, ou ainda em caso de mora ou retardamento da prestação. A cláusula penal opera no caso de ser violado culposamente o vínculo obrigacional e independentemente do tipo de dever inobservado (principal, secundário ou lateral).
Como ensina a doutrina (cfr. Pinto Monteiro, “Responsabilidade Contratual: Cláusula Penal e Comportamento Abusivo do Credor”, Revista da EMERJ, v. 7, n. 26, 2004, pp. 167-168, disponível para consulta in www.emerj.tjrj.jus.br) «A cláusula penal pode referir-se ao não cumprimento definitivo – cláusula penal compensatória —, pode referir-se à mora — cláusula penal moratória —, ou pode, naturalmente, abranger qualquer cumprimento defeituoso da obrigação» e desempenha, apesar da sua multifuncionalidade, duas funções principais: a função indemnizatória e a função compulsória.
A noção de cláusula penal descrita na lei (artigo 810.º do Código Civil) parece acentuar o seu caráter indemnizatório, surgindo a cláusula penal como uma fixação antecipada da indemnização (cfr. Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1997, pp. 436 e 438).
Nos termos do artigo 812.º do Código Civil (Redução equitativa da pena), «1. A cláusula penal pode ser reduzida pelo tribunal, de acordo com a equidade, quando for manifestamente excessiva, ainda que por causa superveniente; é nula qualquer estipulação em contrário. 2. É admitida a redução nas mesmas circunstâncias, se a obrigação tiver sido parcialmente cumprida».
O conteúdo concreto da cláusula penal é suscetível de ser sindicado, em razão do desrespeito pelo princípio da justiça comutativa (cfr. Ana Filipa Moraes Antunes, “Anotação ao Artigo 812.º do Código Civil”, in Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, 2019, p. 1171).
O artigo 812.º do Código Civil constitui um princípio de alcance geral, destinado a corrigir excessos ou abusos do exercício da liberdade contratual, ao nível da fixação das consequências do não cumprimento das obrigações (cfr. Pinto Monteiro, ob. cit., p. 174).
No presente caso, independentemente do fim ou fins atribuídos à cláusula penal em sede doutrinal, está em causa sobretudo a sua função indemnizatória, dado que a função compulsória ficou parcialmente inutilizada uma vez que o próprio credor pediu trabalhos a mais após o decurso do prazo. Justifica-se, pois, uma segunda redução da cláusula penal, de acordo com critérios de equidade e de proporcionalidade, destinada a reparar a ré dos danos sofridos por não ter conseguido celebrar atempadamente, por atraso imputável à autora, as escrituras de venda das frações, bem como, em segunda linha, a sancionar a autora pelos atrasos sucessivos, mantendo na medida do possível o respeito pelo princípio da equivalência das prestações.
A autora propõe a redução da cláusula penal para um valor de 10% do montante fixado pela 1.ª instância. Mas não tem razão. Esta redução esvaziaria completamente os fins da cláusula penal e não serviria nem como reparação do dano, nem como punição.
A redução da cláusula penal deve obedecer a critérios de equidade, à natureza e finalidade do negócio, ao fim visado pela cláusula penal, à gravidade do incumprimento, aos interesses das partes e à sua situação económica, ao grau de culpa das partes, etc.
Estando em causa, na presente situação jurídica, tal como delineada pela factualidade do caso, uma função indemnizatória e sancionatória da cláusula penal e tendo em conta que para o dano (embora numa proporção reduzida) também contribuiu o próprio lesado, pedindo alguns trabalhos adicionais não previstos no orçamento, circunstância que mitigou a culpa da autora nos atrasos sucessivos, fixamos, de acordo com a equidade, o valor da cláusula penal em metade dos valores das faturas em dívida (88.962,28/2 = 44,480,14 euros), que será deduzido ao crédito da autora relativamente a trabalhos não pagos.
Assim, a ré terá de pagar à autora um valor de 44, 480, 14 euros, sem juros.
7. Anexa-se sumário elaborado nos termos do n.º 7 do artigo 663.º do CPC:
I – A cláusula penal pode ser objeto de um duplo controlo: através do instituto do abuso do direito (artigo 334.º do Código Civil) que incide sobre a legitimidade do exercício do direito de a invocar, ou através do artigo 812.º do Código Civil, que consagrando um princípio de proporcionalidade ou de equilíbrio, impede cláusulas penais manifestamente excessivas.
II - A redução da cláusula penal deve obedecer a critérios de equidade, à natureza e finalidade do negócio, ao fim visado pela cláusula penal, à gravidade do incumprimento, aos interesses das partes e à sua situação económica, ao grau de culpa das partes, etc.
III - Decisão
Pelo exposto, decide-se na 1.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, conceder parcialmente a revista e revogar o acórdão recorrido, condenando a ré, A.N.S. Construções, Lda, ao pagamento de 44, 480, 14 euros, sem juros, à autora, C..., Unipessoal, Lda.
Custas da revista pela recorrente e pela recorrida, na proporção do respetivo decaimento.
Supremo Tribunal de Justiça, 8 de abril de 2025
Maria Clara Sottomayor (Relatora)
António Domingos Pires Robalo (1.º Adjunto)
António Magalhães (2.º Adjunto)