O recurso da sentença homologatória de transacção não é o meio processual adequado para apreciar questões que dizem respeito a vícios na formação da vontade que afectam o contrato que as partes celebraram com vista a pôr termo ao litígio.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra
I – RELATÓRIO.
A... – UNIPESSOAL, LDA, instaurou procedimento de injunção contra B..., LDA., pedindo que a requerida fosse condenada a pagar-lhe a importância de 15.432,74 €, nos termos melhor discriminados no requerimento inicial, cujo teor se dá por inteiramente reproduzido.
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A requerida deduziu oposição, passando, consequentemente, os autos a ser tramitados sob a forma de processo comum, conforme determinado em despacho proferido a 5/6/2024.
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Em 3/9/2024, foi exarado despacho saneador, seguido de despacho que procedeu à identificação do objecto do litígio e à enunciação dos temas da prova, tendo, logo após, sido designada audiência final, para o dia 10/12/2024.
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Na referida audiência, constatando-se que a mandatária da ré não se encontrava presente e que tinha renunciado ao mandato, foi proferido o seguinte despacho:
“Notifique a renúncia do mandato à ré, sem prejuízo de esta continuar representada por Mandatário, conforme procuração conjunta que consta dos autos (cf. artigo 47.°, n.os 1, 2 e 3, al. b) do Código de Processo Civil).
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Nos termos do artigo 47.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, a renúncia ao mandato forense só produz efeitos depois de notificado o mandante.
A ré continua representada por Mandatário. De todo o modo, ainda que não estivesse, por se tratar de ação em que é obrigatória a constituição de advogado, sempre se manteria o dever de a Mandatária que renunciou à procuração praticar todos os atos compreendidos no mandato forense, até que a ré constituísse novo mandatário ou decorressem 20 dias.
Tendo sido cumprido o disposto no artigo 151.º, n.os 1 a 3 do Código de Processo Civil , e não ocorrendo motivo que constitua justo impedimento, a ausência de mandatário judicial que represente a ré não constitui motivo de adiamento da audiência, conforme resulta do artigo 603.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.
Assim, nada obsta ao prosseguimento desta diligência.”.
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Tentada a conciliação das partes, veio a ser celebrada transacção, que foi homologada por sentença proferida de imediato, da seguinte forma:
“(…) pelo legal representante da Autora, AA, pela Mandatária da Autora, Dra. BB, e pelo legal representante da Ré, CC, foi pedida a palavra e, no seu uso, declararam que as partes pretendem TRANSIGIR, pondo termo ao presente litígio, nos seguintes termos:
1. Autora e Ré fixam o valor em dívida no montante de € 12.500,00 (doze mil e quinhentos euros);
2. A Ré obriga-se a pagar à Autora, a quantia atrás referida, da seguinte forma
i) O pagamento de uma prestação de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros) até ao dia 31-12-2024;
ii) O restante valor de € 10.000,00 (dez mil euros) será pago em 10 prestações mensais, iguais e sucessivas, no valor de € 500,00 (quinhentos euros) cada uma, sendo a primeira a pagar até ao último dia do mês de janeiro de 2025, e as restantes até ao último dia dos meses imediatamente subsequentes;
3. O pagamento das prestações será efetuado por transferência bancária para conta titulada pela Autora na Banco 1... com o IBAN nº ...04;
4. Os respetivos comprovativos dos pagamentos efetuados deverão ser remetidos para o email da Mandatária da Autora: ..........@.....;
5. O não pagamento de uma das prestações implicará o imediato vencimento das restantes;
6. Custas em partes iguais por Autora e Ré, prescindindo as partes reciprocamente de custas de parte.
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Seguidamente, foram lidos e explicitados ao Legal Representante da Autora, AA, e ao Legal Representante da Ré, CC, os termos do sobredito acordo, tendo os mesmos declarado corresponder à sua vontade e ao modo como pretendem pôr termo ao litígio dos presentes autos.
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Logo após, pelo Mmo Juiz foi proferida a seguinte:
SENTENÇA
Dada a qualidade dos intervenientes e a disponibilidade do direito em litígio, julga-se válida a transação realizada entre a Autora, A... - Unipessoal Lda., e a Ré, B..., Lda., a qual se homologa por sentença, condenando-se e absolvendo-se as partes nos seus precisos termos (cf. artigos 283.º, n.º 2, 284.º e 290.º n.º 4 do Código de Processo Civil).
Custas processuais nos termos acordados (cf. artigo 537.º, n.º 2 do Código de Processo Civil).
Registe e notifique.”.
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Em 22/1/2025, após constituição de nova mandatária, a ré interpôs recurso da sentença homologatória da transacção, no qual formula as seguintes conclusões:
“a) Vem o presente recurso interposto da sentença homologatória do acordo celebrado entre as partes na data designada para audiência de discussão e julgamento, em 10/12/2024.
b) A ré foi notificada da renúncia ao mandato por parte da sua mandatária apenas na data designada para audiência de discussão e julgamento, no início da mesma;
c) Para a ação em causa é obrigatória a constituição de advogado
d) A ré transacionou nos autos sem qualquer apoio ou aconselhamento jurídico, face à ausência da sua mandatária.
e) Nesse acordo a ré obrigou-se a pagar à autora a quantia de €12.500,00 à ré pela execução de uma obra em ... (aplicação de betão poroso);
f) A ré não havia pago à autora em virtude dos defeitos que a obra apresenta, tendo, na oposição que deduziu, invocando a exceção do não cumprimento do contrato por essa razão, as deficiências da obra levada a cabo pela autora.
g) O acordo celebrado não foi lido na presença da ré, nem lhe foi facultada cópia do mesmo na data designada para a audiência de discussão e julgamento, tendo apenas conhecimento do seu teor através da sua anterior mandatária;
h) A transação em causa não reflecte a vontade da ré, porquanto apenas se obrigou a pagar a quantia de €12.500,00 desde que a autora procedesse à reparação dos defeitos da obra que executou.
i) De facto, no acordo não consta a obrigação da autora em reparar os defeitos da obra, mediante o pagamento por parte da ré, quando era esta a pretensão da ré, pelo que não pode ser considerado como válido e eficaz.
j) Face à total ausência de apoio jurídico à ré, não existiu igualdade e equidade na resolução do litígio.
k) Não existiu um acordo justo e, consequentemente, uma decisão justa e equitativa da causa, tendo sido violado o disposto no nº 1 do artigo 602º do Código de Processo Civil, bem como o disposto no nº 4 do art 20º da Constituição da República Portuguesa.”.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Questão objecto do recurso: anulação da sentença homologatória proferida nos autos em epígrafe, com base nos motivos invocados pela apelante.
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II – FUNDAMENTOS.
2.1. Factos provados.
Com interesse para a apreciação do presente recurso, importa considerar a tramitação processual que vem descrita no relatório antecedente.
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2.2. Enquadramento jurídico.
Veio a apelante interpor recurso da sentença que homologou a transacção lavrada nos autos que correram termos no Juízo Local Cível de Leiria sob o nº50708/24...., sustentando que o acordo celebrado não reflecte, em parte, a sua vontade, pois não foi incluída uma cláusula relativa à reparação dos defeitos da obra a que é feita menção no processo em epígrafe.
Estamos perante um negócio jurídico que, do ponto de vista substantivo, se encontra previsto no art. 1248º do Código Civil, nos seguintes moldes:
“1. Transacção é o contrato pelo qual as partes previnem ou terminam um litígio mediante recíprocas concessões.
2. As concessões podem envolver a constituição, modificação ou extinção de direitos diversos do direito controvertido.“.
Prevendo a eventualidade de existirem vícios na formação da vontade que afectam a validade de um negócio jurídico desta natureza, o nosso legislador, no art. 291º do C.P.C. ocupou-se expressamente desta problemática, apresentando a referida norma o seguinte teor:
“1 - A confissão, a desistência e a transação podem ser declaradas nulas ou anuladas como os outros atos da mesma natureza, sendo aplicável à confissão o disposto no n.º 2 do artigo 359.º do Código Civil.
2 - O trânsito em julgado da sentença proferida sobre a confissão, a desistência ou a transação não obsta a que se intente a ação destinada à declaração de nulidade ou à anulação de qualquer delas, ou se peça a revisão da sentença com esse fundamento, sem prejuízo da caducidade do direito à anulação.
3 - Quando a nulidade provenha unicamente da falta de poderes do mandatário judicial ou da irregularidade do mandato, a sentença homologatória é notificada pessoalmente ao mandante, com a cominação de, nada dizendo, o ato ser havido por ratificado e a nulidade suprida; se declarar que não ratifica o ato do mandatário, este não produz quanto a si qualquer efeito.”.
No que ao caso diz respeito, constata-se que a recorrente não invoca qualquer vício que afecte a sentença homologatória, colocando unicamente em causa a transacção, nos precisos termos em que a mesma foi celebrada.
Ora, conforme tem sido defendido, de forma pacífica, pela nossa jurisprudência, o recurso da decisão homologatória apenas pode incidir sobre vícios que dizem respeito à própria decisão, não sendo o local próprio para suscitar questões que se prendem com a invalidade do contrato que as partes celebraram com vista a pôr termo ao litígio.
Relativamente a esta matéria, no Acórdão da Relação de Guimarães de 25/5/2023 (disponível em https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/c1f948e38136064d802589c6003db4b7?OpenDocument) é salientado o seguinte:
“- O recurso da sentença homologatória duma transação apenas pode incidir sobre um vício da própria decisão homologatória, não cabendo no objeto do recurso a apreciação de eventual vício da vontade.
- Pretendendo-se arguir a nulidade ou peticionar a anulação da transação, tendo em vista que o processo em que foi proferida a sentença homologatória da transação seja reaberto, o meio adequado é o recurso de revisão. “.
Em sentido idêntico, no Acórdão da Relação do Porto de 19/12/2023 (disponível em https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/508b92e09077778f80258ab6003ebc58?OpenDocument) refere-se que “Não se detetando vício da própria sentença homologatória, a respeito de eventuais vícios da vontade da parte que interveio na transação, cabendo no regime da anulabilidade, o direito potestativo da anulação só pode ser feito através de ação judicial ou recurso de revisão da sentença com esse fundamento, sem prejuízo da caducidade do direito à anulação (art 287º CC ), estando, pois, excluído, de todo o modo, que se possa fazer no recurso interposto da sentença homologatória.”.
Ainda sobre a questão de nos ocupamos, no Acórdão da Relação de Coimbra de 26/4/2022 (disponível em https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/4412f4f4cb28e34680258845003635f5?OpenDocument), observa-se, com toda a pertinência, o seguinte:
“I - Se alguma das partes pretender, no próprio processo em que foi proferida a sentença de homologação da transacção, que esta seja anulada terá de demonstrar que o objecto do litigio não estava na disponibilidade das partes ou não tinha idoneidade negocial ou as pessoas que intervieram na transacção não se apresentavam com capacidade e legitimidade para se ocuparem desse objecto.
II – Se a parte pretender dar sem efeito a transacção com base na existência de vícios da vontade ou de vícios no objecto do negócio jurídico em que se traduz a transacção terá de instaurar acção na qual peça a declaração da nulidade ou a anulação desse negócio jurídico.”.
Atento o exposto, não incidindo o recurso sobre vícios inerentes à sentença homologatória da transacção, deverá o mesmo improceder, com os efeitos daí resultantes.
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III – DECISÃO.
Pelo exposto, decide-se julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.
Custas pela apelante.
(assinado digitalmente)
Luís Manuel de Carvalho Ricardo
(relator)
Cristina Neves
(1ª adjunta)
Hugo Meireles
(2º adjunto)