I- Intentado procedimento especial de despejo, na sequência do envio de comunicação de oposição à renovação do arrendamento para habitação, ao requerido cabia o ónus de alegar e provar, nos termos do artº 15-F nº 3 da Lei 6/2006 de 27 de Fevereiro, afim de ver reconhecida a ineficácia da oposição, que era casado e que o locado correspondia à casa de morada de família.
II- A norma do artigo 12.º, n.º 1, do NRAU, é aplicável à comunicação pela qual o senhorio se opõe à renovação automática do contrato de arrendamento, prevista no artigo 1097.º, n.º 1, do CC. e deve ser interpretada no sentido de que, nos casos em que o locado constitui a casa de morada de família, esta comunicação deve ser dirigida a cada um dos cônjuges, sob pena de ineficácia.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Recorrente: AA
Recorridos: BB
CC
Juiz Desembargador Relator: Cristina Neves
Juízes Desembargadores Adjuntos: Luís Manuel Carvalho Ricardo
Hugo Meireles
*
Acordam os Juízes da 3ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra
Peticionam a desocupação do locado.
O Requerido deduziu oposição, na qual invocou a ineficácia da comunicação de oposição à renovação por falta de comunicação ao cônjuge do Réu, a ilegitimidade do Réu pelo facto de não sido demandada a cônjuge daquele no PED, sustentando que se trata da casa de morada de família do casal e filha (juntou prova documental e arrolou uma testemunha).
Mais requereu o diferimento da desocupação do imóvel arrendado fundada em motivos de saúde e sociais.
a) Condeno o Réu a entregar o imóvel à Autora BB (senhoria), no prazo de 30 (trinta) dias.
b) Condeno o Réu em multa correspondente a 10 vezes a taxa de justiça devida nos autos, no montante global de 2.040,00€ (dois mil e quarenta euros).
c) Condeno o Réu a pagar à Autora uma indemnização pelas despesas ocasionadas (não consideradas nas custas processuais), prejuízos e honorários devidos ao advogado dos AA, estes à luz dos critérios estabelecidos no Estatuto da Ordem dos Advogados, ocasionados desde a dedução da oposição do Réu e até ao montante máximo de 1.000,00€ (mil euros), em quantia a fixar após ouvidas as partes nos termos do artigo 543.º, n.º 3 do CPC.”
“1ª
A escalpelização hermenêutica da sentença, ora, recorrida, descortina, salvo o devido respeito que muito é, equívocos continentais ao nível da subsunção e interpretação jurídicas.
2ª
A convicção do julgador há-de formar-se, após, uma ponderação serena de todos os meios de prova produzidos, guiado sempre, por padrões de probabilidade, e nunca de certeza absoluta, num processo lógicodedutivo de montagem do mosaico fáctico, perspectivado pelas regras da
experiência comum. 3ª
O ponto 13 dos Factos Provados, está, incorrectamente, julgado.
15
O R. nunca disse que a coabitação com a sua mulher tinha cessado, definitivamente, nem, nunca, admitiu tal facto, porquanto, seria falso.
A decisão da Sr.ª Juiz do Tribunal “a quo” está enviesada da realidade e do manadeiro probatório produzido em Audiência, como, apodicticamente, se alcança e afere pela simples audição das declarações prestadas pelo R.. (Vide declarações gravadas no sistema informático digital do Tribunal com início da gravação às 09:52 horas e fim às 10:20 horas).
4ª
Na ausência de qualquer conceito ou definição legal do que é isto de casa de morada de família, é no mundo tangível da factualidade concreta, que há-de garimpar-se se o locado aboletava, ou não, o núcleo da vida familiar do R., sua filha e esposa.
A Sr.ª Juiz do Tribunal “a quo” não presenciou qualquer segmento de prova que sustentasse com o mínimo de segurança, e certeza jurídica, que o cônjuge do R. não coabitava o locado, seja ao tempo da outorga do contrato de arrendamento (como serodiamente chegou a essa conclusão no ponto C dos factos não provados), seja ao tempo da comunicação lavrada pela senhoria, ora, A. para opor-se à renovação do contrato de arrendamento, seja ao tempo da prolacção da sentença, ora, posta em crise.
5ª
A própria A. no requerimento inicial do despejo, classificou e considerou o locado como sendo a casa de morada de família do R. (Cfr. Requerimento do procedimento especial de despejo).
6ª
O R. não tem qualquer ónus de provar a coabitação do cônjuge, pois, é a lei que a presume, assente no vínculo matrimonial entre o R. e a DD (Cfr. ponto 5 dos factos provados).
7ª
Estando o R. casado com DD, ao tempo da outorga do contrato de arrendamento, ao tempo da comunicação de oposição à renovação do contrato de arrendamento, ao tempo da citação no âmbito do procedimento especial de despejo e ao tempo da prolação da sentença, é, vitreamente óbvio, que o R. beneficia da presunção legal da relação familiar que lhe advém do casamento, onde se inscreve a coabitação conjugal e o dever de assistência mútuos e recíprocos, pelo que, à luz do artigo 350º, n.º 1 do CC, está dispensado de provar o facto a que a predita presunção legal conduz, e que foi, in casu, ostensivamente postergado pela Sr.ª Juiz do Tribunal “a quo”, desenhando uma decisão contra legem.
8ª
Deveria, assim, ter sido dado resposta positiva a este facto vertido no ponto 15., no sentido do cônjuge do R. residir no locado e de este consubstanciar a casa de morada de família.
9ª
A Sr.ª Juiz do Tribunal “a quo” nem, sequer, logrou convocar para a tecedura da sua decisão, a norma, seraficamente, plasmada no artigo 1068º do CC, postergando-a, aliás, ignorando-a.
10ª
À luz clarificadora da predita norma legal, e sabendo, como sabia a Sr.ª Juiz do Tribunal “a quo” que o R. era casado no regime de comunhão de bens adquiridos (Vide certidão do assento de casamento, aportada nos autos), o direito do arrendatário comunica-se ao seu cônjuge, nos termos gerais e de acordo com o regime de bens vigente. A comunicabilidade do direito do arrendatário ao cônjuge, opera-se ope legis, não estando dependente de qualquer assinatura singela deste no contrato de arrendamento, como, erroneamente, decidiu a Sr.ª Juiz do Tribunal “a quo”.
11ª
Havendo pluralidade de arrendatários, como, efectivamente, havia, a senhoria, para fazer cessar o contrato de arrendamento, através da oposição à sua renovação, teria que respeitar o formalismo comunicacional plasmado na lei, nomeadamente, fazendo a comunicação de oposição à renovação do arrendamento também ao cônjuge do R., que postergou, por completo, inquinando, quer a formação do título, quer a sua eficácia.
12ª
A predita comunicação de oposição à renovação contratual não é livre, antes, obedece ao rito imposto nos artigos 9º, 11º e 12º, todos da Lei n.º 6/2006.
13ª
Nos termos do artigo 12º da Lei nº 6/2006, se o local arrendado constituir casa de morada de família, as comunicações previstas no n.º 2 do artigo 10.º devem ser dirigidas a cada um dos cônjuges, sob pena de ineficácia.
Ora, no caso sub judice, a Requerente omitiu, em absoluto, a comunicação a ambos os cônjuges, quer:
- da comunicação de oposição à renovação do contrato de arrendamento, plasmada no artigo 1097º n.º 1 do CC;
- do próprio procedimento de despejo encetado.
Resultando, às escâncaras a ineficácia da comunicação de oposição à renovação automática do contrato, o que para os devidos efeitos, aqui, expressamente, se invoca.
14ª
Nos termos plasmados no artigo 11º, n.º 4 da Lei n.º 6/2006, que havendo pluralidade de arrendatários, como sucede, in casu, a comunicação do senhorio é dirigida ao que figurar em primeiro lugar no contrato, salvo indicação daqueles em contrário.
A comunicação prevista no número anterior é, contudo, dirigida a todos os arrendatários nos casos previstos no n.º 2 do artigo anterior, o que a Requerente, flagrantemente, postergou, importando a ineficácia da comunicação de oposição à renovação, o que para os devidos efeitos, aqui, expressamente, se invoca.
15ª
Sendo ineficaz a comunicação de oposição à renovação automática, é mister concluir, que o contrato de arrendamento não caducou, antes se renovou nos termos legais, estando, fulgurosamente, em vigor, como deveria ter reconhecido a sentença, ora, posta em crise.
16ª
O requerimento de despejo deveria ter sido recusado pela Secretaria do BAS, porquanto:
- Não foi acompanhado dos documentos previstos no n.º 2 do artigo 15º da Lei n.º 6/2006; (Cfr. artigo 15º-C, n.º 1, alínea e) da Lei n.º 6/2006).
- Omitiu a identificação das partes, o domicílio do requerente, os números de identificação civil ou o lugar da notificação do requerido (Cfr. artigo 15º-C, n.º 1, alínea e) da Lei n.º 6/2006 e artigo 5º, n.ºs 1 e 2 do D.L. n.º 1/2013).
17ª
Nenhuma censura poderá ser assacada ao R, pelo simples facto de litigar no pressuposto e certeza legal que o seu direito de arrendatário se comunicou ao cônjuge, nos termos do artigo 1068º do CC, bem como, pelo facto de estarem escancaradas as portas da ineficácia da comunicação lavrada pela senhoria para declarar a oposição à renovação do contrato de arrendamento, porquanto omitiu a notificação do cônjuge do R., por muito, que isto pareça maçar a Sr.ª Juiz do Tribunal “a quo”.
As condenações em multa e indemnização vazadas na sentença recorrida, por uso indevido do procedimento, são completamente, diz-se com o devido respeito, que muito é, esboroadas de fundamento legal e cabimento jurídico.
18ª
Violou, assim, diz-se com o devido respeito, a Sentença recorrida, os artigos 350º; 1068º; 1097º, n.º 1; 1576º; 1577º; 1672º; 1673º; 1675º; e 1688º todos do CC; os artigos 9º; 11º; 12º; 15º; 15º-B, n.º2, alínea a) e n.º 3; 15º-C, n.º1, alínea e todos da Lei n.º 6/2006.
TERMOS EM QUE,
Ex Positis
Deve dar-se provimento ao presente Recurso e ipso facto:
a) Revogar-se a Sentença recorrida, e absolver-se o R. do pedido.
Assim, decidindo, farão, V.Ex.ªs a costumada e recta JUSTIÇA.”
*
Foram interpostas contra-alegações pelas AA., tendo concluído da seguinte forma:
1. A deduzida impugnação da matéria de facto circunscreve-se ao ponto 13 dos Factos provados para o qual se verteu o seguinte: “DD não reside no imóvel identificado em 1.”
2. Para tal impugnação o recorrente invoca as declarações por si prestadas, limitando-se a indicá-las da seguinte forma: “declarações gravadas no sistema informático digital do Tribunal com início da gravação às 09:52 horas e fim às 10:20 horas”.
3. Tal indicação/impugnação não respeita o estabelecido no nº 1, al. b) e nº 2 al. a) ao art.º 640º do CPC, pelo que, desde logo por tal motivo, a impugnação da matéria de facto terá de ser considerada improcedente.
4. Sem prejuízo, sempre se dirá que a decisão que recaiu sobre tal ponto 13 está correcta e resultou, claramente, de todos os elementos de prova existentes nos autos, aqui se incluindo as próprias declarações do R./recorrente, sendo no que concerne á prova documental tal resultou: da informação prestada aos autos pela Autoridade Tributária, que comprova que a invocada DD tem residência na Rua ... na ... e, consequentemente, não tem residência no local arrendado ao recorrente; dos autos de regulação das responsabilidades parentais com o nº 1328/21...., bem como do posterior respectivo acordo de alteração; do vertido pelo R. para o pedido de apoio judiciário.
5. De igual modo, no âmbito do processo nº 1648/22...., que correu termos no Juízo Local Cível da ..., Juiz 2, foi proferida sentença, já transitada em julgado,
6. “De acordo com os factos provados, apenas o requerido subscreveu o contrato, pelo que apenas ele se vinculou na qualidade de arrendatário, e é parte no contrato”.
7. DD, ainda que figure como casada com o recorrente encontra-se separada de facto, não integra o agregado familiar do recorrente, não reside nem nunca residiu no local arrendado, nem o local arrendado constitui casa de morada de família desta DD.
8. A testemunha EE (depoimento gravado em 27/02/2025, das 09:45 às 09:52), colega e amigo do recorrente, nem sequer conhecia a indicada DD, tendo afirmado, apontando para a própria A. presente na sala de audiências que esta seria o cônjuge do R./recorrente – cf. min.4:25 do seu depoimento: É aquela senhora ali atrás.
9. Aquela DD, além de não ter a sua casa de morada de família no local arrendado, não outorgou o contrato de arrendamento em causa nos autos, nunca se tendo, por isso, vinculado ao mesmo, pelo que a comunicação de oposição à renovação do contrato de arrendamento não tinha de lhe ser endereçada.
10. Era sobre o R. que recaía o ónus de provar que DD tinha casa de morada de família no local arrendado, prova que, sem margem para dúvidas, não logrou efectuar.
11. O recorrente era o único que tinha no local arrendado a sua casa de morada de família pelo que ao endereçar a referida comunicação ao recorrente a mesma obedece ao previsto no art.º 1081, 1095º e 1097, todos do CC e ao previsto no art.º 12º da Lei 6/2006, pelo que é plenamente eficaz e não enferma de qualquer invalidade, tendo consequentemente produzido os seus efeitos a partir de 28/02/2024.
12. O procedimento especial de despejo previsto no art.º 15º e segs da Lei 6/2006, constitui o expediente legal próprio e adequado para, na sequência da comunicada oposição à renovação do contrato de arrendamento, se obter a entrega do local arrendado.
13. Tal procedimento foi devida e regularmente endereçado à entidade competente – Balcão Nacional do Arrendamento - e instruído com os necessários documentos, tendo sido regularmente recebido por tal entidade, e prosseguiu os seus termos legais.
14. O R./recorrente bem sabe que o seu agregado familiar há muito que não é composto pela referida DD, que esta não reside no local arrendado, que não faz parte do seu agregado familiar, que não tem ali a sua casa de morada de família que nem sequer subscreveu o contrato de arrendamento.
15. Ao invocar que o local arrendado é casa de morada de família daquela DD o recorrente faltou à verdade e fez da oposição que deduziu, por manifesta falta de fundamento, um uso indevido e reprovável e com o qual apenas pretendeu protelar a sua obrigação de entrega do local arrendado, assim incorrendo na previsão do disposto no art.º 15º-R da lei 6/2006, bem como no disposto no art.º 542º do CPC.
16. Ao sancionar o R./recorrente na multa prevista no nº 2 daquele art.º 15º, bem como na indemnização prevista nos art.ºs 542º e 543º do CPC, a douta sentença recorrida efectuou correcta percepção da conduta processual do R. e correcta apreciação da matéria de facto e correcta interpretação e aplicação da lei.
17. Igualmente, ao declarar improcedentes a oposição deduzida pelo R. bem como o incidente de deferimento do despejo, a douta sentença recorrida, para além do correcto julgamento da matéria de facto, efectuou correcta interpretação e aplicação do direito, não podendo, por isso, merecer qualquer reparo.
Termos em que, Deve ser negado provimento ao recurso interposto.
Assim se fazendo JUSTIÇA”
QUESTÕES A DECIDIR
Nestes termos, as questões a decidir que delimitam o objecto deste recurso, admitidas por este colectivo, consistem em apurar se:
a) se foram cumpridos os ónus impostos pelo artº 640 do C.P.C. com vista à admissibilidade da impugnação da matéria de facto e, em caso afirmativo, se esta deve ser alterada;
b) se nessa sequência deve ser reconhecida a ineficácia da oposição à renovação do arrendamento, pelo não envio de comunicação ao cônjuge do arrendatário;
c) se o procedimento de despejo não cumpre os requisitos do artº 15-C da Lei nº 6/2006.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
O tribunal recorrido considerou a seguinte matéria de facto:
1. Por documento particular datado de 01/03/2020, a Autora BB cedeu ao Réu ao gozo temporário do 3.º andar esquerdo, na Rua ..., ... com o artigo predial n.º ...35 I e garagem com o artigo n.º ..., inscrito na freguesia ... na ..., destinado a habitação, pelo prazo de 6 meses, com início em 01 de março de 2020, renovável automaticamente por períodos iguais e sucessivos de 6 meses se não for denunciado, revogado ou a senhoria não se opuser à sua renovação.
2. A renda acordada foi de 175,00€, a pagar até ao oitavo dia útil do mês imediatamente anterior ao que disser respeito, por débito bancário para o IBAN indicado no acordo escrito formalizado nessa data.
3. O imóvel acima aludido destina-se à habitação do Réu.
4. Os AA comunicaram ao Réu, via carta registada com aviso de recção assinado pelo próprio a 24/10/2023, oposição à renovação do acordo aludido em 1., com efeitos a 28/02/2024.
5. O Réu é casado com DD desde ../../2009.
6. FF, nasceu a ../../2009 e é filha do Réu e de DD.
7. Por acordo homologado por sentença de 22 de setembro de 2021, proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, Juízo de Família e Menores da ... - Juiz 1, FF ficou confiada ao pai, sendo as responsabilidades parentais exercidas por ambos os progenitores.
8. Após, por acordo homologado por sentença de 11 de janeiro de 2022, proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, Juízo de Família e Menores da ... - Juiz 1, FF ficou confiada a ambos os progenitores que exercem as responsabilidades parentais.
9. O Réu partilha a guarda da filha menor com progenitora da mesma, em modo de residência alternada.
10. O Réu tem antecedentes pessoais de adenoma do recto 20mm com displasia de alto grau excisado e padece de diabetes mellitus, cirrose hepática, obesidade, síndrome de apneia obstrutiva do sono grave (IAH 75 basal) com hipertensão arterial associada, disfunção eréctil, hiperuricemia e antecedentes de infeção crónica por vírus da Hepatite C.
11. O réu prestou serviços de vigilância no Mercado Municipal da ..., durante cerca de 1 ano, auferindo o salário mínimo nacional.
12. No âmbito do processo nº 1648/22...., que correu termos no Juízo Local Cível da Figueira da Foz, Juiz 2, na sentença aí proferida, já transitada em julgado, consignou-se: “De acordo com os factos provados, apenas o requerido subscreveu o contrato, pelo que apenas ele se vinculou na qualidade de arrendatário, e é parte no contrato”.
13. DD não reside no imóvel identificado em 1.
A. O requerido não dispõe, imediatamente, de qualquer outra habitação, nem dispõe de qualquer património imobiliário ou mobiliário.
B. O Requerido sofreu um acidente de trabalho no estrangeiro, causando-lhe lesões permanentes nos membros superiores direitos, e debilidade funcional e profissional, tendo-lhe sido atribuída uma incapacidade permanente parcial, que foi fixada em 72%.
C. À data da outorga do acordo escrito aludido em 1., DD não residia no imóvel locado e não aceitou assinar o referido contrato.”
DA REAPRECIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
As requerentes vieram alegar que o requerido não cumpriu os ónus previstos no artº 640 do C.P.C., não devendo ser admitida a impugnação da matéria de facto.
Decidindo
I-Se estão cumpridos os ónus exigidos pelo artº 640º do C.P.C.
Relativamente aos requisitos de admissibilidade do recurso quanto à reapreciação da matéria de facto pelo tribunal “ad quem”, versa o artº 640º, nº 1, do Código de Processo Civil, o qual dispõe que:
«Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”
No que toca à especificação dos meios probatórios, quando estes tenham sido gravados, impõe o nº 2 al a) deste preceito que “incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.
Sobre a interpretação deste preceito legal e dos ónus que impõe ao recorrente que pretenda impugnar a matéria de facto, o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a pronunciar-se no sentido de que dele resulta a imposição de dois ónus ao recorrente: o primeiro, constante das diversas alíneas do seu nº1, de delimitar com precisão o âmbito do seu recurso, indicando os pontos concretos que reputa mal julgados, os concretos meios probatórios que deveriam ser considerados para cada ponto de facto impugnado e a resposta concreta que lhes haveria de ter sido dada pelo tribunal a quo.
O não cumprimento deste ónus principal por indispensável à reapreciação pelo tribunal ad quem da impugnação da decisão da matéria de facto determina a imediata rejeição do recurso na parte afectada, como é jurisprudência assente no nosso Supremo Tribunal[3].
O segundo ónus, exige a indicação precisa das passagens da gravação, quando a impugnação se fundamente em meios de prova gravada. Esta indicação precisa das passagens da gravação, embora possa servir de apoio à análise da impugnação, não é essencial à sua apreciação, tendo em conta o dever imposto ao tribunal ad quem, pela alínea b), do nº2, do artº 640 do C.P.C., de investigação oficiosa, embora delimitada pela concreta impugnação da parte recorrente, pelo que o seu não cumprimento, em princípio, não é sancionado com a imediata rejeição do recurso no que se reporta à impugnação da matéria de facto.
Como se refere em Acórdão do STJ de 16/12/2020[4] “Este ónus secundário não visa propriamente fundamentar e delimitar o recurso, mas sim facilitar o trabalho da Relação no acesso aos meios de prova achados relevantes.” pelo que, deve a relação proceder à apreciação da impugnação quando, “apesar da indicação do recorrente não ser, porventura, totalmente exacta e precisa, não exista dificuldade relevantes na localização pelo tribunal dos excertos de gravação em que a parte se haja fundado para demonstrar o invocado erro de julgamento – como ocorre nos casos em que, para além de o apelante referenciar, em função do conteúdo da acta, os momentos temporais em que foi prestado o depoimento, tal indicação é complementada com a indicação do início e termo dos depoimentos, com a indicação do início das passagens dos depoimentos com a referência ao tempo de gravação e ainda com a transcrição de excertos desses depoimentos.”
No mesmo sentido veio o Ac. do STJ de 29/02/2024[5], defender que “enquanto a falta de especificação dos requisitos enunciados no nº 1, alíneas a), b) e c) do referido artigo 640º implica a imediata rejeição do recurso, já quanto à falta ou imprecisão da indicação das passagens da gravação dos depoimentos a que alude o nº 2 do mesmo artigo, tal sanção só se justifica nos casos em que essa omissão ou inexatidão dificulte, gravemente o exercício do contraditório pela parte contrária e/ou o exame pelo tribunal de recurso.”
Assim sendo, só se justifica a rejeição do recurso quanto à matéria de facto quando “(i) falte nas conclusões a referência à impugnação da decisão sobre a matéria de facto (arts. 635.º, n.os 2 e 4, 639.º, n.º 1, 641.º, n.º 2, al. b), do CPC); (ii) quando falte nas conclusões, pelo menos, a menção aos «concretos pontos de facto» que se considerem incorrectamente julgados (art. 640.º, n.º 1, al. a)), sendo de admitir que as restantes exigências das als. b) e c) do art. 640.º, n.º 1, em articulação com o respectivo n.º 2, sejam cumpridas no corpo das alegações.”[6]
Nestes termos, conforme defende ABRANTES GERALDES[7], o cumprimento dos ónus previstos no artº 640 do C.P.C., obriga a que o “o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto, que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões (…) Deve ainda especificar na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados, que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos (…) deixará expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência nova que vem na linha do reforço do ónus da alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente, também sob pena de rejeição total ou parcial da impugnação da decisão da matéria de facto.”
Ora, examinada a impugnação feita pelo recorrente mostram-se cumprido os ónus impostos por este preceito legal, indicando o recorrente o ponto de facto impugnado, a resposta que entende dever ser dada, o ónus que entende caber a cada uma das partes e, o meio de prova que impunha decisão diversa, indicado também de forma perfunctória o início e o fim do seu depoimento.
É assim admissível a impugnação deduzida pelo recorrente que se passa a apreciar.
II-Se deve ser dado alterado o ponto 13 da matéria de facto provada.
A impugnação do recorrente assenta exclusivamente nas suas declarações de parte e no facto de entender que não necessita de provar que a sua esposa habita o locado, presumindo-se que sim, de acordo com o dever de coabitação que decorre do matrimónio, cabendo aos AA. provar que a esposa do arrendatário não reside nesta habitação, prova que no seu entender não foi feita.
Não é assim, no entanto. Ao recorrente cabia o ónus de alegar e provar na sua oposição qualquer um dos fundamentos previstos no artº 15-F nº 3 da Lei 6/2006 de 27 de Fevereiro, ou seja:
a) As pessoas a quem, nos termos da lei, o respetivo direito seja comunicável;
b) O respetivo regime de bens vigente, quando aplicável;
c) Outras pessoas que, licitamente, se encontrem a residir no locado;
d) Qualquer das situações que motivem a suspensão e ou diferimento da desocupação do locado nos termos do artigo 15.º-M; e
e) Se o locado corresponde à casa de morada de família.
No presente caso, cabia ao recorrente alegar e provar que o direito era comunicável, por via do seu casamento e que o locado correspondia à casa de morada de família.
Provado pela junção da certidão de casamento que o recorrente era casado com DD em data anterior à celebração do contrato (ponto 5), sendo assim, em tese, este direito comunicável, para prova do fundamento referido na alínea e), não bastam as declarações do requerido. Sendo este um meio de prova admissível e sujeito ao princípio da livre apreciação da prova (artº 466, nº3, do C.P.C.), o depoimento do recorrente no sentido de por vezes existirem reconciliações e a esposa residir consigo neste locado, não basta por si só. Este depoimento não só não se mostrou credível quando pretendeu que a esposa DD também residiria no imóvel, porque lá tem as suas coisas e por vezes lá pernoita, como ainda que assim não fosse, este pernoitar esporádico, a ser credível que o não é, não preenche o requisito de casa de morada de família constituída por ambos os cônjuges e respectivos filhos.
É, aliás, contrário aos demais factos que se deram como assentes e dos quais decorre que foi estabelecida a regulação do poder parental da menor, filha de ambos, em Setembro de 2021, sendo confiada ao pai, sendo posteriormente estabelecida a guarda partilhada, vigente pelo menos desde Janeiro de 2022. Destes factos resulta que, pelo menos desde Setembro de 2021, a cônjuge do arrendatário não reside no locado.
Dos demais elementos consignados na fundamentação do tribunal a quo decorre que esta DD não reside no imóvel identificado no ponto 1 mas, porque não interessa apenas a prova de que a cônjuge não reside no local arrendado, mas também a data (ou seja, que não residia em data anterior ao envio da comunicação de oposição à renovação), mantêm-se este ponto de facto, mas adicionando a seguinte redacção que decorre dos pontos de facto acima referidos e dos elementos probatórios referidos pelo tribunal a quo:
“13-À data do envio da comunicação referida no ponto 4, DD não residia no imóvel identificado em 1.”
DO DIREITO
Com efeito, em relação às comunicações remetidas ao arrendatário, inclusive para o exercício do direito de oposição à renovação do arrendamento, rege o disposto no art.º 9º, nº 1 da Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro (NRAU), o qual dispõe que, “salvo disposição da lei em contrário, as comunicações legalmente exigíveis entre as partes relativas a cessação do contrato de arrendamento, atualização da renda e obras são realizadas mediante escrito assinado pelo declarante e remetido por carta registada com aviso de receção.”
Estabelece ainda o art.º 12º, nº 1 deste diploma legal, na redação introduzida pela Lei nº 43/2017, de 14 de junho, que “se o local arrendado constituir casa de morada de família, as comunicações previstas no n.º 2 do artigo 10.º devem ser dirigidas a cada um dos cônjuges, sob pena de ineficácia.”
Ora, a norma do artigo 12.º, n.º 1, do NRAU, é aplicável à comunicação pela qual o senhorio se opõe à renovação automática do contrato de arrendamento, prevista no artigo 1097.º, n.º 1, do CC.[8] e deve ser interpretada no sentido de que, nos casos de o locado constituir a casa de morada de família, deve ser dirigido a cada um dos cônjuges a comunicação para oposição de renovação do arrendamento, sob pena de ineficácia da oposição.
Alega ainda o recorrente a comunicabilidade do arrendamento por via do disposto no artº 1068 do C.C., pretendendo assim que, por via deste preceito, a oposição à renovação teria de ser comunicada ao cônjuge por se lhe dever considerar comunicado o arrendamento.
No âmbito do nº 1 do art. 1110 do C.C. e do art. 83 do RAU, a posição do arrendatário não se comunicava ao seu cônjuge e caducava por morte, fosse qual fosse o regime de bens, excepcionando o RAU os casos de transmissão previstos nos artº 84 (divórcio) e 85º (morte), nos termos restritos consignados nestes dois preceitos. Com a entrada em vigor da Lei nº 6/2006, estipulou-se como regime regra a comunicabilidade do direito do arrendatário ao seu cônjuge, independentemente do regime de bens.
Se assim é, no caso em apreço não se discute a comunicabilidade do direito do arrendatário para o seu cônjuge, mas antes a eficácia da comunicação de oposição à renovação do contrato. A exigência constante do artº 12 da Lei nº 6/2006, de que esta comunicação deve ser dirigida a cada um dos cônjuges, depende sempre da demonstração não só do casamento para efeitos de comunicabilidade, mas também a de que o local arrendado constituía a casa de morada de família. Conforme referido em Ac. deste Tribunal da Relação de Coimbra, de 01/03/2005[9], “Como resulta da expressão “ casa de morada de família “ , uma qualquer casa só poderá ter essa dita qualificação quando for nela que habitualmente more ou habite a família, designadamente com os filhos, menores ou maiores, do casamento ou da união de facto, formando todos uma economia comum.”, com vista precisamente à protecção da família constituída por este agregado, o que no caso em apreço não se verifica pois que a referida DD, à data do envio deste comunicação, estava separada de facto do R. e não habitava o locado. Nem faria sentido que, estando os cônjuges separados de facto, não residindo o cônjuge não contraente no locado e tendo constituído a sua residência noutro local, lhe tivesse de ser comunicada a oposição à renovação do arrendamento celebrado com o R.
Alega ainda o requerido que o procedimento de despejo deveria ter sido recusado pelo BAS pois que omitia os elementos previstos no artº 15-C da Lei nº 6/2006.
Não tendo sido estes factos alegados em sede de oposição, nem objecto de pronúncia pelo tribunal recorrido, mas podendo considerar-se que se inclui no elenco das questões objecto de conhecimento oficioso (por uso indevido deste procedimento), uma mera consulta do requerimento apresentado demonstra o infundado desta argumentação.
No demais, não alega o recorrente qualquer fundamento jurídico que permita afastar a sua condenação ao abrigo do disposto no artº 15-R nº2 do NRAU. Não basta alegar que “As preditas condenações em multa e indemnização, por uso indevido do procedimento, são completamente, diz-se com o devido respeito, que muito é, esboroadas de fundamento legal e cabimento jurídico.”
Seria necessário a alegação de fundamentos fáctico-jurídicos que, a procederem, afastassem a aplicação desta norma ou do montante fixado.
A improcedência das questões colocadas pelo requerente e a consideração de que este alega factos que bem sabe não serem verídicos (pelo facto de a cônjuge não habitar o locado) conduz à conclusão a este respeito vertida na decisão recorrida.
DECISÃO
*
Fixam-se as custas a cargo do apelante (artº 527 nº1 e 2 do C.P.C.).
Coimbra 13/05/2025
[1] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pp. 84-85.
[2] Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 87.
Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, «Efetivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação». No mesmo sentido, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007, Simas Santos, 07P2433, de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13.
[3] Neste sentido, vide ainda Ac. do STJ de 09-12-2021, proferido no proc. nº 9296/18.0T8SNT.L1.S1 - 2.ª Secção – de que foi relator Rijo Ferreira e o Ac. do STJ de 18-01-2022, proferido no proc. nº 243/18.0T8PFR.P1.S1 - 1.ª Secção – de que foi relatora Maria Clara Sottomayor, defendendo que “uma total omissão, nas conclusões do recurso, da referência à impugnação da matéria de facto não pode ser suprida pela circunstância de no corpo das alegações constarem alegadamente os elementos exigidos pelo art. 640.º do CPC.”
[4] Ac. do STJ de 16/12/20, de que foi Relator Bernardo Domingos, proferido na Revista nº 8640/18.5YIPRT.C1.S1, disponível in www.dgsi.pt.
[5] Proferido na Revista nº 7825/22.4T8LSB.L1.S1, de que foi relator Ferreira Lopes, disponível in www.dgsi.pt.
[6] Ac. do STJ de 09-06-2021, proferido na Revista n.º 10300/18.8T8SNT.L1.S1, de que foi relator Ricardo Costa, disponível in www.dgsi.pt
[7] Recursos no Novo Código de Processo Civil, 4ª ed., 2017, Almedina, pág. 155/156.
[8] Neste sentido, entre muitos outros, Ac. de 27/06/2023, de TRP, proc. 161/22.8T8ESP.P1, de que foi relator Artur Dionísio Oliveira, disponível em www.dgsi.pt
[9] Proferido no processo n.º 4220/04, disponível em www.dgsi.pt.