ERRO JUDICIÁRIO
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DO ESTADO
DIREITO DE INDEMNIZAÇÃO
INÍCIO DO PRAZO DE PRESCRIÇÃO
Sumário

I – O prazo de prescrição do direito de indemnização fundado na responsabilidade civil extracontratual inicia-se com o conhecimento pelo lesado do direito que lhe pertence (cf. art. 498º, nº 1, do C.Civil, aplicável à indemnização por responsabilidade civil extracontratual do Estado, das demais pessoas coletivas de direito público ex vi do art. 5º do “Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas” - RRCEE).
II - No que concerne ao início do prazo da prescrição, aplica-se o critério preceituado no art. 306º, nº 1 do C.Civil de o prazo prescricional “começar a correr quando o direito puder ser exercido”.
III – Assim quando, como na situação vertente, estava em causa a administração da justiça (em sentido lato), é necessário para começo da contagem do prazo que o lesado tenha efetivo e certificado conhecimento do direito que lhe compete, isto é, o prazo apenas corre a partir do momento em que o mesmo soube, de forma segura e consistente, ter direito a indemnização pelos danos que sofreu [e não da consciência, da possibilidade legal do ressarcimento], o que só ocorreu com a decisão absolutória no processo crime instaurado contra si.
IV – Acrescendo que no segmento em que está invocada a responsabilidade civil do Estado decorrente da “função jurisdicional”, com referência ao erro judiciário, são as próprias normas legais atinentes a estabelecer (como pressuposto processual) que o início do prazo de prescrição ocorre a partir da revogação da decisão judicial (art. 13º do mesmo RRCEE).
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral

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     Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]

                                                                       *

            1 – RELATÓRIO

A..., LDA.”, pessoa colectiva n.º ...74, com sede na Avenida ..., ..., ... ..., instaurou a presente ação contra o ESTADO PORTUGUÊS, representado pelo Ministério Público, e o “INSTITUTO DA VINHA E DO VINHO, I.P.”, com o NIPC 501 722 335 e com sede na Rua Mouzinho da Silveira, n.º 5, 1250-165 Lisboa.

Alegou, em síntese, que é uma sociedade comercial armazenista que opera ao nível das trocas comerciais do vinho e aguardente a granel e que em Março de 2001 o Ministério Público instaurou contra si e outros um processo-crime por alegada prática de crime contra a genuinidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos alimentares, que correu termos por este Tribunal, sob o n.º 3/01....; que esse processo-crime foi instaurado pelo Ministério Público na sequência de uma denúncia apresentada pelo 2.º réu, Instituto do Vinho e da Vinha (=IVV); que a denúncia emergiu de uma deslocação em 2001 de uma brigada do IVV a instalações onde a autora armazenava vinho e outros produtos de origem vínica e aí se verificou que era adicionada água a um dos depósitos de vinho ali existentes; que foram, por isso apreendidos 220.000 litros de vinho branco que se encontravam no depósito e no dia seguinte apreendidos ainda mais 3.590.000 litros de vinho; que essas apreensões foram validadas pelo Ministério Público, o qual ordenou ainda a apreensão da totalidade do conteúdo dos 120 depósitos existentes nas instalações e, dias depois, a apreensão de todos os produtos num volume total de 21.923.124 litros; que após a realização de análises aos produtos apreendidos, o Ministério Público concluiu que parte deles devia ser considerada como “géneros alimentícios normais” e, em Julho de 2001, ordenou a desapreensão de 10.788.149 litros, bem como a desapreensão de todo o vinho apreendido nas instalações das sociedades clientes da autora, à excepção de 256.280 litros que se mantiveram apreendidos; que o Tribunal do Bombarral veio a proferir sentença, em 02.06.2011, já transitada, concluindo que todos os produtos que se mantinham apreendidos eram normais, não estarem preenchidos os elementos do tipo legal de crime, absolvendo a autora e os demais arguidos, determinando a desapreensão dos produtos que se mantinham apreendidos e a sua restituição à autora; que esta sentença foi proferida depois de outra proferida pelo Tribunal do Bombarral, 24.07.2002, ter condenado a autora e outros arguidos pela prática de crime contra a genuinidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos alimentar, a qual veio a ser revogada pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 31.10.2003, na sequência de recurso interposto, por se ter concluído que a sentença de 2002 havia enfermado de erros grosseiros na valoração da prova produzida no processo-crime; que só após a realização de outras análises e a realização de novo julgamento é que o Tribunal veio a concluir que o vinho apreendido nos autos não apresentava as irregularidades descritas na acusação e que não existia qualquer razão que justificasse a manutenção da apreensão, pelo que ordenou a desapreensão do vinho e respectiva restituição à autora e absolveu os arguidos, depois de mais de 10 anos desde a apreensão; que as apreensões foram feitas sem o cuidado ou a preocupação de confirmar as suspeitas, sem averiguar da existência de água no vinho armazenado pela autora e sem ter submetido o vinho a quaisquer análises, limitando-se o Ministério Público a validar tais apreensões, sem fundamento; que tais factos causaram vários danos à autora, cujo ressarcimento peticiona na presente ação.

Concluiu, pedindo a condenação dos réus a pagar-lhe, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais que alega ter sofrido, a quantia global de € 24.798.712,04, acrescida de juros de mora desde a data da citação até integral pagamento (sendo a quantia de € 136.887,04 pelos custos com análises ao vinho e à aguardente apreendidos; a quantia de € 4.535,98 pelos custos com viagens e alojamento; a quantia de € 1.844,31 pelos custos com o envio das amostras para a “Eurofins”; a quantia de € 3.585,09 pelos custos com o transporte do vinho e da aguardente; a quantia de € 275.688,00 pelos custos relativos ao armazenamento dos produtos apreendidos; a quantia de € 36.701,15 pelo custo do seguro de existências; a quantia de € 2.167,87 pelo custo do seguro multirriscos; a quantia de € 15.667,31 pelos encargos com a garantia bancária; a quantia de € 47.711,20 pelos custos das análises aos produtos apreendidos; a quantia de €95.122,14 pelas despesas com assessoria jurídica e de engenharia; a quantia de € 124.940,61 pelos custos com remunerações de funcionários da Autora; a quantia de € 4.857.561,97 pelo custo da imobilização do dinheiro correspondente ao valor dos produtos apreendidos; a quantia de € 595.430,22 pelo custo da imobilização do dinheiro gasto pela Autora para pagamento das despesas e encargos e custo da imobilização; a quantia de € 2.600.869,15 por prejuízos decorrentes da deterioração e perda de valor dos produtos apreendidos; a quantia de correspondente ao valor do custo de oportunidade, a liquidar em execução de sentença; a quantia de € 1.000.000 referente à quebra da margem de lucro da Autora; e a quantia de € 15.000.000 a título de danos não patrimoniais).

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Os réus apresentaram contestação, alegando, para além da exceção de incompetência em razão da matéria, já entretanto definitivamente decidida, e para lá de outra matéria de exceção, a prescrição do direito de indemnização, concluindo, consequentemente, pela sua absolvição do pedido.

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A autora, em contraditório, sustentou pormenorizadamente que não se verificava a prescrição do crédito à indemnização cujo pagamento reclamava na presente ação, renovando o pedido de condenação dos réus nos termos constantes da p.i. – vd. req.º de pronúncia de 03.02.2015.

                                                           *

De seguida, consignando que «[O] estado dos autos permite proferir decisão final, com conhecimento da matéria de prescrição, sem necessidade de produção de outras provas, sendo certo que quanto a esta matéria de excepção as partes, com toda a latitude e suficiência, já a debateram nos articulados - cf. CPC: art. 595º-1-b)», passou o Exmo. Juiz de 1ª instância a apreciar e decidir a dita exceção de prescrição em sede de “SANEADOR-SENTENÇA”, no contexto do que, em síntese, considerou ter tido a Autora conhecimento dos pressupostos da responsabilidade civil em que fez assentar o pedido de indemnização deduzido nos autos, em 2001 ou, no máximo, em 2003, e porque se devia contar desde essa data – e não desde a prolação da Sentença que absolveu a Autora do crime contra a genuinidade, qualidade e composição de géneros alimentícios e aditivos alimentares, pelo qual vinha acusada (2 de Junho de 2011) – o prazo de prescrição de três anos a que alude o nº 1 do art. 498º do C.Civil, era de concluir que o direito de crédito invocado pela Autora nos presentes autos já se encontrava, à data da citação dos RR. [ambos foram citados para os termos da presente ação em 01.07.2014], extinto, por efeito da prescrição, termos em que se finalizou pela seguinte forma:

            «Atento o exposto, decide-se:----

I – Julgar procedente a excepção de prescrição invocada e, em consequência, absolver os réus ESTADO PORTUGUÊS (representado pelo Ministério Público) e INSTITUTO DA VINHA E DO VINHO, I.P., do pedido contra si deduzido por A..., LDA., com as legais consequências.----

II – Condenar a autora no pagamento das custas.----

III – Valor: já indicado.----

IV - Notifique e registe.---- »

                                                           *

            Inconformada com um tal despacho, apresentou a Autora recurso de apelação contra o mesmo, cujas alegações finalizou com as seguintes conclusões:

«A. Decidindo como decidiu, o Tribunal a quo, com a merecida consideração e o devido respeito,

incorreu numa errada apreciação da causa de pedir alegada na PI e num erro sobre o julgamento da matéria de direito.

B. O Tribunal a quo fez uma errada interpretação dos factos de onde emerge o direito invocado pela Recorrente na acção, na medida em que a causa de pedir alegada na PI não assenta na “injustificada apreensão dos vários litros de vinho no ano de 2001”.

C. O direito invocado pela Recorrente na acção emerge, outrossim, da Sentença proferida pelo Tribunal Judicial do Bombarral em 2.06.2011, que veio a considerar injustificados e descabidos os actos praticados pelos Recorridos (para além de culposos e danosos) e que veio a considerar que a Sentença, proferida por esse mesmo Tribunal em 2002, enfermou de erros grosseiros na valorização da prova.

D. Isso mesmo resulta também da Decisão de 15 de Novembro de 2023 do Tribunal dos Conflitos - que atribuiu aos Tribunais comuns a competência para conhecer dos presentes autos – através da qual se esclarece que, no caso concreto, estamos perante uma acção de responsabilidade civil fundada em erro judiciário com erro grosseiro, imputando danos à concreta decisão proferida num processo crime, embora conjugada com outros actos de manutenção das apreensões dos produtos vinícolas.

Assim e esclarecido este ponto,

E. Errou o Tribunal a quo na interpretação que faz quanto ao início da contagem do prazo prescricional a que alude o art. 498º, n.º 1, do CC.

F. O início da contagem do prazo prescricional terá de coincidir, in casu, com a prolação e notificação da Sentença proferida pelo Tribunal do Bombarral em 2.06.2011 (ou com o seu trânsito em julgado, o que, para o caso, é indiferente, na medida em que a Recorrente interpôs a acção dentro do prazo de 3 anos após a prolação da dita Sentença).

G. Só nessa data é que a Recorrente adquiriu o conhecimento da existência do seu direito, pois que, só a partir daí pode afirmar, como afirma, que (i) as apreensões feitas pelo IVV e validadas pelo Ministério Público foram infundadas e injustificadas, atenta a “normalidade” constatada na Sentença de 02.06.2011 quanto aos produtos apreendidos e que (ii) a Sentença que condenara a Recorrente em Julho de 2002, enfermava, por isso, de erros grosseiros na valoração da prova produzida.

H. Pelo que errou o Tribunal a quo ao considerar que os pressupostos da responsabilidade civil, em que a Recorrente assentou o seu pedido, tornaram-se do seu conhecimento em 2001, aquando das apreensões dos produtos vinícolas, ou, quando muito, aquando da Sentença do Tribunal da Relação de Lisboa de 2003, ou seja, no momento do conhecimento pela Recorrente dos factos produtores dos danos, concluindo pela prescrição do direito da Recorrente.

I. O início do prazo de prescrição deve reportar-se ao momento em que o direito possa ser exercido, que coincide com o momento do conhecimento do direito que lhe compete, isto é, do direito à indemnização - existência objectiva, no aspecto jurídico, das condições necessárias e suficientes para que o direito possa ser exercitado - e não ao momento da lesão do direito do titular da indemnização.

J. Aliás, se se deve considerar que o lesado tem conhecimento do direito que lhe compete quando se torna conhecedor da existência, em concreto, dos pressupostos que condicionam a responsabilidade civil como fonte da obrigação de indemnizar (facto ilícito, culpa, dano e relação de causalidade entre o facto e o dano), sabendo ter direito à indemnização “pelos danos que sofreu”, então, parece não dever suscitar dúvida relevante a circunstância de o conhecimento de elementos como a ilicitude e, eventualmente, o nexo de causalidade entre o facto e o dano e a culpa, na responsabilidade civil por erro judiciário (danos decorrentes da função jurisdicional), só se tornarem do conhecimento do lesado no momento em que toma conhecimento da decisão absolutória do processo, pois que só então fica reconhecida a desnecessidade, inadequação ou desproporcionalidade dos actos e dos meios utilizados pelo Estado e pelas demais entidades públicas no processo, tidos como errados e violadores dos direitos da Recorrente e, em consequência, geradores da obrigação de indemnizar.

K. Pressuposto da responsabilidade, do requisito ilicitude, é, na verdade, que as medidas tomadas pela autoridade judiciária venham a revelar-se infundadas e injustificadas.

L. Ademais, sempre é necessário o conhecimento, pelo lesado, de que é juridicamente fundado o direito à indemnização. Sem esse conhecimento, nenhum lesado sabe se pode, ou não, exigir a indemnização.

M. No caso, o direito da Recorrente só podia ser exercido após a Sentença do Tribunal Judicial do Bombarral, de 2 de Junho de 2011. Antes desse momento, a Recorrente não sabia se teria, ou não, direito a um pedido indemnizatório, nem este existia.

N. Só em 2 de Junho de 2011, com a prolação da Sentença que decidiu que os produtos apreendidos eram genuínos e regulares, que os actos praticados pelos Recorridos eram injustificados e descabidos e que a referida Sentença de 2002 enfermou de erros grosseiros na valorização da prova, é que a Recorrente tomou conhecimento de que tinha direito de ser indemnizada pelos Recorridos pelos danos que estes, com as suas condutas melhor descritas na petição inicial, lhe causaram.

O. Ou melhor, o direito de indemnização da Recorrente existe porque os actos praticados pelos Recorridos, para além de culposos e danosos, vieram, por Sentença proferida em 2.06.2011, a ser considerados injustificados e descabidos e se veio a considerar que a referida Sentença de 2002, enfermou de erros grosseiros na valorização da prova.

P. É, por isso, absolutamente relevante (e não irrelevante, como se defende na Sentença recorrida!) para efeitos do cômputo do prazo da prescrição, a Sentença de 2.06.2011, que absolveu a Recorrente do crime de que vinha acusada.

Q. De referir ainda que o art. 13º do RRCEE, dispondo sobre responsabilidade por erro judiciário, alude, como verdadeiro pressuposto da acção, à exigência de que «o pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente», revogação essa que apenas ocorreu em 2.06.2011, e não, como defende o Tribunal a quo, com o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 31.10.2003.

R. A Sentença proferida pelo Tribunal Judicial do Bombarral em 24.07.2002, não foi pelo Tribunal da Relação de Lisboa revogada no sentido de ter sido objecto de uma decisão de mérito - e definitiva para a solução do litígio -, em sentido contrário ao decidido em 1ª instância. Apenas se descortinou o cometimento de uma nulidade processual e determinou o reenvio do processo para novo julgamento.

S. É manifesto que só existe decisão definitiva (revogatória) com a decisão proferida em 02.06.2011, pelo que só esta pode constituir pressuposto do pedido de indemnização baseada no art. 13º do RRCEE, pelo que também errou o Tribunal a quo ao decidir o seu contrário.

T. Também não colhe o argumento aduzido pelo Tribunal recorrido de que a Recorrente deveria ter dado entrada da acção nos 3 anos após o conhecimento das apreensões dos produtos vinícolas e, posteriormente e se necessário, sempre o Tribunal poderia suspender a instância por verificação de causa prejudicial, na medida em que não se tratava, em 2001 ou em 2003, como defende o Tribunal recorrido, de desconhecer a extensão dos danos em causa. Tratava-se, outrossim, de conhecer (ou, neste caso, desconhecer) a própria existência do direito de indemnização, uma vez que este direito dependeu de uma apreciação qualitativa da conduta dos Recorridos ao longo do processo, que só se tornou possível depois de terminado o processo-crime e depois do reconhecimento do erro grosseiro, o que impedia a interposição de qualquer acção.

U. Para além disso, a pendência do processo-crime, em que se estava a discutir se foi ou não praticado o crime e, portanto, se a denúncia e as apreensões foram ou não fundadas, sempre impedia a Recorrente de intentar uma acção de responsabilidade no foro civil, o que reforça a ilegalidade da Sentença recorrida.

V. O direito de indemnização que a Recorrente invoca na presente acção não se encontrava prescrito à data de interposição da mesma (2 de Junho de 2014), ou, à cautela, à data em que o prazo se considerou interrompido por via da concretização das Notificações Judiciais Avulsas notificadas aos Recorridos em 27 e 29 de Maio de 2014.

W. A Decisão proferida pelo Tribunal a quo viola, por tudo o quanto vai exposto, o disposto no n.º 1 do artigo 498.º do CC e o disposto nos artigos 5º e 13º do RRCEE, e deve ser revogada da ordem jurídica e substituída por outra que julgue improcedente a excepção peremptória de prescrição do direito que a Recorrente pretende fazer valer nestes autos, ordenando o prosseguimento dos presentes autos.

Termos em que dando provimento ao presente recurso, e ao revogar a decisão de que se recorre da ordem jurídica, substituindo-a por outra que julgue improcedente a excepção peremptória de prescrição, V. Exas farão, como sempre, inteira

JUSTIÇA!»

                                                                       *

Por sua vez, apresentou a Ré “INSTITUTO DA VINHA E DO VINHO, I.P.” as suas contra-alegações, das quais extraiu as seguintes conclusões:

«A) O recurso da Autora, ora Recorrente, vem interposto da Sentença proferida em 10.10.2024 pelo Tribunal a quo, que julgou procedente a exceção de prescrição invocada e absolveu os Réus Estado Português e IVV dos pedidos contra estes deduzidos.

B) A Recorrente entende que a decisão do Tribunal a quo deve ser revogada, por duas razões:

i. o Tribunal fez uma errada interpretação dos factos de onde emerge o direito invocado pela Recorrente, considerando a presente ação uma “qualquer ação de responsabilidade civil”, que tem como causa de pedir a injustificada apreensão dos vários litros de vinho e, em consequência, apreciou erroneamente a prescrição do seu direito;

ii. o conhecimento do seu direito indemnizatório só ocorreu com a prolação da Sentença proferida em 02.06.2011, visto que, por um lado, estando a correr um processo-crime, a Recorrente não poderia intentar uma ação de responsabilidade civil e, por outro, a prévia revogação da decisão danosa em que se alicerça a presente ação (cf. artigo 13.º, n.º 2, do RRCEE) apenas se verificou com a Sentença de 2011.

C) Quanto ao primeiro dos argumentos da Recorrente, ao longo da Sentença recorrida, o Tribunal refere e reconhece expressamente que a presente ação não é “uma qualquer ação de responsabilidade civil”, mas sim “uma acção de indemnização instaurada contra o Estado”.

D) A causa de pedir numa ação de responsabilidade civil é necessariamente complexa, por compreender vários factos destinados ao preenchimento dos seus diversos pressupostos, mas tem sempre um elemento preponderante.

E) No caso, o elemento preponderante da ação intentada pela Recorrente é a apreensão (injustificada) de vários litros de vinho; sendo os restantes factos alegados, factos principais complementares, decorrentes da apreensão, que explicam e densificam os termos em que a apreensão foi feita e as respeitas consequências.

F) O que explica que o Tribunal a quo tenha referido, em termos genéricos, que “a causa de pedir alegada na p.i. não assenta no atraso da justiça, mas sim na injustificada apreensão dos indicados livros de vinho no recuado ano de 2001 e, por causa dessa apreensão, nos danos patrimoniais e não patrimoniais causados à Autora”.

G) Por outro lado, considerando que os factos alegadamente danosos são imputados a duas entidades distintas – a saber, o IVV e o Estado Português – a causa de pedir em relação a cada um deles é, necessariamente, distinta.

H) O IVV apenas pode ser responsabilizado pelos factos que se incluam nas suas competências e que tenha praticado – no caso, (i) as apreensões realizadas em 2001; (ii) a denúncia apresentada em 27.03.2001; e (iii) as análises e pareceres técnicos realizados no decurso do ano de 2001.

I) O IVV nunca poderia ser responsabilizado pelas decisões de apreensão e validação ou levantamento de apreensões tomadas pelo Ministério Púbico, pelos erros na valoração da prova cometidos pelo Tribunal Judicial do Bombarral em 2002, ou tampouco pela demora no proferimento da decisão final do processo-crime. Não lhe podendo, em particular, ser imputado qualquer erro judiciário.

J) Quanto ao segundo dos argumentos invocados, os factos imputados pela Recorrente ao IVV remontam ao ano de 2001.

K) No caso concreto, a Recorrente conhece o direito que lhe compete, pelo menos quanto ao IVV, desde 2001 – data das apreensões realizadas pelo IVV (e, bem assim, do levantamento de parte da apreensão dos produtos em causa).

L) Nos termos do artigo 498.º, n,º 1, do CC, o lesado tem conhecimento do direito que lhe compete quando conhece a existência dos factos que integram os pressupostos da responsabilidade civil, ou seja, “o momento em que se inicia o prazo curto de prescrição é aquele em que sejam conhecidos do lesado os pressupostos da ação de indemnização, traduzidos nos seus elementos fácticos, e não o do reconhecimento judicial da verificação do facto lesivo e sua qualificação, v.g., como facto ilícito, em ação que, para este último efeito, tenha sido proposta)” (destaque nosso).

M) O que significa que, como bem afirmou o Tribunal a quo, não é necessário que a ilicitude dos factos seja declarada judicialmente para efeitos de contagem do prazo prescricional, sendo a prolação da Sentença de 02.06.2011 juridicamente irrelevante para o efeito.

N) Pelo que, os elementos fácticos que fundamentam a ação de responsabilidade civil, mormente quanto ao IVV, reportam-se tão e somente ao ano de 2001.

O) Ao que acresce que o dano que a Recorrente alega ter sofrido é apenas um e radica na danificação de vários litros de vinho em consequência da apreensão ocorrida em 2001, não obstando a tal conclusão o facto de, em relação a alguns produtos vitivinícolas, esta ter sido mantida por mais de 10 anos (cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 21.01.2021).

P) O prolongamento no tempo dos danos alegados pela Recorrente traduz apenas o desconhecimento da sua extensão integral que, nos termos do artigo 498.º, n.º 1, do CC, não obsta a que o prazo prescricional comece a correr.

Q) Por outro lado, sublinhe-se que os pressupostos da responsabilidade criminal não se confundem com os pressupostos da responsabilidade civil, pelo a apreciação destes últimos não depende da prévia definição da ilicitude penal de uma determinada conduta.

R) Se se fizesse depender a fixação do dies a quo do prazo prescricional do término do processo-crime, contrariar-se-ia o seu caráter objetivo, expressamente previsto no artigo 306.º, n.º 1, do CC, permitindo que este passasse a depender das vicissitudes de cada caso concreto.

S) Ainda que a pendência do processo-crime pudesse ser entendida como causa prejudicial e que tal determinasse a suspensão da instância civil, a propositura de uma ação de responsabilidade civil nunca perderia o seu sentido, na medida em que permitiria à Recorrente acautelar, no tempo devido, o direito de que se arroga.

T) Por último, a revogação da alegada decisão danosa pela jurisdição competente, de que depende a propositura da presente ação, ocorreu com o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 2003 (cf. artigo 13.º, n.º 2, do RRCEE).

U) Afirmação esta que resulta, essencialmente, do seguinte: o regime legal apenas exige que (i) a decisão danosa que incorreu em erro de facto ou erro de direito seja revogada, sem quaisquer exigências adicionais, e (ii) que a revogação ocorra na sequência da interposição de um Recurso, sendo decidida por um tribunal hierárquica ou funcionalmente superior.

V) Ora, a decisão que determinou a revogação da alegada decisão danosa (a Sentença que condenou a Recorrente, pela prática de crime contra a genuinidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios) e que foi proferida no seguimento de recurso interposto pela Recorrente e por um Tribunal hierarquicamente superior, foi o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 2003.

W) A Sentença do Tribunal do Bombarral de 02.06.2011 não cumpre com os requisitos artigo 13.º, n.º 2, do RRCEE, por ter sido proferida pelo mesmo Tribunal que proferiu a alegada decisão danosa e não por um Tribunal hierarquicamente superior.

Isto posto,

X) Tendo a Recorrente conhecimento dos elementos fáticos que preenchem os pressupostos da responsabilidade civil desde 2001 ou, no limite, desde 2003, o direito indemnizatório de que se arroga nos presentes autos prescreveu em 2004 ou, no limite, em 2006 (respetivamente, 10 ou 8 anos depois da notificação judicial avulsa apresentada para suposta interrupção desse prazo).

Nestes termos e nos demais de Direito, deve o presente Recurso ser julgado totalmente improcedente e, em consequência, ser mantida a Douta decisão recorrida, nos exatos termos em que foi proferida, com todas as consequências legais,

Fazendo-se, assim, a necessária Justiça.».

                                                                       *

Também contra-alegou o ESTADO PORTUGUÊS, extraindo o seu representante Ministério Público da resposta que apresentou, as seguintes conclusões:

«1. Na presente acção judicial a A. tinha conhecimento do direito de pedir o ressarcimento pelos danos sofridos com a actuação das entidades públicas, desde a apreensão dos produtos vínicos, ou no mínimo, desde a data em que parte desse produto lhe foi restituído em Julho de 2001, estando, assim em condições

objectivas legais de o exercer;

2. A circunstância de se aguardar pela decisão final do processo criminal em que a A. era arguida, não constituía, legalmente, impedimento para o exercício de tal direito;

3. E desde logo, porque a presente acção não se fundamenta no “erro judiciário” tal como previsto no art.13º nº1 da Lei nº67/2007 de 31/12, cujo pedido de indemnização pressupõe a prévia revogação da decisão danosa, mas, por danos que se alega, resultantes da função jurisdicional do Estado e da actuação de um órgão da Administração Pública;

4. E assim sendo, o prazo de prescrição estabelecido no art.498º nº1 do C.Civil, do direito de indemnização, conjugado com o disposto no art. 306º nº1 do mesmo diploma legal, iniciou-se a partir daquela data;

5. O prazo estabelecido no cit. art.498 nº1 não admite uma disponibilidade interpretativa subjectiva por parte de quem pretende usar daquele direito;

6. A não se entender assim, permitir-se-ia que o titular desse direito prorrogasse artificialmente esse prazo, o que não corresponde à intenção do legislador;

7. A decisão recorrida ao decidir pela verificação no caso “sub judice”, da prescrição do direito de indemnização da recorrente, absolvendo, por consequência os réus Estado e Instituto da Vinha e do Vinho do pedido formulado pela A., fez uma correcta interpretação e aplicação das normas ínsitas nos art. 498º nº1, 306º nº1 do C.Civil e do art. 5º da Lei nº67/2007 de 31/12.

8. Pelo exposto, a decisão ora recorrida, não violou quaisquer disposições legais, mormente as indicadas pela recorrente, devendo ser mantida na íntegra, e julgar-se, consequentemente, improcedente o presente recurso.

Vossas Excelências, porém, farão a acostumada

JUSTIÇA»

                                                                       *

            Cumprida a formalidade dos vistos e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                                                                       *

            2QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objeto do recurso delimitado pelo Recorrente nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detetar o seguinte:

- (des)acerto da decisão que julgou procedente a exceção perentória de prescrição.

                                                                       *

            3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Corresponde à enunciação que foi alinhada na decisão recorrida, sem olvidar que o recurso não impugna/questiona tal.

Foi, então, o seguinte, o que foi consignado pelo Tribunal a quo:

«A autora alegou na sua p.i., no essencial, para efeitos de apreciação da excepção peremptória de prescrição, os seguintes factos:----

1. A Autora é uma sociedade comercial armazenista que opera ao nível das trocas comerciais do vinho e aguardente a granel.----

2. Em Março de 2001 o Ministério Público instaurou contra a Autora e outras dois arguidos um processo-crime pela alegada prática de crime contra a genuinidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos alimentares, que correu termos sob o n.º 3/01.....----

3. O processo-crime foi instaurado pelo Ministério Público na sequência de uma denúncia apresentada pelo Instituto do Vinho e da Vinha (doravante, IVV).----

4. No dia 15.03.2001 uma brigada do IVV deslocou-se às instalações do IVV no ..., cedidas por este à autora para aí armazenar vinho e outros produtos de origem vínica.----

5. Durante essa deslocação, um dos técnicos do IVV que integrava a dita brigada alegou ter visto um funcionário da autora, AA, a adicionar água a um dos depósitos de vinho ali existentes.----

6. Nesse dia a brigada do IVV procedeu à apreensão de 220.000 litros de vinho branco que se encontravam no depósito n.º 255.-

7. No dia 16.03.2001 os técnicos do IVV deslocaram-se novamente às instalações do ... e procederam à apreensão de mais 3.590.000 litros de vinho.----

8. Estas apreensões foram validadas pelo Ministério Público, por despacho de 27.03.2001, por, alegadamente, existirem “fortes indícios que a sociedade A..., S.A. tem em depósito género alimentício falsificado (vinho misturado com água e açúcar de cana)”.----

9. Nesse despacho o Ministério Público ordenou a apreensão da totalidade do conteúdo dos 120 depósitos existentes nas instalações do IVV do ..., à excepção do já apreendido, bem como a sua selagem.----

10. No dia 27.03.2001[2], técnicos do IVV deslocaram-se ao local e procederam à apreensão de todos os produtos que a autora aí tinha depositados, num total de 18.113.124 litros.----

11. O volume total de produtos de origem vínica apreendidos à autora no armazém do IVV do ... ascendeu a 21.923.124 litros.----

12. No dia 29.03.2001 técnicos do IVV deslocaram-se às instalações dos clientes da autora, “B..., Lda.”, “C..., Lda.”, “D..., Lda.” e “E..., Lda.”, e aí procederam à apreensão de todo o vinho recentemente adquirido por estas sociedades à Autora.----

13. Após a realização de análises aos produtos apreendidos, o Ministério Público concluiu que parte deles devia ser considerada como “géneros alimentícios normais” e em Julho de 2001 ordenou a desapreensão de 10.788.149 litros dos produtos que estavam apreendidos no armazém do IVV do ....----

14. E ordenou também a desapreensão de todo o vinho apreendido nas instalações das sociedades clientes da Autora acima identificadas, à excepção de 256.280 litros, que se mantiveram apreendidos e que estas sociedades devolveram à Autora.----

15. Os restantes produtos, no total de 11.469.655 litros, em que se incluem os mencionados 256.280 litros devolvidos à Autora, foram mantidos apreendidos, porque o Ministério Público considerou que existiam “suspeitas de produto irregular/falsificado”.----

16. O Tribunal do Bombarral veio a proferir sentença, em 02.06.2011 na qual concluiu que todos os produtos que se mantinham apreendidos eram normais e não padeciam de irregularidades e, por isso, concluiu não estarem preenchidos os elementos do tipo legal de crime pelo qual os arguidos vinham acusados e, consequentemente, absolveu os três arguidos e determinou a desapreensão dos produtos que se mantinham apreendidos e a respectiva restituição à ora Autora.----

17. Esta sentença transitou em julgado no dia 04.07.2011.----

18. O Tribunal do Bombarral tinha antes, em 24.07.2002, condenado a Autora e os outros dois arguidos pela prática de crime contra a genuinidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos alimentar, condenação esta que veio a ser revogada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em 31.10.2003, o qual determinou o reenvio do processo para novo julgamento, na sequência de um recurso interposto pela aqui Autora.----

19. Em 2011 concluiu-se que a sentença que condenara os arguidos em Julho de 2002 enfermou de erros grosseiros na valoração da prova produzida no processo-crime por ter assentado a condenação dos arguidos maioritariamente nas análises de ressonância magnética nuclear que tinham sido realizadas aos produtos apreendidos pelo Laboratório de Química Analítica e de Síntese (LAQAS), pertencente ao INETI, o qual não se encontrava acreditado nos termos legalmente exigidos e, por isso, as análises pelo mesmo realizadas consubstanciavam “um meio de prova que não está conforme com a legislação em vigor, que, portanto, não é lícito, que é inadmissível sendo como tal proibido enquanto prova pericial”.---

20. A sentença de Julho de 2002 fez tábua rasa da defesa da Autora e apoiou-se cegamente nas análises feitas para condenar os arguidos, assentando em pressupostos errados quanto aos produtos apreendidos.----

21. Mesmo depois de proferido o acórdão da Relação, o Tribunal do Bombarral decidiu manter todos os produtos apreendidos até 2011.--

22. Só na sentença proferida em 2011 é que o Tribunal reconheceu que as análises isotópicas e os pareceres técnicos não podiam, sequer, ser apreciados e valorados “enquanto mera prova documental face ao aludido erro naquele determinante pressuposto em que assentam” e que os resultados analíticos alcançados pelo LAQAS “foram baseados em informações então fornecidas pelo IVV a propósito da origem geográfica dos vinhos em apreço que viriam a revelar-se erradas.”.----

23. Na sequência do recurso interposto da sentença de Julho de 2002 e do supra referido acórdão do Tribunal da Relação, foi determinada a realização de novas análises ao vinho e à aguardente apreendidos e veio a concluir-se na sentença proferida em Junho de 2011 que o vinho apreendido nos autos não apresentava as irregularidades descritas na acusação e que não existia qualquer razão que justificasse a manutenção da apreensão.----

24. Por isso foi ordenada a desapreensão do vinho e respectiva restituição à Autora e foram absolvidos os arguidos, por se entender que não se verificavam os elementos do tipo legal de crime em questão.----

25. O Tribunal ordenou a restituição do vinho à Autora depois de mais de 10 anos desde a apreensão.----

26. O IVV fez a primeira apreensão no próprio dia da deslocação, a 15 de Março, e a segunda apreensão, de 3.590.000 de litros, logo no dia seguinte, sem, previamente, ter tido o cuidado ou a preocupação de confirmar as suas suspeitas, sem ter realizado quaisquer diligências para averiguar da existência de água no vinho armazenado pela Autora e sem ter submetido o vinho a quaisquer análises.----

27. O Ministério Público, por seu turno, ordenou a validação das aludidas apreensões efectuadas pelo IVV, e de todos os produtos armazenados pela Autora nas instalações do IVV no ..., num total de 18.113.124 litros, apenas com base nas suspeitas infundadas que lhe foram transmitidas pelo IVV, sem cuidar de averiguá-las e sem dispor de qualquer confirmação técnica dessas suspeitas.----

28. O IVV e o Tribunal do Bombarral agiram, portanto, de forma leviana e incauta, ao procederem, respectivamente, às apreensões e à validação e ordem de novas apreensões.----

29. A apreensão de cerca de 22.000.000 (vinte e dois milhões) de litros de vinho e aguardente e a manutenção, durante mais de 10 anos, da apreensão de mais de 10.000.000 (dez milhões) de litros, bem como a condenação infundada de que a Autora foi alvo, provocaram-lhe os seguintes prejuízos:-----

29.1. Custos com análises ao vinho e à aguardente apreendidos realizadas pela “Eurofins Scientific Analytics, S.A.”;----

29.2. Custos com análises ao vinho e à aguardente apreendidos;

29.3. Custos com viagens e alojamento;----

29.4. Custos com o envio das amostras para a “Eurofins”;----

29.5. Custos com o transporte do vinho e da aguardente; ----

29.6. Custos relativos ao armazenamento dos produtos apreendidos;-

29.7. Custo do seguro de existências;----

29.8. Custo do seguro multirriscos;----

29.9. Encargos com a garantia bancária;----

29.10. Custos das análises aos produtos apreendidos;----

29.11. Despesas com assessoria jurídica e de engenharia;----

29.12. Custos com remunerações de funcionários da Autora;---

29.13. Custo da imobilização do dinheiro correspondente ao valor dos produtos apreendidos;----

29.14. Custo da imobilização do dinheiro gasto pela Autora para pagamento das despesas e encargos e custo da imobilização;---

29.15. Prejuízos decorrentes da deterioração e perda de valor dos produtos apreendidos;----

29.16. Custo de oportunidade, a liquidar em execução de sentença;---

29.17. Prejuízo pela quebra da margem de lucro da Autora;----

29.18. Danos não patrimoniais.----

30. Por via de notificação judicial avulsa, o réu Estado foi notificado em 27.05.2014.----

31. Por via de notificação judicial avulsa, o réu IVV foi notificado em 29.05.2014.----

32. O réu Estado foi citado para os termos da presente acção em 01.07.2014.----

33. O réu IVV foi citado para os termos da presente acção em 01.07.2014.----

34. A sentença condenatória no proc. n.º 3/01.... foi proferida em 24.07.2002.----

35. A sentença absolutória no proc. n.º 3/01.... foi proferida em 02.06.2011, foi lida nesta data, e transitou em julgado em 04.07.2011.»

                                                           *

4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Questão do (des)acerto da decisão que julgou procedente a exceção perentória de prescrição.

Vamos começar a apreciação neste particular sublinhando que se está perante ação sustentada em situação de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas.

O Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas [3] encontra-se previsto na Lei nº 67/2007, de 31.12, tendo entrado em vigor no dia 30.01.2008 (cfr. art. 6º respetivo).

Sendo de considerar, quanto à matéria da prescrição, o seguinte:

                                               «Artigo 5.º

                                                               Prescrição

 O direito à indemnização por responsabilidade civil extracontratual do Estado, das demais pessoas colectivas de direito público e dos titulares dos respectivos órgãos, funcionários e agentes bem como o direito de regresso prescrevem nos termos do artigo 498.º do Código Civil, sendo-lhes aplicável o disposto no mesmo Código em matéria de suspensão e interrupção da prescrição.»

Sendo certo que a citada norma do artigo 498.º do Código Civil, para o que ora releva, preceitua o seguinte:

«1. O direito de indemnização prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respectivo prazo a contar do facto danoso.»

Por outro lado, o art. 306º, nº1 deste mesmo C.Civil, com a epígrafe de “Início do curso da prescrição”, determina que «[O] prazo de prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido». 

Por sua vez, preceitua-se no pré-citado RRCEE, no seu capítulo II, para o que ora diretamente releva, da seguinte forma em termos de “responsabilidade civil por danos decorrentes do exercício da função administrativa”

                                               «Artigo 7.º

Responsabilidade exclusiva do Estado e demais pessoas colectivas de direito público

1 - O Estado e as demais pessoas colectivas de direito público são exclusivamente responsáveis pelos danos que resultem de acções ou omissões ilícitas, cometidas com culpa leve, pelos titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, no exercício da função administrativa e por causa desse exercício.

2 - É concedida indemnização às pessoas lesadas por violação de norma ocorrida no âmbito de procedimento de formação dos contratos referidos no artigo 100.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, de acordo com os requisitos da responsabilidade civil extracontratual definidos pelo direito comunitário.

3 - O Estado e as demais pessoas colectivas de direito público são ainda responsáveis quando os danos não tenham resultado do comportamento concreto de um titular de órgão, funcionário ou agente determinado, ou não seja possível provar a autoria pessoal da acção ou omissão, mas devam ser atribuídos a um funcionamento anormal do serviço.

4 - Existe funcionamento anormal do serviço quando, atendendo às circunstâncias e a padrões médios de resultado, fosse razoavelmente exigível ao serviço uma actuação susceptível de evitar os danos produzidos.»

                                                                               «Artigo 8.º

Responsabilidade solidária em caso de dolo ou culpa grave

1 - Os titulares de órgãos, funcionários e agentes são responsáveis pelos danos que resultem de acções ou omissões ilícitas, por eles cometidas com dolo ou com diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles a que se encontravam obrigados em razão do cargo.

2 - O Estado e as demais pessoas colectivas de direito público são responsáveis de forma solidária com os respectivos titulares de órgãos, funcionários e agentes, se as acções ou omissões referidas no número anterior tiverem sido cometidas por estes no exercício das suas funções e por causa desse exercício.

3 - Sempre que satisfaçam qualquer indemnização nos termos do número anterior, o Estado e as demais pessoas colectivas de direito público gozam de direito de regresso contra os titulares de órgãos, funcionários ou agentes responsáveis, competindo aos titulares de poderes de direcção, de supervisão, de superintendência ou de tutela adoptar as providências necessárias à efectivação daquele direito, sem prejuízo do eventual procedimento disciplinar.

4 - Sempre que, nos termos do n.º 2 do artigo 10.º, o Estado ou uma pessoa colectiva de direito público seja condenado em responsabilidade civil fundada no comportamento ilícito adoptado por um titular de órgão, funcionário ou agente, sem que tenha sido apurado o grau de culpa do titular de órgão, funcionário ou agente envolvido, a respectiva acção judicial prossegue nos próprios autos, entre a pessoa colectiva de direito público e o titular de órgão, funcionário ou agente, para apuramento do grau de culpa deste e, em função disso, do eventual exercício do direito de regresso por parte daquela.»

                                                               «Artigo 9.º

                                                               Ilicitude

1 - Consideram-se ilícitas as acções ou omissões dos titulares de órgãos, funcionários e agentes que violem disposições ou princípios constitucionais, legais ou regulamentares ou infrinjam regras de ordem técnica ou deveres objectivos de cuidado e de que resulte a ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos.

2 - Também existe ilicitude quando a ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos resulte do funcionamento anormal do serviço, segundo o disposto no n.º 3 do artigo 7.º»

E mais em concreto quanto à “responsabilidade civil por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional”, a mesma encontra-se prevista no capítulo III da lei em apreço, para o que ora diretamente releva, nos seguintes termos:

                                               «Artigo 12.º

Regime geral

Salvo o disposto nos artigos seguintes, é aplicável aos danos ilicitamente causados pela administração da justiça, designadamente por violação do direito a uma decisão judicial em prazo razoável, o regime da responsabilidade por factos ilícitos cometidos no exercício da função administrativa.»

«Artigo 13.º

                                       Responsabilidade por erro judiciário

1 - Sem prejuízo do regime especial aplicável aos casos de sentença penal condenatória injusta e de privação injustificada da liberdade, o Estado é civilmente responsável pelos danos decorrentes de decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto.

2 - O pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente.»

Face a este quadro normativo, será que se pode afirmar que a A. tinha conhecimento do direito de pedir o ressarcimento pelos danos sofridos com a atuação das entidades públicas (leia-se, IVV, MºPº e Juiz) desde a apreensão dos produtos vínicos (Março de 2001), ou no mínimo, desde a data em que parte desse produto lhe foi restituído em Julho de 2001, estando, assim em condições objetivas legais de o exercer?

Respondeu-lhe positivamente a decisão recorrida – ainda que admitindo a extensão do inicio da contagem do prazo da prescrição a (no máximo) 2003 – e daí ter considerado procedente a exceção de prescrição invocada pelos RR..

Sucede que, quanto a nós, a resposta devia ter sido negativa.

Senão vejamos.

Em termos gerais e no que concerne ao início do prazo da prescrição, tem-se entendido que o critério preceituado no art. 306º, nº 1 do C.Civil de o prazo prescricional “começar a correr quando o direito puder ser exercido”, tem carácter supletivo, porquanto cede perante outras soluções consagradas na lei quanto ao início do prazo prescricional.

Na verdade, como já foi explicitado a este propósito,
«[E]ste princípio, que se contém na primeira parte do n.º 1 do art. 306.º, tem a sua justificação última na própria razão de ser do instituto da prescrição; com efeito, se esta se funda na inércia injustificada do credor em não exercer o seu direito, já se vê que só a partir do momento em que ele está em condições de o exercer se deve contar o prazo que, uma vez preenchido, vai determinar a prescrição.»[4]

Sendo que o conhecimento do direito equivale à consciência da possibilidade legal do ressarcimento dos danos que ocorreram por virtude de certo facto ou atuação, não necessitando o lesado de saber o quantum de indemnização a que tem direito.

Donde, o essencial é que saiba que tem direito a indemnização pela ocorrência, verificação e concretização dos pressupostos fácticos que subjazem ao prejuízo e que fundamentam a responsabilidade.

De referir que, na circunstância, a decisão danosa consistia na injustificada apreensão de produtos vinícolas em 2001, apreensão essa imputável ou praticada por mais do que uma entidade (IVV e MºPº), erro judiciário na manutenção dessa apreensão (em sede do processo criminal) e atraso na administração da justiça (atenta a data da efetiva desapreensão, só operada em 2011).

Ocorre que, salvo o devido respeito, a responsabilidade civil que foi acionada nos autos tinha como pressuposto nuclear o conhecimento pela A./lesada, da decisão absolutória no processo crime instaurado contra si.

Atente-se que estava em causa na situação ajuizada a administração da justiça (em sentido lato), sendo certo que a brigada da IVV que foi a primeira interveniente no caso, enquanto atuou no âmbito das suas funções de fiscalização, tinha a qualidade de “órgão de polícia criminal”[5], e como tal denunciou ao MºPº a situação [cf. factos “provados” sob “2.” a “4.”], após o que foi instaurado o atinente processo crime.  

Assim, quanto à atuação da brigada da IVV que procedeu à apreensão dos produtos vínicos, só após a dita decisão absolutória é que ficou reconhecida a desnecessidade, inadequação ou desproporcionalidade dos meios utilizados pelo Estado.

Idem se diga quanto à intervenção do MºPº de validar a apreensão.

E quanto ao erro judiciário na avaliação da situação, até existe o pressuposto processual expresso da prévia revogação da decisão danosa.

O que por maioria de razão vale quanto ao verificado atraso na administração da justiça.

Sendo por assim ser que o critério geral de que o prazo de prescrição se inicia com o conhecimento dos factos que integram os pressupostos legais do direito de indemnização, tem a especificidade da situação complexa aqui ajuizada.

No sentido da explicitação do vindo de dizer, rememoremos de forma sumária e sintética a situação fáctica dos autos, tal como alegada pela A., a saber:

- No dia 15.03.2001, uma brigada do Instituto do Vinho e da Vinha (doravante, IVV) procedeu à apreensão de 220.000 litros de vinho branco que a Autora tinha armazenadas num depósito (o nº 255) nas suas instalações.

- No dia 16.03.2001, os técnicos do IVV deslocaram-se novamente às instalações da A. e procederam à apreensão de mais 3.590.000 litros de vinho.

- Estas apreensões foram efetuadas pelo IVV sem, previamente, ter tido o cuidado ou a preocupação de confirmar as suas suspeitas, sem ter realizado quaisquer diligências para averiguar da existência de água no vinho armazenado pela Autora e sem ter submetido o vinho a quaisquer análises.

- As ditas apreensões foram validadas pelo Ministério Público, por despacho de 27.03.2001 (por, alegadamente, existirem “fortes indícios que a sociedade A..., S.A. tem em depósito género alimentício falsificado (vinho misturado com água e açúcar de cana), o qual ordenou a apreensão da totalidade do conteúdo dos 120 depósitos existentes nessas instalações, à exceção do já apreendido, bem como a sua selagem, sendo que o Ministério Público ordenou a validação dessas apreensões efetuadas pelo IVV, e de todos os produtos armazenados pela Autora nas instalações do IVV no ..., num total de 18.113.124 litros, apenas com base nas suspeitas que lhe foram transmitidas pelo IVV, sem cuidar de averiguá-las e sem dispor de qualquer confirmação técnica dessas suspeitas.

- No dia 27.07.2001, técnicos do IVV deslocaram-se ao local e procederam à apreensão de todos os produtos que a A. aí tinha depositados, num total de 18.113.124 litros.

- Desta forma, o volume total de produtos de origem vínica apreendidos à A. ascendeu a 21.923.124 litros.

- Após a realização de análises aos produtos apreendidos, o Ministério Público concluiu que parte deles devia ser considerada como “géneros alimentícios normais” e em Julho de 2001 ordenou a desapreensão de 10.788.149 litros dos produtos que estavam apreendidos no armazém em causa.

- Sendo que igualmente se mantiveram apreendidos 256.280 litros que haviam sido devolvidos à A. por sociedades a quem a mesma os havia anteriormente vendido (e que lhe haviam sido devolvidos por esse motivo da apreensão).

- Mantiveram-se assim apreendidos um total de 11.469.655 litros (em que se incluem os mencionados 256.280 litros devolvidos à Autora), porque o Ministério Público considerou que em relação a eles existiam “suspeitas de produto irregular/falsificado”.

- O Tribunal do Bombarral, em 24.07.2002, condenou a A. e os outros dois arguidos pela prática de crime contra a genuinidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos alimentar, condenação esta que veio a ser revogada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em 31.10.2003, o qual descortinou o cometimento de uma nulidade e determinou o reenvio do processo para novo julgamento, na sequência de um recurso interposto pela aqui A..

- O Tribunal do Bombarral veio a proferir nova sentença, em 02.06.2011, na qual concluiu que todos os produtos que se mantinham apreendidos eram normais e não padeciam de irregularidades e, por isso, concluiu não estarem preenchidos os elementos do tipo legal de crime pelo qual os arguidos vinham acusados e, consequentemente, absolveu os três arguidos e determinou a desapreensão dos produtos que se mantinham apreendidos e a respectiva restituição à ora Autora.

- De referir que na sequência do recurso interposto da sentença de Julho de 2002 e do supra referido acórdão do Tribunal da Relação, foi determinada a realização de novas análises ao vinho e à aguardente apreendidos e veio a concluir-se na sentença proferida em Junho de 2011 que o vinho apreendido nos autos não apresentava as irregularidades descritas na acusação e que não existia qualquer razão que justificasse a manutenção da apreensão. 

- Esta sentença de 02.06.2011 transitou em julgado no dia 04.07.2011.

- Por via de notificação judicial avulsa, o réu Estado foi notificado da pretensão indemnizatória da A. em 27.05.2014.

- Por via de notificação judicial avulsa, o réu IVV foi notificado da pretensão indemnizatória da A. em 29.05.2014.

- O réu Estado foi citado para os termos da presente ação em 01.07.2014.

- O réu IVV foi citado para os termos da presente ação em 01.07.2014.

Face a este quadro fáctico, temos que logo em Julho de 2001 teve lugar a desapreensão de quase metade do volume total dos vinhos que haviam sido apreendidos à A. em Março de 2001.

Sucede que se mantiveram apreendidos um total de 11.469.655 litros, porque o Ministério Público considerou que em relação a eles existiam “suspeitas de produto irregular/falsificado”.

Acrescendo que o Tribunal do Bombarral, em 24.07.2002, condenou a A. e os outros dois arguidos pela prática de crime contra a genuinidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos alimentar.

Assim, os ditos 11.469.655 litros só vieram a ser desaprendidos após o Tribunal do Bombarral proferir nova sentença, em 02.06.2011, na qual concluiu que todos os produtos que se mantinham apreendidos eram normais e não padeciam de irregularidades, tendo havido erro na apreensão dos produtos vinícolas (designadamente por incorreta validação de meios de provas ilícitos e efetuados com base em pressupostos errados).

Ora se assim é, s.m.j., impõe-se a conclusão de que só com a dita (nova) sentença do Tribunal do Bombarral, em 02.06.2011, ficou verificado o requisito ilicitude (um dos  pressupostos da responsabilidade), pois que só após essa sentença, e por via do conteúdo da mesma, se revelou/comprovou que as medidas tomadas pela autoridade judiciária eram infundadas e injustificadas.

Merece-nos, assim, acolhimento o aduzido pela A./recorrente nas suas alegações recursivas no sentido de que só após a decisão absolutória do processo «(…) fica reconhecida a desnecessidade, inadequação ou desproporcionalidade dos actos e dos meios utilizados pelo Estado e pelas demais entidades públicas no processo, tidos como errados e violadores dos direitos da Recorrente e, em consequência, geradores da obrigação de indemnizar».

De referir que com total acerto a este propósito e mais aprofundadamente, exprimiu-se a A./recorrente nos seguintes termos:

«(…)

No caso, o direito da Recorrente só podia ser exercido quando foi proferida a Sentença do Tribunal Judicial do Bombarral, de 2 de Junho de 2011.

Antes desse momento, a Recorrente não sabia se teria, ou não, direito a um pedido indemnizatório pelos danos causados pela apreensão (excessiva ou não) de mais de 10.000.000 de litros de vinho, nem este existia, na verdade.

É certo que a Recorrente, como se afirmou nestes autos, desde o início do processo-crime, estava convencida da genuinidade e qualidade do vinho e da aguardente apreendidos e, por isso, sempre pugnou pela demonstração da sua inocência, mas esta convicção da Recorrente não se equipara ao conhecimento do direito de indemnização a que alude o supra citado art. 498.º, n.º 1, do CC.

Até porque a existência ou não de produtos vínicos adulterados ou falsificados não era uma questão óbvia ou linear, como, aliás, o demonstra o facto de durante o processo crime terem sido realizadas análises com resultados contraditórios.

Por isso, só em 2 de Junho de 2011, com a prolação da Sentença que decidiu que os produtos apreendidos eram genuínos e regulares, que os actos praticados pelos Recorridos eram injustificados e descabidos e que a referida Sentença de 2002 enfermou de erros grosseiros na valorização da prova, é que a Recorrente tomou conhecimento de que tinha direito de ser indemnizada pelos Recorridos pelos danos que estes, com as suas condutas melhor descritas na petição inicial, lhe causaram.».

Com efeito, também quanto a nós, antes da prolação da sentença absolutória, a A. ora recorrente não sabia se teria, ou não, direito a um pedido indemnizatório pelos danos causados pela apreensão (excessiva ou não) de mais de 10.000.000 de litros de vinho.

Sendo certo que, no particular aspeto do erro judiciário, é essa sentença (absolutória) do Tribunal do Bombarral de 02.06.2011 que constitui a revogação da decisão danosa – a que alude o citado art. 13º, nº2 do RRCEE! consubstanciada na anterior condenação da A. (e outros dois arguidos) pela prática de crime contra a genuinidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos alimentar, operada pela sentença, do mesmo Tribunal do Bombarral, de 24.07.2002.

Temos presente que essa condenação da A. e os outros dois arguidos pela prática de crime contra a genuinidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos alimentar, em 24.07.2002, pelo Tribunal do Bombarral, veio a ser revogada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em 31.10.2003, o qual descortinou o cometimento de uma nulidade e determinou o reenvio do processo para novo julgamento, na sequência de um recurso interposto pela aqui A..

Sucede que, como é bem de ver, esta revogação de 31.10.2003 da sentença proferida pelo Tribunal Judicial do Bombarral em 24.07.2002, não se traduziu na prolação de uma decisão de mérito - e definitiva para a solução do litígio -, em sentido contrário ao decidido inicialmente pela 1ª instância.

Assim, só com a prolação e notificação da sentença absolutória proferida pelo Tribunal do Bombarral em 2.06.2011, é que a A. ora recorrente adquiriu o conhecimento da existência do seu direito, e isto contra ambos os RR.:

- contra o IVV e Estado, pois que, só a partir daí ficou assente e definido que as apreensões feitas pelo IVV e validadas pelo Ministério Público foram infundadas e injustificadas [cf. arts. 7º, 8º, 9º e 12º do RRCEE];

- contra o Estado, por erro judiciário consubstanciado na prolação da decisão condenatória, integrando a manutenção da dita apreensão [cf. art. 13º do RRCEE];

- contra o Estado, por atraso na administração da justiça, aqui se incluindo o aspeto da efetiva desapreensão só em 2011 [cf. art. 12º do RRCEE].

E nem se argumente – como intentado nas contra-alegações recursivas! – que é necessário pressuposto para este efeito quanto ao particular do erro judiciário [cf. art. 13º, nº 2 do RRCEE], a revogação ocorrer na sequência da interposição de um Recurso, sendo decidida por um tribunal hierárquica ou funcionalmente superior.[6]

É que na norma em causa [dito art. 13º, nº 2 do RRCEE] não figura a exigência definida e concreta de a revogação ser operada por um Tribunal de segunda instância ou por um tribunal supremo – nesta norma apenas se alude a “prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente”, pelo que, quando como na situação vertente estava em causa um erro na apreciação das provas (na valoração dos meios de prova), o reconhecimento judicial do erro de julgamento foi operado apenas na e pela sentença absolutória do Tribunal do Bombarral de 2011, sentença esta que se tornou definitiva por não ter sido objeto de qualquer recurso, sendo que, em todo o caso, competirá ao Juiz do processo indemnizatório [leia-se, o da ação ora sob recurso], pronunciar-se em última instância sobre a existência do erro de julgamento.[7]

Salvo o devido respeito, este entendimento até decorre da pronúncia efetuada pelo Tribunal dos Conflitos – que interveio já nestes autos para dirimir a questão da (in)competência em razão da matéria – por Decisão de 15 de Novembro de 2023.[8]

De facto, este dito Tribunal dos Conflitos, ao atribuir aos Tribunais comuns a competência para conhecer dos presentes autos, sustentou o entendimento de que no caso concreto estamos perante ação de responsabilidade civil fundada em erro judiciário com erro grosseiro, imputando-se danos à concreta decisão proferida no processo crime, mais concretamente nos seguintes termos:

«Neste processo a causa de pedir é complexa, conforme decorre da petição inicial, por alegação de factos relativos a erro judiciário, atraso na administração da justiça, actuação ilícita do Ministério Público e do IVV, todos no âmbito do processo-crime.

Com efeito, face aos termos em que se encontra formulado o pedido, verifica-se que a Autora invoca, por um lado, a existência de erro grosseiro da condenação – um erro judiciário -, como, por outro lado, a prática e/ou omissão de actos e diligências que terão contribuído para o arrastar das apreensões por tempo irrazoável. Invoca a A. além da “leviandade e incúria do IVV e do tribunal” na manutenção das apreensões por tempo excessivo, que podem configurar um deficiente funcionamento da administração da justiça, mas, igualmente invoca a ocorrência de erro judiciário consubstanciado na decisão que determinou a sua condenação, proferida com erro grosseiro.

Ou seja, no caso concreto, estamos perante acção de responsabilidade civil fundada em erro judiciário com erro grosseiro, cometido em processo que correu os seus termos nos tribunais comuns, e não num tribunal administrativo, imputando-se danos à concreta decisão proferida nesse processo crime, embora conjugada com outros actos de manutenção das apreensões.»

Dito de outra forma: só com a prolação da decisão absolutória pelo Tribunal do Bombarral em 2011 e desapreensão dos produtos vínicos daí decorrente, é que ficou  reconhecida a desnecessidade, inadequação ou desproporcionalidade dos atos e dos meios utilizados pelo Estado e pelas demais entidades públicas no processo, administração da justiça aqui incluída, tidos como errados e violadores dos direitos da A./recorrente, também de violação do direito a uma decisão judicial em prazo razoável, e, em consequência, geradores da obrigação de indemnizar.

Na verdade, s.m.j., quanto ao requisito da ilicitude, pressuposto da responsabilidade civil, quando, como na situação vertente, estava em causa a administração da justiça (em sentido lato), só com essa decisão absolutória e depois dela é que ficou apurado e revelado que a efetivação da apreensão pela IVV, as medidas de validação e novas apreensões pela autoridade judiciária (MºPº), bem como o decorrente arrastar das apreensões por tempo irrazoável (mais concretamente com a prolação de uma decisão condenatória assente em pressupostos errados quanto aos produtos apreendidos!) se revelaram infundadas e injustificadas.

Consabidamente, o regime prescricional da responsabilidade civil extracontratual procura compatibilizar os interesses do credor da indemnização e os do devedor, dando prevalência, através da redução do prazo normal, ao factor da segurança jurídica[9].

Sendo que sobre esta problemática, já nos foi ensinado que «o prazo de prescrição a que se refere o nº1 do art. 498 do C Civil conta-se a partir do conhecimento, pelo titular do respectivo direito, dos pressupostos que condicionam a responsabilidade e não da consciência da possibilidade legal do ressarcimento. (…) não se afigura suficiente o conhecimento de tais pressupostos, sendo ainda preciso que o lesado tenha conhecimento do direito que lhe compete, como expressamente diz a lei: se ele conhece a verificação dos pressupostos da responsabilidade do lesante, mas não sabe que tem direito de indemnização, não começa a correr o prazo de prescrição de curto prazo. (…) Se ele (lesado) tendo embora conhecimento da verificação dos pressupostos da responsabilidade do lesante, ignora o seu direito de indemnização, seria violento que a lei estabelecesse um prazo curto para exercício desse direito e declarasse este prescrito com o decurso de tal prazo».[10]

Nesta linha de entendimento, quando no art. 498º nº1 do C.Civil se determina que tal prazo, se conta do momento em que o lesado teve conhecimento do seu direito, quer significar-se apenas, que se conta a partir da data em que conhecendo a verificação dos pressupostos que condicionam a responsabilidade, soube ter direito a indemnização pelos danos que sofreu [e não da consciência, da possibilidade legal do ressarcimento][11], isto é, importa para este efeito um saber de forma segura e consistente.

O que é necessário para começo da contagem do prazo é que o lesado tenha conhecimento do direito que lhe compete[12], isto naturalmente com o significado de conhecimento efetivo e certificado, atento o contexto em causa.

Não releva nesta sede e para efeitos de contagem do prazo de prescrição, a que alude o nº1 do art. 498º do C. Civil, as expectativas no sentido do direito à indemnização que a A. ora recorrente logo tivesse tido com as apreensões vínicas que foram operadas (e/ou com as desapreensões que logo num primeiro momento tiveram lugar), antes e decisivamente releva o resultado definitivo da já referida decisão absolutória do Tribunal do Bombarral no processo crime, de 2011.

Ora, se «[O] prazo de prescrição inicia-se com o conhecimento dos factos que integram os pressupostos legais do direito de indemnização»[13], na situação vertente apenas se pode afirmar/concluir que esse conhecimento teve lugar com a dita decisão absolutória do Tribunal do Bombarral de 02.06.2011.[14]

Assim, na medida em que essa decisão transitou em julgado em 04.07.2011 [cf. facto “provado” sob “35.”], tendo sido os RR. citados na presente ação em 01.07.2014 [cf. factos “provados” sob “32.” e “33.”], o direito de indemnização que a A. ora recorrente invoca na presente ação não se encontrava prescrito, por não ter decorrido o prazo de 3 anos a que alude o art. 498º nº1 do C.Civil entre a primeira data [trânsito em julgado da decisão absolutória] e a segunda data [citação na presente ação dos RR.].

Sendo certo que o vindo de aduzir até desconsidera a interrupção desse prazo por via da concretização das Notificações Judiciais Avulsas notificadas aos Recorridos em 27 e 29 de Maio de 2014 [cf. factos “provados” sob “30.” e “31.”], atento o disposto nos arts. 323º e 326º do C.Civil…

O que tudo serve para dizer que o prazo de prescrição do direito de indemnização fundado na responsabilidade civil extracontratual inicia-se com o efetivo e certificado conhecimento pelo lesado do direito que lhe pertence (cf. art. 498º, nº 1, do C.Civil, aplicável à indemnização por responsabilidade civil extracontratual do Estado, das demais pessoas coletivas de direito público ex vi do art. 5º do RRCEE), acrescendo que no segmento em que está invocada a responsabilidade civil do Estado decorrente da “função jurisdicional”, com referência ao erro judiciário, são as próprias normas legais atinentes a estabelecer que o início do prazo de prescrição ocorre a partir da revogação da decisão judicial (art. 13º do mesmo RRCEE).

Nestes termos e sem necessidade de maiores considerações procedem as alegações recursivas e o recurso, concluindo-se pela revogação da decisão que julgou procedente a excepção perentória de prescrição do direito que a A./recorrente pretende fazer valer nestes autos, devendo os autos prosseguir os seus ulteriores termos na 1ª instância.

                                                           *

5 - SÍNTESE CONCLUSIVA (…).

                                                                       *

6 - DISPOSITIVO

Pelo exposto, decide-se a final julgar procedente o recurso, em consequência do que se revoga a decisão que julgou procedente a exceção perentória de prescrição do direito que a A./recorrente pretende fazer valer nestes autos, devendo os autos prosseguir os seus ulteriores termos na 1ª instância. 

Custas pelos RR./recorridos.


Coimbra, 13 de Maio de 2025

Luís Filipe Cravo

Carlos Moreira

Alberto Ruço


                                               


[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Carlos Moreira
  2º Adjunto: Des. Alberto Ruço
[2] De referir que se corrigiu o manifesto lapso de escrita quanto ao mês em causa nesta data, pois que se tratava efetivamente do mês “03” e não do mês “07” como se encontrava grafado.
[3] Doravante “RRCEE”.
[4] Assim por CARVALHO FERNANDES, in “Teoria Geral do Direito Civil”, Vol. II, A.A.F.D.L., a págs. 559.
[5] À luz do art. 1º do C.P.Penal, e para efeitos do disposto nesse Código, considera-se «c) «Órgãos de polícia criminal» todas as entidades e agentes policiais a quem caiba levar a cabo quaisquer actos ordenados por uma autoridade judiciária ou determinados por este Código», isto é, trata-se das  entidades que cooperam com as autoridades judiciárias na investigação criminal, desenvolvendo atos de  investigação em inquérito, concretamente solicitados ou com autonomia tática e técnica do próprio órgão.
[6] Donde, nessa lógica, a revogação da sentença condenatória do Tribunal do Bombarral de 2002, teria sido logo operada pelo acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 2003…
[7] Sobre a questão vide CARLOS CADILHA, in “Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas” Anotado, Coimbra Editora, 2008, a págs. 220-224.
[8] Constante a págs. 2247-2255 da versão em papel do processo.
[9] Cf. VAZ SERRA, no BMJ nº 87, a págs. 38.
[10] Assim por Vaz Serra in RLJ 107, a págs. 296, em anotação ao Acórdão do STJ de 27.11.1973.
[11] Cfr. ANTUNES VARELA in “Das obrigações em geral“, Vol. I, 6ª ed. Coimbra, 1989, a págs. 596.
[12] Cfr. PIRES DE LIMA e ANTUNES Varela, in “Código Civil Anotado”, 2ª ed., a pags. 437.
[13] Neste sentido, inter alia, o acórdão do STJ de 23.06.2016, proferido no proc. nº 54/14.2TBCMN-B.G1.S1, acessível em www.dgsi.pt/jstj.
[14] Com paralelismo, sustentando o entendimento de que «Reclamada, em acção instaurada contra o Estado, indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, fundada em responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos – buscas e detenção - praticados em processo de inquérito criminal em que o autor foi arguido, é de considerar que “o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete” com a decisão de arquivamento proferida no processo», vide o acórdão do STJ de 20.03.2014, proferido no proc. nº 420/13.0TBMAI.P1.S1, igualmente acessível em www.gdsi.pt/jstj.