I – Entre a tipologia dos atos abusivos que se incluem na categoria do abuso do direito (cf. art. 334º do C.Civil), encontra-se a surrectio, i.e., o surgimento de um direito por força de um comportamento contraditório qualificado pelo decurso do tempo.
II – Porém, não é qualquer conduta contraditória que faz cair o seu autor sob a alçada do art. 334º do C.Civil, sendo para tanto necessário, ab limine, que a manutenção de uma situação durante um longo período de tempo é que faça surgir numa pessoa uma faculdade jurídica que de outro modo não teria direito, pelo que, se in casu o direito a ser restituída das básculas existia para a A. desde a anulação da compra e venda, traduzindo-se numa obrigação para a aqui Ré o seu cumprimento, não foi pelo protelar da propositura da ação por parte da A. que o direito que a mesma exercitou na e com a presente ação veio a surgir.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]
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1 – RELATÓRIO
“A... LDA.”, NIPC ...28, sociedade comercial com sede na Rua ... ... ..., veio intentar a presente ação declarativa com processo comum contra “B..., COOPERATIVA DE RESPONSABILIDADE LIMITADA”, NIPC ...30, com sede em ... ... ... – ..., deduzindo o seguinte petitório: deve ser proferida sentença na qual se condene a R. a reconhecer que a espécie duas balanças Refªs: Série P1 600 RS, Mod. BP1 60 tons, nº 3269, visor com saída RS 232 e impressora e Série P1 600 RS, Mod. BP1, 6000 kg, nº 3291/92, visor com saída RS 232 e impressora vendidas pela A. à R. no ano de 1992 já não existe nem já existia em 8-3-2013 e não é por isso possível ser pela R. restituída à A. Que é de € 37.666,22 o valor em espécie (dívida de valor correspondente ao valor de € 18.555,28 em 1992) das duas balanças Refªs: Série P1 600 RS, Mod. BP1 60 tons, nº 3269, visor com saída RS 232 e impressora e Série P1 600 RS, Mod. BP1, 6000 kg, nº 3291/92, visor com saída RS 232 e impressora que a R. deve pagar à A. Pagar à A. a quantia de € 37.666,22 e juros de mora vincendos desde a citação à taxa dos juros comerciais ou, subsidiariamente, € 35.575,55, valor que corresponde à desvalorização monetária de 18.555,28 entre 1992 e 1999 (encerramento da discussão em 1ª instância), que resulta serem 1999 € 26. 348,50, e os últimos cinco anos de juros comerciais de mora, a que acrescerão os juros comerciais vincendos desde a citação. Por fim, ainda subsidiariamente quanto aos pedidos antecedentes, a título de enriquecimento sem causa, a R. teria de ser condenada a restituir à A. o montante de € 22.964,00 e juros moratórios comerciais desde a citação para a presente acção. Deve a sentença ainda declarar que constitui, nos termos do artigo 710º do Código Civil, título bastante para o registo de hipoteca sobre quaisquer bens da R..
Alega, em síntese, que, em 1992, vendeu à Ré duas básculas, tendo procedido à respectiva entrega e tendo recebido o respectivo preço. Por decisão judicial transitada em 2003, foi tal contrato de compra e venda anulado. Face à inexistência dos bens atento o tempo volvido e respectiva deterioração, pretende ser compensada pela Ré nos termos peticionados, invocando, subsidiariamente, o instituto do enriquecimento sem causa – cfr. Ref.ª Citius 8302936, de 02.01.2022.
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Regularmente citada, a Ré apresentou contestação. Nessa sede, invoca, desde logo, a preclusão por caso julgado, por força de ações anteriormente julgadas. Mais invoca a prescrição da invocada compensação, por força do enriquecimento sem causa, face ao hiato temporal entretanto decorrido. Mais suscita a questão do abuso de direito da Autora, em virtude de esta nunca ter procurado obter a devolução das balanças, apenas pretendendo a respectiva compensação pecuniária. Em sede de impugnação, e sem prescindir, nega qualquer dever de compensar a Autora, face à conduta adotada por esta ao longo dos anos decorridos desde a anulação do negócio – cfr. Ref.ª Citius 8399993, de 03.02.2022.
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Foram exercidos os competentes contraditórios quanto à matéria de exceção aduzida nos respetivos articulados.
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Foi dispensada a realização da audiência prévia, foi proferido despacho saneador, foi julgada improcedente a invocada excepção de preclusão por caso julgado, relegando-se para conhecimento em sede de decisão final, a excepção de prescrição do direito por enriquecimento sem causa e do abuso de direito. Nessa sede, foi fixado o valor da causa, foi identificado o objecto do litígio e fixados os temas da prova, e foram admitidos os requerimentos probatórios apresentados – cfr. Ref.ª Citius 102787002, de 14.03.2023.
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Realizada a perícia requerida e admitida, teve lugar a audiência de julgamento, com observância de todo o formalismo legal, conforme consta das respectivas atas.
Na sentença, sustentou-se que impendia sobre a Ré, na impossibilidade de cumprir com a sua obrigação de restituição das duas básculas em apreço, por deterioradas, o dever de restituir o valor correspondente à A., nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 289.º, n.º 1, in fine, do Código Civil, o qual se cifrava em € 20.000,00, naturalmente acrescido de juros de mora, sendo ainda que se entendeu não haver abuso do direito por parte da A. na pretensão que deduziu, o que se traduziu no seguinte concreto “dispositivo”:
«V – Decisão
Face a todo o exposto, decide-se:
I – Julgar a acção parcialmente procedente, por parcialmente provada, e, em consequência, condenar a Ré B..., COOPERATIVA DE RESPONSABILIDADE LIMITADA a pagar à Autora A... LDA a quantia de € 20.000,00 (vinte mil euros), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal aplicável às obrigações comerciais, nos termos do artigo 102.º do Código Comercial, nas suas variáveis ao longo do tempo, sobre o valor de € 20.000,00 (vinte mil euros), desde a data de citação da Ré (04.01.2022) e até integral e efectivo pagamento;
II – Julgar improcedente a excepção peremptória de abuso de direito invocada pela Ré;
III – Não declarar, por decorrer da lei e, consequentemente, inútil, que a presente sentença constitui, nos termos do disposto no artigo 710.º do Código Civil, título bastante para o registo de hipoteca sobre bens da Ré;
IV – Absolver a Ré do demais peticionado.
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Valor da Acção: o já fixado em despacho saneador - € 37.666,22.
Custas a cargo da Autora e a Ré, na proporção de 46% para a Autora e de 54% para a Ré – artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
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Registe e notifique. »
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Inconformada com essa sentença, apresentou a Ré recurso de apelação contra a mesma, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
«1. Vem o presente recurso interposto Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida nos autos, pela qual o Tribunal a quo julgou a acção parcialmente procedente e em consequência, condenou a aqui Apelante a pagar à Apelada a quantia de €20.000,00 (vinte mil euros), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal aplicável às obrigações comerciais sobre aquele valor (vinte mil euros), desde a data de citação (04.01.2022) e até integral e efectivo pagamento mais julgando improcedente a excepção peremptória de abuso de direito da Apelada que vinha invocada pela Apelante.
2. A douta sentença recorrida considera que “… a partir de 26.03.1996, a Ré deveria ter acautelado um uso normal e prudente das ditas básculas, o que não se verificou.” E que “…em 1992, o tempo de vida útil de tais básculas era de 15 anos, não se tendo as mesmas mantido, por incúria da Ré, em condições normais de utilização que permitiriam o alcance de tal duração de vida útil, conforme resulta da factualidade dada como assente.”.
3. As básculas em causa – de 60 toneladas e 6 toneladas - eram básculas que trabalhavam ao ar livre, encastradas no piso (facto 1) dado como provado), atentas as dimensões e fim a que se destinavam: a pesagem de veículos pesados, no desenvolvimento da actividade da Apelante.
4. Tais básculas encontravam-se não aprovadas e por isso a anulação do contrato
de compra e venda.
5. Dos factos dados como provados consta que as básculas desde que foram desmontadas permanecem ao ar livre. Mas como se referiu já, tais básculas são de utilização ao ar livre.
6. E por não poderem ser utilizadas, a Apelante instaurou a acção de anulação do contrato de compra e venda e teve que adquirir outras básculas, devidamente homologadas, para poder exercer a sua actividade.
7. O douto Tribunal recorrido ao decidir que foi por incúria da Ré que as básculas não atingiram o tempo de vida útil de 15 anos por não as ter mantido em condições normais de utilização que permitiriam alcançar esse tempo de vida útil, errou no julgamento.
8. A própria Apelada só em 28.09.2021 pagou o valor decorrente da condenação transitada em 2003, conforme ponto 32) dos factos dados como provados.
9. Dos factos dados como provados na sentença recorrida, não se mostra que a Apelada tivesse, alguma vez, solicitado a entrega das básculas e que as mesmas lhe tivessem sido recusadas pela Apelante.
10. A deterioração das básculas foi progressiva pelo tempo decorrido e não por qualquer acção ou omissão da Apelante.
11. Em 16.07.2003, antes mesmo do trânsito em julgado da acção que anulou a compra e venda das básculas, a aqui Apelada instaurou execução de sentença contra a Apelante, alegando que as básculas já não detinham qualquer valor - conforme ponto 8 dos factos dados como provados.
12. Nas execuções instauradas pela Apelante contra a Apelada, esta sempre manifestou que as básculas não tinham qualquer valor por estar esgotado o seu tempo de vida.
13. A conduta da Autora/Apelada traduziu-se na não pretensão de receber as básculas, deixando passar cerca de vinte anos após o trânsito em julgado da anulação do negócio, criando uma situação manifestamente injusta para a Apelante que, a manter-se a decisão recorrida, pagará duas vezes as básculas que se encontravam não homologadas para funcionar e cuja situação à Apelada se ficou a dever.
14. A Apelada age, assim, em manifesto abuso de Direito, nos termos previstos no artigo 334.º, do Código Civil, nomeadamente na modalidade chamada de surrectio.
15. O tribunal recorrido, ao decidir como decidiu, violou o disposto no artigo 334º, do Cód. Civil.
16. Deve, pois, ser revogada a decisão que vem impugnada e a mesma substituída por outra que absolva a Ré/Apelante dos pedidos da Autora, assim se fazendo
JUSTIÇA.»
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Por sua vez, apresentou a A. as suas contra-alegações, das quais extraiu as seguintes conclusões:
«Em 27-1-2004 a B... instaurou execução contra a A..., Lda, que embargou.
Quando contestou os embargos à execução a B... disse:
- Dizer que o direito de crédito da embargante (ora apelada) está provado pela douta sentença exequenda (o douto acórdão da Relação de Coimbra de 24-9-2002) é fazer tábua rasa do decidido pela Relação (15º);
- Ou seja, mesmo que houvesse prestações recíprocas – e não há – (21º);
- Atente-se que a embargante procura, ainda, fazer uma liquidação de um pretenso crédito que não tem;
- Ao invocar as excepções de não cumprimento e da compensação com base num pretenso direito a prestação recíproca, bem sabia a embargante que não lhe assistia quaisquer daqueles direitos.
Os embargos à execução improcederam em 1ª instância e a A... apelou.
Nas suas contra-alegações de apelação em 12-4-2010 de novo a B... afirma:
- “a Recorrente bem sabe que não tem qualquer direito de crédito sobre a Recorrida B.... E é conhecedora da inexistência de um crédito sobre a Recorrida desde há vários anos.”
O douto acórdão de 18-1-2011 da Relação de Coimbra (facto 19) da douta sentença) que decidiu a apelação considerou “No fundo, no caso dos autos, o que ainda é mais saliente é a conduta da autora B... que, pretende receber de volta o preço do contrato anulado e não aceita devolver, em simultâneo, as duas básculas.”
O acórdão julgou procedente a apelação ou seja, a excepção do não cumprimento da B....
ª - Recorreu a B... de revista e o douto acórdão do STJ de 22-9-2011 (Tavares de Paiva) relatou:
O Acórdão inserido a fls. 510 a 517, revogou a sentença da 1ª instância, julgando antes procedente a oposição à execução deduzida nos embargos de executada, por inexigibilidade da obrigação exequenda (enquanto a autora não restituir à ré as duas básculas ou não oferecer o cumprimento simultâneo dessa restituição com a restituição do preço) e em consequência determinou a extinção da execução. E ponderou
- A B... alega que sobre ela não impende o dever de satisfazer qualquer prestação
- Sustenta a inexistência de qualquer crédito a favor da A...
- Alega que A... ao invocar a inexigibilidade da prestação, com base num pretenso direito a prestação recíproca, bem sabe a A... que não lhe assiste qualquer daqueles direitos.
Concluiu este douto acórdão: a restituição simultânea das básculas objecto do contrato está compreendida na anulação; a condenação abrangeu também a restituição simultânea das básculas.
Esta decisão dos embargos à execução iniciada pela B... em 27-1-2004 transitou em julgado em 10-10-2011 e foi de procedência da excepção do não cumprimento pela B... da sua obrigação de restituição.
Constitui caso julgado entre as partes, em 10-10-2011, que a B... incumpriu a sua obrigação de restituição resultante do trânsito em julgado em 2003 da anulação do contrato. Incumpriu entre 2003 e 2013.
Por isso o teor da carta da B... de um ano e meio depois, datada de 4-3-2013:
"Em conformidade com o acórdão – de 22-09-2011 - vimos colocar à vossa disposição as básculas, oferecendo assim o cumprimento da obrigação de restituição…”
Entre 2003 e 2013 a B... disse sempre que nada tinha que entregar e a A... nenhum crédito tinha, nada lhe podia exigir. Em 2013 havia mais de 20 anos que as balanças tinham sido entregues e já não existiam, apenas resíduos delas. A B... disse sempre que não tinha nada, coisa nenhuma, que restituir.
Art. 289º, nº 1: “Tanto a declaração de nulidade como a anulação do negócio tem efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente”.
O contrato desaparece no passado, tendo-se por não celebrado. As partes ficam desligadas dos seus compromissos como se nunca os tivessem contraído.
Tendo (ou devendo ter) conhecimento da possibilidade de anulação, a parte a quem assiste, em abstrato, este direito está obrigada a não inviabilizar a restituição do que recebeu, devendo conformar a sua conduta em função disso.
Desde que pediu a destruição dos efeitos do negócio o adquirente do direito real cessa o animus da sua titularidade desse direito. Se o autor invoca um vício na aquisição do direito, gerador da anulabilidade do negócio, não pode considerar-se possuidor de boa fé do direito real. A partir de então ele funciona como um depositário do bem, mero detentor do direito de outrém.
Quando em 26-3-1996 a A. pediu a anulação do contrato sabia que, procedendo o seu pedido, tinha de restituir o que recebeu.
Desde que em 26-3-1996 instaurou a acção declarativa pedindo a anulação que a R. é, quanto às balanças, uma possuidora de má fé. Se formula a pretensão de anulação então perde a boa fé de possuidora do direito de propriedade: não quer ser dona. E como possuidora de má fé corre por si o risco e a culpa da perda dos bens.
Durante todo este período de 27-1-2004 a 22-9-2011 a R. afirmou que nenhuma prestação tinha de efectuar à A.
Foi a apelante que sempre impediu o cumprimento do decidido na acção declarativa, até à perda total e definitiva das básculas que já se verificava em março de 2013, aliás 21 anos depois de lhe terem sido entregues.
A apelante negou o seu dever durante 10 anos: entre 2003 e março de 2013 a apelante afirmou sempre que nenhuma prestação de restituição tinha de efectuar à apelada.
Subsidiariamente,
prevenindo a hipótese de procedência da apelação, requer que sejam dados como provados por confissão e admitidos por acordo, atendendo-se, os seguintes factos:
- A partir da instauração da acção declarativa em 26-3-1996 as comunicações entre as partes passaram a ser por escrito.
- Após 13-3-1995 continuaram (a B...) a utilizar as duas básculas, não faz ideia de por quanto tempo.
- Da petição inicial:
143º
Em 14-5-1998 – quase 6 anos depois de colocadas em funcionamento – a C... enviou um técnico às instalações da B... para verificar a báscula de 60 toneladas aí instalada, que, nessa data, se encontrava ligada e com os talões de pesagem.
144º
Nesta data a báscula já podia ser verificada, ultrapassados que estavam os obstáculos anteriores.
145º
Todavia, a R. não permitiu que a verificação fosse efectuada.
Nestes termos e nos mais de direito, com o douto suprimento de Vossas Excelências, deverá improceder a apelação da R., como é de
JUSTIÇA».
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Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.
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2 – QUESTÕES A DECIDIR
A - tendo em conta o objeto do recurso delimitado pela Recorrente nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detetar o seguinte:
- desacerto da decisão, ao considerar procedente a ação [cumprindo, designadamente, apreciar a questão do abuso do direito por parte da A. em intentar a ação contra a Ré];
B – ampliação do âmbito do recurso pela Recorrida, a título subsidiário:
- quanto à matéria de facto dada como “provada” [enunciando o aditamento que reclama].
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3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Consiste na enunciação do elenco factual que foi considerado fixado/provado pelo tribunal a quo, ao que se seguirá o elenco dos factos que o mesmo tribunal considerou/decidiu que “não se provou”, sendo certo que não foi apresentada qualquer impugnação a essa decisão no e pelo recurso principal interposto .
Tendo presente esta circunstância, são os seguintes os factos que se consideraram provados no tribunal a quo:
«1) Por acórdão proferido em 15.07.1999, no âmbito do Processo n.º 695/99 (Acção declarativa de condenação com processo ordinário), que se iniciou com uma petição inicial apresentada pela Ré em 26.03.1996, que correu os seus termos no então Tribunal do Círculo de Alcobaça, foram dados como provados, com relevância para a presente decisão, os seguintes factos:
a. A Ré [A..., Lda.] dedica-se à comercialização de sistemas de pesagem - básculas e balanças de construção electrónica e mecânica;
b. A A. B..., por intermédio da A. D..., contratou a Ré para que esta fizesse uma proposta de financiamento de tais básculas;
c. A fim de poder exercer a sua actividade de comercialização de produtos hortícolas e frutícolas, a A. B... necessitava de adquirir três balanças básculas electrónicas e colocá-las nas suas instalações para pesagem de mercadoria que comercializa;
d. A Ré, em 28/7/92, enviou à Autora B... a proposta constante de fls 7. para o eventual fornecimento de três básculas: uma pesa camiões, com o alcance máximo de 60 toneladas, outra electrónica, com o alcance máximo de 6 toneladas e outra ainda com o alcance máximo de 3 toneladas, cujo preço, incluindo o transporte e montagem, seria 4.350 contos, ao qual acresceria a taxa da 1ª verificação e IVA, à taxa de 16%.
e. Tal proposta foi aceite pelas Autoras;
f. A Ré emitiu a factura cuja cópia se acha a fls 9 e 10, referente à venda das ditas básculas, endereçada à A. D..., pelo preço total de 5.412.393$00;
g. Desse preço a Ré recebeu da D... a quantia de 5.046.000$00, a quem, por sua vez. a A. B... entregou tal importância:
h. (…), a Ré forneceu as básculas, que se encontram encastradas no piso;
2) Por acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, em 24.09.2002, no âmbito do processo identificado em 1), em virtude de recurso interposto de tal decisão, mantendo a factualidade dada como provada, foi decidido declarar anulado o contrato de compra e venda efectivamente celebrado entre a A. B... e a Ré, em quanto respeita às básculas de 60 e 6 toneladas, respectivamente, e em razão disso condenar a dita Ré a devolver à mesma A. a quantia que se vier a liquidar em execução de sentença, como correspondente à soma dos preços unitários de base dessas duas balanças e correspectivos IVA, acrescida de juros de mora concernentes, à taxa legal, a contar da citação e até efectivo e integral pagamento;
3) A decisão identificada em 2) foi confirmada por Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 20.05.2003, transitado em julgado em 27.11.2003;
4) No dia 16.06.2003, a Autora remeteu uma missiva à Ré com o seguinte teor:
Exmos. Senhores,
Encontrando-se quase a findar, no Supremo Tribunal de Justiça, o processo relativo as balanças de (…)6 e 60 toneladas, vínhamos propor uma reunião nessas instalações em 01/07/03, pelas 15 horas, para dar seguimento e conclusão ao que judicialmente for resolvido.
Cremos ser esta a melhor solução de procurar resolver este assunto sem demais demoras.
Sem outro assunto de momento, subscrevemos com elevada estima e superior consideração.;
5) Em resposta à missiva referida em 4), a Ré, em 23.06.2003, remeteu missiva à Autora com o seguinte teor:
Exmos. Senhores.
Re: V/ carta datada de 16 de Junho 2003
Acusamos recepção da vossa carta acima referenciada; e informamos que este caso a que V. Exas. se referem foi entregue ao Dr. AA, Rua ... - ...., ... ..., e todos os assuntos respeitantes lhe deverão ser dirigidos.
Mais informamos que efectivamente já houve decisão do Supremo Tribunal de Justiça e temos informação que sobre tal decisão recorreu uma reclamação vossa. Sem mais de momento.
Atentamente,;
6) Em resposta à missiva referida em 5), a Autora, em 14.07.2003, remeteu missiva à Ré com o seguinte teor:
..., 14 de Julho de 2003
Assunto: Negócio da compra e venda das balanças de 6 e 60 toneladas.
Acórdão do STJ de 20.05.03
Exmos Senhores,
Quando recebemos o douto acórdão em referência tentamos junto de V.Exas., e seguidamente junto do V/Advogado agendar uma reunião para "dar seguimento e conclusão ao que judicialmente for resolvido". V Exas., comunicaram porém através do V/Advogado a V/indisponibilidade.
Como não podemos fixar unilateralmente quer a nossa prestação quer a Vossa, decorrentes da anulação, vimos pelo presente comunicar a nossa total disponibilidade para imediatamente acertar com V.Exas., essas prestações reciprocas e liquidar a que nos couber efectuar que, em todo o caso, entendemos será de E 18.804.68, salvo se outro valor vier a resultar do trânsito da decisão.
Sem outro assunto de momento, subscrevemo-nos com elevada estima e superior consideração;
7) Em resposta à missiva referida em 6), a Ré, em 16.07.2003, remeteu Fax à Autora com o seguinte teor:
Exmos Senhores
Acusamos recepção do vosso fax acima referido, informamos que o mesmo foi entregue ao nosso advogado.
Sem mais de momento.;
8) Em 16.07.2003, a Autora instaurou, com base nas decisões identificadas em 1) a 3), execução de sentença, contra a Ré, alegando que as ditas básculas já não detinham qualquer valor e, consequentemente, pedindo que seja proferida decisão na qual se fixe à obrigação exequenda o valor de € 48.687,15 acrescida de juros à taxa legal de 12% ao ano desde a citação;
9) No dia 20.01.2004, pelo então Tribunal Judicial da Comarca de Alcobaça, foi proferida decisão de indeferimento liminar do requerimento executivo referido em 8);
10) A decisão identificada em 9) foi confirmada por Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 12.10.2004;
11) A decisão identificada em 10) foi confirmada por Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 03.03.2005, transitado em 17.03.2005;
12) Em 27.01.2004, a Ré instaurou, com base nas decisões identificadas em 1) a 3), execução de sentença, contra a Autora, pedindo o pagamento do valor de € 34.608,45 (sendo € 18.555,28 respeitantes ao preço das básculas + IVA de 16% + € 13.084,31, a título de juros);
13) No dia 12.02.2004, pelo então Tribunal Judicial de Alcobaça – 1.º Juízo, foi proferida decisão de indeferimento liminar do requerimento executivo referido em 12);
14) A decisão identificada em 13) foi revogada por Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 23.11.2004, tendo sido determinado o prosseguimento dos autos nos indicados termos e, para tal efeito, convidar a exequente a apresentar novo requerimento inicial;
15) Na sequência de apresentação de requerimento executivo aperfeiçoado pela Ré, a Autora deduziu oposição e embargos de executado;
16) No dia 26.05.2006, pelo então Tribunal Judicial de Alcobaça – 1.º Juízo, foi proferida decisão de improcedência da excepção da inexigibilidade da obrigação por força da excepção de não cumprimento do contrato invocada pela embargante (Autora), nos termos e com os fundamentos vertidos na decisão constante a fls. 68 a 76 do Processo n.º 2421/19.... (Embargos de Executado), que, para todos os efeitos, se consideram integralmente reproduzidos;
17) No dia 30.07.2009, no âmbito dos embargos de executado deduzidos pela Autora, foi proferida decisão, pelo então Círculo Judicial ..., em que foram dados como provados os seguintes factos:
a. For acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, confirmado pelo Supremo Tribunal de Justiça, foi a "A..., Lda" condenada a devolver à "B..., CRL "a quantia que se vier a liquidar em execução de sentença, como correspondente à soma dos preços unitários de base dessas duas balanças e correspondente IVA, acrescida de juros de mora concernentes, à taxa, a contar da citação e até integral e efectivo pagamento" e ainda "a pagar à A. B... a quantia de 2.400.000$00, a indemnização pelos danos causados com a sua culposa actuação na formação de tal contrato".
b. A embargante enviou, em 28.071992, a proposta para venda de uma báscula pesa - camiões totalmente electrónica com o alcance máximo de 60 toneladas, com um visor com saída RS 232 e impressora, uma báscula electrónica com o alcance máximo de 6.000 Kg., com um visor com saída RS 232 e impressora, e uma báscula com o alcance máximo de 3.000 Kg, com um visor com saída RS 232 e impressora, incluindo transporte e montagem dos equipamentos, pelo valor global de Esc. 4.350.000500 (taxa da 1ª verificação e IVA a 16% não incluídos).
c. A embargada B... solicitou um controlo metrológico das básculas e o técnico da Direcção Geral de Energia de Lisboa e Vale do Tejo, BB, que, em 13.03.1995, se deslocou às instalações da B..., onde foram colocadas as básculas, e informou que não procedia à verificação por as básculas de 60 e 6 toneladas serem da série PI 600 RS, não aprovada pelo Instituto Português de Qualidade.
d. Em 14.05.1998, a C... enviou um técnico às instalações da embargada B... para verificar a báscula de 60 toneladas aí instalada, que, nessa data, se encontrava ligada e com os talões de pesagem.
e. A B..., CRL intentou contra “A..., Lda" a acção executiva que corre termos pelo apenso B, nomeando à penhora depósitos bancários referentes à conta nº ...77 do Banco 1..., balcão de ..., em ..., e os saldos bancários de contas tituladas pela executada em quaisquer entidades bancárias até integral pagamento da quantia exequenda, que liquidou em € 37.151,74.
f. As balanças de 6 e 60 toneladas foram entregues à embargada e colocadas em Setembro de 1992 e foram, por esta utilizadas pelo menos até 13.03.1995.
g. A embargada adquiriu as balanças de 6 e 60 toneladas para exercer a sua actividade e por necessitar delas para o seu funcionamento diário.
h. Caso não tivesse adquirido as balanças de 6 e 60 toneladas, a embargada teria adquirido outras semelhantes pelo mesmo preço.
i. A embargante, em 13.07.1992, propôs à embargada a venda de uma báscula pesa camiões com o alcance máximo de 60 toneladas, com visor mod. PT 600 RS, pelo valor de Esc. 3.720.000$00 (taxa da 1ª verificação e IVA não incluídos);
j. E uma báscula electrónica com o alcance máximo de 6.000 Kg, com visor mod. PT 600 RS, pelo valor de Esc. 780.000$00 (taxa da 1ª verificação e IVA não incluídos);
k. Assim como uma báscula com o alcance máximo de 3.000 kg, com visor mod. PT 600 RS, pelo valor de Esc. 630.000$00 (taxa da 1ª verificação e IVA não incluídos).
l. A embargante entregou à embargada, em 10.12.2003, a quantia de € 11.971,15.;
18) A decisão referida em 17) julgou improcedentes os embargos de executado, bem como a oposição à liquidação efectuada pela exequente/embargada, tendo determinado o prosseguimento da acção executiva, nos termos e com os fundamentos vertidos na decisão constante a fls. 422 a 433 do Processo n.º 2421/19.... (Embargos de Executado), que, para todos os efeitos, se consideram integralmente reproduzidos;
19) Por acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, em 18.01.2011, no âmbito do processo identificado em 17) e em 18), em virtude de recurso interposto das decisões referidas em 16) e 18), mantendo a factualidade dada como provada, foi decidido julgar i) procedente a apelação deduzida contra o saneador sentença recorrido, revogando-se o mesmo e substituindo-se por esta outra decisão: julga-se procedente a oposição à execução deduzida nos embargos de executada, por inexigibilidade da obrigação exequenda (enquanto a autora não restituir à ré as duas básculas ou não oferecer o cumprimento simultâneo dessa restituição com a restituição do preço) e em consequência determina-se a extinção desta execução; ii) Improcedente o recurso de agravo interposto, confirmando-se a decisão recorrida; e iii) Procedente a apelação interposta contra a sentença, na parte em que condenou a ré como litigante de má fé, nos termos e com os fundamentos vertidos na decisão constante a fls. 510 a 517 do Processo n.º 2421/19.... (Embargos de Executado), que, para todos os efeitos, se consideram integralmente reproduzidos;
20) Na decisão referida em 19) fez-se constar o seguinte sumário: Não obstante no decisão judicial que anulou um contrato não se ter dito que a compradora teria que restituir a coisa comprada em simultâneo com o preço pela vendedora, esta, na execução em que a compradora lhe exija o cumprimento da obrigação da restituição do preço pode opor a excepção de não cumprimento da obrigação da restituição da cisa enquanto a compradora não se oferecer para cumprir em simultâneo;
21) A decisão identificada em 19) foi confirmada por Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22.09.2011, transitado em 10.10.2011;
22) Na decisão referida em 21) fizeram-se constar as seguintes conclusões:
a. Para se determinar, reconstituir e fixar o verdadeiro conteúdo e alcance dum título executivo constituído por uma sentença, há que considerar também o contexto em que o mesmo se insere, não sendo, por isso, de excluir o recurso à própria fundamentação (motivação) da sentença.
b. A declaração de anulação de um contrato de compra e venda relativo a duas básculas, através de uma sentença, implica ao abrigo do art. 289 n°1 do C. Civil a restituição simultânea das básculas aos vendedores ( aqui, executados) e dos montantes dos preços que foram pagos aos compradores ( aqui, exequentes)
c. E incumbindo às partes outorgantes no contrato deveres recíprocos de restituição nos termos supra referidos, estão sujeitas ao princípio do cumprimento simultâneo nos termos do art. 290 do C. Civil.
d. E não havendo por parte do comprador cumprimento em simultâneo da sua prestação de restituição das máquinas, é lícito ao executado (vendedor) exigir ao abrigo do citado art. 290 a restituição simultânea a fim de repor as partes em conformidade com o art. 289 n°1 do CC á situação anterior á celebração do contrato;
23) No dia 04.03.2013, a Ré remeteu missiva à Autora com o seguinte teor:
Exmos Senhores,
Em conformidade com o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação (confirmado pelo Supremo Tribunal de Justiça) na execução com liquidação de sentença por nós intentada contra V. Ex, o qual faz depender a exigibilidade da prestação por nós executada (valor das balanças e juros), da restituição das balanças/básculas, vimos colocar à v/disposição as básculas em causa, oferecendo, assim, o cumprimento da obrigação de restituição das mesmas, sendo que tal restituição não foi feita antes por V. Ex.as o não pretenderem.
Com os melhores cumprimentos,;
24) Em resposta à missiva referida em 23), a Autora, em 19.03.2013, remeteu missiva à Ré com o seguinte teor:
Exmos. Senhores
Temos presente a carta de V.Exas, datada de 04-03-2013 que recebemos em 08-03-13 sobre o assunto acima referido.
Tendo a compra e venda sido anulada, cada uma das partes deve "devolver o que recebeu da outra", no estado em que se encontrava à data do contrato (1992), ou o valor correspondente. "Ou seja, o regresso à situação anterior à celebração do negócio", como é dito no último Acórdão do Supremo proferido neste caso.
De acordo com a perícia efectuada em Dezembro de 2006 e Janeiro de 2007 as estruturas metálicas e células de pesagem de ambas as balanças encontravam-se ao ar livre. Ambas as balanças estavam deterioradas. Para possuírem valor de uso impunham-se então acções de manutenção correctiva muito profundas e dispendiosas. Nomeadamente a substituição completa dos seus componentes electrónicos e reabilitação das estruturas metálicas. Nessa data era nulo o valor contabilistico de ambas as balanças.
A fim de examinar o que comunicaram pretender entregar fizemos deslocar duas pessoas as V/instalações na passada 6ª feira, dia 16 de Março de 2013.
Foram recebidas por um V/Director que as levou a um terreno situado a cerca de 500 metros ao lado da B....
Não deixou que fossem tiradas fotografias.
O que viram foi completa sucata no meio das ervas. O V/ Director disse que não tinham dinheiro para mais, para guardar num armazém fechado; material completamente destruído, impróprio, completamente gasto, apenas sucata. Foi verificado não haver básculas para entregar porque estas já não existem restando só uns destroços.
Não estão assim, contrariamente ao que nos comunicaram apenas agora, "colocadas à V/disposição as básculas em causa".;
25) No dia 27.09.2016, a Ré instaurou, com base nas decisões identificadas em 1) a 3), execução de sentença, contra a Autora, pedindo o pagamento do valor de € 26.424,35 (sendo € 18.555,28 respeitantes ao preço das básculas + IVA de 16% + € 4.900,22, a título de juros);
26) Na sequência de apresentação de requerimento executivo pela Ré, a Autora, em 03.02.2018, deduziu embargos de executado;
27) No dia 23.11.2020, no âmbito dos Embargos de Executado com o n.º 2266/16...., a que diz respeito aos embargos referidos em 26), foi julgada parcialmente improcedente a oposição à execução/liquidação, incluindo quanto à excepção de compensação, prosseguindo os autos com a oposição à liquidação apenas para efeitos do apuramento do valor da obrigação de restituir a cargo da executada, nos termos e com os fundamentos vertidos na decisão constante na Ref.ª Citius 11141845, de 19.09.2024, que se consideram, para todos os efeitos, integralmente reproduzidos;
28) No dia 13.05.2021, no âmbito do identificado processo de Embargos de Executado com o n.º 2266/16...., as partes alcançaram acordo nos seguintes termos:
1- No âmbito da oposição à liquidação que constitui actualmente o objecto do processo decorrente da sentença proferida anteriormente nos autos (referência 94940708), sem prejuízo do recurso que se encontra pendente quanto à demais matéria, as partes estão de acordo quanto ao valor a fixar no âmbito da liquidação para efeitos do futuro prosseguimento da execução, consoante a decisão final que venha a ser proferida quanto à demais matéria da oposição.
2 - Nessa sequência as partes acordam que o valor da liquidação ora em discussão se fixa em € 20.000,00 (vinte mil euros), a que acrescem os juros de mora sobre a aludida quantia, à taxa legal de 4%, desde a data de citação ocorrida na execução em 10-01-2018 até integral pagamento.
3 - As partes assumem que a suspensão da execução determinada no presente apenso através da decisão referência 91286638 se mantém até à decisão final da oposição.
4 - No âmbito deste incidente de liquidação as partes prescindem das custas de parte.;
29) Sobre o acordo exposto em 28) foi, na mesma data, proferida a seguinte sentença:
Considerando o particular circunstancialismo dos presentes autos na sequência da sentença constante na referência 94940708, o presente apenso prosseguiu para efeitos da oposição à liquidação na parte não prejudicada por aquela decisão e que respeitava apenas ao apuramento do valor da obrigação de restituição do preço a cargo da executada, conforme se fez constar no despacho subsequente à aludida sentença (constante na mesma referência).
Neste contexto, afigura-se que o acordo entre as partes se traduz na fixação da liquidação da obrigação exequenda, passando a mesma a considerar-se líquida nos termos desse acordo, sem prejuízo da demais matéria que foi anteriormente decidida e relativamente à qual se aguarda a oportuna decisão final, consoante o que possa resultar, por ora, do recurso que se encontra pendente.
Assim, considerando o aludido acordo das partes, considera-se liquidada a quantia exequenda para efeitos do eventual futuro prosseguimento da execução, fixando-se essa liquidação em 20.000,00€ (vinte mil euros), a que acrescem os juros acordados pelas partes, nessa exacta medida se homologando o acordo das partes, quanto à matéria da liquidação e nos precisos termos do aludido acordo - artigos 277.º alínea d), 283.º, 284.º, 287.º, 289.º, 290.º, 360.º e 716.º, n.ºs 4 e 5, na parte aplicável, do CPC.
Uma vez que as partes prescindem das custas de parte e a taxa de justiça inicial se encontra liquidada, não existem outras custas a considerar no âmbito da presente liquidação, na proporção de 25%, tendo em conta a sentença anteriormente proferida (sem prejuízo das custas a final quanto à demais matéria da oposição, consoante o que possa resultar da decisão a proferir no recurso pendente).
Tendo presente a posição das partes quanto à suspensão da execução, consigna-se o entendimento concordante do Tribunal, atenta a decisão referência 91286638, uma vez que tal suspensão reporta-se ou tem subjacente matéria relacionada com a oposição à execução e considerando que se entende que tal suspensão se mantém até à decisão final transitada em julgado (o que dependerá agora do recurso pendente). Assim mantém-se a suspensão da execução determinada naquela decisão até à decisão final que venha a ser proferida nesse âmbito.
Notifique.;
30) A decisão identificada em 27) foi confirmada por Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 25.05.2021;
31) A decisão identificada em 30) foi confirmada por Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 08.09.2021;
32) Na sequência do acordo alcançado em 13.05.2021, tal como exposto em 28), a Autora, em 28.09.2021, entregou à Ré a quantia de € 22.964,00;
33) As duas básculas em apreço foram desmontadas em data não concretamente apurada, mas anterior a 05.12.2006;
34) Desde que as básculas foram desmontadas que permaneceram ao ar livre;
35) As básculas, em Fevereiro de 2007, apresentavam um valor económico residual de, aproximadamente, entre € 900,00 e € 1.100,00;
36) As básculas, em Fevereiro de 2007, a fim de serem utilizadas, necessitavam de reparação e substituição de componentes;
37) As básculas, em Março de 2013, apenas tinham o valor residual correspondente ao seu material (sucata);
38) As básculas, em 14.11.2023, encontravam-se desmanteladas, em peças soltas, expostas ao ar livre, em estado de decomposição e com o metal oxidado;
39) As duas básculas, actualmente, já não são passíveis de reparação ou aproveitamento, com excepção da venda do metal;
40) As duas básculas, que pesam 9 toneladas, actualmente, têm o valor comercial de € 250,00/tonelada de metal;
41) O tempo de vida útil das duas básculas entregues pela Autora à Ré em 1992 é de 15 anos;
42) Na óptica da Autora, o valor das duas básculas cifra-se em € 18.555,28, à data da entrega em Setembro de 1992;
43) A presente acção deu entrada em juízo no dia 02 de Janeiro de 2022.»
*
E os seguintes os factos que se consideraram não provados no tribunal a quo:
«a) Que, na sequência da missiva identificada em 4), apontaram-se os dias 3 ou 4 de Julho de 2003 para efectuar essa reunião;
b) Que a Ré inviabilizou a realização da reunião referida em a);
c) Que a Autora entregou à Ré, em 10.12.2003, € 11.971,15 a fim de lhe proporcionar a desmontagem as balanças para lhas poder restituir;
d) Que a Autora nunca procurou obter a devolução das balanças;
e) Que a Autora nunca pretendeu o levantamento das balanças.» *
4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Cumpre então entrar na apreciação da questão supra enunciada no recurso principal de apelação, diretamente reportada ao mérito da sentença, na vertente da fundamentação de direito da mesma, a saber, o desacerto da decisão, ao considerar procedente a ação [cumprindo, designadamente, apreciar a questão do abuso do direito por parte da A. em intentar a ação contra a Ré]:
Cremos que a resposta a esta questão se constitui como linear e inabalável.
É que face ao quadro fáctico apurado/assente, e não impugnado neste recurso, não vislumbramos como dar acolhimento ao mesmo.
Para tanto rememoremos o que estava em causa na ação interposta.
Como doutamente explicitado na sentença recorrida «(…) foi, pelas partes, outorgado um contrato de compra e venda, em 1992 – artigo 874.º do Código Civil. No âmbito desse contrato, pela Ré foram adquiridas à Autora três básculas, pelo valor global de 5.046.000$00, preço esse que foi pago.
Por decisão transitada 27.11.2003, no âmbito de uma acção judicial impulsionada pela ora Ré, foi tal contrato declarado anulado, no que respeita às básculas de 60 e 6 toneladas, e foi a ora Autora condenada a devolver à Ré o respectivo preço (a quantia que se vier a liquidar em execução de sentença, como correspondente à soma dos preços unitários de base dessas duas balanças e correspectivos IVA, acrescida de juros de mora concernentes, à taxa legal, a contar da citação e até efectivo e integral pagamento).
Não tendo sido tais básculas restituídas à vendedora (ora Autora) pela compradora (ora Ré), intentou a primeira a presente acção, com vista à sua compensação pecuniária em virtude de os bens vendidos já não existirem.
Está-se, assim, sem dúvida, perante a aplicação do disposto no artigo 289.º do Código Civil que prescreve o seguinte: [t]anto a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente (n.º 1); [t]endo alguma das partes alienado gratuitamente coisa que devesse restituir, e não podendo tornar-se efectiva contra o alienante a restituição do valor dela, fica o adquirente obrigado em lugar daquele, mas só na medida do seu enriquecimento (n.º 2); [é] aplicável em qualquer dos casos previstos nos números anteriores, directamente ou por analogia, o disposto nos artigos 1269.º seguintes (n.º 3).
Do preceito ora citado resulta que, em caso de anulação de um negócio, as partes ficam obrigadas a restituir tudo o que tiver sido prestado. Ora, e com relevância para a presente decisão, no caso da compra e venda, a parte compradora tem direito à restituição do valor pago a título de preço, tendo a parte vendedora direito à restituição da coisa vendida, respeitando-se, assim, a reposição do status quo ante.
No caso sub judice, dúvidas inexistem que o contrato de compra e venda celebrado entre as partes em 1992 foi anulado por decisão transitada em julgado em 27.11.2003. Consequentemente, a partir desse momento, ficaram as partes obrigadas às respectivas restituições, nos termos enunciados.
O objecto do presente processo prende-se com a obrigação da restituição da parte compradora (Ré) dos bens adquiridos (duas básculas). Peticiona a Autora o respectivo valor de tais bens, considerando a impossibilidade de os restituir.
Nesse caso, ou seja, no caso de a restituição em espécie não ser possível, de acordo com o disposto no citado artigo 289.º, n.º 1, in fine, do Código Civil, deverá ser restituído o valor correspondente.».
Neste quadro, da factualidade apurada resulta insofismavelmente que a Ré, obrigada à restituição das duas básculas após a anulação do contrato e compra e venda, não cumpriu nunca a sua obrigação no que tange a tal restituição.
Atente-se que a decisão transitada em julgado relativamente a tal data de 27.11.2003.
Ora, não obstante ter ficado definitivamente estabelecido que o contrato estava anulado, do que juridicamente derivava que competia, designadamente, à aqui Ré proceder à restituição à Autora das duas básculas em causa, tal não foi operado pela mesma.
Em contraponto, o que temos igualmente apurado é que a aqui Ré interpôs várias/sucessivas execuções contra a A. no sentido de obter a restituição do preço que havia pago a esta última pela aquisição dos bens.
A primeira execução (apenso “A”) foi instaurada no ano de 2003, tendo sido liminarmente indeferida [decisão essa que foi confirmada pelas instâncias de recurso].
A segunda execução (apenso “B”) foi instaurada no ano de 2004, mas finalizou (foi extinta), atenta a procedência da oposição à execução, nos embargos de executado interpostos pela Executada (aqui A.), por inexigibilidade da obrigação exequenda (enquanto a A. não restituísse à Ré as duas básculas ou não oferecesse o cumprimento simultâneo) [decisão decorrente das instâncias de recurso].
A terceira execução foi instaurada reclamando a Exequente o pagamento do mesmo crédito, mas com a alegação de que já havia sido colocada à disposição da Executada as referidas básculas, execução essa que, não obstante a Oposição deduzida, foi considerada em condições de prosseguir [decisão confirmada em recurso], mas veio a finalizar por as partes terem alcançado acordo em 13.05.2021 [homologado por sentença], em cumprimento do qual a aqui Autora, em 28.09.2021, entregou à Ré a quantia de € 22.964,00.
Não obstante tudo o vindo de relatar, subsistia por decidir entre as partes a situação da devolução das básculas.
Tendo sido para efetivação desse direito que a aqui Autora interpôs a ação de que vem interposto o recurso ora em apreciação, ação essa que deu entrada em juízo no dia 2 de Janeiro de 2022[2].
Sucede que, não obstante a contestação da aqui Ré a esta ação, o que é certo é que nela resultou decisivamente apurado/assente, em termos definitivos [porque não impugnados], o seguinte:
«33) As duas básculas em apreço foram desmontadas em data não concretamente apurada, mas anterior a 05.12.2006;
34) Desde que as básculas foram desmontadas que permaneceram ao ar livre;
35) As básculas, em Fevereiro de 2007, apresentavam um valor económico residual de, aproximadamente, entre € 900,00 e € 1.100,00;
36) As básculas, em Fevereiro de 2007, a fim de serem utilizadas, necessitavam de reparação e substituição de componentes;
37) As básculas, em Março de 2013, apenas tinham o valor residual correspondente ao seu material (sucata);
38) As básculas, em 14.11.2023, encontravam-se desmanteladas, em peças soltas, expostas ao ar livre, em estado de decomposição e com o metal oxidado;
39) As duas básculas, actualmente, já não são passíveis de reparação ou aproveitamento, com excepção da venda do metal;
40) As duas básculas, que pesam 9 toneladas, actualmente, têm o valor comercial de € 250,00/tonelada de metal;
41) O tempo de vida útil das duas básculas entregues pela Autora à Ré em 1992 é de 15 anos;»
Neste conspecto, cremos que é incontornável a conclusão de que as básculas foram efetivamente desmontadas pela Ré (em data anterior a 5.12.2006), permanecendo desde então ao ar livre, em razão do que, na atualidade, já não são passíveis de reparação ou aproveitamento, apenas havendo a considerar o valor do metal respetivo (sucata).
Dito de outra forma: está apurada a impossibilidade de restituição (material ou em espécie) em causa.
Naturalmente que esta situação tem que ser imputada à Ré, a qual não obstante saber do (seu) dever de restituição correspondente, possibilitou/originou a situação vinda de relatar.
E nem se argumente – como o faz a Ré nas alegações recursivas! – que dado o facto de a Autora, logo em 16.07.2003[3], ter instaurado ação executiva com vista a ser compensada economicamente pela aqui Ré (por força da anulação do contrato de compra e venda celebrado entre as partes) em que logo alegou que as básculas não tinham qualquer valor por estar esgotado o seu tempo de vida, que tal evidenciaria que nunca pretendeu a restituição em espécie das básculas.
Salvo o devido respeito, o que unicamente e com legitimidade é lícito concluir é que a aqui A. já então sustentava a deterioração as básculas, e que a sua restituição (material ou em espécie) não significaria o correto e equilibrado dever de restituição por parte da aqui Ré.
Aliás, foi dado como não “provado” sob as correspondentes als. “d)” e “e)” [sem que a Ré o impugnasse], «Que a Autora nunca procurou obter a devolução das balanças;» e «Que a Autora nunca pretendeu o levantamento das balanças»…
O que tudo serve para dizer que foi a Ré que agiu com culpa quanto à sua obrigação de conservação das básculas, pois que tendo intentado contra a Autora, em 26.03.1996, a ação de anulação do negócio, e sendo conhecedora da pendência desse processo, que poderia culminar na respectiva anulação, com as demais consequências, designadamente o dever (da própria) de restituição dos bens comprados, não obstante não acautelou um uso normal e prudente das ditas básculas!
Sendo certo que aqui entronca precisamente a improcedência do principal argumento recursivo da Ré/recorrente, qual seja, o de que houve abuso do direito por parte da A. em intentar esta ação contra a Ré, posto que teria deixado «(…) passar cerca de vinte anos após o trânsito em julgado da anulação do negócio, criando uma situação manifestamente injusta para a Apelante que, a manter-se a decisão recorrida, pagará duas vezes as básculas que se encontravam não homologadas para funcionar e cuja situação à Apelada se ficou a dever», e que «A Apelada age, assim, em manifesto abuso de Direito, nos termos previstos no artigo 334.º, do Código Civil, nomeadamente na modalidade chamada de surrectio».
Mas vejamos mais em concreto.
Dispõe o art. 334º do C.Civil:
«É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.»
O instituto do abuso do direito visa obtemperar a situações em que a invocação ou exercício de um direito que, na normalidade das situações seria justo, na concreta situação da relação jurídica se revela iníquo e fere o sentido de justiça dominante.
Para que se possa considerar abusivo o exercício do direito, importa demonstrar factos, através dos quais se possa considerar que, ao exercê-lo se excede, manifestamente, clamorosamente, o seu fim social ou económico, ou que a pretensão viola sérias expectativas incutidas na contraparte, assim traindo o investimento na confiança, o que exprime violação da regra da boa-fé.
Temos também presente que o art. 334º do C.Civil, acolhe uma conceção objetiva do abuso do direito, segundo a qual não é necessário que o titular do direito atue com consciência de que excede os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social do direito.
A lei considera verificado o abuso, prescindindo dessa intenção, bastando que a atuação do abusante, objetivamente, contrarie aqueles valores.
Como já nos foi doutamente ensinado a este propósito, «Para que o exercício do direito seja abusivo, é preciso que o titular, observando embora a estrutura formal do poder que a lei lhe confere, exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar, em função dos interesses que legitimam a concessão desse poder.»[4]
Ora, como é apodítico, fazia parte da configuração dogmática da situação, com expressão no art. 289º do C.Civil[5], na medida em que se tratava de caso de anulação de um negócio, que as partes ficavam obrigadas a restituir tudo o que tivesse sido prestado.
Assim, e com relevância para a decisão, a parte compradora tem direito à restituição do valor pago a título de preço, tendo a parte vendedora direito à restituição da coisa vendida, respeitando-se, assim, a reposição do status quo ante.
Estando adquirido que o contrato de compra e venda celebrado entre as partes em 1992 foi anulado por decisão transitada em julgado em 27.11.2003, a partir desse momento, ficaram as partes obrigadas às respectivas restituições, nos termos enunciados, nomeadamente competindo à Ré, enquanto parte compradora, a obrigação da restituição à parte vendedora (A.) dos bens adquiridos (duas básculas).
Não obstante, analisada ponderada e conjugadamente toda a factualidade apurada, o que resulta, salvo o devido respeito, é que a Ré, obrigada à restituição das duas básculas após a anulação do contrato e compra e venda – definitivamente após 27.11.2003! – não cumpriu a sua obrigação no que tange a tal restituição.
O que seguramente se apurou é que em data não concretamente apurada, mas anterior a 05.12.2006, as duas básculas foram desmontadas, ficando ao ar livre desde tal data [cf. factos provados sob “ 33)” e “34”, supra reproduzidos].
Ocorrendo que na sequência de tal, as coisas a restituir já não existem, tendo-se deteriorado, estando reduzidas a sucata.
E ainda que não tenha ficado esclarecido o motivo da Ré não ter procedido a uma restituição atempada de tais bens, não se tendo logrado provar que diligências em concreto foram encetadas pelas então partes outorgantes com vista à restituição do devido, para além de missivas remetidas[6] e ações intentadas, o que é certo é que competia à Ré provar que havia procedido a essa entrega, ou, pelo menos, diligenciado material e positivamente para que tal se concretizasse, o que não logrou fazer.
Em todo o caso, nos termos gerais do previsto no art. 414º do n.C.P.Civil, a dúvida sobre esse cumprimento da obrigação da entrega resolve-se contra si…
Acresce que, s.m.j., o que resulta da matéria apurada é que a Ré, após a anulação do contrato de compra e venda, verdadeiramente apenas se preocupou e diligenciou em obter a restituição do valor monetário que havia despendido na aquisição das balanças/básculas, olvidando que incumbindo às partes outorgantes no contrato deveres recíprocos de restituição, estavam elas sujeitas ao princípio do cumprimento simultâneo nos termos do art. 290 do C. Civil.
Neste quadro, como se pode então afirmar que o direito de ação por parte da A. [com e através da ação proposta] está a ser exercido (como acentuava M. de Andrade), “em termos clamorosamente ofensivos da justiça?
Temos presente que entre as hipóteses de exercício de um direito em que o titular excede manifestamente os limites impostos pela boa fé encontra-se a conduta contraditória, ou seja, o venire contra factum proprium.[7]
Ocorre que não é qualquer conduta contraditória que faz cair o seu autor sob a alçada do art. 334º do C.Civil.
Para tanto é necessário, em primeiro lugar, que aquele contra quem é invocado o abuso de direito, tenha criado «uma situação objectiva de confiança”, ou seja, tenha tido uma conduta que, “objectivamente considerada, é de molde a despertar noutrem a convicção de que ele também no futuro se comportará coerentemente, de determinada maneira”. “Para que a conduta em causa se possa considerar causal em relação á criação da confiança, é preciso que ela directa ou indirectamente revele a intenção do agente de se considerar vinculado a determinada atitude no futuro».[8]
Em segundo lugar, é necessário que, «com base na situação de confiança criada», a contraparte tome «disposições ou organize planos de vida de que lhe surgirão dúvidas, se a sua confiança legítima vier a ser frustrada».
Em terceiro lugar, é necessária a «boa-fé da contraparte que confiou».
De referir que, atenta a concreta tipologia dos atos abusivos que se incluem na categoria do abuso do direito e com os quais se procura densificar a indeterminação do conceito correspondente [são reconduzidos ao abuso do direito, v.g., o (i) venire contra factum proprium, quer dizer, a proibição do comportamento contraditório, a (ii) supressio (supressão), ou seja, a neutralização de um direito que durante muito tempo se não exerceu, tendo-se criado, pela própria conduta, uma expetativa legítima de que não iria ser exercido, a (iii) surrectio, i.e., o surgimento de um direito por força de um comportamento contraditório qualificado pelo decurso do tempo - e o (iv) desequilíbrio objectivo no exercício, comportamento abusivo cujo desvalor se objectiva na desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício imposto pelo exercício a outrem, e que compreende todas as situações em que se exercem poderes sanção por faltas insignificantes, como sucede quando uma parte resolva o contrato, alegando uma violação sem relevo de nota, em termos de causar a esta um grande prejuízo], é a categoria dogmática da surrectio que aqui está mais diretamente em causa.
Sendo que importa concluir pela sua não verificação positiva in casu.
É certo que a supressio e a surrectio [que no caso dos autos interessa densificar], são figuras baseadas nos mesmos fenómenos – decurso do tempo, boa-fé e tutela da confiança – mas de sentido inverso, na medida em que no primeiro caso, o decurso de um longo período de tempo sem o exercício de um direito faz com que o seu titular perca a faculdade do seu exercício, ao passo que no segundo caso, a manutenção de uma situação durante um longo período de tempo faz surgir numa pessoa uma faculdade jurídica que de outro modo não teria.[9]
Sucede que o direito da A. a ser restituída das básculas existia para a A. desde a anulação da compra e venda, traduzindo-se numa obrigação para a aqui Ré o seu cumprimento.
Não tendo sido pelo protelar da propositura da ação por parte da A. que o direito que a mesma exercitou na e com a presente ação veio a surgir.
Antes a impossibilidade de restituição (material ou em espécie) em causa pode ser situada em data muito antecedente – em data não concretamente apurada, mas anterior a 05.12.2006, as duas básculas foram desmontadas, ficando ao ar livre desde tal data [cf. factos provados sob “ 33)” e “34”, supra reproduzidos], ocorrendo que na sequência de tal, as coisas a restituir já não existem, tendo-se deteriorado, estando reduzidas a sucata.
Situação final que, como já visto, pode e deve ser imputada à aqui Ré.
Ademais, até nos parece questionável a afirmação de que tenha sido a A. a protelar a situação, mormente com um qualquer objetivo ínvio, pois que a A. sempre sinalizou, na litigância que manteve com a Ré ao longo do tempo, que não abdicava da restituição das duas básculas – mormente com a repetida invocação da exceção de não cumprimento da obrigação da restituição do valor da aquisição enquanto a compradora não se oferecesse para cumprir em simultâneo (restituição da coisa).
Isto é, face ao conspecto fáctico apurado, não nos parece legítima a conclusão de que foi a manutenção da situação por parte da A. que lhe fez surgir um direito que de outro modo não teria.
Donde, por maioria de razão, não nos merece acolhimento a invocação recursiva de que a conduta da Autora/recorrida se traduziu na não pretensão de receber as básculas, «(…) deixando passar cerca de vinte anos após o trânsito em julgado da anulação do negócio, criando uma situação manifestamente injusta para a Apelante».
Assim, e sem necessidade de maiores considerações, improcede fatalmente o recurso.
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Não tendo havido procedência do recurso da Ré, não há que apreciar a ampliação do objeto do recurso em referência (a título subsidiário), ficando obviamente prejudicada a apreciação do suscitado nessa sede pela A./recorrida.
Termos em que nada se impõe decidir neste âmbito, por prejudicada estar a sua apreciação.
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5 - SÍNTESE CONCLUSIVA (…).
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6 - DISPOSITIVO
Assim, face a tudo o que se deixa dito, acorda-se em julgar improcedente o recurso e, em consequência, manter a sentença recorrida nos seus precisos termos.
Custas do recurso pela Ré/recorrente.
Coimbra, 13 de Maio de 2025
Luís Filipe Cravo
Vítor Amaral
Alberto Ruço
[1] Relator: Des. Luís Cravo
1º Adjunto: Des. Vítor Amaral
2º Adjunto: Des. Alberto Ruço
[2] Cf. facto “provado” sob “43)”.
[3] Cf. facto “provado” sob “8)”.
[4] Assim por ANTUNES VARELA, in “Das Obrigações em Geral”, 7ª edição, a págs. 536.
[5] No qual se prescreve:
«1. Tanto a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efeito retroativo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.
2. Tendo alguma das partes alienado gratuitamente coisa que devesse restituir, e não podendo tornar-se efectiva contra o alienante a restituição do valor dela, fica o adquirente obrigado em lugar daquele, mas só na medida do seu enriquecimento.
3. É aplicável em qualquer dos casos previstos nos números anteriores, diretamente ou por analogia, o disposto nos artigos 1269.º seguintes.»
[6] De referir que quando a Ré “expressamente” coloca à disposição da Autora as ditas básculas, estas já não tinham qualquer valor, encontrando-se deterioradas, sendo que neste particular parece-nos relevante o que consta da missiva reproduzida no ponto de facto “provado” sob “24.”, mais concretamente no segmento «De acordo com a perícia efectuada em Dezembro de 2006 e Janeiro de 2007 as estruturas metálicas e células de pesagem de ambas as balanças encontravam-se ao ar livre. Ambas as balanças estavam deterioradas. Para possuírem valor de uso impunham-se então acções de manutenção correctiva muito profundas e dispendiosas. Nomeadamente a substituição completa dos seus componentes electrónicos e reabilitação das estruturas metálicas. Nessa data era nulo o valor contabilistico de ambas as balanças.»
[7] Cfr., neste sentido, BAPTISTA MACHADO, em “Tutela da Confiança e Venire contra factum proprium”, na RLJ, ano 117º, a págs. 363.
[8] Socorremo-nos aqui da lição do autor citado na nota precedente, na RLJ, ano 118, a págs.171-172.
[9] Cf., mais aprofundadamente, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, in “Tratado de Direito Civil Português”, Parte Geral, Tomo I, 2.ª Edição, Coimbra, Livª Almedina, a págs. 249-269.