1. O contrato de seguro é a convenção através da qual uma das partes (segurador) se obriga, mediante retribuição (prémio) paga pela outra parte (segurado) a assumir um risco e, caso a situação de risco se concretize, a satisfazer ao segurado ou a terceiro uma indemnização pelos prejuízos sofridos ou um determinado montante previamente estipulado.
2. Não estando o dano pela privação do uso coberto pela apólice de seguro facultativo, existe o dever de indemnizar pela privação de uso de veículo se a seguradora ao não agir com prontidão e diligência, atrasou, injustificadamente e de forma abusiva, o desfecho do processo do sinistro, causando danos ao segurado.
3. Excluída ou não comprovada a situação descrita em 2., decorrido o prazo previsto no art.º 104º do RJCS sem que o segurador realize a prestação devida, em princípio, este fica, nos termos gerais, constituído em mora, que dá lugar, tratando-se de uma obrigação pecuniária, ao vencimento de juros à taxa legal.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Relator: Fonte Ramos
Adjuntos: Moreira do Carmo
Carlos Moreira
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
I. Em 09.12.2022, AA, instaurou a presente ação declarativa comum contra A... - Companhia de Seguros, S. A., pedindo que seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 15 648, correspondente ao valor do veículo seguro deduzida a franquia contratada, bem como o valor correspondente ao dano de privação do uso, decorridos 30 dias após a ocorrência do sinistro, e respetivos juros de mora até integral pagamento.
Alegou, em síntese, que celebrou um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel com a Ré para cobertura dos danos decorrentes da circulação do veículo de matrícula ..-PP-.., incluindo danos próprios, tendo o seu veículo, em contexto de circulação, sofrido um incêndio e ficado destruído, sem valor de salvado.
A Ré contestou, por exceção (ilegitimidade ativa) e impugnação, alegando, em resumo, que em face das coberturas contratadas, comunicou ao A. que assumia o pagamento do capital seguro, deduzido o valor da franquia e do salvado, o que o A. não aceitou, sendo que eventuais valores referentes a privação do uso foram excluídos do contrato. Concluiu pela improcedência da ação.
Fixada a competência do tribunal (em razão do valor da causa), foi proferido despacho saneador que julgou improcedente a matéria de exceção (dilatória), firmou o objeto do litígio e enunciou os temas da prova.
Realizado o julgamento, o Tribunal a quo, por sentença de 16.11.2024, julgou a ação parcialmente procedente, condenando a Ré a pagar ao A. a quantia de € 15 538, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4 % ao ano, calculados desde 20.6.2022 até integral pagamento, absolvendo-a do demais peticionado.
Dizendo-se inconformado, o A. apelou formulando as seguintes conclusões:
1ª - A inexistência no contrato de seguro celebrado entre o A. e Ré, da cobertura do risco de privação do uso do veículo, não desobrigou a Ré a proceder ao pagamento da indemnização devida a titulo de privação do uso, porquanto, não tendo esta procedido ao pagamento da indemnização após decorridos que foram mais de 3 anos e três meses, violou os deveres contratuais e que dimanam do disposto no RJCS (art.º 153º, n.º 1) , conjugado com o disposto no art.º 762º, n.º 2 do Código Civil (CC), porquanto não colocou à disposição do A. qualquer quantia e se tratava de “Perda total”, conforme reconheceu e lhe comunicou.
2ª - A Ré ao não liquidar qualquer quantia ao A. de forma atempada e em prazo razoável, incorreu em responsabilidade contratual e, portanto, responde pelo pagamento do dano que decorre do não pagamento atempado designadamente o decorrente da privação do uso do veículo.
3ª - A Ré ao não cumprir a obrigação de liquidação atempada não lhe confere qualquer direito a adotar uma injustificada e inaplicável recusa de pagamento da indeminização, a qual se traduziria em manifesto e intolerável abuso de direito (art.º 334º do CC) nem precedeu de harmonia com o principio da boa fé.
4ª - No domínio da responsabilidade extracontratual emergente de acidente de viação, a privação do uso do veículo constitui um dano autónomo indemnizável na medida em que o seu dono, como foi o caso do A., ficou impedido dos direitos de usar, fruir e dispor inerentes à propriedade, e que o art.º 1305º do CC lhe confere de modo pleno e exclusivo, tendo o A. feito prova de que a privação gerou perda de utilidades que o veículo sinistrado lhe proporcionava (facto 14).
5ª - A indemnização a atribuir ao A. porque se tratava e trata de dano autónomo e distinto, e emergente da responsabilidade contratual, não pode limitar-se ao dano resultante da mora, como foi o entendimento do Tribunal a quo, devendo também contemplar o dano da privação do uso.
6ª - Atenta a comunicação efetuada pela Ré de “perda total” assistia à Ré a obrigação de cumprir com celeridade por forma a que com a entrega do capital, fosse ele total ou parcial, houvesse permitido ao A. a compra de um outro veículo em substituição do sinistrado.
7ª - O não cumprimento por parte da Ré de uma atuação atempada e como se verifica atraso injustificado na liquidação ficou responsável no pagamento da indemnização pela privação do uso do veículo.
8ª - Incumbia à Ré dar cumprimento à regra da conduta da boa fé e foi esta violada em consequência do não pagamento atempado da indemnização.
9ª - Importa revogar a decisão proferida pelo Tribunal a quo substituindo-a por outra que contemple o dano peticionado pelo A. a título de privação do uso em simultâneo com o dano emergente da mora, mercê da violação do principio da boa fé e dos deveres acessórios de conduta, previstos no art.º 153º, n.º 1 do da Lei 147/2015 de 09.9, tendo por base o valor diário considerado por provado e constante do facto 13.
10ª - Com a sentença proferida foi violado o disposto nos art.ºs 334º, 762º e 1305 do CC e 153, n.º 2 e 102º do RJCS.
A Ré respondeu concluindo pela improcedência do recurso.
Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objeto do recurso, importa apreciar e decidir, apenas, se é devida indemnização pela alegada privação do uso do veículo.
1) O autor é dono e legítimo possuidor de um veículo automóvel ligeiro de passageiros, da marca Honda e com a matrícula ..-PP-...
2) Em 08.9.2021 constava como proprietário registral no documento único automóvel a filha do autor, BB.
3) Era o autor quem tinha a direção efetiva e liquidava o respetivo prémio de seguro do veículo acima indicado para poder circular na via pública.
4) O autor celebrou com a ré um contrato de seguro de responsabilidade civil obrigatória, com a cobertura de danos próprios em caso de choque, colisão ou capotamento, incêndio, raio ou explosão, fruto ou roubo e fenómenos da natureza, ao qual foi atribuída a apólice de seguros n.º ...73.
5) Para a cobertura de danos próprios foi fixado o valor de € 16 300.
6) A apólice contratada incidiu inicialmente sobre outro veículo (matrícula ..-RT-..) e foi posteriormente transferida, com as mesmas coberturas e valores seguros, para o indicado veículo de matrícula ..-PP-...
7) No dia 08.9.2021, o autor encontrava-se a conduzir o veículo em direção à localidade de ..., em ..., quando, cerca das 9.15 horas, encontrando-se a circular na Rua ..., na localidade de ..., de forma inesperada, o motor desligou-se e, em simultâneo as luzes do quadrante, acionaram-se, o que levou o autor a encostar o veículo à berma e a imobilizá-lo.
8) No momento em que saía do veículo, verificou que já se encontrava a sair fumo proveniente da zona do motor, debaixo do capot e de imediato se transformou em chamas, as quais consumiram o veículo.
9) Ao local ocorreram os bombeiros locais que procederam à extinção das chamas.
10) Ao veículo ..-PP-.. foi atribuído no contrato de seguro, pela ré, o mesmo valor de € 16 300, a que haveria de ser descontado, em caso de incêndio, o valor da franquia, contratada, de 4 %.
11) O veículo, após o sinistro, foi considerado pela ré em situação de perda total.[1]
12) Na sequência do sinistro, a ré entregou ao autor um veículo de substituição pelo período de 30 dias.[2]
13) O preço diário do aluguer de um veículo similar ao sinistrado, acima indicado, é de € 74,08, acrescido de IVA.
14) À data do sinistro, o autor utilizava diariamente o veículo PP para se transportar a si e à sua família e nas viagens de lazer.
15) Ao veículo seguro foi fixado pela ré, como valor de salvado, o valor de €110, o qual foi comunicado ao autor.
16) O veículo PP, após o incêndio, ficou destruído apenas na parte da frente.
17) Consta do clausulado das condições gerais da apólice identificada em 4), no n.º 2, alínea c) do seu artigo 50º, o seguinte: “(…) o salvado fica sempre na posse do segurado, sendo deduzido o respetivo valor ao montante indemnizatório obtido de acordo com o disposto na alínea anterior”.
18) Consta do clausulado das condições gerais da apólice identificada em 4), na alínea k) do seu artigo 42º, com a epígrafe “Exclusões Aplicáveis às Coberturas Facultativas”, o seguinte: “(…) ficam também excluídos das garantias proporcionadas pelas coberturas facultativas: (…) k) lucros cessantes ou perda de benefícios ou resultados advindos ao Tomador do seguro ou ao Segurado em virtude de privação de uso, gastos de substituição ou depreciação do veículo seguro ou provenientes de depreciação, desgaste ou consumo naturais”.
19) Através de email de 19.5.2022 a ré comunicou ao autor o seguinte: (…) informamos que já se encontram reunidas as condições para assumirmos os danos próprios de acordo com a cobertura facultativa acionada. Nesse sentido, iremos proceder à emissão do montante de 15 442€, sendo este o valor correspondente ao capital seguro já deduzido do salvado e franquia. Assim, agradecemos o envio (…) de comprovativo de IBAN (…)”. Ficaremos a aguardar (…)”.
20) Através de email de 12.7.2022 a ré comunicou ao autor o seguinte: “(…) informamos que: tendo o cliente esgotado os 30 dias de viatura de substituição (…) nada mais temos a regularizar ao cliente, no âmbito da viatura de aluguer. (…)”.
21) Através de email de 30.8.2022 o autor, através do seu advogado, comunicou à ré o seguinte: “(…) venho informar que o m/cliente não abdica do direito (…) em termos de privação do uso do veículo, tendo em atenção a data da ocorrência do sinistro e a data em que V. Exa. assumira a responsabilidade pelo sinistro (…) tendo V. Exa. assumido liquidar o valor do veículo, deverão, no entanto, adicionar o valor do salvado, uma vez que o m/cliente não possui qualquer interesse no mesmo. Caso pretendam efetuar a liquidação parcial, agradeço o envio do respetivo recibo. Portanto, informo que vou avançar com a respetiva ação judicial (…)”.
22) Através de email de 10.9.2022 a ré comunicou ao autor o seguinte: “(…) cumpre-nos informar que (…) quanto ao salvado, foi sugerida uma empresa que estava disponível em adquirir o mesmo, deverá contactar para obter mais informações (…)”.
2. E deu como não provado:
a) Que o valor do capital seguro contratado entre as partes, com respeito ao veículo ..-PP-.., fosse de € 16 200.
b) Que o veículo ..-PP-.., após o incêndio que sofreu, tenha ficado sem qualquer valor.
c) Que a ré tenha recusado inexplicável e injustificadamente o pagamento atempado da indemnização contratual ao autor, por falta de pronúncia e comunicação, apesar de diversos contactos telefónicos e de emails enviados pelo seu mandatário.
3. Cumpre apreciar e decidir.
O contrato de seguro é a convenção através da qual uma das partes (segurador) se obriga, mediante retribuição (prémio) paga pela outra parte (segurado) a assumir um risco e, caso a situação de risco se concretize, a satisfazer ao segurado ou a terceiro uma indemnização pelos prejuízos sofridos ou um determinado montante previamente estipulado.[3]
4. Na fixação/interpretação do conteúdo do contrato de seguro em apreço atender-se-á, designadamente, ao disposto na respetiva apólice (art.º 37º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro/RJCS/ Lei do Contrato de Seguro, aprovado pelo DL n.º 72/2008, de 16.4), e - na interpretação das cláusulas de limitação do risco assumido - à Lei das Cláusulas Contratuais Gerais/LCCG (DL n.º 446/85, de 25.10, aplicável aos contratos de seguro, pelo menos desde a alteração introduzida pelo DL n.º 220/95, de 31.10; cf., ainda, o art.º 3º do RJCS).
5. Estabelece o RJCS:
- Às questões sobre contratos de seguro não reguladas no presente regime nem em diplomas especiais aplicam-se, subsidiariamente, as correspondentes disposições da lei comercial e da lei civil, sem prejuízo do disposto no regime jurídico de acesso e exercício da atividade seguradora (art.º 4º).
- O contrato de seguro rege-se pelo princípio da liberdade contratual, tendo carácter supletivo as regras constantes do presente regime, com os limites indicados na presente secção e os decorrentes da lei geral (art.º 11º).
- A validade do contrato de seguro não depende da observância de forma especial (art.º 32º, n.º 1). O segurador é obrigado a formalizar o contrato num instrumento escrito, que se designa por apólice de seguro, e a entregá-lo ao tomador do seguro (n.º 2). A apólice deve ser datada e assinada pelo segurador (n.º 3).
- A apólice inclui todo o conteúdo do acordado pelas partes, nomeadamente as condições gerais, especiais e particulares aplicáveis (art.º 37º, n.º 1).
- O segurado deve ter um interesse digno de proteção legal relativamente ao risco coberto, sob pena de nulidade do contrato (art.º 43º, n.º 1). No seguro de danos, o interesse respeita à conservação ou à integridade de coisa, direito ou património seguros (n.º 2).
- O sinistro corresponde à verificação, total ou parcial, do evento que desencadeia o acionamento da cobertura do risco prevista no contrato (art.º 99º).
- O segurador obriga-se a satisfazer a prestação contratual a quem for devida, após a confirmação da ocorrência do sinistro e das suas causas, circunstâncias e consequências (art.º 102º, n.º 1). Para efeito do disposto no número anterior, dependendo das circunstâncias, pode ser necessária a prévia quantificação das consequências do sinistro (n.º 2). A prestação devida pelo segurador pode ser pecuniária ou não pecuniária (n.º 3).
- A obrigação do segurador vence-se decorridos 30 dias sobre o apuramento dos factos a que se refere o art.º 102 (art.º 104º).
- O seguro de danos pode respeitar a coisas, bens imateriais, créditos e quaisquer outros direitos patrimoniais (art.º 123º).
- A prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro (art.º 128º).
- O objeto salvo do sinistro só pode ser abandonado a favor do segurador se o contrato assim o estabelecer (art.º 129º).
- No seguro de coisas, o dano a atender para determinar a prestação devida pelo segurador é o do valor do interesse seguro ao tempo do sinistro (art.º 130º, n.º 1) e o segurador apenas responde pelos lucros cessantes resultantes do sinistro (inclusive, pela privação de uso do bem) se assim for convencionado (n.ºs 2 e 3).
- O seguro de responsabilidade civil garante a obrigação de indemnizar, nos termos acordados, até ao montante do capital seguro por sinistro, por período de vigência do contrato ou por lesado (art.º 138º, n.º 1); salvo convenção em contrário, o dano a atender para efeito do princípio indemnizatório é o disposto na lei geral (n.º 2).
- São imperativas, podendo ser estabelecido um regime mais favorável ao tomador do seguro, ao segurado ou ao beneficiário da prestação de seguro, as disposições constantes dos artigos 17º a 26º, 27º, 33º, 35º, 37º, 46º, 60º, 78º, 79º, 86º, 87º a 90º, 91º, 92º, n.º 1, 93º, 94º, 100º a 104º, 107º n.ºs 1, 4 e 5, 111º, n.º 2, 112º, 114º, 115º, 118º, 126º, 127º, 132º, 133º, 139º, n.º 3, 146º, 147º, 170º, 178º, 185º, 186º, 188º, n.º 1, 189º, 202º e 217º (art.º 13º, n.º 1).
6. A respeito da forma do contrato diz o preâmbulo do mencionado diploma legal, designadamente: «(...) Quanto à forma, e superando as dificuldades decorrentes do artigo 426º do Código Comercial, sem descurar a necessidade de o contrato de seguro ser reduzido a escrito na apólice, admite-se a sua validade sem observância de forma especial. Apesar de não ser exigida forma especial para a celebração do contrato, bastando o mero consenso, mantém-se a obrigatoriedade de redução a escrito da apólice. Deste modo, o contrato de seguro considera-se validamente celebrado, vinculando as partes, a partir do momento em que houve consenso (por exemplo, verbal ou por troca de correspondência), ainda que a apólice não tenha sido emitida. Consegue-se, assim, certeza jurídica quanto ao conteúdo do contrato, afastando uma possível fonte de litígios e oferecendo um documento sintético (a apólice) suscetível de fiscalização pelas autoridades de supervisão. Contudo, o regime do contrato de seguro aperfeiçoa as regras existentes, distinguindo os vários planos jurídicos relevantes: i) Quanto à validade do contrato, ela não depende da observância de qualquer forma especial. Esta solução decorre dos princípios gerais da lei civil, adequa-se ao disposto na legislação sobre contratação à distância, resolve problemas relativos aos casos híbridos entre a contratação à distância e a contratação entre presentes e, dadas as restantes regras agora introduzidas, é um instrumento geral de proteção do tomador do seguro; (...) iii) Quanto à eficácia e à oponibilidade do contrato e do seu conteúdo, estatui-se que o segurador tem a obrigação jurídica de reduzir o contrato a escrito na apólice e de entregá-la ao tomador. Como sanção, o segurador não pode prevalecer-se do que foi acordado no contrato sem que cumpra esta obrigação, podendo o tomador resolver o contrato por falta de entrega da apólice. (...)»
7. O contrato que, por certo, mais questões suscita quanto à sua interpretação e integração é o contrato de seguro, e a definição dos riscos assumidos (as cláusulas que definem ou delimitam claramente o risco seguro e o compromisso do segurador) é um dos elementos mais importantes, se não o decisivo, no clausulado respetivo.[4]
As condições da apólice do seguro (estipulações/cláusulas) podem e devem ser objeto de interpretação, como quaisquer outras declarações de vontade e, de resto, tratando-se (além do mais) de cláusulas contratuais gerais devem ser interpretadas e integradas de harmonia com as regras relativas à interpretação e integração dos negócios jurídicos, mas sempre dentro do contexto de cada contrato singular em que se incluam (art.º 10º do DL n.º 446/85, de 25.10).
Na interpretação das suas cláusulas, vale o regime geral do Código Civil (art.ºs 236º e seguintes, do CC), com as especificidades decorrentes dos art.ºs 7º, 10º e 11º da LCCG e do citado RJCS.[5]
8. As empresas de seguros devem atuar de forma diligente, equitativa e transparente no seu relacionamento com os tomadores de seguros, segurados, beneficiários e terceiros lesados (art.º 153º, n.º 1, da Lei n.º 147/2015, de 09.9).
No cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé (art.º 762º, n.º 2 do CC).
9. As partes conformaram-se com a decisão sobre a matéria de facto.
10. Fundamenta a decisão de mérito da 1ª instância, nomeadamente:
- O A. tem direito a exigir da Ré o montante do capital seguro, deduzida a franquia contratada (4 %), conforme decorre das coberturas contratadas, pelo que deverá receber o montante de € 15 648 (o valor do capital seguro a considerar é de € 16 300 como consta da respetiva apólice - cf. doc. de fls. 17);
- O veículo sinistrado foi considerado em situação de perda total e ao mesmo foi atribuído, enquanto salvado, o valor de € 110, permanecendo, até ao momento, na posse do A.;
- Por carta de 17.9.2021, a Ré comunicou ao A. que estava em diligências de averiguação do sinistro - “fase de instrução” -, mas que iria regularizar o sinistro considerando a perda total, e indicou terceiro que poderia adquirir o salvado - cf. II. 1. 11) e 22), supra e doc. de fls. 41;
- A Ré está autorizada a deduzir ao valor do capital seguro, não só o referido valor de franquia contratada, mas também o valor do salvado, sob pena de enriquecimento injustificado do A. - cf. art.ºs 129º do RJCS e 50º, n.º 2, c) das condições gerais;
- As partes, no domínio da sua liberdade contratual, excluíram a cobertura da privação do uso do veículo sinistrado do leque de coberturas do contrato de seguro - cf. II. 1. 18), supra;
- Ainda assim, a indemnização pela privação do uso seria eventualmente devida se a atuação da seguradora envolvesse a violação de um ou mais deveres acessórios de conduta - de lealdade, de cooperação, de diligência, por exemplo - com desrespeito pelos ditames da boa fé;
- Porém, atenta a factualidade descrita em II. 1. 7), 12), 19), 20) e 21), supra e face ao disposto nos art.ºs 102º e 104º do RJCS e 342º, n.º 1 do CC, conclui-se pela insubsistência dessa pretensão do A., porquanto: não se apuraram factos que permitam inferir uma atuação da seguradora Ré em desrespeito por deveres acessórios de conduta; se o A. não recebeu mais cedo o montante da indemnização referente ao capital coberto pelo seguro facultativo foi porque não quis, uma vez que insistiu com a Ré, sem razão, que tinha direito a uma indemnização pela privação do uso e exigiu, sem razão, que não fosse deduzido o valor do salvado; a Ré, apurada a sua responsabilidade quanto aos danos da cobertura facultativa, de seguida comunicou isso mesmo ao A., em 19.5.2022, depois de lhe ter proporcionado uma viatura de substituição pelo período previsto na apólice de 30 dias, e solicitou-lhe a indicação do NIB para efetuar a transferência bancária, mas o A. não lhe forneceu (pelo menos não o comprovou) e informou que ia acioná-la judicialmente;
- Vencendo-se a obrigação de satisfação da indemnização decorridos 30 dias após a averiguação pela Ré da sua responsabilidade contratual, tem o A. direito apenas aos juros de mora, à taxa supletiva de juros civis, decorridos 30 dias após 19.5.2022, isto é, desde 20.6.2022 - cf. art.ºs 104º do RJCS e 279º do CC;
- Depois de o segurador confirmar a ocorrência do sinistro, as suas causas, circunstâncias e consequências, dispõe do prazo de 30 dias para satisfazer ao credor a respetiva indemnização contratual, o que significa que incorre em mora após o decurso destes 30 dias, porquanto o direito à prestação contratual por parte do segurado não carece de interpelação para o efeito[6] - art.º 805º, n.º 2, a) do CC -, pelo que a Ré deverá ser condenada a pagar ao A. a quantia de € 15 538 [€ 16 300 - (€ 16 300 x 0,04 + € 110)], acrescida de juros de mora, à taxa de juro civil de 4 % ao ano, desde 20.6.2022, até integral pagamento - art.ºs 559º, n.º 1, 804º e seguintes do CC e Portaria n.º 291/2003, de 08.4.
11. Não se discute que foi celebrado e estava em vigor na data do sinistro um contrato de seguro de danos que, além das coberturas obrigatórias (seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel), incluía coberturas facultativas.
Importa determinar o montante do pagamento contratualmente devido pela Ré/seguradora, no âmbito de responsabilidade contratual fundada num seguro facultativo (“danos próprios”), submetido às regras contratuais convencionadas pelas partes.
12. Salvo o devido respeito por entendimento contrário, afigura-se correta a solução encontrada pelo Tribunal da 1ª instância, porquanto:
- Não existe suporte fático da alegada “violação por parte da Ré seguradora dos deveres acessórios de conduta, nomeadamente de lealdade, de cooperação, de diligência e com total respeito pelos ditames da boa fé”, mormente violação dos “deveres de indemnização e de celeridade na resolução, face à situação de perda total do veículo”.
Concluída a averiguação, a Ré pretendeu pagar de imediato o valor correspondente aos danos sobrevindos [informou, prontamente, o A./recorrente de que iria indemnizá-lo pelos danos sofridos ao abrigo da cobertura facultativa de danos próprios, verificando-se, apenas, uma discrepância de € 96 em razão da errada pressuposição do valor seguro - cf. II. 1. 10), 15), 17) e 19), supra], inexistindo, assim, elementos que apontem para uma qualquer violação do disposto nos art.ºs 102º e 104º do RJCS suscetível de fundamentar o invocado desrespeito dos deveres da Seguradora de “regularizar de forma atempada e em prazo razoável”.[7]
- De resto, contrariando o acordo das partes e revelando indiferença pela possibilidade aventada pela Ré, o A./recorrente persiste na ideia de que aquela também devia “descontar” o valor do salvado - cf., nomeadamente, II. 1. 15), 17), 21) e 22), supra.
- Reconhecendo o A. que “a Ré seguradora podia e devia proceder às averiguações que considerasse por necessárias” (cf., v. g., a fundamentação da alegação de recurso), a factualidade provada e a descrita atuação das partes não permite sustentar que a Ré “violou de forma intencional a obrigação de liquidação atempada da indemnização e por conseguinte, violou o princípio da boa fé contratual, no cumprimento do contrato de seguro”.
13. Perfilhando-se o entendimento de que, mesmo não estando o dano pela privação do uso coberto pela apólice de seguro facultativo (no contexto do contrato de seguro de coisa, o segurador só está vinculado do dever de indemnizar o segurado do dano da privação do uso do bem seguro se assim for convencionado), existe o dever de indemnizar pela privação de uso de veículo sempre que se verifique que a seguradora ao não agir com prontidão e diligência, atrasou, injustificadamente e de forma abusiva, o desfecho do processo do sinistro, causando danos ao segurado[8], concluiu-se, pois, que os elementos disponíveis não permitem imputar à Ré tal responsabilidade.
A Ré/recorrida não recusou a assunção de responsabilidade e o pagamento da indemnização devida.
O atraso no pagamento da indemnização não se deveu a qualquer conduta culposa da Ré, v. g., envolvendo a violação grave dos deveres acessórios de diligência que ocasionam atraso injustificado na reparação do veículo sinistrado (atento o critério do “profissional que age de acordo com os seus deveres profissionais e de forma diligente, legal e tendo sempre em vista igualmente o concreto interesse do cliente”).[9]
A Ré teve de proceder à necessária averiguação das circunstâncias do sinistro. O A./Recorrente não terá facultado a documentação solicitada (nomeadamente o seu “NIB”) e decidiu instaurar a presente ação.
Daí, nada justificará atribuir qualquer quantia a título de ressarcimento do dano de privação do uso, na base de responsabilidade extracontratual, sendo que, decorrido o prazo previsto no art.º 104º do RJCS sem que o segurador realize a prestação devida, em princípio, este fica, nos termos gerais, constituído em mora, que dá lugar, tratando-se de uma obrigação pecuniária, ao vencimento de juros à taxa legal - art.ºs 102º, n.º 3 do RJCS; 799º, n.º 1 e 806º, n.ºs 1 e 2 do CC e Portaria n.º 291/2003, de 08.4.
A Ré/recorrida, por força da ocorrência do sinistro e por aplicação do que se convencionou no contrato (com uma componente de seguro obrigatório de responsabilidade civil e outra de seguro facultativo de danos), estava vinculada a prestar ao recorrente a quantia de € 15 538 (calculada nos termos indicados na parte final do ponto II. 10., supra), obrigação que se tornou exigível decorridos 30 dias sobre a data em confirmou a verificação do sinistro (art.ºs 102º e 104º do RJCS).
14. Ante as descritas circunstâncias da atuação das partes e tratando-se de uma pura obrigação pecuniária - sendo que não se convencionou, no contrato de seguro, a vinculação do segurador ao dever de indemnizar o dano resultante da privação do uso do bem seguro [cf. II. 1. 18), supra] -, ao A./recorrente não assiste o direito de exigir do segurador uma qualquer prestação indemnizatória reparadora do eventual dano de privação do uso da coisa sinistrada, mas apenas a quantia derivada da situação de simples mora no cumprimento da obrigação principal.[10]
15. O A. gozou de veículo de substituição nos termos contratualmente acordados [cf. II. 1. 12), supra e doc. de fls. 17/18].
Entretanto, a Ré/recorrida procedeu à averiguação das circunstâncias do sinistro, após o que contactou o A. para efetuar o pagamento da indemnização.
Não se demonstra que o A. tenha colaborado para a consecução daquele objetivo, tendo manifestado, desde logo, que “não abdicava” da indemnização pelo pretenso dano de privação do uso de veículo automóvel e que iria “avançar com a respetiva ação judicial”.
Contudo, como vimos, inexistem elementos que permitam imputar à Ré/recorrida qualquer responsabilidade pelo tempo (cerca de oito meses) inerente à confirmação da ocorrência do sinistro e das suas causas, circunstâncias e consequências, relevando, designadamente, a factualidade (provada) mencionada em II. 1. 7), 8) e 19) a 22) e (não provada) descrita em II. 2. c), supra.
E, cremos, o facto de o A./recorrente ter aventado uma pretensa “liquidação parcial” [cf. II. 1. 22), in fine, supra], por si só, não determina que outra deva ser a resposta à questão colocada no recurso.[11]
16. Soçobram, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso, não se mostrando violadas quaisquer disposições legais.
Custas pelo A./apelante.
13.5.2025
[1] Conforme comunicação datada de 17.9.2021, reproduzida a fls. 41.
[2] Como se refere na motivação da decisão sobre a matéria de facto, trata-se de matéria acordada pelas partes (art.ºs 22º da p. i. e 11º da contestação) e decorrente do acionamento da cobertura contratual (cf. documento de fls. 17/18).
[3] Vide, entre outros, Pedro Romano Martinez, Contratos Comerciais, Principia, 2006, pág. 73 e José Vasques, Contrato de Seguro, Coimbra Editora, 1999, pág. 20, e os acórdãos do STJ de 02.10.1997 e 10.12.1997 in CJ-STJ, ano V, 3, págs. 45 e 158.
Estabelece o art.º 1º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo DL n.º 72/2008, de 16.4: “Por efeito do contrato de seguro, o segurador cobre um risco determinado do tomador do seguro ou de outrem, obrigando-se a realizar a prestação convencionada em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato, e o tomador do seguro obriga-se a pagar o prémio correspondente”.
[4] Cf., entre outros, J. C. Moitinho de Almeida, Contrato de Seguro, Estudos, Coimbra Editora, 2009, págs. 93 e seguintes e o acórdão da RC de 15.10.2013-processo 73/12.3TBLRA.C1, publicado no “site” da dgsi.
[5] Vide Pedro Romano Martinez, ob. cit., pág. 80.
[6] Vide Pedro Romano Martinez e Outros, Lei do Contrato de Seguro Anotada, Almedina, 4ª edição, 2020, anotação aos art.ºs 102º e 104º do RJCS e
[7] Sobre esta matéria escreveu-se na motivação da decisão de facto: «(...) a ré, após contactada pelo autor, assumiu a cobertura do seguro, ou seja, ofereceu-se para pagar o valor do capital seguro (de € 16 300 e não € 16 200, como a ré, certamente por lapso indica, como se alcança do teor da apólice), deduzido o valor da franquia, de 4 % sobre o valor do capital seguro e deduzido o valor do salvado (...), quantia que o autor não quis – recusou-se – receber (vd. o seu email de 30.8.2022), por entender, sem razão, que só deveria operar a dedução da franquia e não a dedução do valor do salvado uma vez que na sua ótica, que se respeita, o carro ficou todo destruído, o que não foi o caso, tendo ainda a parte traseira um valor residual de sucata e, como tal, valorizável em € 110; (...) o autor foi inclusive informado de que seria encaminhado para uma empresa que adquiriria o salvado pelo valor indicado, o que permitiria embolsar o respetivo valor de €110, o que o autor declinou. / (...) nenhuma prova foi feita pelo autor – maxime documental ou testemunhal – no sentido de que, para além dos email´s acima indicados, tenha efetuado diversos contactos telefónicos com a ré e também por email, através do seu il. mandatário, solicitando o pagamento do capital seguro na sequência do incêndio do seu automóvel, e que a ré tenha recusado injustificadamente o pagamento atempado da indemnização por falta de pronúncia e comunicação, sendo certo que recaía sobre si essa prova, por se tratar de factos constitutivos do seu direito (...)».
[8] Cf., de entre vários, acórdãos do STJ de 23.11.2017-processo 4076/15.8T8BRG.G1.S2 [com o sumário: «I - No âmbito de contrato de seguro por danos próprios, a seguradora que, na sequência de processo de averiguações relativamente ao sinistro participado e respetivas consequências, se recusa sem qualquer explicação pagar ao sinistrado a quantia que lhe é devida, incorre em responsabilidade contratual respondendo pelos danos que decorrem dessa recusa de pagamento designadamente a privação de uso do veículo. II - A seguradora não pode eximir-se em tais circunstâncias ao pagamento da prestação visto que o segurado tem um interesse digno de proteção legal relativamente ao risco coberto (artigo 43º/1 do RJCS) que consiste em ver satisfeita pelo segurador a prestação convencionada "em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato" contrapartida da obrigação de pagamento do prémio (artigo 1º do RJCS), estando obrigado o segurador a satisfazer a prestação contratual a quem for devida nos termos do artigo 102º/1 do RJCS, disposições que se conjugam com o princípio da boa fé no cumprimento da obrigação que consta do artigo 762º/2 do Código Civil. III - A lei impõe, assim, ao segurador uma obrigação de liquidação atempada da indemnização, não lhe confere o direito a uma injustificada e inexplicável recusa de pagamento da indemnização devida que se traduziria num manifesto e intolerável abuso do direito que a lei confere à seguradora de proceder a averiguações tendo em vista apurar o sinistro e suas consequências (artigo 334º do Código Civil).»], 23.11.2017-processo 2884/11.8TBBCL.G1, 08.11.2018-processo1069/16.1T8PVZ.P1.S1 [concluindo-se: «Impõe-se à seguradora que aja com a possível prontidão e diligência nas averiguações e peritagens necessárias ao reconhecimento do sinistro e à avaliação dos danos, pelo que o atraso injustificado da seguradora na gestão célere e eficiente dos processos de sinistro, poderá responsabilizar a seguradora no pagamento de indemnização pela privação do uso do veículo, sendo que o dano decorrente da privação do veículo constitui dano patrimonial autónomo, quando o proprietário do veículo danificado se viu privado de um bem que faz parte do seu património, deixando de dele poder dispor e gozar livremente, nos termos consagrados no art.º 1305º do Código Civil, com violação do respetivo direito de propriedade.»] e 14.7.2022, processo 168/18.0T8FVN.C2.S1, publicados no “site” da dgsi.
[9] Cf., a propósito, “voto de vencido” anexo ao acórdão da RP de 18.6.2024-processo 611/20.8T8SJM.P1, publicado no “site” da dgsi.
[10] Cf. acórdão da RC de 11.3.2014-processo 176/12.4TBTMR.C1 [assim sumariado: «I - Nos seguros de danos, o segurador está vinculado à realização de uma prestação indemnizatória puramente pecuniária, de origem contratual, pelo que no caso de atraso na realização dessa prestação a única indemnização devida é a correspondente aos juros legais, contados desde a data da constituição em mora. II - Apesar de se tratar de um dano emergente, o segurador só responde pela privação do uso da coisa segura se assim se tiver convencionado no contrato de seguro.»], publicado no “site” da dgsi.
[11] Sobre a questão do recurso, cf., ainda, por exemplo, acórdão da RC de 07.11.2017-processo 131/16.5T8SAT.C1 [com a intervenção do relator e do 1º adjunto; consta do sumario: «(...) ii) Provado que a privação de uso de um veículo - que se perdeu totalmente, até à aquisição de um novo, por não atempado pagamento do valor indemnizatório devido contratualmente por uma seguradora, no âmbito do seguro facultativo, por danos próprios, com a consequente não disponibilidade ao lesado da respetiva quantia para adquirir esse novo veículo - causou uma diminuição ao nível da satisfação das necessidades familiares, profissionais e de lazer do proprietário, deve arbitrar-se o respetivo valor ressarcitório; (...)], publicado no “site” da dgsi.