FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
INSUFICIÊNCIA
ANULAÇÃO DA SENTENÇA
Sumário

Uma motivação da decisão de facto com invocação da prova produzida de uma forma abstrata e global (de toda a prova para todos os factos, sem reporte dos concretos meios probatórios a cada um dos concretos factos probandos), e, essencialmente, por modo meramente descritivo que não especificadamente crítico, não convence nem permite a sua sindicância, pelo que é caso de anulação e aperfeiçoamento - artº 662º nº2 al. d) do CPC.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral

Relator: Carlos Moreira
Adjuntos: Fernando Monteiro
Alberto Ruço

*

ACORDAM OS JUIZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

A..., LDA., intentou contra AA a presente ação declarativa, de condenação, com processo comum.

Pediu:

A condenação deste a pagar-lhe a quantia EUR 85.770,31, a título de danos patrimoniais e EUR 10.000 a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros vincendos à taxa legal contados desde a citação até total e efetivo pagamento e o valor a devolver ao IEFP, a liquidar em execução de sentença.

O réu contestou.

Alegando, em súmula, que o imóvel negociado com a autora estava de tal forma deteriorado que obstou a que pudesse desenvolver a atividade que pretendia, ao ponto de ter sido o sócio gerente primitivo a sugerir que, em alternativa à compra do imóvel, fossem compradas as quotas da sociedade, nomeando-o de imediato como gerente e que foi nessa qualidade que praticou os atos que praticou, enjeitando, assim, a responsabilidade que lhe é imputada.

Pediu a improcedência da ação.

Mais formulou pedido reconvencional contra a autora, requerendo a sua condenação a indemnizá-lo pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos que quantifica globalmente em 120 mil euros (80 mil patrimoniais e 20 mil não patrimoniais).

A autora replicou, negando a ocorrência de quaisquer danos causados por si na esfera jurídica do réu.

2.

Prosseguiu a ação os seus termos  tendo, a final, sido proferida sentença na qual foi decidido:

«Nestes termos, decide-se:

A. RELATIVAMENTE À AÇÃO

Julgar a ação parcialmente procedente e, consequentemente, decide-se:

1) Condenar o réu AA a pagar à Autora A..., LDA. a quantia EUR 85.770,31 (oitenta e cinco mil setecentos e setenta euros e trinta e um cêntimo), a título de danos patrimoniais, acrescida de juros vincendos à taxa legal, contados desde a citação até total e efetivo pagamento.

2) Condenar o réu AA a pagar à Autora A..., LDA. o montante a devolver ao IEFP, a liquidar em execução de sentença.

3) No mais, improcede a ação.

B. RELATIVAMENTE À RECONVENÇÃO

Julgar a reconvenção improcedente, por não provada, absolvendo-se em consequência a autora do pedido contra si formulado.

a) Custas da ação pela autora e pelo réu, na proporção do respetivo decaimento – cf. artigo 527.º, do Código de Processo Civil.

b) Custas da reconvenção pelo réu – sem prejuízo do apoio judiciário que beneficia.»

3.

Inconformado recorreu o réu.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

A) Tendo em conta os depoimentos transcritos na Sentença recorrida e acima especificados e transcritos, assim como a restante prova acima mencionada e especificada e ainda a respetiva motivação, muito respeitosamente, consideramos que devem considerar-se provados os seguintes factos alegados na Contestação, sendo alguns instrumentais e/ou complementares:

1) “Durante a gerência do Réu foram pelo menos efetuados trabalhos de limpeza, retiradas pedras, pavimentado todo o chão do pavilhão em betão, foram pintadas as casas de banho e outras divisões do pavilhão”;

2) “O Réu contratou quatro trabalhadores, entre os quais a sócia da Autora “BB”;

3) “O R pretendia dedicar-se à atividade de fabricar e vender jazigos (subterrâneos de utilização perpétua), tendo para tal encomendado máquinas para trabalhar na pedra, máquinas de polimento, tendo ainda sido pedidos e fornecidos à empresa moldes para jazigos cuja faturação importou no valor de 15.000,00€, porque o Réu queria iniciar a atividade” ;

4)“Durante a gerência do Réu, este emprestou à Autora pelo menos a quantia de 14.891,10€, sendo que em abril de 2021 existia ainda em depósitos 8.755,00€ na Banco 1..., SA e 649,00€ no Banco 2...” ;

5) “A opção pela compra das quotas da Autora deveu-se essencialmente a razões fiscais que beneficiariam quer os sócios da autora quer a futura fase da empresa após a aquisição desta por parte do Réu, aproveitando todos as despesas/prejuízos fiscais”;

6) “Durante a gerência do Réu ocorreram períodos de confinamento devido à epidemia denominada “covid”, tendo o R promovido que a Autora recorresse ao Lay-Off em 2021”;

7)“Durante a gerência do Réu, este teve problemas de saúde”;

8) Durante a gerência do Réu foi solicitado um empréstimo bancário, mas não foi concedido”;

9) “Os sócios da Autora mudaram as fechaduras do pavilhão em março de 2021”;

10) “Após a gerência do Réu, o pavilhão da Autora ficou valorizado em valor correspondente aos trabalhos de limpeza, retiradas de pedras, pavimentação de todo o chão do pavilhão em betão, pintura das casas de banho e outras divisões do pavilhão.”

B) Por outro lado, tendo em conta os depoimentos transcritos na Sentença recorrida, assim como a restante prova acima mencionada e especificada, muito respeitosamente, consideramos que não devem considerar-se provados os seguintes factos acima melhor especificados:

 I) O relatado no nº 17 dos factos assentes, nomeadamente a parte acima sinalizada a negrito;

II) A parte final do relatado no nº 21 dos factos assentes; o relatado no nº 26 dos factos assentes; o relatado no nº 27 dos factos assentes;

III) A parte final do relatado no nº 28 dos factos assentes.

C) Quanto ao contrato de arrendamento em causa nestes autos, pode concluir-se que o Réu não o incumpriu e nunca teve qualquer renda em atraso uma vez que havia um período de carência de rendas até abril de 2021. Por outro lado foram os sócios da Autora que imprevista e ilegalmente mudaram as fechaduras do pavilhão em março de 2021, incumprindo assim o contrato de arrendamento.

D) Quanto à atuação do Réu enquanto gerente da Autora, deve dizer-se que todos os trabalhos prévios de limpeza, retiradas de pedras, pavimentação de todo o chão do pavilhão em betão, pintura das casas de banho e outras divisões do pavilhão, que foram efetuadas durante a gerência do Réu, foram efetuadas em função do interesse da sociedade, sendo que todas as limpezas e obras de reparação que foram feitas, seriam necessárias fosse qual fosse a futura atividade que se desenvolvesse no pavilhão da Autora. Aliás, importa dizer que os sócios da Autora acordaram dar 10 meses de carência de renda por bem saberem da necessidade de limpezas e obras de reparação a realizar no pavilhão.

E) Para realizar estes trabalhos prévios o Réu contratou trabalhadores, sendo que uma das trabalhadoras contratadas foi a própria sócia da Autora “BB” que era casada com o outro sócio da Autora “CC”, sendo que a totalidade do capital social da Autora pertence a este casal. Para além estar à vista de toda a gente o que se ia fazendo no pavilhão, sendo funcionária da Autora, a referida sócia tinha necessariamente conhecimento das limpezas e obras de reparação que eram efetuadas dentro e fora do pavilhão à vista e com intervenção dos próprios funcionários da Autora, sendo que o outro sócio “CC”, para além de se deslocar com frequência ao pavilhão (“O Sr. CC chegou a ir lá também à procura do Sr. AA” - depoimento transcrito na Sentença da testemunha “DD”), necessariamente conversava com a sua esposa (sócia e funcionária da Autora) acerca dos assuntos da Autora.

F) O Réu ainda foi pagando as despesas iniciais adiantando pelo menos cerca de 15.000,00€ das suas poupanças, pagando publicidade, pequenos fornecedores e salários.

G) Só que entretanto surgiram algumas contingências nomeadamente os confinamentos relacionados com a “covid”, com a falta de saúde do Réu e com dificuldades de acesso a crédito.

H) Durante a sua gerência, o Réu ainda encomendou máquinas para a empresa trabalhar na pedra, máquinas de polimento, porque o Réu queria iniciar a atividade relacionada com a construção de jazigos, sendo titular de “modelo de utilidade nacional” devidamente registado no INPI no âmbito dessa atividade, tendo mesmo sido pedidos e fornecidos à empresa moldes para jazigos cuja faturação importou no valor de 15.000,00€.

I) Durante esta fase os sócios da Autora e o Réu conversaram acerca da opção pela possível compra das quotas da Autora, essencialmente devido a razões fiscais que beneficiariam quer os sócios da autora, quer a futura fase da empresa após a aquisição desta por parte do Réu; aliás estas possíveis renegociações conexas com questões fiscais, foram logo previstas no contrato de arrendamento, onde se refere: “Anexo 2 Opção de compra da aquisição das quotas … 1 – A primeira outorgante (senhoria) e o segundo outorgante (arrendatário) acordam que o preço de venda das duas quotas, … ajustado em função do benefício retirado da utilização dos prejuízos fiscais da sociedade”.

J) No início de qualquer atividade, ainda mais quando ocorrem contingências como a “Covid” ou a doença dos promotores, ou dificuldade de acesso a crédito, é normal que surjam dificuldades e atrasos. Na verdade, não havia propriamente atrasos, pois se se estimou que até “1 de abril de 2021” não se pagaria renda, foi porque se estimou que até essa data a empresa ainda não teria receitas, ou seja, até essa data o “objeto” da empresa seria essencialmente efetuar as referidas limpezas e reparações previstas consensualmente na “cláusula quinta” do contrato de arrendamento.

K) Sendo que, face a estas vicissitudes, o Réu, no início de 2021, colocou os trabalhadores em Lay-Off, como aliás fizeram quase todas as empresas na altura da epidemia “Covid”, o que é do conhecimento geral.

L) Estas dificuldades iniciais estavam em vias de ser ultrapassadas com perseverança, resiliência, sague frio, com procura de novas fontes de financiamento, com reanálises, tudo com muita paciência, dedicação e tempo, que foi a postura do Réu face às contingências que foram surgindo; se fosse fácil haveria muitos mais empresários e com sucesso imediato.

M) Todavia, foi quando tudo estava pronto para dar início à atividade já com as limpezas feitas, as obras mais urgentes efetuadas, os moldes já prontos, as máquinas encomendadas e publicidade feita, que os sócios da Autora, em março de 2021, arrombaram as portas, mudaram fechaduras e destituíram o Sr. AA da gerência, impedindo, notoriamente, o Sr. AA de iniciar e desenvolver a nova atividade e de praticar atos relativos à sociedade, de obter informações ou documentos tais como saber que faturas estavam para pagar e de ter acesso à correspondência e às contas bancárias onde havia dinheiro disponível para efetuar alguns pagamentos.

N) Diga-se que os ordenados dos funcionários até março de 2021, enquanto o R esteve na gerência da Autora, estavam todos pagos, pois os sócios da Autora apenas pagaram os ordenados de abril, como consta do facto no 64 da PI, que é dado como reproduzido pelo facto assente nº 44 da sentença recorrida.

O) Aliás, conforme atrás se evidenciou, após a destituição do Réu, havia ainda nas contas bancárias da Autora “ Em abril de 2021 … em depósitos 8.755,00€ na Banco 1..., SA e 649,00€ no Banco 2....”

P) Os sócios da Autora praticaram os referidos atos de arrombamento e mudança de fechadura e destituição de gerente certamente porque ficaram impacientes, não tiveram sangue frio para aguardar por novas soluções de que o Réu estava à procura, ou seja sem fundamento atendível juridicamente, constituindo atos de incumprimento e atos ilícitos por parte dos sócios da Autora. E foram esses seus atos irrefletidos e imprevidentes que os levaram a rescindirem contratos nomeadamente com trabalhadores e com o IEFP, e a efetuarem o pagamento imediato de todos os valores que alegam. Pelo que foram os próprios sócios da Autora que devido à sua impaciência e imprevidência deram azo às consequentes alegadas rescisões e aos alegados pagamentos imediatos que alegam ter efetuado. Pelo que mesmo que houvesse prejuízos, tendo em conta os censuráveis atos dos sócios da Autora, não haveria lugar a qualquer indemnização - Artigo 570º do CC.

Q) Efetivamente o Réu não causou qualquer prejuízo à Autora, pois todas as despesas prévias eram necessárias ao início de atividade da Autora, fosse ele qual fosse, ou seja foram efetuadas em proveito da Autora e na perspetiva de esta se preparar para iniciar a produção, tendo ainda ficado incorporadas na empresa todas as contrapartidas pelos alegados gastos, nomeadamente nas prévias limpezas e obras de reparação que valorizaram o pavilhão, (o que deve ser alvo de uma peritagem para se calcular esses valores - o que se requer em último caso).

R) Ora, não havendo assim qualquer incumprimento juridicamente relevante do Sr. AA enquanto gerente que justificasse a sua destituição e tendo ficado evidenciado que o R fez suprimentos/empréstimos à A no valor de pelo menos 14.891,10€ e não tendo o R incumprido o contrato de arrendamento, pois nunca teve qualquer renda em atraso uma vez que havia um período de carência de rendas até abril de 2021, sendo que, por outro lado foram os sócios da Autora que imprevista e ilegalmente mudaram as fechaduras do pavilhão em março de 2021, incumprindo assim o contrato de arrendamento, deverá, pelo menos ser devolvido ao R a referida quantia de 14.891,10€.

S) Acresce que o Tribunal “a quo” bordou uma motivação para respaldar a sua decisão numa retórica manifestamente insuficiente, que não cumpre os mínimos de consagração constitucional do universal dever de fundamentação, pois considera apenas em abstrato que as despesas não foram no interessa da sociedade, mas não identifica nenhuma que não tenha sido, ficando o Réu privado de conhecer o percurso cognitivo traçado pelo MM Juiz. Como se refere na doutrina: "A valoração individualizada de cada prova e a sua avaliação conjunta são momentos epistemologicamente distintos que devem ser desta forma analisados a fim de evitar um - globalismo obscurantista - centrado na afirmação da valoração conjunta a qual, a ser efectuada, tudo permite englobar, sem que nada permita identificar e controlar no processo de valoração".

A falta de fundamentação, faz com que a sentença, ora, posta em crise, padeça de nulidade prevista nomeadamente no artigo 615º, n.º 1, alínea b) do CPC, que para os devidos efeitos aqui, expressamente, se invoca, e que é de conhecimento oficioso e consubstancia, igualmente, uma violação clara da Lei Fundamental, por equimose nomeadamente dos artigos 20º e 205º da CRP, constituindo uma violação dos preditos normativos imanentes dos princípios da garantia da tutela jurisdicional efetiva. Inconstitucionalidade esta que, expressamente, se invoca para os devidos efeitos legais, e que também, esta é de conhecimento oficioso.

Termos em que, com o doutro suprimento de V.ªs Ex.ªs, deve este recurso ser declarado procedente e com mais que V.ªs Exªs se dignarão suprir, deverá absolver-se o Réu de todos os pedidos e condenar-se a Autora a devolver ao Réu a quantia de 14.891,10€.

4.

Sendo que, por via de regra: artºs  635º nº4 e 639º do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, as questões essenciais decidendas  são as seguintes:

1ª –  Nulidade da decisão sobre a matéria de facto por falta de fundamentação.

2ª- Alteração da decisão sobre a matéria de facto.

3ª – Improcedência da ação e  parcial procedência – condenação na quantia de 14.891,10€.  -  da reconvenção.

5.

Apreciando.

5.1.

Primeira questão.

5.1.1.

Estatui o artº 607 nº4 do CPC:

 4 - Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção

Este segmento normativo é a decorrência lógica do disposto nos artºs 208º nº 1 da Constituição e 154º nº 1 do CPC que impõem  o dever  de as decisões sobre qualquer pedido controvertido ou sobre qualquer dúvida suscitada no processo serem sempre fundamentadas.

A motivação das decisões tem uma dupla finalidade:

i) Por um lado convencer os interessados do bom fundamento e da correção  da decisão, o que implica a sua legitimação;

ii) Por outro lado permitir ao tribunal superior, em caso de recurso, a possibilidade da sua sindicância.

Tanto assim que a quebra de tal exigência, factual ou juridicamente, implica a nulidade da sentença globalmente considerada – artº 615º nº1 al. b).

Em sede de decisão sobre a matéria de facto, certo é que o nosso ordenamento vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção, segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização, e fixa a matéria de facto em sintonia com a sua prudente convicção firmada acerca de cada facto controvertido - artº607 nº5  do CPC.

Porém, liberdade não pode equivaler ou redundar em arbitrariedade.

Para que a tal se obvie, e perante o estatuído neste artigo, exige-se ao juiz que expresse a sua convicção alicerçada na prova produzida e criticamente apreciada, de um modo claro, racional, coerente e lógico. – cfr. J. Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, 3º, 3ªed. 2001, p.175.

O princípio da prova livre significa a prova apreciada em inteira liberdade pelo julgador, sem obediência a uma tabela ditada externamente.

 Mas apreciada, reitera-se, com fundamentação crítica da prova produzida, e em conformidade racional com tal prova e, se necessário, com apelo às regras da lógica e às máximas da experiência comum – cfr. Alberto dos Reis, Anotado, 3ª ed.  III, p.245.

Não se põe em causa que a convicção do juiz é uma convicção pessoal, sendo construída, dialeticamente, para além dos dados objetivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, nela desempenhando uma função de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis e mesmo puramente emocionais – AC. do STJ de 20.09.2004, in dgsi.pt. como os infra cits.

Nesta conformidade - e como em qualquer atividade humana - existirá sempre nesta atuação jurisdicional uma margem de incerteza, aleatoriedade e erro.

Mas tal é inelutável.

O que importa é que se minimize o mais possível tal margem de erro.

O que passa, como se viu, pela integração da decisão de facto dentro de parâmetros admissíveis em face da prova produzida, criticamente analisada, objetiva e sindicável.

Assim:

I. A fundamentação da matéria de facto provada e não provada, com a indicação dos meios de prova que levaram à decisão, assim como a fundamentação da convicção do julgador, devem ser feitas com clareza, objectividade e discriminadamente, de modo a que as partes, destinatárias imediatas da decisão, saibam o que o Tribunal considerou provado e não provado e qual a fundamentação dessa decisão reportada à prova fornecida pelas partes e adquirida pelo Tribunal.

II. A exigência de fundamentação das respostas negativas aos quesitos constituiu inovação na revisão do Código de Processo Civil de 1995/96….

VI. Na ponderação da natureza instrumental do processo civil e dos princípios da cooperação e adequação formal, as decisões que, no contexto adjectivo, relevam decisivamente para a decisão justa da questão de mérito, devem ser fundamentadas de modo claro e indubitável, pois só assim ficam salvaguardados os direitos das partes, mormente, em sede de recurso da matéria de facto, …habilitando ao cumprimento dos ónus impostos ao recorrente …nos termos das als. a) e b) do nº1 do art. 640º do Código de Processo Civil.» - Ac. STJ de 26.02.2019, p. 1316/14.4TBVNG-A.P1.S2

Ou ainda:

«II. É deficiente a decisão proferida pela 1.ª instância quando o que tenha dado como provado e como não provado não corresponda a tudo o que, de forma relevante, foi previamente alegado pelas partes; e constituirá o grau máximo dessa deficiência a omissão total de fundamentação de facto, justificando a anulação oficiosa da sentença (art. 662.º, n.º 2, al. c), do CPC).

III. Face a uma total ausência de apreciação crítica da prova produzida, deve o Tribunal da Relação anular oficiosamente a decisão da 1.ª instância, por de outro modo ficar a parte que dela pretenda recorrer impossibilitada de cumprir o ónus de impugnação imposto para o efeito pelo art. 640.º, n.º 1, al. a), do CPC, e ficar o próprio Tribunal de Recurso impedido de exercer o seu poder de sindicância (art. 662.º, n.º 2, al. d), do CPC).»  - Ac. TRG de 04.06.2020, p. 2134/18.6T8CHV-A.G1.

(sublinhado nosso)

5.1.2.

In casu.

Sdr, o Sr. Juiz não cumpriu, ao menos com a suficiência legalmente exigível, o seu dever de fundamentação dos factos provados e não provados.

Tal motivação foi elaborada pelo seguinte modo:

«Para a formação da convicção relativamente aos factos provados o Tribunal atendeu a toda a prova documental, às declarações das partes e aos depoimento prestados pelas testemunhas inquiridas no decurso da audiência de discussão e julgamento.

Assim, além da prova documental junta com a petição inicial e à qual nos referimos nos factos provados, atendeu-se, particularmente às declarações e depoimentos das seguintes testemunhas.»

Seguidamente extratou de um modo meramente descritivo o teor das declarações e dos depoimentos das pessoas que em audiência verbalizaram.

E depois concluindo:

«Pela forma como as identificadas testemunhas se apresentaram, de modo objetivo, espontâneo e detalhado mereceram a credibilidade do Tribunal, incluindo o legal representante da autora e da filha que, apesar da ligação com a autora, se apresentaram inteiramente credíveis.

E daí a resposta à factualidade dada como provada.»

Esta fundamentação não é a bastante para satisfazer as exigências legais.

É que ela assume um jaez meramente abstrato e global (izante).

O que não se assume adequado, porque, no mínimo, insuficiente.

Basta atentar que, certamente, nem toda a prova, pessoal e documental, serviu para fundamentar todos  e cada um dos pontos de facto dados como provados.

Aliás, existem depoimentos que, a serem considerados e relevados, poderiam sustentar a prova de certos factos e a não prova de outros.

Assim, e vg.

É o caso das obras de beneficiação do réu nas instalações que são referidas por várias testemunhas.

É o caso, de prova atinente ao estado de saúde do réu que é referido, p. ex. pela testemunha EE.

É o caso da prova dos concretos valores dos pontos 42 e sgs, os quais, pelo menos alguns, não se encontram concreta e convincentemente fundamentados.

É o caso da não prova dos suprimentos alegados pelo réu, não obstante haver testemunhas que a eles se referem afirmativamente, como sejam os contabilistas inquiridos, bem como  documentos que, ao menos em parte, os parecem refletir.

Impunha-se, pois, especificar os concretos depoimentos e documentos que permitiram dar como provados cada um dos concretos pontos de facto, ou, ao menos,  dar como provado o acervo factual traduzido em diversos pontos de facto que assumissem um teor e significado unívoco ou homogéneo.

Destarte, não tendo sido efetivado o exigível reporte dos concretos meios probatórios ao teor de cada concreto facto probando, e não sendo operada uma específica e particular análise crítica da prova produzida que releve para a prova, ou não prova, de cada um de tais factos, conclui-se que a fundamentação não é clara e inequívoca no sentido de poder convencer se cada um dos factos pode, ou não pode, ser dado como provado, ou não provado, nos termos em que o foi.

Do que dimana que a motivação não cumpre os supra expostos  desideratos  legais, ou seja, nem convence sobre o bem fundado da decisão, nem permite a possibilidade da sua sindicância.

Até porque, neste último particular urge ter presente que ao Tribunal da Relação, ao apreciar a decisão da matéria de facto, não é exigível efetuar um novo e global  julgamento, com consideração de toda a matéria factual decidida,  e de todos os meios probatórios produzidos.

Efetivamente:

«…importa ter presente que, no domínio do nosso regime recursório cível, o meio impugnatório para um tribunal superior não visa propriamente um novo julgamento global ou latitudinário da causa, mas apenas uma reapreciação do julgamento proferido pelo tribunal a quo com vista a corrigir eventuais erros da decisão recorrida. Significa isto que a finalidade do recurso não é proferir um novo julgamento da ação, mas julgar a própria decisão recorrida.» - Acs. do STJ de  09.07.2015, p. 405/09.1TMCBR.C1.S1.;  de  01.10.2015, p. 6626/09.0TVLSB.L1.S1.;  e de 17.03.2016, p. 124/12.1TBMTJ.L1.S1.

Esta restrição dimana do preâmbulo do Decreto-Lei nº 39/95 de 15.02 (…), no qual se plasmou:

«a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso.

Não poderá, deste modo, em nenhuma circunstância, admitir-se como sendo lícito ao recorrente que este se limitasse a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo, pura e simplesmente, a reapreciação de toda a prova produzida em 1ª instância, manifestando genérica discordância com o decidido.».

Assim e como corolário deste princípio e desiderato legal:

«impôs-se ao recorrente um “especial ónus de alegação”, no que respeita “à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação”, em decorrência “dos princípios estruturantes da cooperação...»

Ora, o que vale para a parte recorrente, vale também, mutatis mutandis, para o julgador, porque a ratio e teleologia legais outrossim a ele se aplicam.

 Destarte, deve este, reitera-se, efetivar uma motivação que seja conforme à lei, ou seja, que  convença e que permita a sindicância da formação da sua convicção.

 O que apenas é consecutido não com uma motivação genérica e indiferenciada com invocação, de modo meramente descritivo e aderente, de toda a prova produzida, mas antes com reporte de cada concreto  elemento probatório, criticamente analisado, a cada concreto ponto de facto.

Por conseguinte, e não assumindo a fundamentação este jaez, emerge a previsão do artº 662º nº2 al. d)  do CPC, a saber:

«Deve a Relação determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados.»

É o caso dos autos, como se viu.

Devendo, pois, a decisão de facto ser cabalmente fundamentada.

Sendo de referir que desta melhor fundamentação poderá resultar a alteração do acervo factual provado e/ou não provado.

O que, a verificar-se, implicará, naturalmente, uma reponderação da questão de direito.

Procedente esta questão, queda prejudicada a apreciação das subsequentes.

6.

Deliberação.

Termos em que se acorda  julgar o recurso procedente neste particular, anular-se a sentença, e determinar-se a sua adequada fundamentação, norteada pelo supra exposto.

Custas recursivas pelo vencido a final, ou na proporção da sucumbência.

Coimbra, 2025.05.13.