I - Urge não confundir as nulidades da sentença do artº 615º do CPC, meros vícios formais da mesma que a inquinam enquanto instrumento comunicante primeiro e essencial do processo, o qual, assim, se pretende completo, escorreito e coerente em função do pedido e da causa de pedir invocados, com a ilegalidade da mesma, vício substancial decorrente de uma menos adequada subsunção e exegese jurídicas.
II - No regime do acolhimento familiar de crianças, a família de acolhimento tem o direito de receber da instituição de enquadramento o valor: i) da prestação de serviços; ii) dos subsídios de manutenção devidos; iii) e, em caso de deficiência da criança, o acréscimo complementar de 100% da retribuição mensal – artº 16º nº2 do DL 190/92, de 3.09 e artº 35º nº2 do DL 11/2008, de 17.01.
III - Anuído no contrato de prestação de serviços que a instituição de enquadramento fica obrigada perante a família de acolhimento a facultar-lhe os montantes necessários à cobertura das despesas com a saúde, tal dever abrange, a fortiori, a majoração legalmente atribuída por deficiência.
IV - Considerando, vg. a eficácia relativa dos contratos – artº 406º do CC – e os eminentes valores humanos em causa, que clamam um efetivo e atempado auxílio, tal dever deve ser cumprido pela instituição mesmo que esta não tenha recebido os valores da Segurança Social, ficando ela com o direito de subrogação nos direitos da credora.
V – A obrigação da instituição, porque reportada a valores fixados anualmente por despacho ministerial, assume-se de prazo certo e, assim, ela constitui-se em mora, após o decurso de cada prazo, sem necessidade de interpelação – artº 804º nº2 al. a) do CCivil.
(Sumário elaborado pelo Relator)
1.
AA instaurou contra Associação Cultural Recreativa e Social de ..., ação declarativa, de condenação, sob a forma de processo comum
Peticionou:
Seja reconhecido que se encontra em dívida a quantia de €34.047,73 referente ao Contrato de Prestação de Serviços de Acolhimento Familiar de Crianças e Jovens, designadamente, enquanto família de acolhimento da criança BB (engloba serviço de acolhimento prestado e subsídio para a manutenção das crianças acolhida) devendo ser condenada a pagar à Autora tal quantia acrescida de juros indemnizatórios, calculados desde 01 de Janeiro de 2008 até 31 de Dezembro de 2019, à taxa legal de 4,00%, e que se reconheça que em Janeiro de 2015 informou a Autora a proceder à sua inscrição nas Finanças com o CAE Principal 87901, Actividade de Apoio Social para Crianças e Jovens, com alojamento, e a passar recibos verdes pelos serviços prestados, devendo, como tal, ser condenada a pagar à Autora a quantia de €3.320,97relativa ao processo de execução que lhe foi movido pela Segurança Social, processo n.º ...07, acrescida de juros vincendos desde a citação até a integral reembolso, à taxa legal.
Alegou, para tanto e em síntese:
Em 22 de Abril de 2005 celebrou um “Contrato de Prestação de Serviços de Acolhimento Familiar de Crianças e Jovens” referente ao jovem BB, nascido em ../../2004, com problemas cognitivos, com o título “UM OLHAR SOBRE A CRIANÇA”, ao abrigo do disposto no artigo 18.º, do Decreto-Lei n.º 190/92, de 3 de Setembro, com a instituição de enquadramento Associação Cultural Recreativa e Social de ..., representada por CC, tendo acolhido a criança com 5 anos de idade.
Segundo o acordo firmado entre as partes, a Ré obrigou-se a dotar a família de acolhimento dos montantes necessários à cobertura das despesas extraordinárias com a saúde e a educação da criança, o que não sucedeu com a cadeira de rodas que adquiriu e pela qual apenas recebeu a quantia de €200,00 (duzentos euros)
A Ré também se obrigou a pagar os montantes mensais, anualmente fixados por Despacho ministerial até 15 de Dezembro do ano anterior a que respeitam, correspondente à retribuição do serviço de acolhimento prestado e ao subsídio para a manutenção das crianças e jovens acolhidos.
A esse título a Autora recebeu a quantia total de €57.143.27 (cinquenta e sete mil cento e quarenta e três euros e vinte e set cêntimos) referente à prestação de serviço e ainda a título de subsídio de manutenção pela criança acolhida, ficando em falta o valor total de €34.047,73 (trinta e quatro mil e quarenta e sete euros e setenta e três cêntimos), referente aos montantes mensais devidos pela majoração pela deficiência da criança acolhida e que foram recebidos, segundo alega a Autora, pela Ré da Segurança Social.
Acresce que a Ré informou a Autora que deveria proceder à sua inscrição nas Finanças com o CAE Principal 87901, referente a Actividade de Apoio Social para Crianças e Jovens, com alojamento, tendo sido enquadrada em actividade em IRS com data de 01 de Janeiro de 2015 e passar recibos verdes pelos serviços prestados de que deu Autora conhecimento à Segurança Social, razão pela qual foi enquadrada no regime dos trabalhadores independentes, o que não devia ter sucedido.
Nessa sequência, em 8 de Outubro de 2019, a Autora foi informada que deveria pagar contribuição mensal de 01 de Março de 2015 a 31 de Outubro de 2017 no valor de €62,04 (sessenta e dois euros), resultante do produto da taxa de 29,6%, pela remuneração convencional de €209,61 (duzentos e nove euros e sessenta e um cêntimos) e de 01 de Novembro de 2017 a 31 de Dezembro de 2018 a quantia de €62,36 (sessenta e dois euros e trinta e seis cêntimos), resultante do produto da taxa de 29,6%, pela remuneração convencional de €210,66 (duzentos e dez euros e sessenta e seis cêntimos).
Em 31 de Outubro de 2019, foi citada para pagamento da quantia exequenda de €2.852,32 (dois mil, oitocentos e cinquenta e dois euros e trinta e dois cêntimos) e acrescidos de €462,65 (quatrocentos e sessenta e dois euros e sessenta e cinco cêntimos), referente ao processo de execução que lhe foi movido pela Segurança Social com o n.º ...07, considerando que a Ré é responsável pelo pagamento da quantia pela informação errada que lhe prestou.
A Ré contestou.
Aceita a matéria relativa ao contrato de prestação de serviços firmado com a Autora bem como o acolhimento da criança em causa, não impugnando as necessidades especiais de que carece.
Alegou que a quantia que pagou à Autora corresponde à quantia que recebeu da Segurança Social, correspondente à quantia a que se reporta o artigo 14.º da petição inicial - €57.143,27 (cinquenta e sete mil, cento e quarenta e três euros e vinte e sete cêntimos), nada mais tendo recebido a esse título, contrariamente ao que alega a Autora no artigo 18.º da petição inicial correspondente à majoração pela deficiência da criança acolhida.
Quanto aos valores pedidos pela Autora no que respeita à deficiência da criança acolhida, correspondente a 100% da retribuição mensal auferida pela prestação de serviços, sempre entendeu que esse valor era devido pela Segurança Social, tendo enviado reclamações a esse respeito no sentido da situação ser resolvida.
Pagou todas as quantias devidas à Autora ao abrigo do contrato, não correspondendo à verdade que não tenha pago as despesas ordinárias e extraordinárias.
Relativamente à inscrição da Autora junto da Autoridade Tributária, a Ré nega que tenha dado informação nesse sentido.
Pugna pela improcedência da ação.
2.
Prosseguiu o processo os seus termos, tendo, a final, sido proferida sentença na qual foi decidido:
«Face ao exposto, julgando parcialmente procedente, por provada, a presente acção, decide-se:
7.1.) Condenar a Ré Associação Cultural e Recreativa e Social de ... a pagar à Autora AA a quantia de €34.047,73 (trinta e quatro mil e quarenta e sete euros e setenta e três cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4% (ou outra que entre em vigor) desde 1 de Janeiro de 2008 até 31 de Agosto de 2019, tendo por referência cada quantia mensal devida a título de majoração da criança acolhida a contar da data do respectivo vencimento que corresponde ao último dia de cada mês.
7.2.) Absolver a Ré Associação Cultural e Recreativa e Social de ... do demais peticionado.
Custas a cargo da Autora e da Ré, na proporção de 8,89% e 91,11%...»
3.
Inconformada recorreu a ré.
Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:
1ª) Conforme decorre expressamente do alegado pela recorrida nos artigos 17º e 18º da sua p.i, a mesma fundamentou o seu pedido “ab initio” no facto de, alegadamente a R. não lhe ter entregue todo o valor que recebeu da Segurança Social referente ao BB, isto é, fazendo seu parte desse valor, tomando como base de cálculo os despachos ministeriais ali melhor referidos.
2ª) A causa de pedir desta acção, entendida esta como o conjunto de factos jurídicos concretos de onde deveria proceder o pedido formulado, e tal como aquela foi determinada pela ali autora, não foi o contrato de prestação de serviços pelo qual a mesma, como família de acolhimento, se obrigou a cuidar do menor BB, mas sim o facto de a recorrente ter recebido da Segurança Social uma prestação pecuniária a título de majoração pela deficiência de que aquele menor seria portador.
3ª) Tal significa que a “causa petendi”, tal como a recorrida configurou a acção, e daí partir para o pedido formulado, numa relação de causa /efeito, foi o alegado recebimento por parte da recorrente do valor referente àquela majoração e a sua não entrega à recorrida.
4ª) Tendo-se dado por não provado que a recorrente recebeu da Segurança Social o valor mensal relativo à majoração pela deficiência da criança acolhida, como decorre de informação escrita junta aos autos pela Segurança Social, não podia a sentença recorrida ter concluído pela condenação da recorrente ao pagamento de uma quantia que não recebeu daquela entidade, consubstanciando a sentença recorrida uma verdadeira condenação “ultra petita”, anulando-se a sentença com a consequente revogação da decisão recorrida.
5ª) Em qualquer caso, nunca a acção poderia ter sido julgada procedente por igualmente falecerem outros pressupostos para que tal fosse possível.
6ª) A relação contratual estabelecida entre recorrente e recorrida consubstanciou-se na celebração de um contrato de prestação de serviços ao abrigo do disposto no Dec. Lei 190/92 de 3 de Setembro, atuando a primeira enquanto instituição de enquadramento e a segunda como família de acolhimento. Nos termos das alíneas d) e e) do artigo 19º daquele diploma, do contrato de prestação de serviços deve constar obrigatoriamente a indicação do montante mensal da retribuição por criança ou jovem acolhido, e bem assim a referência expressa ao direito da família de acolhimento ao montante do subsídio de manutenção das crianças ou jovens.
7ª) Conforme resulta da leitura do contrato da prestação de serviços junto como documento 2 com a petição inicial, o mesmo é completamente omisso quanto à referência concreta de tais valores, limitando-se o artigo 3º de tal contrato a fazer uma vaga referência a obrigatoriedade de pagamento da retribuição, em violação da obrigação imposta por aquele artigo 19º de identificar o montante concreto, quer da retribuição, quer do subsídio.
8ª) Não tendo tal obrigação sido cumprida, deveria tal diploma ser tido como inaplicável ao caso concreto, não podendo a sentença que condenou a recorrida ter por base qualquer obrigação decorrente daquele diploma legal.
9ª) Nos termos do artigo 6º do Dec. Lei 190/92 nº 1 c), compete às instituições de enquadramento pagar às famílias de acolhimento os montantes devidos pela prestação de serviços e os subsídios para a manutenção do acolhido, sendo tal norma completamente omissa quanto a qualquer valor referente à retribuição especial de 100% decorrente de anomalia psíquica do acolhido, confundindo a douta decisão recorrida(pag. 16) o subsidio de manutenção, que aliás sempre foi pago pela recorrente, com o valor reclamado pela recorrida a titulo de retribuição mensal normal, bem como confunde o conceito de abono complementar referido no artigo 16 nº 2 daquele Dec. Lei 190/92 com a retribuição especial prevista no artigo 35º do Dec. Lei 11/2008.
10ª)Tendo o contrato de prestação de serviços entre recorrente e recorrida, sido celebrado em 22.04.2005, quando regulava tal relação contratual o disposto no Dec. Lei 190/92, e não contemplando o Dec. Lei 11/2008 de 17 de Fevereiro qualquer norma excecional que determinasse a sua aplicação a situações existentes, tem forçosamente de se entender como aplicável o regime deste Dec. Lei unicamente a contratos de prestação de serviços atinentes a situações semelhantes às dos autos apenas para futuro, produzindo tal diploma apenas efeitos “ex nunc” e não “ex tunc”, como decorre da decisão recorrida em violação da letra daquele Dec. Lei 11/2008, e bem assim, do disposto no artigo 12º, nº 1 do Código Civil. Do que se deixa dito resulta, igualmente com o devido respeito, de forma clara, inexistir culpa da recorrente ao contrário do que se refere na decisão recorrida, por um lado porque em seu entendimento a quantia reclamada pela recorrida nunca foi devida, por outro, por outro porque as partes quando celebraram o contrato de prestação de serviços junto aos autos não tinham como pressuposto o pagamento pela recorrente da quantia ora reclamada pela recorrente, por fim porque a recorrida nunca reclamou da recorrente o pagamento da mesma, senão em 14.02.2023, como resulta “ contrário” dos factos provados.
11ª) Mesmo a concluir-se pelo direito de a A. receber a retribuição referida no artigo 35º, nº 2 do Dec. Lei 11/2008, não podia a recorrente ter sido condenada no pagamento de juros como o foi na decisão recorrida, por várias razões.
12ª) Conforme decorre do que se alega no ponto II destas alegações, e decorre com clareza da petição inicial, a A. formulou o seu pedido na base do facto por si alegado, de a ora recorrente ter recebido da Segurança Social a retribuição a que se refere aquele artigo 35º, nº 2 do Dec. Lei 11/2008 e não lhe ter entregue a mesma, dando-se aqui por reproduzido o que anteriormente se referiu quanto à causa de pedir desta acção. Tendo-se dado por não provado que a recorrente recebeu da Segurança Social aquele valor referente à majoração pela deficiência da criança acolhida, sempre inexistiria mora da recorrente pelo que, e consequentemente, inexiste fundamento para a condenação da recorrente no pagamento de juros de mora. Por outro lado:
13ª) Nos termos do disposto no artigo 804º do C. Civil, o devedor constitui-se em mora quando, por causa que lhe seja imputável, não cumpre a prestação a que está obrigado. Não decorre da posição processual das partes vertida nos respetivos articulados que as mesmas tivessem consciência da obrigação de receber e pagar a quantia que a recorrida veio agora peticionar.
14ª) Ademais, e nunca é demais relembra-lo, no contrato de prestação de serviços celebrado entre as partes, em momento algum do mesmo resulta, directa ou indirectamente, que a recorrente estaria obrigada a pagar à recorrida aquela retribuição especial decorrente da deficiência do menor acolhido, o que significa que nunca poderá ser imputado à recorrente a sua actuação com culpa sob qualquer das suas formas, no não pagamento de tal quantia, devendo, consequentemente improceder o pedido de juros de mora.
15ª) Por fim, tal como decorre da petição inicial, a recorrida, entre 01.01.2008 e 31.08.2019, nunca interpelou a recorrente para o pagamento daquela retribuição especial, o que só veio a fazer em 14.02.2023. Nos termos do artigo 805º nº1do C. civil, o devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para o cumprimento da obrigação, o que não aconteceu no caso concreto. E nem se diga que a obrigação tinha prazo certo, pois que, como anteriormente já referido, as partes não estavam conscientes do direito e obrigação respectivos, daí a recorrida nunca ter reclamado da recorrente tal pagamento senão em 14.02.2023.
16ª) Inexiste mora da recorrente, tendo a decisão recorrida violado quanto a esta questão o disposto nos artigos 804º, nº 1 e 805º, nº 1, ambos do C. Civil.
17ª) Em consequência deve a decisão recorrida ser revogada proferindo-se acórdão que conclua pela improcedência da acção e respectiva absolvição do pedido formulado contra a ora recorrente.
18ª) Quando assim se não entenda sempre deverá o presente recurso ser julgado parcialmente procedente, absorvendo-se a Ré e ora recorrente do pedido de juros contra ela formulado.
Inexistiram contra alegações.
4.
Sendo que, por via de regra: artºs 635º nº4 e 639º do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, as questões essenciais decidendas são as seguintes:
1ª- Nulidade da sentença por excesso de pronúncia.
2 ª- Improcedência da ação.
5.
Apreciando.
5.1.
Primeira questão.
Diz a recorrente que deve ser anulada a sentença – melhor teria dito declarada nula - por ter conhecido para além do pedido.
Para tanto alega que a causa de pedir invocada pela autora não foi o contrato de prestação de serviços pelo qual a mesma, como família de acolhimento, se obrigou a cuidar do menor BB, mas sim o facto de a recorrente ter recebido da Segurança Social uma prestação pecuniária a título de majoração pela deficiência de que aquele menor seria portador.
Pelo que:
Tendo-se dado por não provado que a recorrente recebeu da Segurança Social o valor mensal relativo à majoração pela deficiência da criança acolhida, como decorre de informação escrita junta aos autos pela Segurança Social, não podia a sentença recorrida ter concluído pela condenação da recorrente
As nulidades da sentença previstas no artº 615º do CPC são vícios formais da mesma que a inquinam enquanto instrumento comunicante primeiro e essencial do processo, o qual, assim, se pretende completo, escorreito e coerente em função do pedido e da causa de pedir invocados.
Assim, a sentença é nula quando, nos termos do artº 615º nº1 al. e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
Ora:
«A nulidade por excesso de pronúncia apenas se verifica quando o tribunal conheça de matéria que extravase as questões que compreendem a causa de pedir e o pedido.» - Ac. STJ de 31.10.2024, p. 19039/19.6T8LSB.L1.S1
Assim sendo, no caso vertente o vício inexiste.
Na sentença condenou-se, qualitativa e quantitativamente, dentro do pedido e da causa de pedir, em função dos factos dados como provados e não provados, da subsunção deles operada nas normas legais tidas por pertinentes e da exegese destas normas operada.
Se, perante tais factos, as aludidas subsunção e exegese deveriam ter sido diferentes, bem como a respetiva decisão final, tal não é questão de nulidade da sentença, vicio formal, mas questão de ilegalidade, vício substantivo.
A dilucidar na questão seguinte.
5.2.
Segunda questão.
5.2.1.
Foram dados como provados os seguintes factos:
4.1.1. A Ré celebrou um protocolo com a Segurança Social I.P que teve na sua base um projecto para apoio a crianças, envolvendo famílias de acolhimento, passando a mesma, desde então, a actuar junto das famílias de acolhimento na qualidade de Instituição de Enquadramento.
4.1.2. Em 22 de Abril de 2005, mediante documento particular, a Autora, na qualidade de representante de família de acolhimento, e a Ré, representada por CC, acordaram entre si, ao abrigo do artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 190/92, de 3 de Setembro, que a primeira se obrigava à prestação de serviços de acolhimento familiar a crianças/jovens, concretamente da criança BB, nascido em ../../2004, à data com 5 meses de idade, o qual padecia e padece de deficiência motora e cognitiva, a vigorar a partir daquela data, pelo período de um ano, renovando- se automática e sucessivamente por igual período, caso não fosse denunciado por qualquer das partes, até que a Autora mantivesse em acolhimento familiar crianças/jovens, o que sucedeu até à maioridade, mediante o pagamento pela Ré dos montantes mensais, anualmente fixados por Despacho Ministerial correspondente à retribuição do serviço do acolhimento prestado e ao subsídio para manutenção da criança.
4.1.3. As partes acordaram que a Ré se obrigava a garantir formação e formação e apoio técnico à família de acolhimento, proporcionar a disponibilidade do equipamento indispensável ao acolhimento, quando for caso disso e dotar a família de acolhimento dos montantes necessários à cobertura das despesas extraordinárias com a saúde e a educação das crianças ou jovens acolhidos.
4.1.4. As partes acordaram, ainda, que sempre que se verificasse a alteração dos valores da retribuição e do subsídio de manutenção, fixados pelo despacho mencionado em 4.1.2., se consideravam os valores automaticamente aplicáveis ao acordo firmado.
4.1.5. As partes acordaram que o regime subsidiário a aplicar é o que resulta do Decreto-Lei n.º 190/92, de 3 de Setembro.
4.1.6. Desde Abril de 2005 a Novembro de 2019, a Ré pagou à Autora o montante global de €57.143,27 (cinquenta e sete mil cento e quarenta e três euros e vinte e sete cêntimos), pelo serviço de acolhimento prestado e subsídio para manutenção do jovem BB, correspondente à retribuição e subsídio de manutenção, sem a majoração pela deficiência da criança acolhida.
4.1.7. Em 21 de Junho de 2019, a Ré emitiu uma declaração nos termos da qual declara que, desde Março de 2015 até 21 de Junho de 2019, pagou à Autora, pelo serviço prestado como família de acolhimento, a quantia mensal de €330,29 (trezentos e trinta euros e vinte e nove cêntimos), dos quais €176,89 (cento e setenta e seis euros e oitenta e nove cêntimos) correspondem à prestação de serviço e €153,40 (cento e cinquenta e três euros e quarenta cêntimos) correspondem ao subsídio de manutenção do jovem BB, valores que não foram alterados até essa data.
4.1.8. No dia 14 de Fevereiro de 2023, a Autora enviou um e-mail à Ré, contendo uma tabela descritiva dos valores por esta devidos, por referência aos respectivos Despachos Ministeriais, solicitando o pagamento pela Ré dos valores em dívida desde 2005 até 2019, a título de serviços prestados e subsídio de manutenção por acolhimento do jovem BB, no montante global de €34.047,73 (trinta e quatro mil quarenta e sete euros e setenta e três cêntimos).
4.1.9. A Autora procedeu à sua inscrição nas Finanças com o CAE Principal 87901, Actividade de Apoio Social para Crianças e Jovens, com alojamento, tendo sido enquadrada em actividade em IRS com data de 1 de Janeiro de 2015 e emitindo recibos verdes pelo serviço prestado.
4.1.10. A Ré dirigiu à Segurança Social I.P diversas missivas no sentido de ser atribuída à Autora a retribuição mensal pelos serviços prestados acrescido de 100% a título de majoração pela deficiência da criança acolhida, que não recebeu, uma das quais foi enviada no dia 14 de Maio de 2009, questão que ainda está a ser analisada pela Segurança Social, I.P..
4.1.11. Em 8 de Outubro de 2019, a Autora recebeu uma missiva da Segurança Social, I.P., com a informação de que, analisados os IRS, enviados para o período de 01 de Março de 2015 a 31 de Dezembro de 2018, havia contribuição mensal a pagar com efeitos a partir de 01 de Março de 2015: de 1 de Março de 2015 a 31 de Outubro de 2017 a quantia de €62,04 (sessenta e dois euros) mensais, resultante do produto da taxa de 29,6%, pela remuneração convencional de €209,61 (duzentos e nove euros e sessenta e um cêntimos); de 1 de Novembro de 2017 a 31 de Dezembro de 2018 a quantia de €62,36 (sessenta e dois euros e trinta e seis cêntimos) mensais, resultante do produto da taxa de 29,6%, pela remuneração convencional de €210,66 (duzentos e dez euros e sessenta e seis cêntimos).
Facto não provado
4.2.2. Durante a vigência do acordo estabelecido entre as partes, a Ré recebeu da Segurança Social, I.P. o valor mensal relativo à majoração pela deficiência da criança acolhida correspondente a 100% da retribuição.
5.2.2.
A Julgadora, depois de teorizar adequadamente quanto à natureza do contrato em causa – prestação de serviços – e aos pressupostos da responsabilidade contratual, decidiu, para o caso vertente, nos seguintes, essenciais, termos:
«A Ré…pagou à Autora os montantes mensais, anualmente fixados por Despacho Ministerial correspondente à retribuição do serviço do acolhimento prestado e ao subsídio para manutenção da criança.
Todavia, a Ré não pagou à Autora, pese embora lhe fosse devido, o acréscimo de 100% de retribuição a título de majoração pela deficiência da criança acolhida.
Ora, a Ré assumiu a obrigação de pagamento dos montantes mensais, anualmente fixados por Despacho Ministerial correspondente à retribuição do serviço do acolhimento prestado e ao subsídio para manutenção da criança, tendo ambas as partes acordado que sempre que se verificasse a alteração dos valores da retribuição e do subsídio de manutenção, fixados pelo despacho mencionado, se consideravam os valores automaticamente aplicáveis ao acordo firmado.
Acordaram, ainda, que o regime subsidiário a aplicar é o que resulta do Decreto-Lei n.º 190/92, de 3 de Setembro.
De acordo com o artigo 14.º, n.º 2, alíneas b), c) e d), do Decreto-Lei n.º 190/92, de 3 de Setembro, as famílias de acolhimento têm direito a receber da instituição de enquadramento, neste caso da Ré, os montantes correspondentes à retribuição do serviço de acolhimento prestado, os valores dos subsídios para manutenção dos acolhidos e os montantes necessários à cobertura de despesas extraordinárias relativas à saúde e à educação dos acolhidos.
Por sua vez, nos termos do artigo 15.º do mesmo diploma, os valores das prestações referidas nas alíneas b) e c) do n.º 2 do artigo anterior são fixados por despacho ministerial e sujeitos a actualização anual, até 15 de Dezembro do ano anterior a que respeitam.
Acresce que, preceitua o artigo 16.º, n.º 2, do Decreto-Lei 190/92, de 3 de Setembro, quando as crianças ou jovens acolhidos sejam portadores de deficiência que determine a atribuição do abono complementar, o valor desta prestação acrescerá ao montante dos subsídios de manutenção devidos às famílias de acolhimento.
Da conjugação do acordo firmado entre as partes com as normas legais mencionadas, facilmente se conclui que era obrigação da Ré pagar à Autora o valor da retribuição devida pela criança com deficiência, correspondente a 100% da retribuição mensal, ou seja, uma retribuição mensal de montante correspondente a duas vezes a retribuição, conforme ficou expresso em cada despacho ministerial aplicável.
A interpretação do contrato firmado entre as partes, processada nos termos dos artigos 236.º e 238.º do Código Civil, é nesse preciso sentido, não emergindo qualquer dúvida que a obrigação de pagamento da retribuição, com ou sem majoração pela deficiência, recaía sobre a Ré.
Escuda-se a Ré com a circunstância de o valor devido pela majoração decorrente da deficiência da criança acolhida não lhe ter entregue pela Segurança Social a fim de ser pago à Autora.
Contudo, o acordo foi firmado entre Autora e Ré, sendo a Segurança Social alheia a tal relação contratual e não tendo estabelecido qualquer obrigação perante a Autora.
O contrato firmado entre as partes também não desresponsabiliza a Ré do pagamento da totalidade da retribuição devida, fazendo-o recair sobre a Segurança Social que não é parte do contrato.
Considera-se, assim, que a circunstância de não ter sido pago à Ré o valor referente à majoração pela deficiência pela Segurança Social não constitui qualquer causa de impossibilidade de cumprimento nos termos dos artigos 801.º e 802.º do Código Civil.
A questão dos pagamentos pela Segurança Social à Ré emergentes da relação contratual estabelecida com a Ré devem ser dirimidos entre aquelas, sendo a Autora alheia aos mesmos…»
Já a ré pugna pela que a majoração por anomalia psíquica não é devida essencialmente porque:
i) Não se aplica o regime do aludido D. Lei pois que o contrato é completamente omisso quanto à referência concreta de aos valores devidos à autora.
ii) O artº 16º nº 2 deste diploma não a prevê;
iii) As partes quando celebraram o contrato de prestação de serviços junto aos autos não tinham como pressuposto o pagamento pela recorrente da quantia ora reclamada
iv) A recorrida nunca reclamou da recorrente o pagamento da mesma, senão em 14.02.2023, como resulta “ contrário” dos factos provados.
5.2.3.
Perscrutemos.
Todos estes argumentos da recorrente supra referidos são ininvocáveis e inatendíveis desde logo por razão processual formal.
É que eles são argumentos novos que apenas são esgrimidos nesta sede recursiva.
Lida e relida a contestação da ré nela não se enxerga a alegação dos mesmos.
Na verdade, todos eles têm como finalidade demonstrar que à autora não assiste o direito de impetrar e receber diretamente da ré a aludida majoração.
Mas não é isso que decorre da contestação.
Antes decorre o contrário.
Neste articulado, no qual, note-se, teria de plasmar toda a sua defesa – cfr. artº 573º do CPC – admite o direito da autora a tal recebimento, dizendo até que sempre defendeu que a SS deveria pagar à autora o aludido acréscimo e até pugnou nesse sentido– cfr. artº 18º e segs.
E vindo agora, não só extemporaneamente como em venire contra factum propium, defender o contrário.
Depois, mesmo que assim não fosse ou não se entenda, nem razão substantiva lhe assistiria.
O regime do DL n.º 190/92, de 3 de Setembro aplica-se, não só porque o argumento impeditivo aduzido irreleva, como porque as partes admitiram expressamente a sua aplicação.
Nem aliás se vislumbra qual outro regime pudesse ser aplicado, atenta a natureza da matéria anuída no contrato e a legislação aplicável à mesma que é exatamente a daquele diploma.
Depois o seu artº 16º nº 2, ao estatuir que
«2 - Nos casos em que as crianças ou jovens acolhidos sejam portadores de deficiência que determine a atribuição do abono complementar, o valor desta prestação acrescerá ao montante dos subsídios de manutenção devidos às famílias de acolhimento.»
aplica-se, clara e inequivocamente, à situação em análise.
E a percentagem de majoração para situações de deficiência estabelecida no artº 35º nº2 do DL 11/2008, de 17 de Janeiro – 100% da retribuição mensal dos serviços prestados – é aplicável retroativamente.
É que esta majoração já estava prevista anteriormente neste segmento da lei de 1992.
Assim sendo, este é um caso de aplicação do disposto na 2ª parte do nº2 do artº 12º do CCivil, a saber:
«…quando (a lei) dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor.»
Este é um caso que tem de interpretar-se - por evidentes razões de equidade e justiça comparativa, máxime atento o jaez humanitário dos serviços prestados -, no sentido de que o legislador quis reportar-se ao conteúdo da relação jurídica, sendo pois abrangidas as relações anteriores que subsistam.
Depois, provou-se que:
4.1.3. As partes acordaram que a Ré se obrigava …a dotar a família de acolhimento dos montantes necessários à cobertura das despesas extraordinárias com a saúde e a educação das crianças ou jovens acolhidos.
Resulta dos autos que o então menor em causa já padecia de deficiência aquando do acolhimento.
Logo, a ré estava cônscia que teria de entregar à autora valores para acudir às despesas havidas a tal título.
Ora se a autora se vinculou nestes termos perante a autora, por igualdade ou até maioria de razão – argumento a fortiori – se deve entender que ela estava obrigada a entregar-lhe os montantes legalmente atribuídos e atribuíveis pelas entidades competentes, rectius a Segurança Social, referentes à majoração por deficiência.
Finalmente, o facto de a autora apenas em 2023 reclamar o pagamento, em nada bule com a substância do seu direito, pois que que o decurso do tempo apenas poderia ter efeitos a nível formal adjetivo, vg. por decorrência de prescrição ou caducidade, o que a recorrente nunca alegou.
5.2.4.
Dito isto e aqui chegados verifica-se que a recorrente não se insurge contra o verdadeiro argumento/fundamento que ela aduziu na contestação e que foi rebatido na sentença, qual seja: que não é devedora da autora porque ela própria não recebeu da SS o valor da majoração pela deficiência da criança acolhida.
Na verdade, no recurso ela apenas invoca este argumento não para obviar à condenação no pagamento da quantia pedida, mas apenas para impedir a condenação mais abrangente nos juros de mora – conclusão 11ª e sgs.
Nesta conformidade, e no rigor dos princípios, tal fundamentação alicerçante da sentença final, porque não impugnada, queda imodificada e, consequentemente, esta decisão transitou em julgado.
Mas mesmo que assim não se entenda, há que dizer que tal argumentação não merece reparo.
Por via de regra, os contratos têm efeitos meramente pessoais inter partes.
É o que dimana do disposto no artº 406º do CCivil:
(Eficácia dos contratos)
1. O contrato deve ser pontualmente cumprido, e só pode modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei.
2. Em relação a terceiros, o contrato só produz efeitos nos casos e termos especialmente previstos na lei.
Assim:
«Vigora entre nós o princípio geral da relatividade das convenções, princípio plasmado no art.º 406º,…. Dos contratos não podem derivar ou nascer obrigações para terceiros, como também não podem surgir direitos para quem não é parte no acordo contratual, isto por respeito ao princípio clássico de que entendido o “contrato como produto da vontade humana, seria inimaginável que pudesse ser beneficiado ou prejudicado alguém cuja vontade não tivesse intervindo no contrato considerado’.» - Ac. TRC de 27.09.2016, p. 3559/13.9TBLRA.P1.C1, in dgsi.pt.
Assim sendo, verifica-se que no contrato foi a ré, e mais ninguém, que se obrigou perante a autora a dotar a família de acolhimento dos montantes necessários à cobertura das despesas extraordinárias com a saúde e a educação das crianças ou jovens acolhidos.
Ademais, elas não condicionaram o direito da autora ao recebimento da majoração ao facto de a ré, ela própria, efetivamente a ter recebido.
Destarte, e como se expende na sentença, a autora tem o direito de exigir a prestação imediata e diretamente à ré.
Vindo esta posteriormente a exercer o seu direito de regresso contra a entidade que deve pagar ou sub rogar-se no direito da autora contra esta entidade.
Esta interpretação é tanto mais válida e defensável, quanto é certo que tal majoração se destina a suprir necessidades prementes e humanamente das mais atendíveis, como seja acudir a problemas e despesas acrescidamente advenientes de uma situação de deficiência de menores.
Do que decorre que os valores a que o menor tenha direito devem ser-lhe, efetiva e atempadamente, entregues.
Fazendo, pois, todo o sentido, legal, ético-moral e humano, que a família de acolhimento possa atempada e efetivamente recebê-los, ademais se ele é previsto e concedível pelos serviços da SS, de tal modo, que mesmo que a ré satisfaça os montantes à autora como contratualmente se vinculou, até deles depois poderá ser reembolsada pela SS.
Quanto aos juros.
Neste particular a recorrente argumenta que i) as partes não tinham consciência da obrigação de receber e pagar a quantia que a recorrida veio agora peticionar; ii) e que no contrato de prestação de serviços celebrado, em momento algum do mesmo resulta, directa ou indirectamente, que a recorrente estaria obrigada a pagar à recorrida aquela retribuição especial decorrente da deficiência do menor acolhido.
Mas não é assim.
O facto de a parte não ter consciência do direito, irreleva, porque tal falta de consciência não lhe retira o direito.
Pelo que, se e quando, tiver tal consciência e quiser e puder exercê-lo, poderá fazê-lo.
Depois e como supra se expendeu, provou-se - ponto 4.1.3. – que As partes acordaram que a Ré se obrigava …a dotar a família de acolhimento dos montantes necessários à cobertura das despesas extraordinárias com a saúde e a educação das crianças ou jovens acolhidos.
Existe pois uma vinculação direta da ré perante a autora no pagamento das despesas de saúde, e, bem assim, e como supra se referiu, por maioria de razão, das verbas atinentes à majoração por deficiência legalmente concedidas.
Dada a deficiência do então menor aquando do acolhimento, as partes já sabiam da existência deste direito e correspetivo dever da ré.
Esta obrigação, em função dos despachos ministeriais que anualmente foram fixando os valores, assume-se como de prazo certo.
Pelo que todos os anos a ré estava obrigada a entrega do valor de tal majoração.
Nesta conformidade este é um caso de aplicação do artº 804º nº2 al. a) do CCivil, o qual estatui que existe mora independentemente de interpelação a partir do termo do prazo em que a obrigação deveria ter sido cumprida.
Improcede o recurso.
6.
Deliberação.
Termos em que se acorda julgar o recurso improcedente e, consequentemente, confirmar a sentença.
Custas pela recorrente.
Coimbra, 2025.05.13.