PROCESSO PENAL
PRINCÍPIO DO ACUSATÓRIO
INQUÉRITO
MINISTÉRIO PÚBLICO
JUIZ DE INSTRUÇÃO CRIMINAL
JIC
CORREIO ELECTRÓNICO
APREENSÃO
SELECÇÃO
COMPETÊNCIA
PROCURADORIA EUROPEIA
Sumário

I – Sem prejuízo do princípio do acusatório que rege o nosso processo penal (vide artigo 32º, n.º 5 da CRP), do qual decorre que a direcção do inquérito cabe ao Ministério Público (artigo 53º, n.º 2, al. b) do CPP), sempre que nesta fase possam estar diretamente em causa direitos, liberdades e garantias fundamentais das pessoas (cfr. artigo 32º, n.º 4 da CRP), vigora o princípio da jurisdicionalidade.
II – Assim, é ao JIC que compete proceder, em primeira mão, à abertura de suporte(s) onde se encontram registados ficheiros informáticos contendo correio electrónico apreendido à luz do artigo 17º da Lei n.º 109/2009, de 15 de Setembro (Lei do Cibercrime), podendo, para o efeito, fazer-se assessorar por técnico(s) de informática, com vista a proceder a uma pré-selecção (expurgando dos autos os ficheiros com conteúdo íntimo, sem qualquer relação com a matéria em investigação nos autos, e outros que não contenham correio electrónico).
III – Ficando, então, apreendidos nos autos apenas ficheiros de correio electrónico dos quais o JIC já tomou o devido e exigido conhecimento, é ao Ministério Público [e não ao JIC], em obediência ao aludido princípio do acusatório, que cabe a tarefa de selecção das mensagens de correio electrónico que possam ter relevo para a investigação em curso.

(Sumário da responsabilidade da relatora)

Texto Integral

Proc. n.º 695/22.4KRPRT-L

(Recurso Penal)

Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo de Instrução Criminal do Porto – ...

Relatora: Juíza Desembargadora Carla Carecho

1º Adjunto: Juiz Desembargador José António Rodrigues da Cunha

2ª Adjunta: Juíza Desembargadora Isabel Namora


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Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO

Nos autos de Inquérito registados sob o n.º 695/22.4KRPRT (Actos Jurisdicionais) que corre os seus termos no Juízo de Instrução Criminal do Porto, foi proferido a 28.10.2024 (ref.ª Citius n.º 464803159) despacho pelo Juiz de Instrução Criminal, no qual se decidiu:

“1- Determina-se que a abertura do suporte contendo os dados de correio electrónico será realizado do seguinte modo:

1.1. Deverá estar presente assessorando tecnicamente a diligência uma entidade externa idónea com recursos técnicos adequados, a indicar pela secção, que fica desde já designada;

1.2. Será aberto pelo JIC o suporte digital que contém os dados apreendidos, verificando se ali estão efetivamente armazenados dados de correio eletrónico, através da

abertura, por amostragem de alguns dos ficheiros e lavrando-se o competente auto de abertura, após o que a referida entidade externa procederá à análise de todos os ficheiros em causa, enviando ao JIC em prazo a fixar relatório e suporte digital contendo os ficheiros de modo organizado indicando separadamente:

a) ficheiros que não correspondam a correio eletrónico que tenham sido apreendidos;

b) ficheiros com mensagens de correio eletrónico contendo ficheiros anexos indicando a respetiva natureza dos anexos (se ficheiros de texto ou de imagem ou vídeo);

c) ficheiros de correio eletrónico sem aparente relevo para os autos;

d) ficheiros de correio eletrónico com aparente relevo para os autos.

1.3 Com referência à decisão proferida pela OA o representante da Ordem deverá informar aquando do ato de abertura de correio eletrónico que a seguir se designa, se com a dispensa de sigilo decidida considera prejudicada a necessidade da sua intervenção nos autos.

2 – Para a abertura do correio eletrónico nos exatos termos fixados designa-se o dia 11-11-2024 às 10h30.”


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De tal despacho interpôs a Procuradoria Europeia, a 08.11.2024, Recurso, extraindo das respectivas motivações as seguintes Conclusões:

1. A primeira questão em causa nos presentes autos consiste em apurar se o Mm.° Juiz de Instrução Criminal é ou não a autoridade judiciária competente, na fase de inquérito, para ordenar a realização de uma perícia.

2. O Mm.º Juiz de Instrução Criminal determinou a realização de uma perícia a ser efetuada por uma entidade externa, com vista a proceder à análise dos ficheiros informáticos, indicando separadamente os ficheiros que não correspondam a correio eletrônico; os ficheiros com mensagens de correio eletrônico contendo ficheiros anexos indicando a respetiva natureza dos anexos; os ficheiros de correio eletrônico sem aparente relevo para os autos e finalmente os ficheiros de correio eletrônico com aparente relevo para os autos.

3. Esta entidade externa deverá enviar ao JIC relatório e suporte digital contendo os ficheiros organizados nos moldes atrás enunciados.

4. Ora o artigo 151° do CPP dispõe que a prova pericial tem lugar quando a perceção ou a apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos.

5. Dispõe o artigo 154°, n.º 1 do CPP que a realização da perícia é ordenada, oficiosamente ou a requerimento, por despacho da autoridade judiciária, contendo a indicação do objeto da perícia e os quesitos a que os peritos devem responder, bem como a indicação da instituição, laboratório ou o nome dos peritos que realizarão a perícia.

6. A questão que se coloca é a de saber quem, na fase do inquérito, é a autoridade judiciária competente para ordenar a realização desta perícia.

7. A doutrina e a jurisprudência unânime que na fase do inquérito o Ministério Público é a autoridade judiciária competente para determinar a realização da perícia, conforme resulta do disposto no artigo 270°, n.º 2, al. b) do CPP, apenas com a exceção prevista no n.º 3 do artigo 154° do CPP, em que a competência é deferida ao juiz de instrução.

8. Neste sentido vide Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24.05.2017, Proc. n.º 536/15.9T9FIG.C1, relator Vasques Osório, in www.dgsi.pt:

9. “Cremos não carecer de demonstração a afirmação de que o processo penal pátrio tem estrutura basicamente acusatória integrada pelo princípio da investigação (cfr. artigo 32°, n° 5 da Constituição da República Portuguesa), princípio que, a nível infraconstitucional, tem sede no artigo 340° do CPP” (vide Acórdão cit., pág. 6).

10. Ora no caso sub judice, e uma vez que estamos na fase de inquérito, a autoridade judiciária competente para ordenar a realização de uma perícia é o Ministério Público e não o Juiz de Instrução Criminal, pelo que o despacho a determinar a realização desta perícia nos moldes atrás referidos é nulo por violar o disposto nos artigos 151°, 154° e 270°, n.º 2, al. b) e 340° do CPP e artigo 32º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa.

11. E na eventualidade de assim não se entender, hipótese que apenas se coloca sob o ponto de vista académico, o despacho do Mm.º Juiz de Instrução seria sempre nulo por violar o disposto nos artigos 91º, n.º 2, 154º e 156º do CPP, pelos seguintes motivos:

12. a) O despacho que determinou a perícia não contém a indicação do objeto da perícia, nem os quesitos a que o perito deve responder, nem indica o nome do(s) perito(s) que irá(ão) realizar a perícia;

b) O perito a indicar pela secção não prestou compromisso perante a autoridade judiciária.

13. A segunda questão a apreciar consiste em determinar se a entidade externa e o Mm.° JIC são competentes para fazer a seleção dos ficheiros informáticos relevantes ou não relevantes para a prova.

14. No âmbito dos presentes autos foram apreendidos dados/ficheiros informáticos no escritório de advogado, cujo conteúdo até ao momento não foi revelado.

15. Sucede que o Mm.º Juiz de Instrução Criminal colocou nas mãos de uma entidade externa a indicar pela secção a revelação desses dados e a seleção dos ficheiros de correio eletrônico com e sem aparente relevo para os autos.

16. Este despacho viola flagrantemente a estrutura acusatória do processo, pois compele exclusivamente ao MP, coadjuvado pelo OPC e não a uma entidade externa, ou ao Mm.° Juiz de Instrução Criminal selecionar os ficheiros de correio eletrônico com e sem aparente relevo para os autos.

17. E não podia ser de outra forma uma vez que a direção do inquérito pertence ao MP, não podendo uma entidade externa, ou o Mm.º JIC ter, nesta matéria, qualquer “influência ou “manipulação” sobre a investigação, definição do objeto e seleção da prova.

18. Acresce que a entidade externa para além de não ter qualquer competência nesta matéria nunca poderia indicar quais os ficheiros com ou sem relevo para os autos, em virtude de desconhecer totalmente o processo.

19. Importa ainda referir que também não compete ao Juiz de Instrução Criminal fazer a seleção dos ficheiros relevantes e não relevantes para a prova, pois deste modo “... será um juiz investigador, violando a estrutura acusatória do processo. Fá-lo-á mal - pois, não podendo impedir o (concomitante ou posterior) conhecimento das mensagens por parte do MP, v.g., para efeitos de recurso dessa decisão, não haverá nesse primeiro conhecimento do JIC qualquer garantia real.

20. Há ainda que não esquecer que, tal como sucede com todos os demais meios de prova, a identificação do que é ou não probatoriamente relevante não ocorre apenas num momento, mas a todo o tempo até ao encerramento do inquérito, e pode ocorrer mesmo depois deste (...). Aquilo que num momento pode parecer irrelevante pode mais tarde vir a ser prova decisiva. O legislador há muito o compreendeu no que respeita às escutas telefónicas, permitindo que, até à acusação, o MP identifique e utilize quaisquer comunicações, ainda que até esse momento não tenham sido consideradas relevantes pelo JIC. O mesmo deve suceder com a apreensão de dados informáticos, designadamente de correio eletrônico. Não pode transformar-se o JIC num super investigador judicial a quem frequentemente se recorre para que faça novas pesquisas nas mensagens de correio eletrônico à luz dos desenvolvimentos da investigação” (vide Rui Cardoso, “A apreensão de correio eletrônico após o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 687/2021: do juiz das liberdades ao juiz purificador investigador”, in Revista Portuguesa de Direito Constitucional N.º 1, 2021, p. 163).

21. Face ao exposto, o despacho recorrido é nulo por violar o disposto nos artigos 16°, 17° da LLC, 179°, 180° do CPP e 32º, n.º 5 da CRP.

22. Neste sentido vide Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22.04.2021, Proc. n.º 184/12.5TELSB-N.L1-9, relator Fernando Estrela, in www.dgsi.pt; Rui Cardoso, “A apreensão de correio eletrônico após o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 687/2021: do juiz das liberdades ao juiz purificador investigador?”, in Revista Portuguesa de Direito Constitucional N.° 1, 2021, pág. 163; Rui Cardoso, “Apreensão de correio electrónico e registos de comunicações de natureza semelhante - artigo 17.° da Lei n.° 109/2009, de 15.IX, in Revista do SMMP n.° 153, Janeiro a Março de 2018, págs. 209 a 211.

23. Por último importa apurar se deve ser uma entidade externa ou a equipa de informática forense (NIF) a selecionar os ficheiros que não correspondam a correio eletrônico e ficheiros com mensagens de correio eletrônico, contendo ficheiros anexos indicando a respetiva natureza.

24. O Mm.º JIC referiu no despacho recorrido que uma entidade externa ao processo que não pode ser nem o MP, nem o OPC (pelo menos não aquele a quem está atribuída a investigação) deverá efetuar a seleção dos ficheiros que não correspondam a correio eletrônico e ficheiros e ficheiros com mensagens de correio eletrônico contendo ficheiros anexos indicando a respetiva natureza (cfr. alíneas a) e b) do despacho de fls. 3653).

25. Importa referir que foi a equipa de informática forense (NIF) que procedeu à apreensão, custódia da prova digital e tem realizado até ao momento todas as diligências ordenadas pela Mm. a Juiz de Instrução, designadamente procedeu à cópia do material informático constante do disco externo e à pesquisa informática por palavras-chave (cfr. fls. 1565, 1744 a 1750, 3253, 3254, 3543 a 3548).

26. A equipa de informática forense (NIF) pertence a outro serviço da AT, ou seja, à Direção de Serviços de Investigação a Fraude e de Ações Especiais, a quem compete, no âmbito das suas atribuições, entre outras, prestar apoio técnico aos tribunais, bem como cooperar com a PJ, no acesso e tratamento da informação de natureza tributária e aduaneira utilizando técnicas de auditoria informática e de obtenção de evidências digitais (cfr. artigo 21º, n.º 2, al. f) da Portaria n.º 320-A/2011, de 30.12).

27. Esta equipa de informática não é o OPC a quem está atribuída a investigação, tendo o MP, por despacho proferido em 13.06.2022 delegado tal investigação na Direção de Serviços Antifraude Aduaneira-Divisão Operacional do Norte (cfr. artigos 40°, n.ºs 2 e 3, al. a) e 41º, n.º 2 da Lei n.º 15/2001, de 5.06, alterada pela Lei n.º 81/2003, de 28.12).

28. Assim sendo, o Mm.º Juiz de Investigação Criminal parte de uma premissa errada, ou seja, de que a equipa de informática forense é o OPC a quem está atribuída a investigação, o que conforme atrás explanado não corresponde à verdade.

29. Os técnicos da equipa de informática (NIF) são integrados em equipas conjuntas com as autoridades judiciárias e de inspeção tributária e aduaneira sempre a coberto de instrumentos que conferem poder judicial, para a realização de ações externas nas quais, para além da recolha de informação selecionada a partir dos sistemas das entidades buscadas, são apreendidos dispositivos de armazenamento de dados, posteriormente remetidos a este serviço para tratamento, com vista à extração de informação em função de critérios estabelecidos pelas equipas de investigação.

30. Em obediência aos princípios que norteiam a computação forense, o processo da recolha e tratamento da prova, seja para fins judiciais ou outros destaca-se por ser “não invasivo”, deve garantir a autenticidade e integridade das evidências recolhidas e dos resultados produzidos, devendo o seu resultado assegurar que as informações obtidas existem nas evidencias analisadas, as quais não foram alteradas ou contaminadas pelo processo de investigação.

31. Dadas as especificidades da área de computação forense, os técnicos do núcleo têm formação especializada, sendo alguns deles técnicos certificados e outros em processo de certificação, quer em produtos, quer nesta área de computação forense.

32. Concluindo, dúvidas não temos que a equipa informática forense (NIF), a qual tem vindo a prestar no âmbito deste processo apoio técnico ao MP, OPC de investigação e Juiz de Instrução Criminal é a única que possui competência, e está legalmente habilitada e credenciada a selecionar os ficheiros que não correspondam a correio eletrônico e a ficheiros com mensagens de correio eletrônico, ao contrário de uma entidade externa, cujas competências, credenciais e enquadramento legal é, até ao momento, desconhecido.” (fim de transcrição)

Termina, peticionando seja julgado “procedente o recurso e, em consequência revogando a decisão proferida pelo Mm.º Juiz de Instrução Criminal e ordenando que seja proferido despacho a determinar que o MP, coadjuvado pelo OPC, selecione todos os ficheiros informáticos, designadamente quais os ficheiros com ou sem relevo para a prova”. (fim de transcrição)


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Admitido que foi o recurso por despacho proferido no Auto de Abertura de Documentação apreendida (adiamento), datado de 11.11.2024 (ref.ª Citius n.º 465518666), ao qual foi fixado efeito suspensivo, com subida imediata e em separado, foi notificado o arguido para apresentar Resposta, não o tendo feito.

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Subidos que foram, em separado, os autos de Recurso a este Tribunal, apresentou a Senhora Procuradora Europeia Delegada o seu Parecer (ref.ª Citius n.º 19107465), pugnando pela procedência do Recurso interposto, pelos motivos que aí expôs e que reproduzem os apresentados na Resposta, pugnando pela procedência do Recurso.

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Foi dado cumprimento ao estabelecido no artigo 417º, n.º 2 do CPP, nada mais tendo sido acrescentado.

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Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

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Nada obsta ao conhecimento do mérito.

Cumpre apreciar e decidir.


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II – FUNDAMENTAÇÃO DO RECURSO

II.1. Do âmbito do recurso e das questões a decidir

De acordo com o preceituado nos artigos 402º, 403º e 412º, n.º 1, todos do CPP, o poder de cognição do Tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação. Umas e outras definem, pois, o objecto do recurso e os limites dos poderes de apreciação e decisão do Tribunal Superior (cfr. Germano Marques da Silva in “Direito Processual Penal Português”, vol. 3, Univ. Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques in “Recursos Penais”, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág. 113 e Paulo Pinto de Albuquerque in “Comentário do Código de Processo Penal, à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, 4ª edição actualizada, Univ. Católica Editora, 2011, págs. 1059-1061).

Olhando então para as Conclusões do recorrente, são as seguintes as questões recursivas:

1. é o Juiz de Instrução Criminal a autoridade judiciária competente para, na fase de inquérito, ordenar a realização de uma perícia?

2. a entidade externa e o Mm.º JIC são competentes para fazer a seleção dos ficheiros informáticos relevantes ou não relevantes para a prova?

3. deve ser uma entidade externa ou a equipa de informática forense (NIF) a selecionar os ficheiros que não correspondam a correio eletrónico e ficheiros com mensagens de correio eletrónico, contendo ficheiros anexos indicando a respetiva natureza?


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II.2. É do seguinte teor o despacho recorrido, na parte que para o que ora importa decidir:

“Como se sintetiza no acórdão do TRLisboa de 10-8-2020 (dgsi.pt) «o regime de apreensão de correio eletrónico mostra-se regulado diretamente pelo artigo 17º da Lei do Cibercrime e, subsidiariamente (por remissão do mesmo) pelos pressupostos e requisitos legais relativos à apreensão de correspondência, previstos no artº 179º do Código de Processo Penal.

O disposto no art.º 179º n.º 3 do CPP, aplicável por força do art.º 17º da Lei nº 109/2009, de 15 de setembro (Lei do Cibercrime), impõe que o JIC seja a pessoa a tomar conhecimento “em primeiro lugar” do correio eletrónico apreendido, sob pena de nulidade.».

Importa densificar esta exigência no sentido de identificar quais as operações materiais concretas exigidas para cumprir a referida exigência. Sobre esta matéria três soluções se prefiguram como plausíveis atenta a letra da lei e têm sido já seguidas:

- uma exigência de que seja o JIC pessoalmente a proceder à abertura individualizada de todos e de cada um dos ficheiros contendo correio eletrónico, sem qualquer possibilidade de coadjuvação ou auxílio de outras entidades;

- a exigência de que o JIC proceda apenas à abertura formal do suporte digital que contém armazenado os ficheiros apreendidos (pen ou disco externo), confirmando, por amostragem, a sua natureza (de correio eletrónico) mas podendo de seguida remeter a análise individualizada de cada um dos ficheiros concretos para entidade com conhecimento e suporte técnicos idóneos que venha a separar, de entre os ficheiros apreendidos aqueles que efetivamente se referem a correio eletrónico, de outros de diferente natureza, e de entre todos os ficheiros aqueles que contenham dados íntimos ou pessoais estranhos à investigação em causa;

- finalmente uma terceira interpretação no sentido de que o conhecimento pelo JIC «em primeiro lugar» dos ficheiros de correio eletrónico tem o significado de ter ser o JIC o primeiro sujeito processual a aceder e ter conhecimento dos dados em causa, o que não exclui (antes impõe para assegurar um efetivo conhecimento) que remeta logo que lhe sejam presentes tais ficheiros para entidade externa sem intervenção no processo com meios técnicos idóneos de modo a que esta entidade lhe apresente os dados em condições de deles conhecer, nomeadamente separando os ficheiros em função a sua natureza – de correio eletrónico e dados de outra natureza – bem como destacando ficheiros contendo dados íntimos sem aparente conexão com os factos em investigação.

De entre as três interpretações expostas entendemos ser de seguir a terceira.

Efetivamente:

- a primeira delas não é viável em casos de apreensão de uma grande quantidade de ficheiros (dezenas, centenas ou mesmo milhares) pois que implicaria para corresponder a um efetivo ato de abertura dos ficheiros a uma exclusividade do JIC a essa tarefa (em conjunto com outras entidades no caso de sigilo profissional de advogados ou médicos) por períodos de dias ou mesmo meses, sem que tal corresponda a qualquer garantia que seja de acautelar.

- a segunda interpretação é já viável mas ainda assim corresponde ao cumprimento de uma exigência meramente formal – correspondente ao auto de abertura dos ficheiros – sem correspondência com um efetivo controlo jurisdicional de todos os ficheiros em causa.

- De outro modo a terceira interpretação cumpre a exigência legal em sentido material – de ser o JIC o primeiro sujeito processual a tomar conhecimento dos dados em causa – e dá cumprimento a essa exigência de modo efetivo – através do pleno conhecimento pelo JIC de todos os ficheiros em causa, permitindo-lhe analisar especialmente os que estão identificados como contendo matéria íntima não relevante para os autos ou mesmo protegida por outros núcleos de privacidade legalmente tutelados. Ponto é que a coadjuvação do JIC se faça por entidade externa ao processo que não pode ser nem o MP, nem sequer o OPC (pelo menos não aquele a quem está atribuída a investigação).

Sem embargo, no caso dos autos foi já repetidamente designada data para abertura dos ficheiros em causa importando, por razões de confiança legítima dos intervenientes, manter a tramitação que foi entendida como adequada.

Em todo o caso, importa fixar com precisão o objeto da diligência em causa, tanto mais que já passaram largos meses sem que a mesma tenha sido viável, cm evidentes custos para a celeridade dos autos e para os legítimos interesses da investigação e da defesa.

Acresce que foi junto entretanto despacho proferido pela entidade competente no sentido da dispensa do sigilo relativamente aos dados apreendidos.

Assim sendo, determina-se:

1 – De termina-se que a abertura do suporte contendo os dados de correio eletrónico será realizada do modo seguinte:

1.1 Deverá estar presente assessorando tecnicamente a diligência uma entidade externa idónea com recursos técnicos adequados a indicar pela Seção que fica desde já designada;

1.2 Será aberto pelo JIC o suporte digital que contém os dados apreendidos, verificando se ali estão efetivamente armazenados dados de correio eletrónico, através da abertura, por amostragem de alguns dos ficheiros e lavrando-se o competente auto de abertura, após o que a referida entidade externa procederá à análise de todos os ficheiros em causa, enviando ao JIC em prazo a fixar relatório e suporte digital contendo os ficheiros de modo organizado indicando separadamente:

a) ficheiros que não correspondam a correio eletrónico que tenham sido apreendidos;

b) ficheiros com mensagens de correio eletrónico contendo ficheiros anexos indicando a respetiva natureza dos anexos (se ficheiros de texto ou de imagem ou vídeo);

c) ficheiros de correio eletrónico sem aparente relevo para os autos;

d) ficheiros de correio eletrónico com aparente relevo para os autos.

1.3 Com referência à decisão proferida pela OA o representante da Ordem deverá informar aquando do ato de abertura de correio eletrónico que a seguir se designa, se com a dispensa de sigilo decidida considera prejudicada a necessidade da sua intervenção nos autos.

2 – Para a abertura do correio eletrónico nos exatos termos fixados designa-se o dia 11-11-2024 às 10h30.” (fim de transcrição)


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II.3. Apreciando

Questiona a Senhora Procuradora Europeia Delegada, na veste de recorrente, se é o Juiz de Instrução Criminal (doravante JIC) a autoridade judiciária competente para, na fase de inquérito, ordenar a realização de uma perícia.

Argumenta, em desfavor de uma resposta positiva, que atendendo à estrutura acusatória do processo penal português, a autoridade judiciária com competência para determinar a realização de perícias na fase do Inquérito é o Ministério Público, pelo que o decidido pelo Mm.º JIC, ao determinar a realização de uma perícia, encontrando-se os autos em tal fase processual violou, entre o mais, disposição constitucional, como seja o artigo 32º, n.º 5.

Vejamos.

Consagra o artigo 32º da CRP as garantias do processo penal, estatuindo o n.º 5 que “O processo criminal tem estrutura acusatória”.

Neste quadro constitucional, o actual Código de Processo Penal português perfila-se como um processo de “máxima acusatoriedade … compatível com a manutenção, na instrução e em julgamento, de um princípio de investigação judicial”, tal como afirmado por Figueiredo Dias, “Grandes princípios orientadores da elaboração do projecto de Código de Processo Penal”, 1984, in “Jornadas de Processo Penal” – Revista do MP, Cadernos 2 – pág. 330 ([1]).

Significa isto que o actual CPP faz “do inquérito a fase normal e usual de efectuar a investigação de um crime, a cargo do Ministério Público, que assim retoma em plenitude a sua função tradicional de domínio de investigação criminal pré-judicial, no que passa a ser assistido por órgãos de polícia criminal; e da instrução, uma fase facultativa (…), da competência do juiz de instrução, ao qual caberá decidir sobre o bem fundado da decisão de acusação ou de não-acusação (emitindo despacho de pronúncia ou de não pronúncia). (…) Nesta via, em que o inquérito se pode proceder a todos os actos necessários à fundamentação cabal de uma decisão de acusação ou de não acusação, mas sempre que se torne necessária a prática de actos que directamente se prendam com a esfera dos direitos, liberdades e garantias das pessoas, tais actos deverão ser autorizados – e alguns deles mesmo praticados – pelo juiz de instrução, não se esqueceu que o Ministério Público é “independente”: do que se trata é de assegurar agora um outro princípio constitucional, segundo o qual a totalidade das funções materialmente judiciais deve caber, e caber , aos juízes. (…) Só com esta solução (…) ganha verdadeiro conteúdo e sentido jurídico-constitucional a função do juiz de instrução: esta deve consistir na prática de actos materialmente judiciais – o que só assim lhe fica assegurado – e não a prática de actos materialmente policiais. (…) Ao introduzir a figura do Juiz de Instrução, a Constituição procurou dessa forma reconhecer o princípio da acusação, cuja vigência é imprescindível para que se possa falar de uma estrutura acusatória do processo penal.” (Anabela Miranda Rodrigues, “O inquérito no novo Código de Processo Penal”, in “Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal”, Almedina, Coimbra 1993, pág. 64-65) (sublinhado no original) ([2]).

Neste conspecto, diz-nos Paulo Dá Mesquita, in “Direcção do Inquérito Penal e Garantia judiciária”, Coimbra Editora, 2003, pág. 174, que a intervenção do juiz de instrução, no inquérito, é, assim, ocasional, provocada e tipificada, em consonância, aliás, com os cânones tradicionais no sentido de a magistratura judicial, em regra, não atuar ex officio em processos cuja titularidade não lhe pertence. ([3]) ([4])

Donde, e apesar da direcção do inquérito caber ao Ministério Público (vide artigo 53º, n.º 2, al. b) do CPP), que se orienta os critérios de objectividade e legalidade [não apenas na fase do Inquérito (vide artigo 53º, n.º 1 do CPP) ([5])], a prática de actos que directamente se conexionem com direitos fundamentais, depende de autorização ou determinação do juiz de instrução ([6]): os actos elencados nos artigos 268º do CPP (sob a epígrafe “Actos a praticar pelo Juiz de Instrução”, cuja enumeração não é exaustiva (vide al. f) do n.º 1)), e no artigo 269º do CPP (que enumera os actos a ordenar ou autorizar pelo juiz de instrução), como actos limitativos de direitos fundamentais que são, compete exclusivamente ao juiz de instrução ordená-los ou autorizá-los, enquanto juiz das liberdades, não podendo, todavia, tomar essa iniciativa, dada a sua posição processual (neste sentido, o citado AUJ n.º 10/2023).

Projecta-se assim, a par do princípio do acusatório, o princípio da jurisdicionalidade nas etapas de inquérito e instrução, sempre que nos termos do artigo 32º, n.º 4 da CRP “possam estar diretamente em causa direitos, liberdades e garantias fundamentais das pessoas” (vide Figueiredo Dias e Nuno Brandão, in “Sujeitos Processuais Penais: O Tribunal”, 2015, consultável em https://apps.uc.pt/mypage/faculty/nbrandao/pt/003, pág. 7; Anabela Rodrigues, “A jurisprudência constitucional portuguesa e a reserva do juiz nas fases anteriores ao julgamento ou a matriz basicamente acusatória do processo penal”, in “Anos de Jurisprudência Constitucional Portuguesa”, XXV, 2009).

Sendo este o quadro em que o JIC se movimenta, estando o processo penal ainda na fase de Inquérito, as perícias que se imponham realizar, à excepção da perícia prevista no artigo 154º, n.º 3 do CPP - perícia sobre características físicas ou psíquicas de pessoa que não haja prestado consentimento -, serão necessariamente determinadas pelo Ministério Público, enquanto dominus da fase investigatória inicial do processo, porque detentor da competência material para o realizar (cfr. Souto Moura, “Inquérito e Instrução”, in “Jornadas de Direito Processual Penal, …”, ob. cit., pág. 97).

Inexiste, assim, nesta sede e neste ponto, desacordo com o recorrente.

No entanto, há que indagar se o que o JIC determinou no despacho sob recurso foi a realização de uma perícia.

Isto, porque o que se lê no aludido despacho é o seguinte: “I – Determina-se que a abertura do suporte contendo os dados de correio electrónico será realizado do seguinte modo: 1.1. deverá estar presente, assessorando tecnicamente a diligência, uma entidade externa idónea com recursos técnicos adequados, a indicar pela secção, que fica desde já designada.”

A perícia, como decorre do disposto no artigo 151º do CPP, impõe-se quando a percepção ou a apreciação dos factos exijam especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos. Desta forma, a perícia consiste no estudo de natureza eminentemente técnica, científica ou artística, efectuado por pessoas especialmente habilitadas para tal, visando obter o seu parecer ou opinião, relativamente a factos com interesse para a prova a produzir.

O CPP de 87 distingue os exames (que qualifica como meios de obtenção da prova) da perícia (que qualifica como meio de prova). A distinção assenta essencialmente em que a perícia é uma interpretação dos factos feita por pessoas dotadas de especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos; os peritos tiram dos vestígios as ilações que eles consentem e são estas ilações, as conclusões periciais, que são submetidas às autoridades para a sua apreciação; as conclusões periciais são os meios de prova. “Nos exames, ou a autoridade judiciária se apercebe directamente dos elementos de prova, buscando directamente os vestígios e indícios, pela inspecção do local, das pessoas ou das coisas, e o exame é um meio de obtenção dos vestígios que são meios de prova ou, indirectamente, através do auto elaborado por autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal em que se descrevem os vestígios que o crime deixou e os indícios relativos ao modo como e ao lugar onde foi praticado.” (cfr. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Vol. II, Lisboa, Verbo, 2002, pág. 212).

Os meios de obtenção de prova, conforme escreveu o Juiz Conselheiro Santos Cabral, inCódigo de Processo Penal Comentado”, Almedina, Coimbra, 4ª ed. actualizada, 2022, em comentário ao artigo 151º, pág. 591, “são instrumentos de que se servem as autoridades judiciárias, para investigar e recolher meios de prova; não são instrumentos de demonstração do thema probandi, são instrumentos para recolher tais meios para o processo. Enquanto os meios de prova se caracterizam por serem, por si mesmos, fonte de convencimento do tribunal, os meios de obtenção da prova, em contrapartida, apenas possibilitam a obtenção desses meios de prova.” (sublinhados nossos)

E continua (pág. 594, ibidem): “Perito é, assim, em sentido estrito, o especialista numa determinada área técnica ou disciplina, artista ou científica, nomeado pela autoridade judiciária competente, ou por delegação desta, com o objectivo de, seguindo o procedimento adequado previsto na lei, proceder à percepção, ou apreciação, de factos objecto da prova, que exijam especiais conhecimentos naquelas áreas ou disciplinas. Como refere Carlos Clement Dúran, “La Prueba Penal, Valencia, Tirant lo Blanch, 2005, pág.s 467 e ss., “o perito realiza quase sempre um prévio labor perceptivo sobre os factos e objectos a respeito dos quais deve emitir o seu relatório. Por conseguinte o perito é, antes do mais, um percepcionador ou, nas palavras de Stein, é um receptador da prova nos mesmos termos que o juiz, porquanto examina com os seus próprios sentidos os factos e objectos sobre os quais recaiu ou vai recair a actividade probatória das partes.”

António José Latas, in “Processo Penal e Prova Pericial – Psicologia Forense”, pág. 110 e ss., traça, ainda, a distinção entre prova pericial e o que se pode designar por mera actividade técnica desenvolvida no processo penal, levada a cabo por técnicos ou peritos no sentido comum de especialista em determinado ramo de actividade ou assunto (expert), e não no sentido estrito de quem intervém nos termos do artigo 151º e ss., referindo-se a “uma forma de prestar assessoria técnica ao tribunal na decisão de questões para as quais se mostrem particularmente habilitados” (sublinhado nosso). Nesta hipótese, não se trata da percepção ou apreciação de factos para que sejam exigidos especiais conhecimentos técnicos ou científicos, mas antes de assessoria técnica especialmente qualificada, sem que daí derive uma especial força vinculativa do contributo técnico que tenha sido prestado.

A distinção feita pelo CPP parece assentar, pois, na exigência de “especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos” ou não. Porque se exigem aqueles conhecimentos especiais, “o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador” (artigo 163º, n.º 1 do CPP). Nos exames (artigo 171º do CPP), inspeccionam-se os vestígios que possa ter deixado o crime, mas esta inspecção não só exige especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos, como os vestígios ou são depois objecto de perícia ou valorados directa e livremente pela autoridade judiciária. Exame é então o verter em auto de condições materiais, sem opinar ou emitir juízos, sem conclusões. Perícia é a emissão de um juízo especializado em determinada área do saber, considerando certos factos assentes.

Simas Santos e Leal Henriques, “Código de Processo Penal Anotado”, Rei dos Livros, Lisboa, 1999, comentário ao artigo 151º, não deixam, contudo, de enfatizar o seguinte: “(…) sendo os exames um meio de obtenção de prova que contende com a recolha e a análise dos vestígios materiais eventualmente relevantes para a determinação da prática de um crime e do circunstancialismos espácio-temporal que o rodeou (artigo 171º do CPP), não deixam de jogar com a necessidade de equilíbrio entre as exigências e os interesses da comunidade e a salvaguarda da liberdade de realização e de identidade do indivíduo.” Assim, “será de sublinhar que “ao interesse comunitário na prevenção e repressão da criminalidade tenha de pôr-se limites – inultrapassáveis quando aquele interesse ponha em jogo a dignidade humana; ultrapassáveis, mas só depois de cuidadosa ponderação da situação, quando conflitue com o legítimo interesse das pessoas em não serem afectadas na esfera das suas liberdades pessoais para além do que seja absolutamente indispensável à consecução do interesse comunitário” (Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, 1974, vol. I, pág. 59)”.

Isto posto, e olhando para o que em causa importa realizar - a abertura do suporte contendo dados de correio electrónico -, o que o JIC determinou não foi a realização de uma perícia, mas antes solicitou a comparência de um “técnico informático” que o coadjuvasse na tarefa de extrair do(s) aludido(s) suporte(s) ficheiros de correio electrónico (a fim de posteriormente se proceder à selecção dos que possam evidenciar relevo probatório para os factos em investigação).

A diligência a efectuar – revelação dos dados contidos nos ficheiros informáticos de correio electrónico - não se trata, ela própria, em si mesma considerada, de um meio de prova. Meios de prova dos factos que constituem o objecto em investigação no Inquérito em curso são, antes, os ficheiros de correio electrónico que se encontram “encarcerados/registados” no suporte junto aos autos e para cuja extracção o JIC determinou ser assessorado tecnicamente.

Questão diversa da de saber se pode ou não o JIC ser assessorado tecnicamente no sobredito “desencapsulamento” ([7]) é se o tal técnico pode ser uma “entidade externa”, como o determinado no despacho recorrido. Diversa ainda uma outra questão: a quem compete proceder à selecção dos ficheiros de correio electrónico com relevo para os factos em investigação nos autos - ao MP ou à entidade externa designada pelo JIC (ou a este)?

Mas quedando-nos na primeira indagação, afirmamos sem reserva que inexiste disposição legal que impeça o JIC de recorrer a técnicos de informática quando em causa está a abertura dos ficheiros contendo correio electrónico apreendido nos autos, estando estes na fase processual do inquérito. Acresce que esta possibilidade não viola, por outro lado, o invocado princípio do acusatório, constitucionalmente consagrado no artigo 32º, n.º 5 da CRP, mormente no seu plano subjectivo.


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Coloca a recorrente mais duas questões recursivas, que se recordam:

2ª- a entidade externa e o Mm.º JIC são competentes para fazer a seleção dos ficheiros informáticos relevantes e não relevantes para a prova?

3ª- deve ser uma entidade externa ou a equipa de informática forense (NIF) a selecionar os ficheiros que não correspondam a correio eletrónico e ficheiros com mensagens de correio eletrónico, contendo ficheiros anexos indicando a respetiva natureza?

Cremos que será de inverter a ordem da respectiva apreciação, para melhor dilucidação das mesmas.

Determinou o JIC, no despacho sob recurso, que a assessoria técnica a ter lugar deverá ser feita por “uma entidade externa idónea com recursos técnicos adequados a indicar pela Secção, que fica desde já designada.” Contrapõe a recorrente, aduzindo que deve ser o Núcleo de Informática Forense (NIF) da Direcção de Serviços Antifraude Aduaneira-Divisão Operacional do Norte (NIF) o designado para levar a cabo a sobredita diligência.

No despacho sob recurso não se apontam razões para atribuir “a uma entidade externa sem intervenção no processo … a tarefa de apresentar os dados em condições de [o JIC] deles conhecer, nomeadamente separando ficheiros em função da sua natureza – de correio electrónico e dados de outra natureza – bem como destacando ficheiros contendo dados íntimos sem aparente conexão com os factos em investigação. Após ter o Tribunal a quo optado por uma de três soluções que se prefiguram plausíveis, atenta a letra do disposto nos artigos 17º da Lei do Cibercrime (doravante LCC), no sentido de identificar as operações materiais concretas exigidas para cumprir a exigência de ser o JIC a pessoa a tomar conhecimento “em primeiro lugar” do correio electrónico apreendido, sob pena de nulidade”, apenas diz: “Ponto é que a coadjuvação do JIC se faça por entidade externa que não pode ser nem o MP, nem o OPC (pelo menos não àquele a quem está atribuída a investigação).”

Certos que estamos da necessidade de ser o JIC o primeiro a tomar conhecimento do conteúdo das mensagens apreendidas (assim, Ac. TC n.º 687/2021, de 30.08.2021, consultável em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20210687.html) ([8]) ([9]), não se alcançam, no entanto, as concretas razões subjacentes à decisão de atribuir a uma entidade externa a tarefa de o coadjuvar em tal, e não já ao NIF, como pugna a ora recorrente.

Esta, como vimos, aduz os seguintes argumentos para sustentação da sua pretensão recursiva:

- foi o NIF que procedeu à apreensão e custódia da prova digital;

- é o NIF que tem realizado até ao momento todas as diligências ordenadas pelo M.mº JIC, designadamente procedendo à cópia do material informático constante do disco externo e à pesquisa informática por palavras-chave;

- compete ao NIF prestar apoio técnico aos tribunais, bem como cooperar com a PJ no acesso e tratamento da informação de natureza tributária e aduaneira, utilizando técnicas de auditoria informáticas e de obtenção de evidências digitais

- os técnicos do NIF têm formação especializada, sendo alguns deles técnicos certificados e outros em processo de certificação, quer em produtos, quer na área de computação forense em causa nos autos;

- a equipa informática forense é a única que possui competência e está legalmente habilitada e credenciada a selecionar os ficheiros que não correspondam a correio eletrônico e a ficheiros com mensagens de correio eletrônico, ao contrário de uma entidade externa, cujas competências, credenciais e enquadramento legal é, até ao momento, desconhecido.

Vejamos então.

Torna-se patente que os direitos fundamentais afectados pela diligência a realizar, porque no âmbito do artigo 17º da Lei n.º 109/2009, de 15 de Setembro (Lei do Cibercrime, doravante LCC) ([10]), serão os direitos à inviolabilidade da correspondência e das comunicações (consagrado no artigo 34º, n.ºs 1 e 4 da CRP) e à proteção dos dados pessoais no âmbito da utilização da informática (nos termos do artigo 35º, n.ºs 1 e 4 da CRP), enquanto refrações específicas do direito à reserva de intimidade da vida privada, consagrado no artigo 26º, n.º 1 da Lei Fundamental.

No caso do direito à inviolabilidade da correspondência e das comunicações, o n.º 1 do artigo 34º da Constituição consagra a inviolabilidade do sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada, dispondo o seu n.º 4 uma regra constitucional específica, nos termos da qual “[é] proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvos os casos previstos na lei em matéria de processo criminal”.

No caso do direito à proteção dos dados pessoais no âmbito da utilização da informática, nos termos em que a jurisprudência do nosso Tribunal Constitucional o recortou, comporta, nos termos do artigo 35º da CRP, um direito fundamental à autodeterminação informativa, que confere a cada pessoa a faculdade de controlar a informação disponível a seu respeito, no plano do acesso aos dados, o direito à sua contestação e ratificação, atualização e eliminação, bem como o direito a que esse dados pessoais sejam salvaguardados contra a devassa ou difusão, por parte de entidades públicas e privadas; assume especial relevância, neste plano, o conjunto de exigências jurídico-constitucionais relativas à possibilidade e finalidade de acesso legítimo a dados pessoais, entre as quais se contam o respeito pelos princípios da adequação e proporcionalidade.

“Ora, num universo social em que os sistemas informáticos adquirem progressivamente um papel mais presente na atividade humana, assumindo-se como instrumentos de comunicação e repositórios de informação de natureza pessoal e profissional, a pesquisa do seu conteúdo constitui invariavelmente uma intrusão na vida privada. No caso das mensagens de correio eletrónico, o acesso indiscriminado permite facilmente traçar um retrato fiel, e muito completo, da vida do utilizador em causa, agregando informação atinente aos distintos planos da vida de cada pessoa – as distintas máscaras com que cada um se apresenta no plano social, laboral e familiar. O potencial ablativo de liberdade e a gravidade da intromissão na esfera privada – e até na esfera íntima – da pessoa que decorre da simples visualização da respetiva caixa de correio eletrónico são, pois, de tal forma significativos, que devem mobilizar-se, neste campo, as mais intensas garantias que a Constituição confere à inviolabilidade das comunicações e à privacidade dos dados pessoais no domínio da informática; é essencial assegurar o cumprimento do dever estadual de abstenção, ou não ingerência, nestes domínios, a não ser em casos objetiva e rigorosamente delimitados, claramente justificados, e mediante atuação de órgãos que assegurem uma intervenção isenta e imparcial, e um elevado grau de proteção dos direitos fundamentais afetados.” (cfr. referido Ac. TC n.º 687/2021, com sublinhados nossos).

Face a tal inevitável realidade não poderá deixar de ser o JIC quem, em primeira mão, toma conhecimento de todo o correio electrónico apreendido, não apenas para “assegurar que o conteúdo da correspondência estava efectivamente nele contida” ([11]), mas também para expurgar dos autos todos e quaisquer ficheiros de outra natureza que não de correio electrónico e de todos e quaisquer ficheiros que contenham dados íntimos (sem aparente conexão com os factos em investigação), com vista que os sujeitos processuais (bem assim os OPC – ainda que com competência delegada) tenham possibilidade de conhecer elementos cujo conhecimento é da reserva material de um juiz.

Com efeito, garantindo a nossa CRP o sigilo da correspondência e de outros meios de comunicação privada, protegendo igualmente os cidadãos contra toda a ingerência das autoridades públicas nestes domínios, restringindo apenas ao processo criminal a possibilidade de restrições a tais direitos e garantias ([12]), ao intérprete e aplicador da lei impõe-se que se faça a seguinte leitura: atento o disposto no artigo 32º da CRP, não se podendo admitir provas mediante intromissão abusiva na vida privada, no domicílio e na correspondência ou telecomunicações, tal implica que se atribua a um juiz a prática dos actos instrutórios necessários realizar que se prendam directamente com tais direitos fundamentais, constituindo a intervenção judicial uma garantia adicional de ponderação dos direitos e liberdades atingidos no decurso da investigação ([13]).

Sendo assim, como entendemos que o é, não pode deixar de ser o JIC a determinar quem o possa coadjuvar na delicada e imperiosa tarefa de separar, de selecionar para os autos, de todos os ficheiros apreendidos, tão só e apenas os que se reportam a ficheiros de correio electrónico, expurgando e eliminando os que se tratam de ficheiros com conteúdo íntimo (sem qualquer relação com a matéria em investigação nos autos) e de outros que não contenham correio electrónico.

Ainda que não o tenha expressamente dito, o que exala do despacho recorrido é, pois, esta necessária e imperiosa cautela decorrente da observação dos sobreditos imperativos constitucionais.

Ora, lançando o JIC mão do apontado NIF – núcleo afecto à DSA, OPC em quem o MP delegou a investigação em curso -, salvo o devido respeito por opinião contrária, e sem colocar em causa a invocada formação especializada que os técnicos que integram tal Núcleo possam ter (e com toda a certeza o têm), estaria o Juiz garante das liberdades a possibilitar que fosse o investigador a ter, em primeira mão, acesso ao que apreendido se mostra nos autos, aí se compreendendo, como vimos, material que, por imperativo legal e constitucional, se impõe resguardado do acesso por parte da autoridade policial.

Por ser assim, a intervenção do JIC nesta “pré-selecção” não se traduz num qualquer obstáculo à produção e/ou recolha de prova. Ela visa, isso sim, parafraseando o mencionado Ac. TC n.º 687/2021, assegurar um alto grau de concordância prática entre as finalidades, constitucionalmente protegidas, prosseguidas pelo processo penal, e os direitos fundamentais por esta afectados, legitimando as intervenções restritivas na esfera jusfundamental dos cidadãos. Por isso, uma compreensão adequada da actuação do JIC na fase pré-acusatória tem de reconhecer a sua natureza de “entidade exclusivamente competente para praticar, ordenar ou autorizar certos actos processuais singulares que, na sua pura objectividade externa, se traduzem em ataques a direitos, liberdades e garantias das pessoas constitucionalmente protegidas” (Figueiredo Dias, “Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal”, in “O Novo Código de Processo Penal”, Almedina, Coimbra, 1988, pág. 16).

Nem tão pouco o decidido, neste particular ponto, afecta a direcção do Inquérito por parte do seu dominus, o Ministério Público: o JIC, ao decidir como decidiu, não substituiu aquele em tal função constitucionalmente conferida e assegurada pelo artigo 32º, n.º 5 da CRP. O que, in casu, se trata, não é de uma actuação ex officio por banda do JIC, mas antes de uma compatibilização de uma reserva de jurisdição preventiva (pois que nos encontramos perante uma situação de reserva processual penal, como vimos) com o princípio do acusatório (neste sentido o citado Ac. TC n.º 687/2021).

Cremos assim que nenhuma mácula atinge o despacho recorrido, proferido pelo JIC, na parte em que aí se determinou a atribuição a uma entidade externa a tarefa de o coadjuvar tecnicamente na tarefa de tomar conhecimento, em primeira mão ([14]), do totalidade do material apreendido, bem assim de acometer a tal entidade externa coadjuvante a tarefa de expurgar de todo o apreendido acervo os apontados ficheiros, vedando dessa forma o acesso por parte dos (demais) sujeitos processuais àqueles ficheiros que revelem conteúdo proibido nos termos da lei, por forma a que permaneçam nos autos apenas e tão somente aqueles cuja apreensão se mostra justificada atenta a apontada reserva do processo penal ([15]).


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Debrucemo-nos agora sobre a questão de saber a quem competirá a selecção dos ficheiros de correio electrónico com relevo probatório para os autos.

Entende a recorrente que tal compete ao Ministério Público, enquanto dominus do Inquérito, atendendo à estrutura acusatória dado ao processo penal por parte do legislador constituinte.

Diversamente, emerge do despacho recorrido que é ao JIC que continua a pertencer a selecção dos ficheiros de correio electrónico com relevo probatório para os autos.

Mais uma vez, e também aqui, a doutrina e a jurisprudência continuam divididas, adiantando-se que neste ponto não podemos deixar de concordar com a recorrente, decidido que ficou, frise-se, que é ao JIC que compete, “em primeira mão” levar a cabo a apontada “pré-selecção”, pois que para esta nos deparamos com uma competência exclusiva e reservada do JIC, emergente do regime estatuído do artigo 17º da LCC, como vimos.

Feita essa primeira separação (expurgando dos autos os ficheiros com conteúdo íntimo, sem qualquer relação com a matéria em investigação nos autos, e outros que não continham correio electrónico), ficando apenas apreendidos nos autos os ficheiros de correio electrónico dos quais o JIC já tomou o devido e exigido conhecimento, “esbatido” fica a necessidade de protecção do núcleo duro das garantias e liberdades fundamentais que urja proteger por via de uma intervenção judicial, certo que não esquecemos que permanecemos no âmbito da reserva do processo penal.

Recuperando as considerações supra tecidos sobre a estrutura acusatória do nosso processo penal, como o entendeu o legislador nacional constituinte, do qual resulta que o JIC não investiga, tal pertencendo ao Ministério Público, não poderá caber àquele a selecção das mensagens que possam ter relevo para a investigação em curso.

O juiz de instrução, diz-nos Figueiredo Dias, in “Sobre os sujeitos processuais no novo CPP …”, ob. cit., pág. 16 e 33, não pode ter qualquer “influência” ou “manipulação” sobre a definição do objecto do inquérito. Neste mesmo sentido, Anabela Miranda Rodrigues ([16]): “(…) chamado [o JIC] cada vez mais à boca de cena - num processo crescentemente complexo e onde o conflito verdade/direitos fundamentais se exacerba -, correlativamente exige-se-lhe que se alheie da investigação do caso e da dialética do processo! (…) Intervenção do juiz que vale - e só vale - no âmbito do núcleo da garantia constitucional”. (sublinhado nosso). A exigência de distanciamento do JIC “relativamente à actividade investigatória” foi da mesma forma sublinhada no Ac. do TC n.º 234/11, de 04.05.2011, consultável em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20110234.html.

Porque não é o JIC quem dirige a investigação, carecerá o mesmo de elementos que permitam uma adequada ponderação sobre o revelo probatório de uma qualquer concreta comunicação electrónica (em detrimento ou confronto com outra(s) ou com quaisquer outros meios de prova juntos ao processo). Não cabendo ao JIC investigar, não lhe caberá, consequentemente, selecionar quais os concretos meios de prova que haja de coligir para os autos, com vista a dar à investigação um determinado rumo, definindo-lhe um determinado objecto.

Entendimento diverso levar-nos-ia a “uma reserva do Ministério Público na direcção da investigação”, colocando “no JIC a competência para verdadeiramente investigar os factos noticiados e impor ao Ministério Público a utilização de concretos meios de prova: analisar cada uma das comunicações, conjugá-las entre si, relacioná-las com os demais meios de prova existentes, aferir da sua relevância para o que demais se planeia fazer, tudo elevado a uma escala que, em processos complexos, cada vez mais frequentes, não será exequivel sem meios técnico-informáticos adequados. Exigir que seja o juiz a oficiosamente seleccionar as mensagens relevantes é tão fundamentado como seria exigir que o Ministério Público apresentasse ao juiz de instrução uma lista de casas onde, em abstracto, pudessem existir objectos relacionados com um crime ou que pudessem servir de prova, ou uma lista de pessoas que, em abstracto, pudessem ter conhecimento dos factos, e ser o JIC a ordenar em quais dessas casas se fariam buscas e quais dessas pessoas seriam inquiridas como testemunhas, a realizar tais diligências e a apresentar depois ao Ministério Público os resultados que considerasse relevantes para a prova.” (assim Rui Cardoso, “Apreensão de Correio Electrónico. …”, ob. cit., pág. 210).

Pelo exposto, e por desnecessárias outras considerações, importa que, concedendo provimento ao recurso interposto, se revogue o despacho recorrido na parte em que no ponto 1.2. determinou a abertura do suporte digital que contém os dados apreendidos com vista à indicação, em separado, dos ficheiros de correio electrónico sem aparente relevo para os autos (al. c) e dos ficheiros electrónicos de correio electrónico com aparente relevo para os autos (al. d), pois que tal compete ao Ministério Público, atenta o desenho acusatório do processo penal, conquanto seja o JIC a levar a cabo a realização das operações materiais enunciadas nas al.s a) e b) do ponto 1.2. do aludido despacho, nos moldes aí determinados no ponto 1.1..


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III – DISPOSITIVO

Acordam os Juízes Desembargadores da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder parcial provimento ao Recurso interposto pela Procuradoria Europeia, tendo por objecto o despacho do Mm.ª JIC datado de 28.10.2024 e, em consequência decide-se revogar o mesmo na parte em que, no ponto 1.2. determinou a abertura do suporte digital que contém os dados apreendidos com vista à indicação, em separado, dos ficheiros de correio electrónico sem aparente relevo para os autos (al. c) e dos ficheiros electrónicos de correio electrónico com aparente relevo para os autos (al. d), no mais se mantendo o despacho recorrido.


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Sem custas (artigo 4º do RCJ e artigo 9º, n.º 1 da Lei n.º 112/2019, de 10 de Setembro)

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Tribunal da Relação do Porto, 7 de Maio de 2025

(texto elaborado pela 1ª signatária em conformidade com o deliberado em conferência com os demais Juízes Desembargadores Adjuntos, sendo por todos revisto e assinado digitalmente)

A Juíza Desembargadora Relatora

CARLA CARECHO

O Juiz Desembargador 1º Adjunto

JOSÉ ANTÓNIO RODRIGUES DA CUNHA

Juíza Desembargadora 2ª Adjunta

ISABEL NAMORA

____________________________

[1] Expressão esta que ficou a constar do ponto 4, do artigo 2º, n.º 2 da Lei de autorização legislativa em matéria de processo penal, Lei n.º 43/86, de 26 de Setembro. O artigo 2º, sob a epígrafe “Sentido e Extensão”, consagrou nos seus n.ºs 1 e 2, ponto 4), o seguinte: “1 - O Código a elaborar ao abrigo da presente lei observará os princípios constitucionais e as normas constantes de instrumentos internacionais relativos aos direitos da pessoa humana e ao processo penal a que Portugal se encontra vinculado. 2 - A autorização referida no artigo anterior tem o seguinte sentido e extensão: (…) 4) Estabelecimento da máxima acusatoriedade do processo penal, temperada com o princípio da investigação judicial; (…).”

[2] Também Gomes Canotilho e Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Coimbra Editora, 1993, pág. 206 assinalam que o princípio de que cuidamos tem duas vertentes: a orgânica e a material. A dimensão orgânico-subjectiva acarreta a nítida separação entre entidade acusadora e juiz (de instrução ou de julgamento). A dimensão material implica a distinção entre fases do processo.

[3] Neste mesmo sentido, veja-se o AUJ n.º 10/2023,  de 10 de Novembro de 1993, Diário da República n.º 218/2023, Série I de 2023-11-10, páginas 83-100: “(…) a prática pelo juiz de instrução, na fase de inquérito, de actos que atingem direitos, liberdades e garantias, depende do impulso do Ministério Público, cabendo, exclusivamente a este órgão, o juízo sobre a sua oportunidade e a primeira avaliação da sua necessidade.”

[4] Para uma abordagem mais desenvolvida sobre a repartição de funções processuais entre a magistratura do Ministério Público e a Magistratura Judicial, veja-se Anabela Miranda Rodrigues, “A fase preliminar do Processo penal -Tendências na Europa. O caso português”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2001, Coimbra Editora, págs. 960 e 961.

[5] Assim, Anabela Rodrigues, in ob. cit., pág. 74 e Juiz Conselheiro Messias Bento, no seu voto de vencido no Ac. TC n.º 7/87: (…) A acrescer a tudo isto, não pode também deixar de ponderar-se que o Ministério Público goza, nos termos da Constitui­ção, de estatuto próprio (cfr. artigo 224º, n.º 2); ou seja, é uma magistratura autónoma, cujos magistrados hão-de orientar a sua actividade por um estrito dever de objectividade e de imparcialidade.

[6] Neste sentido, veja-se o Ac. TC n.º 7/87 (de 9 de Janeiro de 1987), publicado no DR, 1ª Série, de 9 de Fevereiro de 1987, consultável em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19870007.html: “(…) apesar de, pelo novo Código, a direcção do inquérito caber ao Ministério Público, há actos que competem exclusivamente ao juiz de instrução nos termos dos artigos 268º e 269º: proceder ao primeiro interrogatório judicial de arguido detido; proceder à aplicação das medidas de coacção ou de garantia patrimonial previstas nos artigos 197° (caução), 198° (obrigação de apresentação periódica), 199° (proibição de permanência, de ausência e de contactos), 200° (suspensão do exercício de funções, de profissão e de direitos), 201°. (obrigação de permanência na habitação) e 202° (prisão preventiva); proceder a buscas e apreensões em escritório de advogado, consultório médico ou estabelecimento bancário; tomar conhecimento, em primeiro lugar, do conteúdo da correspondência apreendida; ordenar ou autorizar buscas domiciliárias, apreensões de correspondência, intercepções ou gravações de conversações ou comunicações telefónicas, bem como “a prática de quaisquer actos que a lei expressamente fizer depender de ordem ou autorização do juiz de instrução.”

[7] A ilustrativa expressão é de Rui Cardoso, “Apreensão de correio electrónico e registos de comunicações de natureza semelhante: artigo 17º da Lei n.º 109/2009, de 15.09”, in Revista do Ministério Público, ano 39, n.º 153 (Jan. Março 2018), pág. 167/214

[8] Pelo qual se pronunciou pela inconstitucionalidade das normas constantes do artigo 5º do Dec. N.º 167/XIV da AR, publicado no DAR, Série II -A, n.º 177, de 29.07.2021, “na parte em que altera o artigo 17º da Lei n.º 109/2009, de 15.09, por violação das normas constantes dos artigos 26º, n.º 1, 34º, n.º 1, 35º, n.ºs 1 e 4, 32º, n.º 4 e 18º, n.º 2 da CRP.

[9] Certos que estamos da existência de posições divergentes defendidas quer na doutrina, quer na jurisprudência: v.g., entre outros, por Rui Cardoso, “Apreensão de correio electrónico …”, ob. cit., pág. 202 e ss., e Ac. Rel. Lisboa de 27.01.2021, Proc. n.º 184/12.5TELSB-R.L1-3, relator Juiz Desembargador Rui Miguel Teixeira, consultável em https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/1beb942c43eaa700802586760032418f

[10] Que sob a epígrafe “Apreensão de correio electrónico e registo de comunicações de natureza semelhante”, estipula: “Quando, no decurso de uma pesquisa informática ou outro acesso legítimo a um sistema informático, forem encontrados, armazenados nesse sistema informático ou noutro a que seja permitido o acesso legítimo a partir do primeiro, mensagens de correio electrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante, o juiz pode autorizar ou ordenar, por despacho, a apreensão daqueles que se afigurem ser de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, aplicando-se correspondentemente o regime da apreensão de correspondência previsto no Código de Processo Penal.”

[11] Rui Cardoso, “Apreensão de correio electrónico …”, ob. cit., pág. 202.

[12] É unânime a jurisprudência do nosso TC que no que respeita à protecção e garantia da privacidade no domínio da comunicação humana, ao estabelecer a reserva absoluta do processo penal: este é o único domínio da vida comunitária em que o legislador constituinte entendeu existir fundamento bastante para permitir restrições legais e intervenções restritivas por parte das autoridades públicas

[13] Neste sentido, vejam-se os Acs. TC n.º 42/2007, n.º 155/2007, n.º 228/2007 e n.º 213/2008, bem assim o citado Ac. TC n.º 687/2021, todos consultáveis em www.tribunalconstitucional.pt

[14] Neste mesmo sentido, Sónia Fidalgo, “A recolha de prova em suporte electrónico – em particular a apreensão de correio electrónico”, in Revista Julgar, n.º 38, Maio-Agosto, 2019, Ed. ASJP., pág. 151 e ss. Na jurisprudência, entre outros, Ac. Rel. Lisboa de 06.02.2018, Proc. n.º 1959/17.0T9LSB-A.L1-5, relator Juiz Desembargador João Carrola, consultável em https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/a1b9fce5f23b342480258242004327a3?OpenDocument; Ac. Rel. Lisboa de 11.01.2011, Proc. n.º 5412/08.9TDLSB-A.L1, relator Juiz Desembargador Ricardo Cardoso, consultável em https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao/a.l1-5-2011-98699575 e ainda Ac. Rel. Lisboa de 25.01.2024, Proc. n.º 1721.5CLSB-A.L1-9, relatora Juíza Desembargadora Fernanda Sintra Amaral, consultável em https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/6869c865de9ba17780258ab5005550cb?OpenDocument

[15] Não se olvidando ainda o disposto no artigo 52º da Carta dos Direitos Fundamentais da UE e o artigo 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Dispõe o Artigo 52º da CDFUE, sob a epígrafe “Âmbito e interpretação dos direitos e dos princípios”: “1. Qualquer restrição ao exercício dos direitos e liberdades reconhecidos pela presente Carta deve ser prevista por lei e respeitar o conteúdo essencial desses direitos e liberdades. Na observância do princípio da proporcionalidade, essas restrições só podem ser introduzidas se forem necessárias e corresponderem efetivamente a objetivos de interesse geral reconhecidos pela União, ou à necessidade de proteção dos direitos e liberdades de terceiros. 2. Os direitos reconhecidos pela presente Carta que se regem por disposições constantes dos Tratados são exercidos de acordo com as condições e limites por eles definidos. 3. Na medida em que a presente Carta contenha direitos correspondentes aos direitos garantidos pela Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, o sentido e o âmbito desses direitos são iguais aos conferidos por essa Convenção. Esta disposição não obsta a que o direito da União confira uma proteção mais ampla. 4. Na medida em que a presente Carta reconheça direitos fundamentais decorrentes das tradições constitucionais comuns aos Estados-Membros, tais direitos devem ser interpretados de harmonia com essas tradições. 5. As disposições da presente Carta que contenham princípios podem ser aplicadas através de atos legislativos e executivos tomados pelas instituições, órgãos e organismos da União e por atos dos Estados-Membros quando estes apliquem o direito da União, no exercício das respetivas competências. Só serão invocadas perante o juiz tendo em vista a interpretação desses atos e a fiscalização da sua legalidade. 6. As legislações e práticas nacionais devem ser plenamente tidas em conta tal como precisado na presente Carta. 7. Os órgãos jurisdicionais da União e dos Estados-Membros têm em devida conta as anotações destinadas a orientar a interpretação da presente Carta."

Artigo 8º da CEDH, sob a epígrafe “Direito ao respeito pela vida privada e familiar”: 1. Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência. 2. Não pode haver ingerência da autoridade pública no exercício deste direito senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem - estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infracções penais, a protecção da saúde ou da moral, ou a protecção dos direitos e das liberdades de terceiros.”

[16] “A jurisprudência constitucional portuguesa e a reserva do juiz nas fases anteriores ao julgamento ou a matriz basicamente acusatória do processo penal”, in XXV Anos de Jurisprudência Constitucional Portuguesa, Colóquio Comemorativo do XXV Aniversário do Tribunal Constitucional, Coimbra Ed., 2009, pág. 50.