RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DA POSSE
PROCEDIMENTO CAUTELAR COMUM
Sumário

I - O procedimento cautelar de restituição provisória da posse descrito no art.º 377.º do C.P.C. destina-se a casos de esbulho violento, tendo os atos que ter já ocorrido - não se destina a prevenir atos de esbulho perante receios ou ameaças justificadas de que eles venham a ser praticados.
II - A prova consistente em mensagens telefónicas parciais, de teor por si só inconclusivo, e em participação criminal, na sequência da qual foi atribuído à requerente o estatuto de vítima especialmente vulnerável, é insuficiente para fundar o decretamento de procedimento cautelar comum que visa a condenação do requerido a abster-se de aceder a imóvel e de alterar fechadura.

Texto Integral

Processo: 15879/24.2T8PRT-B.P1



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Sumário
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Relatora: Teresa Maria Fonseca
1.ªadjunta: Carla Fraga Torres
2.ª adjunta: Maria Fernanda Almeida





Acordam no Tribunal da Relação do Porto


I - Relatório

AA deduziu procedimento cautelar de restituição provisória de posse contra BB, por apenso a ação declarativa de reconhecimento de direito de usufruto e de indemnização.
Pede:
- que se determine que o requerido se abstenha de aceder ao imóvel sito na R. A.... 41, ... Porto, de alterar fechaduras ou de praticar qualquer ato de perturbação da posse exercida pela requerente;
- que se determine, caso o esbulho já se tenha consumado, a imediata restituição da posse do imóvel à requerente.
Alegou, em síntese:
- que foi casada com o requerido, tendo o matrimónio sido dissolvido por divórcio;
- que, na decorrência de sentença homologatória de divórcio, é usufrutuária vitalícia do imóvel identificado;
- que o requerido tem vindo a aceder ao imóvel sem a sua autorização;
- que o requerido permanece no imóvel contra a sua vontade expressa;
- que em março de 2025, o requerido manifestou a intenção de, aproveitando uma ausência da requerente, mudar as fechaduras do imóvel e impedir o seu acesso ao mesmo.
Foi proferida decisão a julgar improcedente a pretensão da requerida, indeferindo o decretamento da providência.
Inconformada, a requerente interpôs o presente recurso, finalizando com as conclusões que se transcrevem.
A) O presente recurso de apelação é interposto da decisão que indeferiu a providência cautelar de restituição provisória de posse.
B) A Recorrente é titular do direito de usufruto vitalício sobre o imóvel, conforme sentença homologatória de divórcio devidamente registada na Conservatória do Registo Predial.
C) A decisão recorrida reconheceu expressamente o fumus bonus iuris, mas indeferiu a providência por considerar não haver esbulho efetivo nem perigo iminente.
D) A decisão recorrida não valorou adequadamente o Auto de Denúncia por Violência Doméstica (NUIPC: ...), documento oficial que atribui à Recorrente o Estatuto de Vítima Especialmente Vulnerável.
E) A avaliação de risco realizada pelas autoridades policiais classificou a situação como de "RISCO MÉDIO", recomendando expressamente a "proibição de permanência na habitação onde vive a vítima".
F) Ao não valorar este elemento probatório oficial, a decisão recorrida violou as regras da livre apreciação da prova estabelecidas no artigo 607.º, n.º 5 do CPC.
G) A sentença homologatória do divórcio estabelecia que o direito de permanência do Recorrido no imóvel por 60 dias anuais destinava-se exclusivamente ao convívio com os filhos do casal.
H) Os filhos do ex-casal são atualmente maiores de idade e residem em Moçambique, facto superveniente que determina a cessação do fundamento jurídico para o acesso do Recorrido ao imóvel.
I) A decisão recorrida ignorou este facto superveniente, violando a jurisprudência consolidada que reconhece que cláusulas relativas ao uso de imóvel estabelecidas em função do interesse dos filhos perdem seu fundamento quando estes atingem a maioridade (cf. o venerando Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 26-05-2022).
J) O conceito de esbulho, nos termos do artigo 1278.º do Código Civil, abrange não apenas a privação efetiva da posse, mas também a perturbação no seu exercício.
K) As ameaças de mudança de fechaduras manifestadas pelo Recorrido constituem perturbação da posse suficiente para justificar a providência cautelar, nos termos do artigo 377.º do CPC.
L) A providência cautelar de restituição provisória de posse, conforme jurisprudência consolidada (cf. o venerando Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 17-06-2024), dispensa a demonstração do periculum in mora, bastando a prova da perturbação da posse.
M) A decisão recorrida considerou erroneamente que o regresso do Recorrido a Moçambique elimina o perigo iminente, ignorando a facilidade de deslocação internacional e os episódios anteriores de regresso a Portugal.
N) Tendo a Recorrente o Estatuto de Vítima Especialmente Vulnerável e existindo avaliação oficial de risco médio, a decisão recorrida viola o princípio da proteção da vítima estabelecido na Lei 112/2009.
O) O Auto de Denúncia constitui elemento objetivo que demonstra a seriedade e atualidade da ameaça, contrariamente ao afirmado na decisão recorrida.
P) A decisão recorrida violou os artigos 362.º, 377.º e 379.º do CPC, bem como os artigos 1251.º e 1278.º do Código Civil.
Q) Deve ser revogada a decisão recorrida e, em consequência, decretada a providência cautelar de restituição provisória de posse, determinando-se que o Recorrido se abstenha de aceder ao imóvel, alterar fechaduras ou praticar qualquer ato de perturbação da posse da Recorrente.
R) Subsidiariamente, nos termos do artigo 379.º do CPC, deve ser decretada a providência cautelar comum adequada para proteção do direito de usufruto da Recorrente.
Termina pedindo que a decisão recorrida seja revogada, decretando-se a providência cautelar de restituição provisória de posse, determinando-se que o Recorrido se abstenha de aceder ao imóvel sito na R. A.... 41, ... Porto, alterar fechaduras, ou praticar qualquer ato de perturbação da posse exercida pela Recorrente.
Subsidiariamente, pede que nos termos do art.º 379.ºdo CPC, seja decretada a providência cautelar comum adequada para proteção do direito de usufruto da Recorrente.
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II - Questão a dirimir: se se mostram reunidos os pressupostos para que o requerido seja cautelarmente condenado a abster-se de aceder ao imóvel de que a requerente é usufrutuária, de alterar fechaduras ou de praticar qualquer ato de perturbação da posse exercida pela requerente;
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III - Fundamentação de facto

Os factos a tomar em consideração para os estritos efeitos do presente procedimento, que retirámos do processado, são os seguintes
1 - A requerente é titular do direito de usufruto vitalício sobre o imóvel sito na R. A.... 41, ... Porto, conforme sentença homologatória de 28-11-2019, proferida em processo de divórcio, transitada em julgado.
2 - Através da referida sentença homologatória, estabeleceu-se que a casa de morada de família será habitação do cônjuge aqui Autora, sendo que, para o efeito, a nua propriedade será transferida sem determinação de parte ou de direito para os três filhos do casal, sendo constituído usufruto vitalício a favor da Autora e um usufruto vitalício sucessivo a favor do Réu.
3 - Mais ficou estabelecido no acordo homologado pela sentença de divórcio, no respetivo ponto 2, que o R. poderá estar com os filhos do casal pelo período de 60 dias por cada ano, convívio esse que terá lugar na casa de morada de família.
4 - Ainda nos termos da sentença, o R. deverá avisar a requerente com 15 dias de antecedência e, caso a Autora o pretenda, o Réu obriga-se a proporcionar-lhe um alojamento alternativo, durante o período que permanecer na casa de morada de família, sendo este que suportará o seu custo na sua totalidade.
5 - Os filhos de requerente e requerida, CC, DD e EE, nasceram, respetivamente, em ../../1995, ../../1998 e ../../2000.
6 - Os três filhos do ex-casal residem em Moçambique.
7 - Em 24 (25?)-8-2024, a requerente apresentou denúncia por violência doméstica contra o requerido, tendo sido elaborado o Auto de Denúncia (NUIPC: ..., NPP: ...).
8 - O auto reporta Reporta agressões anteriores a 2014 e referentes aos anos de 2015 e 2016.
9 - No Auto de Denúncia, foi atribuído à requerente o estatuto de vítima especialmente vulnerável, nos termos da Lei 130/2015 de 4/9 (Estatuto da Vítima).
10 - Foi realizada uma avaliação de risco que classificou a situação como de risco baixo (elaborado o doc. técnico protocolado para situação de violência doméstica, ficha de Avaliação de Risco “RVD1L”, o resultado do instrumento indicou nível de risco BAIXO).
11 - Em 27-3-2025, a requerente procedeu a aditamento à queixa através de e-mail de que consta que o BB voltou a ameaçar a assistente com a alteração da fechadura da residência atribuída à mesma por sentença judicial transitada em julgado, que lhe confere usufruto vitalício. O arguido declarou que impedirá a assistente de regressar a sua casa caso esta se ausente.
12 - Aduz juntar documentação probatória em formato PDF, contendo comunicação via WhatsApp.
13 - Da cópia carreada para os autos lê-se, assinaladamente, o seguinte:
14 março 2025:
de 28/3 a 8/4 Queres que te arranje um alojamento alternativo?
Obrigada mas não preciso. Estou em casa. Se precisares de ir buscar roupa, arranja-se maneira.
Queres dizer que no dia 28 não sais de casa?
Zé, outra vez esta conversa?
Qual os miúdos vens ver de 28/3 a 8/4?
19 de março de 2025:
mensagem apagada por mim
Boa tarde, AA. Onde é que me vais deixar a chave? Ou cada vez que um de nós quiser ir para casa temos que mandar mudar a fechadura? Da última vez que estive em casa quando saí dei-te a chave.
Não deste a chave, foi o CC que me deu para eu entrar. Não vou dar chave.
Nem devias responder, AA.
Qual o teu conselho, saio de casa, fecho a porta à chave ou não saio? É que ele diz que vai mudar a (a mensagem visualizada termina aqui).
Mensagens subsequentes, parcialmente truncadas, respigando-se o seguinte:
Vou agora a casa buscar as coisas. Podes responder.
Agradeço que me digas a que horas vou buscar as coisas.
Liga-me por volta do meio dia.
Vou agora buscar as coisas.
Podes responder.
Tiveste muito tempo para levares as tuas coisas. Tenho medo de estar contigo. Vamos esperar que o Zé chegue.
Ou acompanhada pela polícia.
Sob estas mensagens, surge o seguinte: isto foi quando ele mudou a fechadura e eu não consegui entrar com a polícia e mandei-lhe esta mensagem para ir buscar roupa.
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IV - Fundamentação jurídica
A requerente alega que é titular do direito de usufruto vitalício sobre o imóvel sito na R. A.... 41, ... Porto, direito este que lhe foi atribuído por sentença homologatória proferida em sede de processo de divórcio, pelo Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo de Família e Menores do Porto - Juiz 4.
Na referida sentença homologatória, transitada em julgado, ficou expressamente estabelecido que a casa de morada de família será habitação do cônjuge aqui Autora, sendo que, para o efeito, a nua propriedade será transferida sem determinação de parte ou de direito para os três filhos do casal, sendo constituído usufruto vitalício a favor da Autora e um usufruto vitalício sucessivo a favor do Réu.
A requerente alega que o requerido, em dia não concretamente identificado de março de 2025, encontrando-se de férias em Portugal, pois vive em Moçambique, manifestou a intenção de, aproveitando uma ausência da requerente, mudar as fechaduras do imóvel e impedir o seu acesso ao mesmo.
Prevê o art.º 377.º do C.P.C. que no caso de esbulho violento o possuidor pode pedir que seja restituído provisoriamente à sua posse, alegando os factos que constituem a posse, o esbulho e a violência.
E o art.º 378.º do mesmo Código que se o juiz reconhecer, pelo exame das provas, que o requerente tinha a posse e foi esbulhado dela violentamente, ordenará a restituição, sem citação nem audiência do esbulhador.
A restituição só pode, pois, ser ordenada se for alegado e demonstrado que o requerente tinha a posse e dela foi esbulhado violentamente. O decretamento da providência cautelar depende, como é pacífico, da verificação cumulativa de três requisitos: a posse, o esbulho e a violência.
Alberto dos Reis (in Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3.ª edição- reimpressão, Coimbra Editora, p. 670) ensinava já no domínio do Código de Processo Civil de 1939, perante idêntica previsão legal (artigo 400.º) que a restituição provisória de posse não é rigorosamente uma providência cautelar. É, sem dúvida, uma providência preventiva e conservatória; mas não é uma providência cautelar, porque lhe falta a característica do periculum in mora. E acrescentava que para obter a restituição o requerente não precisa de alegar e provar que corre um risco, que a demora definitiva na ação possessória o expõe à ameaça de dano jurídico; basta que alegue e prove a posse, o esbulho, a violência. O benefício da providência é concedido, não em atenção a um perigo de dano iminente, mas como compensação da violência de que o possuidor foi vítima.
Preceitua o art.º 1251.º do C.C. que posse é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real. Trata-se de uma situação agnóstica, em que se abstrai da existência ou inexistência do direito a que a posse se refere (cf. José de Oliveira Ascensão, Direito Civil - Reais, 4.ª edição refundida, reimpressão, Coimbra Editora, 1987, pp. 81 e ss.).
É integrada por dois elementos, o corpus e o animus.
O corpus é o elemento material que consiste no domínio de facto sobre a coisa, traduzido no exercício efectivo de poderes materiais sobre ela, ou na possibilidade física desse exercício e o animus que consiste na situação de exercer sobre a coisa, como seu titular, o direito real correspondente àquele domínio de facto (Mesquita, Henrique, Direitos Reais, pp. 66 e 67).
A respeito do requisito da violência, a jurisprudência firmada no Supremo Tribunal de Justiça dividiu-se ao longo do tempo entre a tese de que a violência relevante é exercida contra a pessoa do possuidor e aquela que considera bastante para integrar o requisito em causa a violência exercida sobre a coisa. Entende-se, neste caso, que a violência relevante para o preenchimento deste requisito é tanto a dirigida contra as pessoas que defendem a posse como contra as coisas. É mister que, neste caso, a violência se repercuta nas pessoas em termos de as intimidar ou de as coagir.
O conceito de violência a que aludem os artigos 1279.º do Código Civil e 377.º do C.P.C. é o vertido no art.º 1261.º/1 do Código Civil. O art.º 1261.º/1 do C.C. define como violenta a posse adquirida através de coação física ou de coação moral nos termos do art.º 255.º do mesmo Código.
A violência aqui retratada não implica necessariamente que a ofensa da posse ocorra na presença do possuidor. Basta que o possuidor dela seja privado contra a sua vontade em consequência de um comportamento que lhe é alheio e impede, contra a sua vontade, o exercício da posse como até então a exercia (cf. ac. do S.T.J. de 19-10-2016, proc. 487/14.4T2STC.E2.S1, Fernanda Isabel Pereira).
O procedimento cautelar de restituição provisória da posse descrito no art.º 377.º do C.P.C. destina-se a casos em que tenha existido esbulho violento.
O procedimento cautelar de restituição provisória da posse apenas se destina a reagir contra atos de esbulho (violento) que já tenham ocorrido, não sendo adequado para prevenir atos de esbulho perante receios ou ameaças justificadas de que eles venham a ser praticados - no sentido de que não é adequado a prevenir atos de esbulho, mesmo perante receios ou ameaças justificadas de que eles venham a ser praticados, veja-se o ac. da Relação de Coimbra de 6-2-2024 (proc. 1715/23.0T8CTB, Maria Catarina Gonçalves).
A requerente não invoca que o esbulho já tenha ocorrido. Pelo contrário, deixa claro que se mantém na posse da coisa. Ora o esbulho pressupõe que o possuidor fique privado do exercício dos poderes correspondentes à sua posse. No esbulho o controlo material sobre a coisa é totalmente subtraído ao possuidor (Elsa Sequeira Santos e Rui Pinto, Código Civil Anotado, Coordenação Ana Prata, Vol. II, 2017, p. 61).
No caso concreto, tal não se verificou.
Fica, pois, arredada a aplicação do previsto no art.º 377.º do C.P.C..
A requerente pediu, subsidiariamente, que, nos termos do art.º 379.ºdo C.P.C., seja decretada a providência cautelar comum adequada para proteção do seu direito de usufruto. Independentemente da subsunção pela requerente do procedimento que pretende ver decretado no disposto no art.º 377.º do C.P.C. ou no art.º 379.º do mesmo Código, pede que se determine que o requerido se abstenha de aceder ao imóvel sito na R. A.... 41, ... Porto, de alterar fechaduras, ou de praticar qualquer ato de perturbação da posse exercida pela requerente.
Não estando reunidos os pressupostos necessários para a procedência do procedimento cautelar de restituição provisória de posse, resta aquilatar se deve ser decretada outra providência.
Dispõe o art.º 379.º do CPC que, ao possuidor que seja esbulhado ou perturbado no exercício do seu direito, sem que ocorram as circunstâncias previstas no artigo 377.º, é facultado, nos termos gerais, o procedimento cautelar comum. Tal significa que o possuidor que seja esbulhado sem violência ou que não chegue a ser esbulhado, sendo apenas perturbado no exercício da sua posse, pode recorrer ao procedimento cautelar comum, requerendo as providências necessárias para assegurar a efetividade e o exercício da sua posse. Foi precisamente o que a requerente pediu - em caso de improcedência da restituição provisória de posse, requer, ainda que não o diga explicitamente, a convolação em procedimento cautelar comum para o efeito de ser decretada uma providência cautelar não especificada.
Para o decretamento do procedimento cautelar comum é necessário que se mostrem verificados os pressupostos vertidos nos artigos 362.º/1 e 368.º/1 do C.P.C..
Nos termos do art.º 362.º/1, sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado.
Nos termos do art.º 368.º/1, a providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão.
Para efeitos de decretamento de providência cautelar, não basta que esteja em causa a ameaça de uma lesão grave, tal como não basta que esteja em causa a ameaça de uma lesão dificilmente reparável. Tem que estar em causa uma previsível lesão que se apresente, simultaneamente, como grave e dificilmente reparável.
Alberto dos Reis (in Código de Processo Civil, Anotado, vol. I, 3.ª ed., pp. 623 e ss.) ensina que a providência cautelar não se propõe dar realização direta e imediata ao direito substantivo, mas tomar medidas que assegurem a eficácia duma providência subsequente, esta destinada à atuação do direito material. O que justifica a emissão duma providência provisória é o chamado periculum in mora. O procedimento cautelar tem por fim obviar ao perigo na demora da declaração e execução do direito, afastando o receio de dano jurídico por meio de medidas que limitam os poderes ou impõem obrigações àquele que se encontra em conflito com o requerente da providência.
Abrantes Geraldes (Temas da Reforma do Processo Civil, vol. III, 4.ª ed., p. 103) deixa explícito que a previsível lesão há de ser simultaneamente grave e dificilmente reparável.: o facto de o legislador ter ligado as duas expressões com a conjunção copulativa “e”, em vez de disjuntiva “ou”, determina que não é apenas a gravidade das lesões previsíveis que justifica a tutela provisória, do mesmo modo que não basta a irreparabilidade absoluta ou difícil. Apenas merecem a tutela provisória consentida através do procedimento cautelar comum as lesões graves que sejam simultaneamente irreparáveis ou de difícil recuperação (...) Ficam afastadas do círculo de interesses acautelados pelo procedimento comum, ainda que se mostrem irreparáveis ou de difícil reparação, as lesões sem gravidade ou de gravidade reduzida, no mesmo modo que são excluídas as lesões que, apesar de graves, sejam facilmente reparáveis”.
Ensina ainda este autor: a gravidade da lesão previsível deve ser aferida tendo em conta a repercussão que determinará na esfera jurídica do interessado (...) A proteção cautelar não abarca apenas os prejuízos imateriais ou morais, por natureza irreparáveis ou de difícil reparação, mas ainda os efeitos que possam repercutir-se na esfera patrimonial do titular (...) Quanto aos prejuízos patrimoniais, o critério deve ser bem mais restrito do que o utilizado quanto à aferição dos danos de natureza física ou moral, uma vez que, em regra, aqueles são passíveis de ressarcimento através de um processo de reconstituição natural ou de indemnização substitutiva. Apesar disso, não deve excluir-se como, aliás, a lei não exclui a possibilidade de proteção antecipada do interessado relativamente a prejuízos de tal espécie, embora devam ser ponderadas as condições económicas do requerente e do requerido e a maior ou menor capacidade de reconstituição da situação ou de ressarcimento dos prejuízos eventualmente causados (...) Importa ainda ponderar em que medida a reintegração do direito por via da reconstituição natural ou da indemnização se mostra eficaz, oportuna e realista, prevenindo pela via cautelar situações de perigo de lesão em que tal reparação não seja previsível ou se revele difícil ou morosa, deste modo dando relevo à suscetibilidade de tutela adequada”.
Entende-se que o fundado receio de que venha a ocorrer um ato de esbulho pode justificar o decretamento de uma providência cautelar, ao abrigo do disposto no art.º 362.º, aplicável ex vi art.º 377.º, desde que a lesão do direito - que venha a ser concretizada com esse esbulho - possa ser qualificada como grave e dificilmente reparável (cf. ac. da Relação de Coimbra de 6-2-2024, proc. 1715/23.0T8CTB, Maria Catarina Gonçalves).
A ameaça do esbulho, entendida como o fundado receio de que ele venha a ocorrer, não basta para o efeito de decretar uma providência cautelar não especificada que vise evitar a concretização dessa ameaça. Será ainda necessário que a lesão do direito - no caso, a privação da posse do imóvel - seja grave e dificilmente reparável.
A invocação pela requerente de jurisprudência consolidada em sentido inverso, tendo sido identificado o ac. da Relação do Porto de 17-6-2024 (proc. 21854/23.7T8PRT.P1, Manuel Fernandes), não tem aqui cabimento. É certo que aí se defende que o requerente da providência de restituição provisória de posse não carece de alegar factos demonstrativos da lesão grave e dificilmente reparável do seu direito, nem do periculum in mora. A providência de restituição provisória de posse tem aí sua justificação na violência cometida pelo esbulhador, visando-se com ela a rápida reposição da situação anterior.
No caso vertente, não se trata, porém, de aplicar o regime da restituição provisória da posse com fundamento em esbulho - que vimos já não se verificar -, mas sim de aquilatar dos requisitos do procedimento cautelar comum.
Ora a requerente cinge-se a carrear para os autos impressões parcelares e truncadas de mensagens alegadamente trocadas entre si e o requerido, sem data. Nestas parece estar a em causa o pedido do requerido de que a requerente lhe entregue a casa entre 28-3-2025 e 8-4-2025. Questiona-a sobre se pretende que lhe seja arranjado alojamento alternativo. Perguntada explicitamente sobre se não vai sair de casa, a requerente responde com a expressão outra vez esta conversa e pergunta qual dos filhos iria o requerido ver naquele lapso de tempo.
Relativamente à troca de mensagens subsequente, o requerido pergunta à requerida onde é que esta lhe deixará a chave. Prossegue dizendo: ou de cada vez que um de nós quiser ir para casa temos que mandar mudar a fechadura? Desta questão não é possível retirar que anteriormente o requerido tenha mandado mudar a fechadura. O requerido diz mesmo: da última vez que estive em casa quando saí deixei-te a chave (a chave antiga?; nova?).
A requerente acaba por reconhecer que lhe foi dada a chave, tendo sido o BB que lha deu.
Alega a requerente que as mensagens trocadas entre as partes, comprovam inequivocamente as ameaças e o caráter perturbador das condutas do Requerido, comportamentos que perturbam ilegitimamente a sua posse, quanto mais não seja, pela intensa pressão psicológica e comportamento hostil.
As mensagens em causa não comportam tal leitura.
Como se lê na decisão de 1.ª instância, mesmo que, no limite, se aceite que aquelas mensagens foram trocadas e são atuais, não demonstram que o Requerido, encontrando-se de férias em Portugal, manifestou expressamente a intenção de, aproveitando uma ausência da Requerente, mudar as fechaduras do imóvel e impedir o seu acesso ao mesmo.
Relativamente a parte das mensagens, não é sequer percetível quem é o emitente e quem é o destinatário. Veja-se, exemplificativamente, que consta do documento (não se compreendendo se se trata de uma mensagem para terceiro, se uma explicação): isto foi quando ele mudou a fechadura e eu não consegui entrar com a polícia e mandei-lhe esta mensagem para ir buscar roupa. Mas tal nem sequer foi alegado no procedimento cautelar e as mensagens, aliás, parecem ser em sentido inverso: Tiveste muito tempo para levares as tuas coisas. Tenho medo de estar contigo. Vamos esperar que o Zé chegue. Ou acompanhada pela polícia.
Acresce que consta da sentença carreada para os autos o direito do requerido a estar com os filhos do casal, pelo período de 60 dias por cada ano, convívio esse que terá lugar na casa em questão.
A requerente invoca que cessou o fundamento para a ocupação pelo requerido da habitação pelo período de 60 dias anuais. Defende que este direito do requerido terminou com a maioridade dos filhos comuns do ex-casal.
É, porém, manifesto que tal consideração não encontra sustentáculo nos factos. Conforme certidões constantes dos autos, o filho CC nasceu em ../../1995, o filho DD em ../../1998 e a filha EE em ../../2000. Datando a sentença de divórcio de 28-11-2019, à data da mesma qualquer um dos filhos era já maior de idade (tinham respetivamente 24, 21 e 19 anos). Não colhe, por isso, tal argumentação.
Relativamente à indicação de testemunha que teria assistido ao esbulho in loco, a verdade é que não foi alegado qualquer esbulho. A determinação da respetiva inquirição redundaria, pois, na prática de um ato inútil, como tal proibido por lei (art.º 130.º do C.P.C.).
A requerente entende que a atribuição do estatuto de vítima pela autoridade policial consubstancia indício integrador dos requisitos do decretamento do procedimento cautelar. Considera mesmo que, ao não valorar este elemento probatório oficial, a decisão recorrida violou as regras da livre apreciação da prova estabelecidas no art.º 607.º/5 do C.P.C..
Em tese, desde já se diga que a atribuição do estatuto de vítima especialmente vulnerável não permite inferir que se verifiquem os pressupostos da providência.
Nos termos do preceituado no art.º 20.º/1 do Estatuto da Vítima, aprovado pela Lei 130/2015, de 4-9-2015, sob a epígrafe, atribuição do estatuto de vítima especialmente vulnerável, apresentada a denúncia de um crime, não existindo fortes indícios de que a mesma é infundada, as autoridades judiciárias ou os órgãos de polícia criminal competentes podem, após avaliação individual da vítima, atribuir-lhe o estatuto de vítima especialmente vulnerável. Segundo o n.º 2 do art.º 20.º, no mesmo ato é entregue à vítima documento comprovativo do referido estatuto, compreendendo os seus direitos e deveres.
Como é, porém, evidente, não basta ao requerente do procedimento levar a cabo participação criminal, momento, naturalmente, sem contraditório, e aguardar que a queixa faça presumir que o por si relatado corresponda à verdade dos factos. O regime legal invocado não comporta essa virtualidade.
A atribuição do estatuto de vítima especialmente vulnerável depende essencialmente da não existência de fortes indícios de que a denúncia é infundada - ao passo que o decretamento de procedimento cautelar pressupõe a existência de indícios bastantes de que a alegação é fundada.
Em concreto, trata-se de uma queixa crime que reporta condutas anteriores a 2016. Eventos abusivos passados, mesmo que estivessem demonstrados, não fazem presumir que, em março de 2025, o requerido manifestou a intenção de, aproveitando uma ausência da requerente, mudar as fechaduras do imóvel e impedir o seu acesso ao mesmo. É este o núcleo essencial do procedimento e da apelação e, tampouco por esta via, existem indícios da alegação.
Em síntese, a apelante alega que o apelado manifestou a intenção de mudar as fechaduras de imóvel de que é usufrutuária. Indicou enquanto prova mensagens telefónicas que não espelham esta realidade, testemunha de esbulho que não alegou ter existido e a atribuição de estatuto de vítima de violência doméstica reportando factos que não se prendem com a alegada intenção de iminente mudança de fechadura. Não há, por isso, indícios, nem de receio da lesão, nem de que esta seja dificilmente reparável.
A decisão de indeferimento do procedimento cautelar foi consentânea com os ditames legais. A pretensão da apelante está, por conseguinte, votada ao insucesso.

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V - Dispositivo

Nos termos sobreditos, acorda-se em julgar improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
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Custas pela apelante, por ter soçobrado na sua pretensão (art.º 527.º/1/2 do C.P.C.).
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Porto 12-5-2025.

Teresa Fonseca
Carla Fraga Torres
Fernanda Almeida