DECISÃO SURPRESA
PARCERIA AGRÍCOLA
LOCAÇÃO DE PRÉDIO RÚSTICO
ARRENDAMENTO RURAL
DIREITO DE PREFERÊNCIA
Sumário

I - Apenas existe ambiguidade da sentença, geradora da sua nulidade, nos termos do art. 615.º/1, al. c), do CPC, se do respetivo texto ou contexto não se tornar possível discernir qual o seu verdadeiro alcance ou porque as expressões usadas encerram diferentes significados e são equívocas.
II - É admissível impugnar a designada decisão surpresa, que não tenha sido antecedida do cumprimento do disposto no art. 3.º/3 do CPC, por conhecimento de uma questão essencial para o desfecho da acção que não foi suscitada nem debatida pelas partes, através da interposição de recurso com base na nulidade da sentença e quando o vício apenas seja evidenciado na própria decisão.
III - Apesar do reconhecimento da nulidade da sentença recorrida, por ter conhecido questões cuja apreciação lhe estava vedada, o Tribunal da Relação deve proferir decisão de mérito ou de fundo, desde que o processo o permita, face aos elementos que dele constem e das posições assumidas pelas partes, e contanto que a questão esteja incluída no objecto da apelação.
IV - O recorrente que impugne a decisão da matéria de facto tem de alegar, especificar e esclarecer, sob pena de rejeição do recurso, nessa parte, os motivos da sua discordância, ou seja, as razões pelas quais determinados meios de prova indicados e especificados contrariam ou infirmam as respostas do tribunal a quo, o que implica a realização de uma análise crítica da prova e concretamente dirigida à convicção factual formada na decisão recorrida.
V - A parceria agrícola representa o contrato mediante o qual uma pessoa cede a outra algum prédio rústico, para ser cultivado por quem o recebe, mediante o pagamento de uma quota de frutos do modo que entre si acordarem, não se confundindo com o contrato em que, como contrapartida da cedência do imóvel, a cargo do locatário, é estabelecida a obrigação de prestação de serviços de limpeza desse e de outro terreno.
VI - Contrariamente ao que o DL nº385/88, de 25-10, aparentava, o art. 36.º do DL nº294/2009, de 13-10, que o revogou e substituiu, acabou por preservar a validade dos contratos de locação sobre prédios rústicos, independentemente da natureza da prestação a cargo do locatário, celebrados anteriormente à sua entrada em vigor, incluindo os outorgados na vigência do primeiro diploma.
VII - O contrato atípico com componentes da locação de prédio rústico e da prestação de serviços, celebrado em 1/9/2009, no qual a contrapartida do uso do imóvel é constituída por serviços de limpeza desse e de outro imóvel, a cargo do locatário, não concede a este o direito de preferência previsto no art. 28.º do DL nº385/88, de 25 de Outubro.
VIII - O nomen juris dado pelos contraentes não vincula o tribunal na interpretação do contrato, havendo que averiguar, em cada caso, para determinar a sua qualificação, que constitui matéria de direito, a vontade das partes e o teor dos direitos e obrigações assumidas por cada uma delas.
IX - Apesar do DL nº294/2009, de 13 de Outubro, que revogou e substituiu o DL nº385/88, ter contemplado uma noção mais ampla de arrendamento rural, manteve, porém, o requisito da vigência do contrato pelo período mínimo de três anos, que tem ínsita a utilização efectiva do terreno, para a atribuição do direito de preferência ao arrendatário, tal como salvaguardou a obrigação de exploração do prédio, sobre quem exerceu tal direito, nos cinco anos posteriores ao seu exercício, e ainda a sanção para o seu incumprimento assente na perda da propriedade a favor do preterido com o exercício da preferência.

Texto Integral

Processo: 776/21.1T8OBR.P1



ACORDAM OS JUÍZES QUE INTEGRAM O
TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO
(3.ª SECÇÃO CÍVEL):



Relator: Nuno Marcelo Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo
1.º Adjunto: António Mendes Coelho
2.º Adjunto: Carla Jesus Costa Fraga Torres






RELATÓRIO.

AA, titular do NIF ...33, e BB, com o NIF ...80, casados entre si, com residência na Rua ..., em Oliveira do Bairro, intentaram a presente acção de preferência, com processo comum, contra CC, portadora do NIF ...78, e DD, sendo o NIF ...43, residentes na Avenida ..., ..., ..., também em Oliveira do Bairro.
Pediram que, mercê da procedência da acção, por provada, seja julgado transmitido aos autores o prédio identificado nos arts. 1º e 2º da petição inicial, substituindo-se o autor na posição dos réus e ordenando-se o cancelamento no registo predial da inscrição a favor dos réus sobre o prédio objeto da preferência.
Para o efeito e em resumo, alegaram que, em 1 de Setembro de 2009, celebraram, como arrendatários, contrato de arrendamento rural com A..., Lda., tendo por objeto o terreno composto por pinhal e mato, sito em ..., na freguesia ..., concelho de Oliveira do Bairro, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...70, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...99.
Por outro lado, a sociedade proprietária do terreno procedeu à venda do imóvel a EE, em 11 de Abril de 2017. Todavia, a vendedora foi declarada insolvente e, na sequência do processo de insolvência, os RR. vieram exercer o seu direito de preferência, no âmbito do processo nº185/19.2T8OBR que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Juízo de Competência Genérica de Oliveira do Bairro - ..., com base em cofinancia do seu com o prédio arrendado.
Todavia, aos AA. assistia direito de preferência legal prevalecente em virtude do arrendamento do prédio rustico, sendo que disso não foi dado conhecimento àqueles autos, tal como não foi dado a conhecer aos AA. a transmissão do imóvel, o que apenas se verificou quando recolheram a douta sentença e o douto acórdão do Tribunal de Relação do Porto proferidos naquele processo.
Os RR. ofereceram contestação e nela, em síntese, impugnaram em larga medida os factos constantes na petição inicial e os documentos que com ela foram oferecidos, afirmando ainda que os citados elementos demonstram que inexiste qualquer contrato de arrendamento celebrado entre as partes e que a presente acção judicial é uma manobra da sociedade A..., Lda. para reaver o prédio que os Réus adquiriram através do exercício do direito de preferência.
Com efeito, segundo defenderam, inexiste qualquer contrato de arrendamento participado junto da Autoridade Tributária e Aduaneira e decorre do texto do mesmo que inexiste qualquer obrigação de pagamento de renda por parte do locatário, tendo sido estabelecido como contrapartida pela fruição do locado a limpeza do próprio imóvel.
Para além disso, suscitaram a questão da caducidade do direito invocado pela contraparte, visto que, conforme os próprios AA. admitem – confissão da qual devem ser retiradas as devidas ilações – em 20 de Abril de 2017, a sociedade proprietária do prédio A..., Lda., comunicou a venda do imóvel a EE, pelo que, se o contrato de arrendamento já existia à data (que não existia), deveriam os AA. ter exercido o seu direito de preferência contra esse novo proprietário.
Pediram ainda a condenação dos AA. como litigantes de má-fé.
Na resposta, os AA. pugnaram pela improcedência da excepção da caducidade, negaram os factos relatados pelos RR. e requereram contra eles idêntico pedido de condenação por litigância de má-fé e que foi igualmente contestado.
Em audiência prévia, as partes foram convidadas a aperfeiçoar as suas alegações e a juntar documentos, ao que os AA. corresponderam mediante requerimento de 8/4/2024, detalhando os termos do contrato de compra e venda celebrado entre A..., Lda. e EE, o conhecimento que sobre ele tiveram e as circunstâncias relevantes relativas ao processo nº 185/19.2T8OBR, intentado pelos RR. para o exercício do seu direito de preferência.
Findos os articulados, procedeu-se ao saneamento da instância, à fixação do valor da causa (€ 6.000,00) e à selecção dos seguintes temas de prova, mediante despacho de 29/5/2022, em audiência prévia: 1) Contrato de arrendamento rural celebrado entre os autores e anteriores proprietários; 2) Tempo de vigência do contrato; 3) A venda do prédio locado a terceiros e aos réus sem que tenham sido comunicados os elementos do negócio e a possibilidade de exercerem o direito de preferência; 4) A caducidade do direito dos autores; 5) A actuação das partes como litigantes de má-fé.
Todavia, na segunda data designada para a audiência de julgamento, foi proferido despacho a alertar para uma possível situação de preterição do litisconsórcio necessário passivo, com cumprimento do contraditório.
Na sequência, os AA. suscitaram o incidente de intervenção principal provocada de MASSA INSOLVENTE DE A..., LDA. e de EE e que, não obstante a oposição dos RR., afirmando que se encontrava já largamente ultrapassado o prazo para o efeito, foi admitido por despacho de 20/1/2023.
Devidamente citado, o chamado juntou requerimento, o qual, porém, não foi admitido como contestação.
Por outro lado, verificado que se encontrava averbado o encerramento da liquidação da sociedade A... Lda., a instância foi declarada extinta em relação a ela (cfr. despacho de 27/10/2023).
Na sequência, os autos prosseguiram com a realização da audiência de julgamento e foi proferida sentença que julgou improcedente a excepção de caducidade, nulo o acordo dito em 5 dos factos provados, improcedente a acção e inverificada a litigância de má-fé de AA. e RR.
Dessa decisão, inconformados, os AA. interpuseram recurso, admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Remataram com as conclusões seguintes, que se transcrevem na parte que assume relevância para o recurso e evitando repetições:
(…)

Finalizaram com o pedido de que seja revogada a sentença recorrida e substituída por outra que julgue procedente a ação intentada pelos Apelantes, reconhecendo o direito de preferência aos aqui Apelantes e condenando a recorrida como litigante de má-fé com todas as consequências legais.
Os RR. não ofereceram resposta ao recurso, embora tenham apresentado requerimento com declaração de “que não irá apresentar contra-alegações, pois entende que a douta sentença proferida não merece qualquer censura”.
Nada obsta ao conhecimento do recurso, o qual foi admitido na forma e com os efeitos legalmente previstos.

*


OBJECTO DO RECURSO.

Sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constem nas conclusões, as quais, assim, definem e delimitam o objeto do recurso (arts. 635.º/4 e 639.º/1 do CPC).
Assim sendo, importa em especial apreciar, considerando a ordem indicada na motivação do recurso:
a) se a sentença é nula por ambiguidade na parte relativa aos factos não provados e por ter conhecido a questão da nulidade do contrato sem prévio cumprimento do contraditório (conclusões 17 a 46);
b) se foi validamente deduzida, é justificada e procede a impugnação da matéria de facto, quanto às respostas negativas dadas nas alíneas a) a c), e) e f) da sentença (conclusões 12 a 16 e 48 a 56);
c) se o contrato de arrendamento rural em causa nos autos constituiu fundamento válido para o reconhecimento do direito de preferência a favor dos AA. e recorrentes, ainda que com redução do negócio, caso seja julgado nulo em parte (conclusões 57 e segs.).
*

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

Em sede de respostas à factualidade relevante em primeira instância, algumas foram colocados em crise no recurso, na impugnação da matéria de facto, cuja apreciação deverá ocorrer mais adiante.
Assim, sem prejuízo da subsequente consideração dessa impugnação, estão provados os seguintes factos, segundo a decisão recorrida:
1) Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Oliveira do Bairro sob o nº ...99/19920714 o Prédio Rústico sito no lugar ... freguesia e concelho de Oliveira do Bairro, composto por Pinhal e mato confrontando a Norte e Nascente, FF; Sul, GG; e a Poente, caminho, inscrito na matriz sob o artigo ...70º, e aí inscrito actualmente a favor dos 1ºs RR. pelao Av. AVERB. - AP. ...89 de 2021/05/31.
2) Mediante Título de Compra e Venda outorgado em 11 de Abril de 2017 a Sociedade A..., LDA, declarou vender para além do mais o prédio dito em 1 a EE, livre de ónus ou encargos, pelo valor de seis mil euros que aquele declarou comprar, mais tendo a primeira declarado já ter recebido o preço.
3) Correram autos de Ação de Processo Comum 185/19.2T8OBR neste Juízo de Competência Genérica de Oliveira do Bairro - ..., intentados por CC, e marido DD contra a MASSA INSOLVENTE DA A..., LDA e contra EE, pedindo que fosse declarado o direito de preferência dos autores e subsequentemente condenados os réus a verem substituído o ali réu EE [e aqui chamado] pelos autores [aqui Réus] no negócio no que respeita ao prédio dito em 1 havendo este para si, desta forma, o aludido prédio, na qualidade de confinantes.
4) Na acção dita em 3 foi proferida Sentença transitada em julgado em 12-IV-2021 em que se julgou a acção totalmente procedente, por provada e para além de julgar improcedente a excepção de caducidade, condenou
«2- A reconhecer que os autores CC e DD, são proprietários do prédio rústico sito em ..., freguesia e concelho de Oliveira do Bairro inscrito na matriz sob o artigo rústico ...71 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Oliveira do Bairro sob o n.º ...63;
3- A reconhecer que o prédio identificado em 2) é confinante com o prédio rústico composto por pinhal e mato, sito em ..., freguesia e concelho de Oliveira do Bairro, inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...70, descrito na Conservatória do Registo Predial de Oliveira do Bairro sob o n.º ...99 que foi alienado pelo réu Massa Insolvente da A..., Lda. e adquirido pelo réu EE;
4- A reconhecer os autores CC e DD o direito de preferência na compra efectuada em 11 de Abril de 2017 do prédio rústico composto por pinhal e mato, sito em ..., freguesia e concelho de Oliveira do Bairro, inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...70, descrito na Conservatória do Registo Predial de Oliveira do Bairro sob o n.º ...99, assim se substituindo os autores aos referidos compradores naquela transmissão».
5) Consta dos autos documento datado de 1 de Setembro de 2009 com o seguinte teor:
«CONTRATO DE ARRENDAMENTO RURAL
Entre:
PRIMEIRO CONTRATANTE: A... E
..., LDA., NIPC ...18, com sede na Rua ..., ..., ... OLIVEIRA DO BAIRRO, representada pelo seu sócio-gerente HH, na qualidade de Proprietária e Senhoria;
SEGUNDO CONTRATANTE, AA, NIF
...33, residente na Rua ..., ..., ... OLIVEIRA DO BAIRRO, na qualidade de Arrendatário;
É celebrado o presente CONTRATO DE ARRENDAMENTO RURAL para fins de atividade agrícola (ou pecuária) com as seguintes cláusulas:
CLAÚSULA PRIMEIRA
l. O objecto do presente Contrato é um pinhal e mato, sito em ..., da freguesia ..., concelho de Oliveira do Bairro, inscrito na matriz predial rústica ...70, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...99.
2.O Locado destina-se a exploração agrícola ou serviços associados à agricultura, não lhe podendo ser dado outro fim ou uso, salvo se autorizados expressamente pelo Senhorio.
3.O Arrendatário declara que o Locado, presentemente, se encontra e se adequa ao fim a que se destina.
4.O Arrendatário elaborará e manterá permanentemente atualizado e à disposição do Senhorio, ou de quem for por ele indicado, um inventário dos bens referidos no número anterior, bem como dos direitos que o Arrendatário adquira no decurso do contrato, que mencionará, nomeadamente, os ónus e encargos que sobre eles recaiam.
CLAÚSULA SEGUNDA
1.O prazo do contrato é de 10 (DEZ) anos, contados a partir da data da sua celebração.
2.Findo o prazo, o contrato pode ser renovado por períodos de 5 (CINCO) anos, até ao limite máximo de 30 (TRINTA) anos, salvo se as partes comunicarem por escrito à outra a oposição à renovação do contrato, até doze meses antes da data do seu termo inicial ou de cada renovação.
CLAÚSULA TERCEIRA
1.O Arrendatário compromete-se, face à Senhoria, como contrapartida pela fruição do Locado, a proceder à limpeza do próprio imóvel ora dado em arrendamento (artigo rústico-...70-Oliveira do Bairro), bem como do imóvel sito no ... (artigo rústico-...56-Oliveira do Bairro), da propriedade da ora Senhoria.
2.Só por comunicação escrita da Senhoria poderá ser alterado os termos do pagamento da renda.
CLAÚSULA QUARTA
Este contrato tem início na data 01/09/2009.
CLAÚSULA QUINTA
1.A Senhoria entrega o Locado ao Arrendatário na data da celebração do contrato.
2.O Arrendatário obriga-se a iniciar a exploração do Locado imediatamente após a entrega.
3.O Arrendatário obriga-se a obter e custear todos os atos necessários ao exercício da atividade no Locado, não sendo imputáveis ou oponíveis ao Senhorio as limitações, restrições, recusas ou efeitos desses atos, salvo se este lhes der causa.
4.O Arrendatário responsabiliza-se pela exploração do Locado de forma duradoura, permanente e em plenas condições de funcionamento e operacionalidade, ao longo de todo o período da duração do contrato, desempenhando a sua atividade de acordo com as exigências de um regular, contínuo e eficiente funcionamento dos serviços prestados no Locado, sob os melhores padrões de qualidade.
5,O Arrendatário responde, nos ternos da lei, por quaisquer prejuízos causados a terceiros no exercício das atividades no Locado.
CLAÚSULA SEXTA
Os direitos e os deveres do arrendatário são os decorrentes da legislação relativa ao arrendamento rural (Decreto-lei n.° 385/88, de 25 de Outubro, alterado pelo Decreto-Lei n.° 524/99, de 10 de Dezembro, bem como Decreto-Lei n.° 394/88, de 8 de Novembro).
CLAÚSULA SÉTIMA
No terreno de arrendamento não poderá ser edificada qualquer construção sem o prévio consentimento escrito do Primeiro Contratante.
CLAUSULA OITAVA
Não é permitido ao Arrendatário:
a) Ceder a sua cessão da posição contratual;
b) Proporcionar a outrem qualquer gozo do Locado;
c)Subarrendar ou comodatar o Locado;
d)Transmitir, trespassar, ceder, locar, sublocar ou comodatar qualquer estabelecimento instalado no Locado.
CLAÚSULA NONA
Em tudo o mais não previsto neste contrato, aplica-se a legislação do arrendamento rural em vigor.»
Que se mostra assinado por A. marido e pelo então Gerente da Insolvente A..., LDA., HH.
6) Consta dos autos documento que tem como endereço A... Lda e destinatário o A. marido datado de 20 de Abril de 2017, epigrafado Comunicação da transmissão da posição contratual em que se refere
«vimos pelo presente informar que o prédio rústico de um terreno composto por pinhal e mato sito em ..., na freguesia ..., concelho de oliveira do Bairro inscrito na matriz predial rústica ...70 descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...99, foi por nós vendido, passando a ser seu novo e legítimo proprietário EE (…). Consequentemente operou-se nos termos do disposto nos arts. 424º e seguintes e 1057º ambos do Código Civil, a transmissão da posição contratual que até aquela data era ocupada pela nossa Empresa A... Lda, no contrato e arrendamento que V. Exa. outorgou, pelo que a posição contratual de senhorio passou a (…) ser exercida a partir da presente data por EE. (…)informa que cessou assim a nossa posição de senhorio, passando esta a ser exercida por EE, considerando-se V.Exa notificado a contar da recepção da presente missiva».
7) A..., LDA, foi declarada insolvente no dia 18 de Julho de 2017, no âmbito do Processo n.º 1984/17.5T8AVR, que correu termos junto do Juízo de Comércio de Aveiro – Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro.
8) A presente acção foi proposta em 11 de Novembro de 2021.
Para além disso, foram considerados não provados os seguintes factos:
a) que o prédio dito em 1 encontra-se na fruição do autor há mais de 10 anos, ininterruptamente, dele extraindo todas as utilidades,
b) cultivando e colhendo os seus produtos, guardando, armazenando os alimentos destinados aos animais, nele permanecendo as suas cabras,
c) à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja e na ignorância de lesarem direitos ou interesses alheios,
d) Que ao longo dos últimos 12 anos, o autor tem vindo a efetuar plantações de hortas, milho,
e) limpando toda a zona circundante do terreno, fazendo com que estes atos melhorem e valorizem o estado do terreno.
f) O autor tem também colocado no referido terreno cabras da sua pertença para lá pastarem,animais que lá são alimentados e guardados, assim como as suas rações,feno,etc.
g) Após o envio da comunicação com o teor dito em 5 dos factos provados o senhorio informou o aqui autor de que o novo proprietário iria manter o contrato produzindo o mesmo todos os seus efeitos.
h) Aquando da proprositura da Acção dita em 3 e 4, os 1ºs RR sabiam os autores eram arrendatários do prédio rustico, sendo que disso não foi dado conhecimento àqueles autos.
i) Apenas no decurso mês de JUNHO de 2021 em dia incerto o A. tomou conhecimento através do senhorio/chamado EE a Oliveira do Bairro, de que ele já não era mais dono do prédio rústico dito em 1;
j) que aquele lhe solicitou que removesse e retirasse todos os objetos, pertences, ferramentas e plantações do mesmo
l) e que o contrato tinha cessado.
m) A presente ação obrigou os autores a despender de taxa de justiça, no valor de 102,00€ e uma caução na ordem dos 6.000,00€ e a sua tramitação implica a prestação de serviços forenses, os quais mobilizam mais de 35 horas de trabalho para a Advogada constituída, bem como a deslocação a Oliveira do Bairro para eventual Audiência Prévia e de Julgamento tendo de percorrer mais de 300Km ida e volta, o que acarreta para a Autora um custo não inferior a 3.000,00€, acrescido de IVA à taxa legal em vigor, considerando um valor horário de 120,00€, compatível com a praxe do foro e estilo da comarca.
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SOBRE A NULIDADE DA SENTENÇA.

Em primeiro lugar, os recorrentes invocam a nulidade da sentença recorrida com fundamento em ambiguidade de várias respostas negativas dadas à matéria de facto.
Pelo menos, é isso que transparece de alguns segmentos das conclusões, embora elas manifestem a falta de qualquer organização e, desde logo, não autonomizem a questão de nulidade, a qual, ao invés, vai sendo reiterada sem orientação perceptível e a propósito dos mais variados assuntos.
Em todo o caso, parece-nos que é a obscuridade da decisão que os AA. pretendem arguir nas conclusões 13, 17, 46 e 47, designadamente, quando referem, na segunda, “bem como na motivação e convicção, quanto aos factos não provados, não se encontra especificado as alienas a ) a f) ocorrendo alguma ambiguidade ou obscuridade que a torne ininteligível (artigo 615º, nº 1, al. c), do Código de Processo Civil)”.
A esse respeito, segundo o art. 615.º/1, al. c), do CPC, é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
De acordo com a jurisprudência superior, “a ambiguidade só relevará se vier a redundar em obscuridade, ou seja, se for tal que do respetivo texto ou contexto não se torne possível alcançar o sentido a atribuir ao passo da decisão que se reclama de ambíguo (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31/3/2023, processo 2759/17.7T8VNG, da autoria de Jorge Dias e acessível na base de dados da Dgsi em linha).
Trata-se, assim, de um vício assente na impossibilidade de compreensão do teor da decisão, para o normal declaratário, por não ser possível discernir qual o seu verdadeiro alcance ou porque as expressões usadas encerram diferentes significados e são equívocas.
No entanto, segundo pensamos, não se vislumbra qualquer obscuridade na decisão da matéria de facto, muito menos o afirmado carácter absurdo, como lhe chamam os recorrentes, de parte da sua fundamentação.
Com efeito, o tribunal de primeira instância limitou-se a julgar provados os factos relativos à outorga do contrato denominado de arrendamento rural, no ponto nº5, e a julgar não provados, nas alíneas a) a f), os factos atinentes à sua execução que os AA. haviam alegado na petição inicial.
Por outro lado, as expressões contrato e acordo são claramente empregues, naquela decisão, como sinónimos, em sintonia, aliás, com os seus significados na linguagem comum, não se compreendendo o motivo para que os recorrentes apelidem essa opção como um absurdo.
Improcedem, por isso, as referidas conclusões do recurso.
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Relativamente ao conhecimento da nulidade do contrato, parece-nos inteiramente destituída de sentido, salvo o devido respeito, a contradição que no recurso se aponta à decisão proferida por confronto com o teor do despacho saneador, na parte que declarou inexistirem nulidades (conclusões 39 e 40).
Como é óbvio, a referida declaração foi reportada às questões adjectivas ou de índole processual, ao passo que na sentença foi afirmada a nulidade do contrato no plano substantivo ou material, por conter, no seu entendimento, uma estipulação contrária à lei e à ordem pública.
Todavia, já assiste razão aos recorrentes, no plano ôntico, quando afirmam que a sentença recorrida conheceu a referida nulidade substantiva sem que ela alguma vez tivesse sido suscitada pelas partes e sem observar previamente o princípio do contraditório sobre a questão.
Como é sabido, nos termos do art. 3.º/3 do Código de Processo Civil, o juiz deve observar e fazer cumprir o contraditório ao longo de todo o processo, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
Ora, embora a nulidade traduza uma invalidade do negócio jurídico que o tribunal pode conhecer oficiosamente (art. 286.º do Código Civil), é evidente, porém, que o tribunal recorrido não acatou aquele comando legal relativo à exigência de contradição, pois decidiu que o contrato é nulo sem que a questão tivesse sido suscitada pelas partes nem sujeita a debate prévio.
Mais problemática, porém, é a questão de saber qual a consequência para a apontada falta de cumprimento do contraditório.
Uma orientação defende que se trata de uma nulidade processual, que como tal a parte deve suscitar autonomamente perante o tribunal onde ela foi cometida, e com respeito pelo prazo legal previsto nesse âmbito, só podendo suscitar a questão em via do recurso em face da decisão que venha, se for esse o caso, a indeferir a arguição.
O Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 3/5/2021, tirado no processo n.º 1250/20.9T8VIS.C1 (relator Moreira do Carmo), e que os recorrentes citam, insere-se precisamente nessa linha de entendimento, considerando que, sendo “proferida decisão-surpresa, com violação do princípio do contraditório, em desrespeito pelo estatuído no art. 3º, nº 3, do NCPC, incorre-se numa nulidade processual, nos termos do art. 195º, nº 1, do mesmo diploma, e não numa nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, do art. 615º, nº 1, c), do referido código”.
E isso porque, segundo entende, “uma coisa é a nulidade processual, por ex. a omissão de um acto que a lei prescreva, relacionada com um acto de sequência processual, e por isso um vício atinente à sua existência, outra bem diferente é uma nulidade da sentença ou despacho, e por isso um vício do conteúdo do acto, por ex. a omissão de pronúncia, um vício referente aos limites; tão pouco se confundindo a dita nulidade com um erro de julgamento, que se caracteriza por um erro de conteúdo”.
Paradoxalmente, no recurso cita-se o acórdão, mas não se adopta a opção por ele preconizada e, ao invés, aponta-se a inobservância do contraditório como geradora da nulidade da própria decisão, sem cuidar de, primeiramente, suscitar a questão junto do tribunal recorrido.
Uma segunda orientação, no entanto, preconiza que a inobservância do contraditório sobre questão essencial inquina de nulidade a própria sentença.
Sob esta perspectiva, defende-se a respeito das designadas decisões surpresa, i. é, que não tenham sido antecedidas do cumprimento do disposto no art. 3.º/3 do CPC, tal como em situações análogas de clara repercussão de irregularidades processuais na sentença, que “sempre que a nulidade processual apenas seja evidenciada pela própria decisão, o interessado (parte vencida) deve reagir mediante a interposição do recurso sustentado na nulidade da própria decisão, nos termos do art. 615.º, nº1, al. d)” (cfr. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7.ª ed., pp. 24-9).
Identicamente, a jurisprudência reconhece a nítida distinção entre as nulidades do procedimento e da sentença, pois as primeiras, “sendo actos de tramitação processual stricto sensu, que se situam a montante da decisão final, não se confundem com os actos ou omissões praticadas pelo tribunal, já a jusante, no âmbito do processo decisório e com este concomitantes, como integrando este, actos que tangem ao âmago da decisão, nulidades de conhecimento, de índole material decisória, que a lei adjectiva também considera e classifica como nulidades do julgamento ou da sentença”.
Todavia, irregularidades existem que “deixam de se inscrever no segmento de desvio do formalismo processual prescrito na lei, como questão de natureza procedimental ou processual”, para passar a configurar-se, isso sim, “como omissões ou vícios de natureza material ou substantiva, cometidos no próprio momento da decisão, corrompendo esta” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/10/2022, relator Nuno Ataíde das Neves, no processo nº9337/19.4T8LSB, acessível em texto integral na referida base de dados).
No mesmo sentido, decidiu o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11/7/2019 (tirado no processo nº4794/18.9T8OER e disponível na referida base de dados) que “a arguição da nulidade, nos termos dos artigos 199º, n.º 1 e 149º, n.º 1 do Código de Processo Civil, só é admissível quando a infracção processual não está, ainda que indirecta ou implicitamente, coberta por um qualquer despacho judicial; se há um despacho que pressuponha o acto viciado, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade cometida não é a arguição ou reclamação por nulidade, mas a impugnação do respectivo despacho pela interposição do competente recurso”.
Ora, sem prejuízo de a primeira opção traduzir uma via possível para a arguição da infracção ao cumprimento do contraditório, somos sensíveis à argumentação no sentido de que a verificação dessa omissão permite impugnar directamente a sentença na qual ela se revelou.
Desde logo, por ser a própria decisão que corporiza o incumprimento do disposto no art. 3.º/3 do CPC, por conter a apreciação de uma questão decisiva para o desfecho do litígio sem observância do contraditório prévio.
Para além disso, porque a referida disposição legal pode perfeitamente ser enquadrada com o sentido de vedar ao tribunal o conhecimento de questões sobre as quais não tenha sido cumprido aquele princípio e, assim, estabelecendo uma limitação legal ao poder de apreciação judicial.
De modo que, nessas circunstâncias, ao conhecer questão que lhe estava vedada, a sentença passa, ela própria, a cair na alçada da nulidade prevista no art. 615.º/1, al. d), do CPC, na medida em que aprecia questões de que não podia tomar conhecimento.
Em terceiro lugar, pensamos que forçar o interessado à via única de arguir autonomamente a nulidade perante o tribunal a quo, e só depois de indeferida essa pretensão recorrer, para além do formalismo excessivo, teria por efeito a criação de obstáculos processuais espúrios ao reconhecimento da ilicitude de uma actuação que a lei reputa indiscutivelmente de inadmissível.
Contendendo igualmente com as exigências da economia e da celeridade processuais e mostrando-se ainda dificultada mercê da circunstância de, com a decisão final, o tribunal a quo ver esgotado o seu poder jurisdicional sobre as questões relativas ao mérito da causa, nos termos do art. 613.º do CPC e sem prejuízo do disposto no art. 617.º do mesmo diploma.
Propendemos, por isso, a aceitar a admissibilidade da arguição da infracção ao contraditório no âmbito da nulidade da própria sentença, quando apenas nela o vício seja evidenciado.
Ora, no caso dos autos, é patente que aquele princípio não foi observado pelo tribunal recorrido, certo que, vistos os articulados, não existe qualquer alegação de onde se extraia a arguição da invalidade ou da nulidade do contrato e que ali foi conhecida sem prévio debate acerca da sua verificação.
Vale por dizer, pois, muito simplesmente, que ao julgar nulo o contrato em causa nos autos, como pressuposto indispensável para o juízo de improcedência da acção, o tribunal recorrido incorreu numa verdadeira decisão surpresa e, como tal, inquinada de nulidade, nos termos estabelecidos no art. 615.º/1, al. d), do Código de Processo Civil.
O que implica a procedência das conclusões 26 a 46 do recurso.
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SOBRE O MÉRITO DO PEDIDO DOS RECORRENTES

Isso não se confunde, todavia, com a procedência do recurso.
Com efeito, de acordo com o disposto no art. 665.º/1 do CPC, ainda que declare nula a decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer do objeto da apelação.
Daqui resulta claramente que, apesar do reconhecimento da nulidade da sentença recorrida, o Tribunal da Relação deve proferir decisão de mérito ou de fundo, desde que o processo o permita, face aos elementos que dele constem e das posições assumidas pelas partes, e contanto que a questão esteja incluída no objecto do recurso.
E estes requisitos estão verificados no caso em apreço, uma vez que as partes já dispuseram, na sequência da decisão recorrida, de oportunidade para debater a afirmada nulidade do contrato, por um lado e, por outro, porque o objecto da apelação, como acima se viu, abrange a averiguação da questão do mérito das pretensões deduzidas pelos recorrentes.
O que passa, em primeiro lugar, pela apreciação da impugnação da matéria de facto e, depois, pela subsunção jurídica da matéria que permaneça ou seja ex novo julgada demonstrada.
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SOBRE A IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

Como se sabe, a admissibilidade do recurso em matéria de facto depende do cumprimento de alguns ónus.
De acordo com o disposto no artigo 640º/1 do Código de Processo Civil, é imposto ao recorrente que especifique:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Enquanto o número 2 prevê que quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
Salvo o devido respeito, afigura-se-nos que os recorrentes não deram o devido cumprimento às referidas exigências.
É certo que, segundo se crê, estão suficientemente identificados os factos de cuja resposta negativa eles discordam, como resulta da conclusão 54: não se pode aceitar que tenham sido dado como não provado, nomeadamente, os factos de a) a c) e e) a f).
Por outro lado, não obstante a impugnação em conjunto de vários factos, a matéria impugnada está indissociavelmente ligada entre si, o que torna aceitável a discordância manifestada globalmente.
Neste sentido, por exemplo, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça que “tendo em conta os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade ínsitos no conceito de processo equitativo (artigo 20.º, n.º 4, da CRP), nada obsta a que a impugnação da matéria de facto seja efetuada por “blocos de factos”, quando os pontos integrantes de cada um desses blocos apresentem entre si evidente conexão e, para além disso - tendo em conta as circunstâncias do caso concreto, nomeadamente, o número de factos impugnados e a extensão e conexão dos meios de prova - o conteúdo da impugnação seja perfeitamente compreensível pela parte contrária e pelo tribunal” (cfr. Acórdão de 1/6/2022, relatado por Mário Belo Morgado, no processo nº1104/18.9T8LMG, e disponível na base de dados acima identificada).
O mesmo já não se verifica, contudo, segundo pensamos, em relação à segunda exigência acima indicada, aquela que requer a especificação dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida (art. 640.º/1, al. b), do CPC).
Na verdade, como resulta das conclusões acima citadas, tal como da alegação do recurso, a divergência factual dos recorrentes não é fundamentada em qualquer análise crítica da prova e da decisão recorrida.
São ilustrativas, neste sentido, as conclusões 7 e 8 dos recorrentes, nas quais afirmam, de forma perfeitamente genérica, que a impugnação da decisão da matéria de facto tem por base a globalidade da prova constante dos autos, designadamente da prova documental e os depoimentos prestados em audiência de julgamento que foram gravados.
Para concluir que o tribunal a quo teve um erro de raciocínio lógico em que decisão emitida é contrária à que seria imposta pelos fundamentos de facto ou de direito de que o mesmo se serviu ao proferi-la.
Para além disso, estas referências de teor indeterminado e sem idónea concretização são simplesmente replicadas, sempre sem a companhia de um juízo crítico sobre os concretos factos não provados, nas conclusões seguintes, como se vê nos seguintes excertos: tal decisão não retrata, de modo fiel, a verdadeira pureza dos princípios processuais (conclusão 16), existe total desconhecimento de todos os factos alegados em sede de julgamento (conclusão 29), o Tribunal a quo aplicou erradamente o princípio da livre apreciação da prova, usando-o de forma discricionária, proferindo uma decisão que não se baseia em critérios objetivos (conclusão 34) e em relação aos meios de prova quer documental, quer testemunhal apresentados neste tribunal, carece de alguma dúvida (conclusão 46).
Repentinamente, porém, na amálgama de conclusões com vários sentidos, surge uma especificação de passagem da gravação de depoimentos: E tanto, assim, o é que se poderá verificar nos depoimentos das testemunhas transcritos, de II Início: 09:57 Fim: 10.08 Duração: 00:11:02, JJ Início: 10:08 Fim: 10:22 Duração: 00:13:40, DEPOIMENTO DA TESTEMUNHA KK Início: 10:25 Fim: 10:41 Duração: 00:16:05, DEPOIMENTO DA TESTEMUNHA LL Início: 10:41 Fim: 10:53 Duração: 00:11:38, DEPOIMENTO DA TESTEMUNHA MM Início: 11.05 Fim: 11:16 Duração: 00:10:57, DEPOIMENTO DA TESTEMUNHA AA, Início: 11:16 Fim: 12:05 Duração: 00:49.00, DEPOIMENTO DA TESTEMUNHA DD Início: 14:04 Fim: 14:16 Duração: 00:11:48.
É o que consta na conclusão 53; no entanto, nada se indica de concreto sobre esses vários depoimentos e, ao invés, a referência inicial, “tanto assim o é”, que convoca o que foi afirmado na conclusão anterior, reporta-se à afirmação, abstracta e de teor jurídico, que não factual, de que “o Tribunal apenas tomou notas em meras motivação de convicções, salvo o devido respeito, no modesto entendimento dos Apelantes, não existe fundamento para que se considere o contrato/acordo nulo e improcedente a ação de preferência do contrato de arrendamento” (conclusão 52).
O mesmo ocorrendo relativamente aos documentos, os quais, no entendimento manifestado no recurso, evidenciariam divergências face aos factos que, depois, porém, não são minimamente concretizadas.
Vislumbra-se, é certo, a dado passo, alguma concretização, primeiro na conclusão 50: Sendo certo que, a testemunha JJ tem um discurso cuidoso e real dos factos por ser vizinho dos AA. complementando o uso que o A. homem dava ao terreno agrícola e como aquilo está limpo.
E depois na conclusão 56: Nomeadamente quanto ao uso dado ao terreno, pois apesar de ser sido feito prova, através do depoimento da testemunha JJ, que o Autor apascentava cabras o tribunal a quo refere que que nenhuma prova foi feita quanto á utilização do terreno para cultura pastagens, guarda de animais.
A verdade, todavia, é que não existe aqui, verdadeiramente, uma análise crítica da prova, nem da decisão recorrida.
Não se enfrentam, designadamente, os principais fundamentos adoptados na motivação da decisão de facto do tribunal de primeira instância sobre a matéria não provada e, em especial, como mais importantes:
· “quanto ao acordo e seu desenvolvimento e utilização do prédio, anote-se que o documento foi impugnado pelos RR, sendo certo que apenas o A. marido em declarações de parte sustentou o seu conteúdo; porém e desde logo deu conta de que o que assinou foi para ter «tudo legal» para instalação do estaleiro e materiais para construção da sua casa, que fica ao lado”;
· “a intenção era a Sociedade construir, o que desde logo deixa a fundada dúvida sobre a lógica de firmar um acordo, por dez anos, quando o A. apenas pretendia ter o estaleiro (provisório) «legal» e a Sociedade pretendia edificar no mesmo”;
· “o referido contrato nunca foi comunicado fiscalmente (conforme ofício [13169948] do Serviço de Finanças)”;
· “Quanto ao uso dado ao terreno, embora afirmasse que está limpo e que o A. ali apascentava cabras, certo é que não referiu ali ter visto quaisquer culturas (concedendo que parte do terreno está coberto de brita) mais dando conta de que os animais estão normalmente dentro do terreno da casa do A., que está vedado”.
Em suma, toda a alegação dos recorrentes, salvo o devido respeito, está muito afastada do caminho exigido para o preenchimento, na impugnação de facto, do requisito previsto na al. b) do art. 640.º/1 do CPC.
A propósito desse comando legal, na verdade, pode dizer-se que constitui manifestação da ideia de que a impugnação traduz um pedido de reapreciação dos factos que deve transmitir de imediato algum nível de viabilidade, suficiente para justificar uma nova análise em segunda instância, que pode inclusivamente abranger todas as provas ou, dito noutro termos, que não mereça um juízo de indeferimento liminar.
E não tem a virtualidade de transmitir a ideia de viabilidade mínima a impugnação que, no essencial, está sustentada em meios de prova indicados sem qualquer especificação, ou quanto aos quais são imputadas divergências que não são concretizadas e nas quais não se enfrentam criticamente as circunstâncias concretas que motivaram a decisão recorrida.
Em sentido próximo, aliás, a doutrina vem preconizando que as exigências previstas no art. 640.º do CPC “devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor”, como “decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo” (cfr. Abrantes Geraldes, Ob. cit., pp. 201-2, que também refere a necessidade de cumprimento dos indicados ónus para que a impugnação “ultrapasse a fase liminar”).
Verificando-se, pois, tal como sucedeu em casos idênticos apreciados na jurisprudência, “uma ausência de argumentação quanto à indicação dos meios probatórios que implicariam uma decisão diferente. Os recorrentes não cumpriram a tarefa de esclarecer as razões pelas quais, do seu ponto de vista, os concretos factos impugnados mereciam uma resposta diversa, estabelecendo a correlação dos meios de prova que permitiriam conduzir ao resultado pretendido. Os recorrentes limitaram-se a apresentar considerações genéricas sobre a prova, intercalando o direito com os factos, mas de uma forma ineficaz” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/5/2024, relatado por Maria do Rosário Gonçalves, no processo nº4770/21.4T8VNF e disponível em texto integral em www.dgsi.pt).
Da mesma forma, o Acórdão desta Relação do Porto de 15/11/2018 (tirado no processo nº2341/15.3T8VLG.P1, relator Miguel Baldaia de Morais, disponível na citada base de dados), determinou que “o recorrente que impugne a decisão da matéria de facto terá de alegar, especificar e esclarecer o porquê da discordância, isto é, como e qual a razão porque é que determinados meios probatórios indicados e especificados contrariam/infirmam a conclusão factual do Tribunal de 1ª instância”.
Todavia, os referidos excertos, para além de excepcionais no vasto âmbito de referências conclusivas e genéricas, não evidenciam qualquer apreciação crítica e fundamentada sobre a factualidade e a motivação da primeira instância, afastando- -se, por isso, da exigência prevista na alínea b) do nº1 do art. 640º do CPC e, sobretudo, da especificação dos motivos que impunham – e não apenas permitam – decisão diversa.
Em consequência, como prevê no nº1 do do art. 640.º do CPC, é forçoso rejeitar o recurso quanto à impugnação da matéria de facto, o que se decide.
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SOBRE A NULIDADE DO CONTRATO

Como acima se disse, estão agora reunidas todas as condições para, nesta segunda instância, apreciar a questão da nulidade do contrato, sobre a qual as partes já dispuseram de ensejo para debater e em cumprimento do disposto no art. 665.º/1 do Código de Processo Civil.
A decisão recorrida vislumbrou a existência da invalidade mais grave do negócio jurídico considerando, num momento inicial, o teor da cláusula terceira do contrato, na qual os outorgantes consignaram que o A. se compromete, face à senhoria, “como contrapartida pela fruição do Locado, a proceder à limpeza do próprio imóvel ora dado em arrendamento (artigo rústico-...70-Oliveira do Bairro), bem como do imóvel sito no ... (artigo rústico-...56-Oliveira do Bairro), da propriedade da ora Senhoria”.
Nessa medida, a cláusula contratual estipulou como renda, não dinheiro, somente, ou dinheiro e géneros, simultaneamente, mas antes trabalhos de limpeza do prédio arrendado e de outro, também propriedade da senhoria.
O que, como acertadamente foi ali observado, viola o preceituado no art. 7.º/1 do DL nº385/88, de 25 de Outubro, segundo o qual, a renda será sempre estipulada em dinheiro, a menos que as partes a fixem, expressamente, em géneros e dinheiro.
Nesse pressuposto, e com apoio no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26 de Abril de 2004 (relativo ao processo 0451748, que localizamos na base de dados da DGSI em linha, apesar de não estar identificado na primeira instância), procedeu a uma equiparação do contrato dos autos com a parceria agrícola para, de seguida, com tal fundamento, decretar a nulidade da referida cláusula e de todo o contrato.
Em função da análise do acordo dos autos e do regime jurídico aplicável ao arrendamento rural, porém, não acompanhamos esse entendimento.
Importa destacar, em primeiro lugar, que o contrato celebrado entre o A. e a sociedade A..., Lda., como resulta do facto provado nº5, está datado de 1/9/2009.
Para além disso, ficou sujeito ao prazo de dez anos, renovável por períodos de cinco e com o limite máximo de trinta, e incidiu sobre o prédio rústico sito no lugar ... freguesia e concelho de Oliveira do Bairro, composto por pinhal e mato, e inscrito na matriz sob o artigo ...70º.
Por outro lado, o arrendamento rural, inicialmente regulado no Código Civil (arts. 1064.º e segs.) e, depois, no DL nº201/75, de 15 de Abril, passou a estar subordinado ao DL nº385/88, de 25 de Outubro, que viria a ser revogado (art. 43.º) e substituído pelo DL n.º294/2009, de 13 de Outubro.
Este último diploma entrou em vigor 90 dias após a data da sua publicação (art. 44.º/1) e, portanto, a 13/1/2010.
Para além disso, estipulou que “aos contratos de arrendamento, existentes à data da entrada em vigor do presente decreto-lei, aplica-se o regime nele prescrito, de acordo com os seguintes princípios:
a) O novo regime apenas se aplica aos contratos existentes a partir do fim do prazo do contrato, ou da sua renovação, em curso;
b) O novo regime não se aplica aos processos pendentes em juízo que, à data da sua entrada em vigor, já tenham sido objecto de decisão em 1.ª instância, ainda que não transitada em julgado, salvo quanto a normas de natureza interpretativa” (art. 39.º/2).
O que significa, vertendo ao caso dos autos, que o contrato assinado pelas partes, face à data da sua outorga, a 1/9/2009, ficou subordinado ao DL nº385/88, de 25 de Outubro.
E que, com a primeira renovação, após os dez anos iniciais e, portanto, a 1/9/2019, passou a sujeitar-se ao DL nº294/2009, de 13 de Outubro.
Neste quadro, parece-nos forçada a equiparação do contrato dos autos com a parceria agrícola e que, como há muito está consolidado, representa o “contrato mediante o qual uma pessoa cede a outra algum prédio rústico, para ser cultivado por quem o recebe, mediante o pagamento de uma quota de frutos do modo que entre si acordarem” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 1/7/2014, processo nº 978/13.4TBCVL-A, relatora Sílvia Pires, disponível no endereço electrónico dgsi.pt).
Diversamente, no caso em apreço, não foi acordada qualquer repartição dos frutos produzidos como contraprestação a cargo do arrendatário, mas a prestação de serviços de limpeza em dois terrenos.
Em acréscimo, não se compreende, salvo o devido respeito por outro juízo, motivo legítimo para considerar que a proibição de semelhante repartição seja “mais melindrosa”, como se referiu na decisão recorrida, do que a situação dos autos, “porque a estipulação feita era relativa aos frutos do prédio, o que convocava a figura do contrato de parceria”.
Na verdade, foi apenas o contrato de parceria agrícola que, no dizer do Acórdão de 26/4/2004, “as leis, após 25 de Abril de 1974 quiseram banir, por razões de justiça social, logo de interesse e ordem pública”.
Nada evidenciando que o mesmo desígnio tivesse dominado o legislador relativamente ao acordo que preveja como contrapartida a cargo do locatário a prestação de serviços de limpeza, e para o qual não existe qualquer base normativa para entender que as leis pretenderam banir.
Mais: afigura-se que a abolição imediata da parceria agrícola traduz uma afirmação que excede o pensamento do legislador.
Como, desde logo, expressou no art. 34.º do DL nº385/88, segundo o qual “a parceria agrícola manter-se-á até que o Governo, por decreto-lei, estabeleça as normas transitórias adequadas à sua efectiva extinção”.
E que reiterou no art. 36.º/2 e 3 do DL n.º294/2009, ao estabelecer que “os contratos de parceria e contratos mistos de arrendamento e parceria existentes à data da entrada em vigor do presente decreto-lei devem ser convertidos em contratos de arrendamento rural nos 30 dias que antecedem a sua renovação”, com expressa indicação de que no “caso de não ter sido convencionada qualquer duração para os contratos de parceria e contratos mistos de arrendamento e parceria existentes à data de entrada em vigor do presente decreto-lei, os mesmos permanecem válidos até à cessação do contrato, por acordo entre os parceiros, ou por iniciativa e vontade expressa, ou morte do parceiro cultivador” (destacado nosso).
Deste modo, à luz do diploma legal de 1998, aplicável ao nosso contrato, poderia dizer-se, como dizia a doutrina, que embora “os contratos de parceria agrícola começaram por ser extintos, através da disposição radical contida no nº2 do artigo 44.º do Decreto-Lei nº201/75, de 15 de Abril, que mandou converter obrigatoriamente todos os contratos de parceria em contratos de arrendamento”, e “apesar do anúncio constitucional da abolição da figura (…) não deixa este preceito [o art. 34.º do DL nº385/88] de ressalvar a plena eficácia, com o regime jurídico que advém do artigo anterior, dos contratos de parceria agrícola existentes, até à publicação da nova legislação transitória que, com vista à futura extinção definitiva da espécie, ponha termo a alguns ou a todos os contratos existentes” (cfr. P. Lima e A. Varela, Código Civil Anotado, Volume II, 4.ª ed., p. 470).
Todavia, se este entendimento poderia parecer circunscrito às parcerias agrícolas existentes aquando da entrada em vigor do DL nº385/88, a verdade é que este diploma não consagrou a proibição da celebração de semelhante contrato durante a sua vigência e que apenas veio a surgir no art. 36.º/1 do DL nº294/2009, de 13 de Outubro.
Com efeito, somente nesse preceito legal foi determinado, naturalmente para produzir efeitos desde o início de vigência do novo diploma, que “é proibida a celebração de contratos de parceria e de contratos mistos de arrendamento e parceria”.
Paralelamente, ao dispor que “os contratos de parceria e contratos mistos de arrendamento e parceria existentes à data da entrada em vigor do presente decreto-lei devem ser convertidos em contratos de arrendamento rural nos 30 dias que antecedem a sua renovação e que, não sendo “convencionada qualquer duração para os contratos de parceria e contratos mistos de arrendamento e parceria existentes à data de entrada em vigor do presente decreto-lei, os mesmos permanecem válidos até à cessação do contrato, por acordo entre os parceiros, ou por iniciativa e vontade expressa, ou morte do parceiro cultivador”, o art. 36.º/2 e 3 do DL nº294/2009 acabou por preservar a validade de todos os indicados contratos celebrados anteriormente à entrada em vigor desse diploma, incluindo aqueles que, como sucedeu no caso dos autos, foram outorgados em plena vigência do DL nº385/88.
Assim sendo, cumpre questionar sobre qual a consequência legal para a inobservância do disposto no art. 7.º/1 deste diploma.
Na realidade, esse preceito legal é peremptório no sentido de que “a renda será sempre estipulada em dinheiro, a menos que as partes a fixem expressamente em géneros e em dinheiro simultaneamente”, sem estabelecer, todavia, nos restantes números, os efeitos para a sua inobservância.
Assim sendo, parece justificado concluir que a estipulação de uma renda diversa daquela, a cargo do locatário, tem por resultado, muito simplesmente, afastar o contrato que a preveja, como sucede com o acordo em causa nestes autos, do âmbito da legislação relativa ao arrendamento rural prevista no DL nº385/88, de 25 de Outubro.
Com efeito, sendo forçoso para a aplicação deste diploma que a renda seja sempre estipulada em dinheiro, ou simultaneamente em dinheiro e em géneros, se o contrato estabelecer outra forma de contrapartida a cargo do locatário, deixa de estar subordinado às regras do referido diploma.
No mesmo sentido, depõe a circunstância de semelhante acordo, porque envolve a coexistência de cláusulas próprias de várias modalidades contratuais, desde a locação até à prestação de serviços, configurar no plano jurídico um contrato atípico ou inominado.
Contrato atípico que, todavia, decisivamente se aparta do arrendamento rural e do seu regime, mesmo incluindo componentes da locação, como sucede, aliás, de acordo com a doutrina, com “todas as demais locações de prédios rústicos, nomeadamente as que, não visando fins produtivos, tenham por objecto parques, jardins, campos desportivos, coutos de caça, pastagens, etc.” (cfr. P. Lima e A. Varela, Ob. cit., p. 409).
Os quais, até ao NRAU, se regiam pelo regime previsto no art. 6.º/1 do RAU, aprovado pelo DL n.º321-B/90, de 15 de Outubro, segundo o qual, “aos arrendamentos rústicos não sujeitos a regimes especiais e aos arrendamentos e subarrendamentos referidos nas alíneas a) a e) do n.º 2 do artigo anterior aplica--se o regime geral da locação civil, bem como o disposto nos artigos 2.º a 4.º, 19.º a 21.º, 44.º a 46.º, 74.º a 76.º e 83.º a 85.º, 88.º e 89.º do presente diploma, com as devidas adaptações”.
Algo que, sem dúvida, afastava do contrato a preferência de que poderia beneficiar o locatário, certo que aquele direito estava previsto no art. 28.º do DL nº385/88 e nos arts. 47.º e segs. do RAU e que, como resulta do acima exposto, aqui são inaplicáveis.
Para além disso, como resulta do disposto nos arts. 1022.º e segs. do CC, o regime geral da locação civil, a que simplesmente se sujeitam os arrendamentos rústicos sem regime especial após o NRAU de 2006, não confere ao locatário direito de preferência no caso de venda do bem que constitua seu objecto.
E a idêntico resultado, no sentido de arredar o direito preferência do caso dos autos, se chega considerando que, como tem destacado a jurisprudência, “o regime aplicável aos contratos atípicos deve ser encontrado, sucessivamente, pelas estipulações das partes, pela aplicação analógica das disposições relativas a contratos afins e pelas regras gerais do cumprimento das obrigações” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23/9/2021, processo 55/19.4T8VNG.P1, relator Paulo Duarte Teixeira, disponível em www.dgis.pt).
Ora, atenta a sua natureza excepcional, aos direitos legais de preferência está afastada a aplicação analógica para os contratos atípicos, mercê do disposto no art. 11.º do Código Civil.
Em suma, a qualificação jurídica adequada para o acordo outorgado entre A. e a sociedade A..., Lda., a 1/9/2009, como contrato atípico com componentes da locação geral e da prestação de serviços, impede o reconhecimento ao primeiro do direito de preferência que veio invocar na presente acção.
O que traduz mera consequência, não da nulidade do contrato, mas da circunstância de não lhe ser aplicável o direito de preferência previsto nos arts. 28.º do DL nº385/88 e 47.º e segs. do RAU ou em qualquer outro segmento legal.
Nem se diga, para contrariar o exposto, que os outorgantes do contrato de 1/9/2009 quiseram subordina-lo ao regime previsto no DL nº385/88, visto que, na sua cláusula 6.ª, ajustaram que os direitos e os deveres do arrendatário são os decorrentes da legislação relativa ao arrendamento rural, desde logo no Decreto-lei n°385/88, de 25 de Outubro.
Para além disso, referem-se sistematicamente a arrendamento rural.
A verdade, porém, é que, por um lado, o nomen juris dado pelos contraentes não vincula o tribunal na interpretação do contrato, como, aliás, desde logo, os recorrentes reconhecem, quando referem, acertadamente por sinal, que para se apurar se estamos em presença de um contrato de arrendamento ou de outro qualquer, haverá que averiguar, em cada caso, qual a vontade das partes, para depois se ver que tipo de contrato se ajusta ao acordo que elas quiseram realizar, pois a classificação dos contratos não depende da designação que elas lhe dão, sendo antes a sua qualificação jurídica matéria de direito e não meramente de facto (conclusão 67).
Por outro lado, não se pode confundir, como é óbvio, o teor da referida cláusula 6.ª do contrato dos autos com a estipulação negocial de um direito de preferência, sendo certo ainda que, mesmo que tal fosse possível, a convenção sempre cederia perante os direitos legais de preferência, como aquele que beneficiou os RR., nos termos conjugados dos arts. 422.º e 1380.º do CC.
Para além do exposto, outro fundamento concorre, segundo pensamos, para arredar o direito de preferência, a que alude o art. 28.º do DL n°385/88, de 25 de Outubro, da esfera jurídica dos AA.
Como acima se disse, à data da celebração do contrato invocado na petição inicial, estava em vigor o referido diploma que, no seu art. 1.º, estabelecia que “a locação de prédios rústicos para fins de exploração agrícola ou pecuária, nas condições de uma regular utilização, denomina-se arrendamento rural”.
Ora, esta noção legal, em especial o segmento “nas condições de uma regular utilização”, evidenciava a preocupação do legislador, em primeiro lugar, “de excluir do âmbito do arrendamento rural, como se esclarece no parecer da Câmara Corporativa com o nº41, de 6 de Abril de 1961, os arrendamentos que, sem continuidade, se destinem à exploração fortuita de culturas” (cfr. P. Lima e A. Varela, Ob. cit., pp. 409-410).
Mas também, num plano equivalente, embora em específico para a atribuição do direito de preferência, no art. 28.º, “mais do que a livre e pacífica exploração da terra”, que “passou a interessar ao legislador, do ponto de vista económico-social, fomentar o acesso dos reais cultivadores à propriedade da terra, valorizando e estimulando os elementos da população que melhor podem incrementar o progresso local” (Ob. cit., p. 463).
Porém, no caso dos autos, embora a tenham alegado, os AA. não lograram fazer prova da efectiva utilização do terreno em causa para o desenvolvimento de uma actividade agrícola e pecuária e, portanto, da qualidade de autênticos cultivadores da terra merecedores do acesso à sua propriedade.
Falhando, por isso, na demonstração do requisito legal, vigente à data da celebração do contrato, e indispensável para a sua qualificação, à época, como arrendamento rural, do emprego do imóvel entregue “nas condições de uma regular utilização”.
Aliás, a exigência de que o candidato à preferência, por efeito da outorga de arrendamento rural, demonstre, para garantir o sucesso da sua pretensão, a exploração efectiva do terreno, que no caso os AA. falharam, está em sintonia com a imposição, consagrada no art. 28.º/1 do DL n°385/88, de 25 de Outubro, de que o contrato tenha pelo menos três anos de vigência para que o locatário seja titular de semelhante direito.
E igualmente com a necessidade, estabelecida no nº3 do referido artigo, de que o beneficiário da preferência, após o seu exercício, tenha de cultivar o prédio directamente durante cinco anos, como seu proprietário, sob cominação, entre o mais, de perder a propriedade a favor do preterido com o exercício da preferência, nos termos do nº4 daquele preceito legal.
Assim, mais este motivo, agora respeitante à falta de prova de uma parte da causa de pedir, arreda os AA. do disposto no art. 28.º do DL n°385/88.
É certo que, em 2010, o referido diploma foi revogado e substituído pelo DL nº294/2009, de 13 de Outubro, que passou a contemplar uma noção mais ampla de arrendamento rural, definindo-a simplesmente como “a locação, total ou parcial, de prédios rústicos para fins agrícolas, florestais, ou outras actividades de produção de bens ou serviços associadas à agricultura, à pecuária ou à floresta” (art. 2.º/1).
Todavia, o novo regime legal manteve o requisito da vigência do contrato pelo período mínimo de três anos, e que como vimos tem ínsita a utilização efectiva do terreno, para a atribuição do direito de preferência, no art. 31.º/2, tal como salvaguardou a obrigação de exploração agrícola do prédio, nos cinco anos posteriores ao exercício daquele direito, e a sanção já prevista para o seu incumprimento, de acordo com os nº4 e 5 da referida norma legal.
É caso para dizer, por isso, que mesmo ao abrigo do diploma legal de 2009, aos AA. não poderia ser reconhecido o direito de preferência que invocaram em juízo, por não terem demonstrado qualquer utilização do terreno a que respeita o contrato em causa nos autos.
Outras circunstâncias, ademais, poderiam ser invocadas com o sentido de suscitar a dúvida fundada sobre o verdadeiro interesse dos AA. na aquisição do referido terreno e, desde logo, a circunstância de nada terem feito quando, em Abril de 2017, lhes foi comunicado que o prédio fora alienado pela sociedade locadora a EE (facto nº6).
E para, muito estranhamente, apenas terem reagido com o exercício do invocado direito de preferência quando, após saberem que o novo senhorio não era mais o proprietário, em 2021 terem consultado o processo judicial intentado pelos RR. para a aquisição do terreno, como os AA. reconheceram no articulado de resposta à contestação (arts. 9 e 12).
Sucede, porém, que essas circunstâncias perdem relevância mercê da ausência dos requisitos para o exercício do direito de preferência pelos AA., atento o acima exposto, quer face ao disposto no art. 28.º do DL n°385/88, quer ao abrigo do preceituado no art. 31.º do DL nº294/2009.
E mesmo que, ao arrepio de tudo o que se fundamentou, fosse de entender que à luz do diploma de 2009, pela maior abrangência que concedeu à definição legal de arrendamento rural, os AA. já reuniam os requisitos para candidatar-se ao exercício da preferência que beneficia o arrendatário, é certo que igual juízo de improcedência teria de impor-se quanto ao mérito do seu pedido.
Em primeiro lugar, por força das regras gerais de aplicação da lei no tempo, de acordo com o disposto no art. 12.º do Código Civil, ao determinar que “a lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular” (nº1), acrescentando que “quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas, quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor” (nº2).
Ora, conforme tem sido pacificamente entendido, na interpretação dessa norma, e tal como sucede relativamente à forma do contrato (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 4/5/2022, processo 3448/19.3T8PNF.P1, da autoria de Rodrigues Pires e acessível na citada base de dados), é pela lei vigente ao tempo em que o negócio foi celebrado que se resolve a questão “de saber se determinado negócio jurídico deu origem a um direito real de preferência” (cfr. P. Lima e A. Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª ed., p. 61).
Em segundo lugar, mercê das regras especiais de aplicação da lei no tempo estabelecidas no referido DL nº294/2009, de 13 de Outubro.
Com efeito, de acordo com o disposto no art. 39.º/2 deste diploma, aos contratos de arrendamento existentes à data da entrada em vigor do presente decreto-lei, aplica-se o regime nele prescrito, mas o novo regime apenas é aplicável aos contratos existentes a partir do fim do prazo do contrato, ou da sua renovação em curso.
No caso dos autos, a renovação ocorreu dez anos após a celebração do contrato, ou seja, em 1/9/2019, data em que, mercê do referido art. 39.º/2, o contrato em apreço passou a estar sob a alçada temporal do DL nº294/2009.
Deste modo, mesmo que desse diploma legal tivesse resultado a atribuição aos AA., ex novo, do reclamado direito de preferência, e como a presente acção deu entrada a 11/11/2021, não estavam ainda decorridos os três anos de posterior vigência do contrato, ao abrigo da nova lei, imprescindíveis para que, nos termos do art. 31.º, aqueles validamente exercessem o indicado direito.

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DECISÃO:
Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso, sem prejuízo do reconhecimento da nulidade da sentença recorrida e, ainda que com diversa fundamentação, confirma-se a decisão que absolveu os RR. do pedido.

Custas pelos AA., atento o seu decaimento (art. 527.º do CPC).

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SUMÁRIO
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(o texto desta decisão não segue o Novo Acordo Ortográfico)








Porto, d. s. (12/05/2025)

Nuno Marcelo Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo
Mendes Coelho
Carla FragaTorres