I - O contrato-promessa cria apenas obrigação de contratar, ou, mais concretamente, a obrigação de emitir a declaração de vontade correspondente ao contrato prometido (artigo 410.º do C.Civil).
II - A tradito rei do estabelecimento comercial prometido trespassar, que não implicou a transmissão do contrato de arrendamento que se provou ser elemento integrante daquele estabelecimento, visou apenas permitir apenas ao promitente trespassário a sua exploração, antes da celebração do contrato prometido, nos termos acordados no contrato promessa.
III - Não tendo sido celebrado o contrato definitivo de trespasse, e não tendo por isso, ocorrido a transmissão do direito de propriedade do estabelecimento comercial para o promitente trespassário, não pode o promitente trespassante vir exigir daquele o pagamento da totalidade do preço do estabelecimento comercial.
Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto-Juízo Central Cível do Porto - Juiz 2
Juíza Desembargadora Relatora:
Alexandra Pelayo
Juízas Desembargadoras Adjuntas:
Márcia Portela
Maria da Luz Seabra
SUMÁRIO:
………………………………
………………………………
………………………………
Acordam as Juízas que compõem este Tribunal da Relação:
I-RELATÓRIO:
A..., Unipessoal, Lda., com sede na Rua ..., ... Porto, veio intentar esta acção declarativa sob a forma de processo comum contra AA e contra B..., Lda. com sede na Rua ..., ... Porto, todos com os demais sinais dos autos, tendo formulado o seguinte pedido:
“Nestes termos e nos melhores de Direito, deverá a presente acção ser julgada procedente, por provada, condenando-se os RR. solidariamente ao pagamento da quantia de 94.000,00 € (noventa e quatro mil euros), acrescida de juros de mora nos termos do artigo 102º, n.º3 do Código Comercial e até efetivo e integral pagamento e que neste momento montam a 17.166,30 € (dezassete mil, cento e sessenta e seis euros e trinta cêntimos) ou, caso assim não se considere, aos respetivos juros civis desde aquela data até efetivo e integral pagamento da dívida.”
Para tanto e em suma alegou que celebrou com o primeiro réu um contrato promessa de trespasse de estabelecimento comercial, que teve por objeto um estabelecimento comercial de bar instalado na Rua ..., no Porto, com o Alvará n.º ..., sendo que, com a celebração do contrato entregou ao réu as chaves do estabelecimento e o alvará, tendo aquele passado de imediato a ocupar o imóvel e a gerir e explorar o estabelecimento, por si ou através da segunda ré, sociedade unipessoal, da qual é o único sócio.
Acontece que, pese embora o contrato definitivo ainda não ter sido celebrado, o réu não pagou as prestações acordadas nas datas dos respetivos vencimentos, tal como acordado.
Fundamenta a sua pretensão no incumprimento contratual dos réus, reclamando o pagamento das prestações contratadas e não pagas.
Citados os réus, apenas o primeiro réu, AA, veio contestar defendendo-se alegando que logo após a celebração do contrato promessa, adoeceu, vendo-se assim impedido de explorar o estabelecimento comercial, tendo entregue por isso, o estabelecimento à autora. Conclui pela total improcedência da ação.
Foi proferido despacho saneador e foi realizada a audiência de julgamento, vindo, no final a ser proferida sentença, com o seguinte dispositivo: “Em conclusão, tudo ponderado e ao abrigo das disposições legais supra referidas, julgando a acção parcialmente procedente e em consequência, decido:
A- Condenar o réu, AA, a pagar à autora, A..., Unipessoal, Lda., a quantia de 94.000,00 € (noventa e quatro mil euros), acrescida de juros de mora à taxa legal para operações comerciais desde a citação e até efetivo e integral pagamento;
B- Absolver a ré B..., Lda., do pedido contra si formulado pela autora.
Custas da acção em partes iguais pela autora e pelo primeiro réu (em consequência do decaimento da autora, relativamente ao segundo réu).”
Inconformado com a sentença, o Réu AA, veio interpor o presente recurso, tendo apresentado as seguintes conclusões:
“1ª – Vem o presente recurso interposto da sentença de fls… que julgou; “a acção parcialmente procedente e em consequência, decido:
A- Condenar o réu, AA, a pagar à autora, A..., Unipessoal, Lda., a quantia de 94.000,00 € (noventa e quatro mil euros), acrescida de juros de mora à taxa legal para operações comerciais desde a citação e até efetivo e integral pagamento;
B- Absolver a ré B..., Lda., do pedido contra si formulado pela autora. Custas da acção em partes iguais pela autora e pelo primeiro réu (em consequência do decaimento da autora, relativamente ao segundo réu).
Valor da acção: o fixado em sede de despacho saneador do processo.”
2ª - Salvo o devido respeito, entendemos que o Tribunal “a quo” fez uma errada interpretação e aplicação do direito.
3ª – Face à matéria de facto assente o Tribunal “a quo” fez uma errada subsunção dos factos ao direito e sobretudo uma errada interpretação do contrato.
4ª - O Contrato promessa em causa para além das clausulas “típicas” dos contratos promessa, que mais não são do que a reprodução do estatuído no artigo 442º do Código Civil, estatuía cláusulas “especiais” de salvaguarda das partes.
5ª - Desde logo, a cláusula terceira que salvaguarda o promitente vendedor;
“Cláusula Terceira
“Após a celebração do contrato prometido o Primeiro Outorgante ingressa na totalidade dos direitos e obrigações inerentes à qualidade de arrendatário do local, nos termos do contrato de arrendamento celebrado a 09 de setembro de 2014, pelo que, até à sua outorga, o pagamento da renda deverá ser efetuado à segunda outorgante até ao 3º dia de cada mês.” (sublinhado nosso)
6ª - Ressalta dos termos desta cláusula que só após a celebração do contrato prometido é que o trespasse se efetivamente concretiza, nomeadamente, com a transmissão do contrato de arrendamento para a esfera jurídica do promitente comprador.
7ª - Tribunal “a quo”, salvo o devido respeito e melhor opinião, não podia decidir o presente pleito nos termos em que o fez sem a autora provar que é a titular exclusiva do contrato de arrendamento e que se encontra em condições de assegurar a sua transmissão para o promitente comprador.
8ª - Trata-se de um elemento crucial para a concretização do negócio.
9ª - Cabia à autora fazer prova nos autos que estavam todas as condições reunidas para a concretização do contrato prometido.
10ª – O apelante considera que ocorreu o incumprimento definitivo do contrato promessa em 31 de agosto de 2018.
11ª - O apelante provou nos autos, de forma categórica, que padece de doença incapacitante que obsta ao desempenho da sua atividade profissional, inviabilizando por essa via, também, a celebração do contrato prometido.
12ª - Não poderia o Tribunal “a quo” ter decidido com recurso a execução especifica do contrato.
Por outro lado,
13ª - Deveremos ter em consideração a seguinte clausula contratual;
“Cláusula Oitava
1 – O contrato prometido deverá ser celebrado até 31 de Agosto de 2018, tendo, imperativamente, que se encontrar liquidadas todas as quantias mencionadas nas cláusulas terceira e sexta, do presente contrato.
2 – Se o contrato prometido não se vier a formalizar até à data mencionada na cláusula anterior, por razões imputáveis ao Primeiro Outorgante, o Segundo Outorgante terá o direito de fazer suas as quantias pagas até aquela data, bem como a ver-lhe restituído o estabelecimento, nas precisas condições em que se encontrar, sem obrigação de pagamento de qualquer indemnização pelas obras e melhorias eventualmente realizadas pela Primeira Outorgante;”
14ª - As partes acordaram em atribuir às quantias entregues, a título de sinal, uma função específica de prefixação convencional da indemnização devida em caso de incumprimento do contrato-promessa.
15ª - Nada foi escrito no contrato-promessa sobre a possibilidade das partes recorrerem à execução específica do mesmo em caso de incumprimento.
16ª - Resulta das normas contidas no n.º 1 e 2 do art.º 830.º do código civil, que existe exclusão da execução especifica, se existir entrega de sinal ou tiver sido fixada uma pena para o caso de não cumprimento da promessa.
17ª - As partes estipularam como únicas consequências do incumprimento do contrato-promessa a perda do sinal e a restituição do estabelecimento, sem que haja lugar ao pagamento de qualquer indemnização.
18ª - Salvo o devido respeito e melhor opinião teria o Tribunal que absolver o Ré do pedido efetuado pela Autora.
19ª – Razão pela qual se impõe que este Venerando Tribunal substitua a sentença recorrida por outra que julgue o pedido improcedente por não provado com as legais consequências.
Nestes termos e nos mais de direito que V.Ex.ª doutamente suprirão, na procedência das conclusões do recurso interposto pela Recorrente, deve o presente recurso ser julgado procedente por provado, com as legais consequências, como é de Justiça.”
Não foi junta resposta ao recurso.
O recurso foi admitido como apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, nos termos do disposto nos arts. (arts. 627; 629 nº 1; 631 nº 1; 637; 638 nº 1; 639; 644 nº 1 al.a); 645 nº 1 al. a); e 647 nº 1; todos do Código de Processo Civil.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II-OBJETO DO RECURSO:
Sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, a questão a dirimir, delimitada pelas conclusões do recurso é a de saber se ocorre erro na aplicação o direito, por inexistir fundamento para a condenação do réu no pagamento das aludidas quantias.
III-FUNDAMENTAÇÃO:
Na sentença foram julgados provados os seguintes factos:
1- Até 01.02.2018, a autora, A..., Unipessoal, Lda., era dona e legítima possuidora de um estabelecimento comercial (bar) instalado na Rua ..., (...) no Porto, com o Alvará n.º ...;
2- Na data de 01.02.2018, a autora procedeu à entrega do referido estabelecimento ao primeiro réu, AA (entregando-lhe as chaves do imóvel) o qual, de imediato e de facto, o ocupou e passou a gerir e a explorar sem a intervenção da autora;
3- Previamente a tal entrega, em 18.11.2017, autora e réu assinaram um documento que intitularam de “Contrato promessa de trespasse de estabelecimento comercial” com o seguinte teor (doc. nº 2 junto com a petição inicial;
“Cláusula Primeira
O Segundo Outorgante é dono e legítimo possuidor de um estabelecimento comercial denominado A..., Unipessoal, Lda., instalado e em funcionamento numa loja com entrada pelo n.º... do prédio sito na Rua ..., - União das freguesias ..., ..., ..., ..., ... e ..., concelho do Porto, inscrito na matriz sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n.º....
Cláusula Segunda
O estabelecimento comercial objeto do presente contrato, melhor identificado na Cláusula Primeira, é transmitido juntamente com todos os demais elementos que o integram, designadamente licenças, alvará, bem como a cedência das respetivas chaves.
Cláusula Terceira
Após a celebração do contrato prometido o Primeiro Outorgante ingressa na totalidade dos direitos e obrigações inerentes à qualidade de arrendatário do local, nos termos do contrato de arrendamento celebrado a 09 de Setembro de 2014, pelo que, até à sua outorga, o pagamento da renda deverá ser efetuado à segunda outorgante até ao 3º dia de cada mês.
Cláusula Quarta
O estabelecimento comercial encontra-se atualmente instalado no imóvel melhor identificado na Cláusula Primeira, objeto de um contrato de arrendamento, a que corresponde o pagamento da renda mensal atual, no valor de 1.220,00 € (mil duzentos e vinte euros).
O presente contrato promessa de trespasse produzirá os seus efeitos a partir do dia 1 de Fevereiro de 2018, pelo que apenas nessa data se vencerá a transmissão do estabelecimento.
Cláusula Sexta
O valor total do trespasse é de 105.000,00 € (cento e cinco mil euros) que serão pagos da seguinte forma:
1. O Primeiro Outorgante obriga-se a pagar ao Segundo Outorgante o valor de 10.000,00 € (dez mil euros) na data de assinatura deste contrato promessa de trespasse;
2. O Primeiro Outorgante obriga-se a pagar ao Segundo Outorgante, a partir do dia 1 de Abril de 2018 e até ao dia 3 de Agosto de 2018 o montante de 5.000,00 € (cinco mil euros), valor este que será liquidado de modo faseado, mediante entrega de prestações mensais no montante de 1.000,00 € (mil euros);
3. O Primeiro Outorgante obriga-se a pagar ao Segundo Outorgante, até ao 3ºdia de cada mês o descrito no número anterior.
4. O Primeiro Outorgante obriga-se a pagar ao Segundo Outorgante, o restante valor de 90.000,00 € (noventa mil euros) até dia 31 de Agosto de 2018.
Cláusula Sétima
1 – O Primeiro Outorgante obriga-se a cumprir na íntegra todos os pontos da cláusula sexta e ainda o acordado na cláusula terceira.
2 – Os Outorgantes aceitam que ocorrerá incumprimento quando se verificar o não pagamento, seguido ou interpolado, de duas prestações e/ou rendas, sendo neste caso possível ao Segundo Outorgante revogar de imediato o presente contrato promessa de trespasse, sem obrigação de restituir qualquer valor pago até ao momento.
Cláusula Oitava
1 – O contrato prometido deverá ser celebrado até 31 de Agosto de 2018, tendo, imperativamente, que se encontrar liquidadas todas as quantias mencionadas nas cláusulas terceira e sexta, do presente contrato.
2 – Se o contrato prometido não se vier a formalizar até à data mencionada na cláusula anterior, por razões imputáveis ao Primeiro Outorgante, o Segundo Outorgante terá o direito de fazer suas as quantias pagas até aquela data, bem como a ver-lhe restituído o estabelecimento, nas precisas condições em que se encontrar, sem obrigação de pagamento de qualquer indemnização pelas obras e melhorias eventualmente realizadas pela Primeira Outorgante;
Cláusula Nona
O Segundo Outorgante declara que o estabelecimento comercial objeto do presente contrato promessa é transmitido para o Primeiro Outorgante livre de quaisquer ónus ou encargos, sendo da exclusiva responsabilidade do Segundo Outorgante o pagamento de quaisquer dívidas contraídas ou originadas pelo funcionamento do estabelecimento até à data indicada na Cláusula Quinta.
Cláusula Décima
É competente para dirimir qualquer conflito emergente do presente contrato, nomeadamente em sede de responsabilidade civil contratual ou extracontratual o foro da comarca do Porto, com expressa exclusão de qualquer outro.
Cláusula Décima Primeira
O presente contrato, com 3 páginas, numeradas e rubricadas, é feito em Porto, no dia 18 do mês de Novembro do ano de 2017, ficando um exemplar em poder de cada uma das partes. Porto, 18 de Novembro de 2017 [assinado pelos outorgantes]”
4- Sucede que, o réu apenas procedeu ao pagamento da quantia de 11.000,00 € (10.000 € com a assinatura do contrato e 1.000 € em Abril de 2018);
5- O réu efetuou o respetivo averbamento ao alvará supra identificado, na data de 31.01.2018 através do Balcão do Empreendedor em nome de uma sociedade por quotas unipessoal que o réu, entretanto (em 19/01/2018), constituiu e de que era o seu único sócio e gerente;
6- O réu sofre de fibromialgia (doc. médico junto com a contestação).
E foram julgados não provados os seguintes factos:
- Que a autora tenha anteriormente à acção interpelado os réus para pagamento;
- Que o primeiro réu tenha constituído a segunda ré com a intenção de se furtar ao cumprimento do contrato acima referido;
- Que o primeiro réu tenha comunicado à autora não poder cumprir o contrato e/ou que lhe tenha entregue/restituído o estabelecimento comercial.
IV-APLICAÇÃO DO DIREITO AOS FACTOS:
Defende o apelante a ocorrência de erro na aplicação do direito aos factos, defendendo em suma que o tribunal recorrido não atentou devidamente ou interpretou de forma errónea, as cláusulas terceira e oitavas do contrato promessa, tendo ainda recorrido indevidamente à execução específica do contrato promessa.
Vejamos.
Resulta da factualidade provada e que não foi objeto de impugnação neste recurso, que a autora A..., Unipessoal, Lda. e o Réu AA celebraram entre si um contrato, em 18.11.2017, que denominaram de “contrato promessa de trespasse de estabelecimento comercial”, que teve por objeto um estabelecimento comercial (bar) instalado na Rua ..., (...) no Porto, com o Alvará n.º ..., de que a autora era dona e legítima possuidora, tendo para o efeito, autora e réu assinado o contrato escrito que foi junto aos autos com a petição inicial.
Acordaram entre si proceder ao trespasse daquele estabelecimento comercial, pelo valor de 105.000,00 € (cento e cinco mil euros) (cfr. clausula sexta).
O contrato celebrado entre autora e réu visou assim a transmissão do primeiro ao segundo, dum estabelecimento comercial de bar, a funcionar com alvará, instalado na Rua ..., (...) no Porto, num imóvel arrendado, como é referido no contrato.
Essa transmissão, porém, foi dilatada no tempo, já que as partes acordaram que a celebração do contrato prometido de trespasse deveria ocorrer “até 31 de Agosto de 2018, tendo, imperativamente, que se encontrar liquidadas todas as quantias mencionadas nas cláusulas terceira e sexta, do presente contrato” – conforme Cláusula Oitava nº 1 do contrato.
Vincularam-se assim a celebrar, no futuro, o contrato de trespasse do estabelecimento comercial, nos moldes então acordados.
Do exposto resulta que autora e réu celebraram entre si um contrato-promessa, o qual se traduz na convenção pela qual "ambas as partes se obrigam, dentro de certo prazo ou verificados determinados pressupostos, a celebrar determinado contrato. Cria a obrigação de contratar, ou, mais concretamente, a obrigação de emitir a declaração de vontade correspondente ao contrato prometido- é a chamada prestação de facto positivo" (artigo 410.º do C.Civil).
Resulta ainda da matéria de facto que, com a celebração do contrato promessa, ocorreu a traditio rei, isto é a entrega do estabelecimento comercial pelo promitente vendedor (trespassante) ao promitente comprador (trespassário), o que permitiu que o réu passasse se imediato a explorar o estabelecimento comercial objeto do contrato promessa.
Na definição de Fernando de Gravato de Morais,[1], “O estabelecimento comercial é composto por um conjunto de bens enquadrados numa organização, não nos surgindo pois como um mero e simples conjunto de bens.
Existe como uma unidade económica, sendo visto pelo direito como uma unidade jurídica. De tal reconhecimento emerge a ideia de que o estabelecimento comercial pode ser objeto de negócios, apesar da pluralidade e da heterogeneidade dos elementos que o constituem ou integram.”
E como refere o mesmo professor, os negócios que incidem sobre o estabelecimento comercial são de várias espécies, das quais se destaca o trespasse.
Discorrendo sobre tratar-se de “um termo de conteúdo genérico, cuja sinonímia podemos também encontrar nas expressões transmissão, transferência, alienação e outras”, conclui que em primeiro lugar o trespasse só pode ser entendido como um negocio sobre o estabelecimento, e em segundo que “.a ele apenas se submetem as transmissões definitivas da organização excluindo-se a outras”.
O que está em causa portanto no trespasse é a transferência do direito do propriedade sobre o estabelecimento.
Como vimos, com a celebração do contrato promessa, ocorreu a traditio do estabelecimento comercial pelo promitente trespassante ao promitente trespassário.
Com efeito, os outorgantes acordaram na cláusula segunda que o estabelecimento comercial objeto do presente contrato, “é transmitido juntamente com todos os demais elementos que o integram, designadamente licenças, alvará, bem como a cedência das respetivas chaves.”
Estabeleceram ainda que “O presente contrato promessa de trespasse produzirá os seus efeitos a partir do dia 1 de Fevereiro de 2018, pelo que apenas nessa data se vencerá a transmissão do estabelecimento.”
Provou-se que, na data acordada de 01.02.2018, a autora procedeu à entrega do referido estabelecimento ao primeiro réu, AA (entregando-lhe as chaves do imóvel) o qual, de imediato e de facto, o ocupou e passou a gerir e a explorar sem a intervenção da autora. Resulta dos autos que também foi entregue o respetivo alvará de licença.
Considerando que o negócio de trespasse apenas exige a forma escrita[2] poder-se-ia pensar que, com a celebração do contrato promessa por escrito, em simultâneo com a entrega da chaves do estabelecimento e do seu alvará ao promitente trespassário, com a celebração de tal contrato, operou-se de imediato o trespasse do estabelecimento. Porém, do teor do mesmo resulta que ficou expressamente consignado no contrato que o estabelecimento comercial encontra-se atualmente instalado no imóvel melhor identificado na Cláusula Primeira, objeto de um contrato de arrendamento, a que corresponde o pagamento da renda mensal atual, no valor de 1.220,00 € (mil duzentos e vinte euros).
Na cláusula terceira, ficou acordado entre as partes o seguinte: “Após a celebração do contrato prometido o Primeiro Outorgante ingressa na totalidade dos direitos e obrigações inerentes à qualidade de arrendatário do local, nos termos do contrato de arrendamento celebrado a 09 de Setembro de 2014, pelo que, até à sua outorga, o pagamento da renda deverá ser efetuado à segunda outorgante até ao 3º dia de cada mês.
Só com a celebração do contrato definitivo de trespasse, que implicava a transmissão do contrato de arrendamento relativo ao imóvel onde o estabelecimento se encontra instalada é que se pode ter como cumprido o contrato promessa, pois só nessa altura, nos termos do contrato, operará a transferência da totalidade dos elementos que integram o estabelecimento.
A propósito do trespasse integrar ou não a transmissão do direito ao arrendamento, o Professor Gravato Morais,[3] refere esclarecedoramente que, “… o direito ao arrendamento pode não figurar entre os elementos do estabelecimento, quer porque organização não se encontra instalada sequer num imóvel (citem-se os casos, vg.do navio-restaurante ou do bar instalado num comboio), ou, apesar de se encontrar localizado num prédio, inexistir qualquer relação locatícia prévia (v.g, o proprietário do estabelecimento é também o proprietário do imóvel, logo, havendo trespasse não se pode transmitir nenhuma posição locatícia, muito embora se possa constituir tal relação.
Por outro lado – e pressupondo agora a existência duma relação de arrendamento do imóvel onde o estabelecimento se encontra instalado – o trespasse pode não envolver a cessão da posição de arrendatário”.
Exemplifica, como o caso do trespassário que pretendendo adquirir o estabelecimento, não está interessado no prédio, porque o deseja instalar noutro local ou no caso do trespassante do estabelecimento, que é inquilino do imóvel aliena o estabelecimento a outrem, subarrendando-o a este (o que só poderá fazer com autorização do senhorio).
No caso em apreço, não há dúvida, uma vez que resulta do teor do contrato promessa celebrado, que o arrendamento do imóvel, onde o estabelecimento se encontra instalada constitui um dos elementos integrantes do estabelecimento comercial prometido vender, pelo que o contrato de trespasse (prometido celebrar), não se pode dar como concluído com a mera celebração do contrato promessa e entrega das chaves do estabelecimento e seu alvará.
Daí não ser correto o fundamento invocado pela Autora na p.i, para fundamentar a sua pretensão jurisdicional, de obter a condenação do réu no pagamento das quantias peticionadas na ação, no artigo 9º, quando afirma (parte sublinhada): “Ou seja, o R. recebeu do A. o estabelecimento na data de 01/02/2018 (data da efetiva transmissão do estabelecimento) sob a outorga de um contrato designado por contrato promessa, obrigou-se ao pagamento da quantia de 105.000 € mas só pagou 11.000 € e, em simultâneo, constitui uma sociedade unipessoal por quotas como sócio e gerente da mesma (que, como é sabido e por regra, tem responsabilidade limitada ao seu património) em nome de quem averba o estabelecimento sem que ainda tivesse sido pago o respetivo preço.”
As partes celebraram entre si, um contrato promessa, que tem natureza meramente obrigacional, não real.
O contrato-promessa cria apenas obrigação de contratar, ou, mais concretamente, a obrigação de emitir a declaração de vontade correspondente ao contrato prometido- é a chamada prestação de facto positivo" (artigo 410.º do C.Civil).
Ou seja, através da celebração deste contrato, não ocorreu a transmissão do direito de propriedade do estabelecimento comercial para o promitente trespassário/comprador.
Aliás, as partes reconhecem isso mesmo, pois ficou expressamente acordado no contrato (cfr. cláusula terceira) que, apenas com a celebração do contrato prometido, prometido celebrar no dia 31.8.2018, “o réu ingressará na totalidade dos direitos e obrigações inerentes à qualidade de arrendatário do local, nos termos do contrato de arrendamento celebrado a 09 de Setembro de 2014, pelo que, até à sua outorga, o pagamento da renda deverá ser efetuado à segunda outorgante até ao 3º dia de cada mês.”
Não tendo ocorrido a transmissão do direito de propriedade sobre o estabelecimento comercial prometido vender, porquanto não foi celebrado o contrato definitivo na data aprazada, será que o promitente vendedor tem, não obstante, direito a receber a totalidade do preço acordado, como se entendeu na sentença recorrida?
Parece-nos que a resposta a esta questão terá de ser negativa.
Conforme cláusula sexta do contrato em apreço, foi acordado entre as partes que o valor total do trespasse é de 105.000,00 € (cento e cinco mil euros), a ser pagos pelo réu da seguinte forma::
-10.000,00 € (dez mil euros) na data de assinatura do contrato promessa de trespasse;
-a partir do dia 1 de Abril de 2018 e até ao dia 3 de Agosto de 2018 o montante de 5.000,00 € (cinco mil euros), valor este que será liquidado de modo faseado, mediante entrega de prestações mensais no montante de 1.000,00 € (mil euros);
-O restante valor de 90.000,00 € (noventa mil euros) até dia 31 de Agosto de 2018.
Mais convencionaram as partes na cláusula oitava, que o contrato prometido de trespasse, só poderia ser celebrado até à data limite acordada de 31 de Agosto de 2018, se se encontrarem liquidadas todas as aludidas quantias.
Provou-se que o réu apenas procedeu ao pagamento da quantia de 11.000,00 € (10.000 € com a assinatura do contrato e 1.000 € em Abril de 2018) (facto supra 4).
Como é sabido, de acordo com o disposto no art. 406º do CC, o contrato deve ser pontualmente cumprido, só podendo modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos por lei.
Por sua vez, o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado – art. 762º do C.Civil.
Ao não pagar as aludidas quantias, nas datas acordadas, o réu incumpriu o contrato, constituindo-se em mora, nos termos do disposto no artigo 805º do Civil.
A jurisprudência e doutrina largamente maioritária defende que só no caso de incumprimento definitivo do contrato-promessa pelo promitente-vendedor, e não no caso de simples mora, há lugar à resolução do contrato e à aplicação das sanções previstas no artigo 442.º do C.Civil.
Assim, segundo o artigo 442.º, n.º 2, do Código Civil “Se quem constitui o sinal deixar de cumprir a obrigação por causa que lhe seja imputável, tem o outro contraente a faculdade de fazer sua a coisa entregue; se o não cumprimento do contrato for devido a este último, tem aquele a faculdade de exigir o dobro do que prestou, ou, se houve tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, o seu valor, ou o do direito a transmitir ou a constituir sobre ela, determinado objetivamente, à data do não cumprimento da promessa, com dedução do preço convencionado, devendo ainda ser-lhe restituído o sinal e a parte do preço que tenha pago”.
E exige-se a extinção do contrato, ou seja, “não pode (…) o tradens exigir o dobro do sinal (ou o valor da coisa), sem destruir prévia ou contemporaneamente o contrato, do mesmo modo que o accipiens não pode fazer seu o sinal recebido sem, também, prévia ou contemporaneamente, destruir o contrato”[4].
Acontece que no caso em apreço, a promitente trespassante, não pretende pôr termo ao contrato promessa mediante resolução, com fundamento no eventual incumprimento definitivo do contrato pelo réu, fazendo dessa forma funcionar as sanções legalmente estabelecidas no art. 442º do C.C.(perda do sinal pela ré).
O que a autora pretende é que o réu seja condenado a pagar-lhe as quantias que se obrigou referentes ao preço do estabelecimento comercial, objeto do contrato promessa de trespasse, independentemente da celebração deste, que não ocorreu na data acordada.
Com efeito, pese embora as datas acordadas entre as partes para o pagamento do preço fracionado do estabelecimento comercial acordado já terem decorrido, verificando-se consequentemente uma situação de incumprimento da obrigação de pagamento daqueles quantias, por parte do réu, incumprimento esse na forma de mora, como vimos, não se pode ignorar a natureza dessas prestações, já que as mesmas são referentes ao preço de venda do estabelecimento comercial.
O valor peticionado nesta ação corresponde ao preço acordado pelas partes para a compra e venda do estabelecimento comercial, que não foi pago.
Ora o trespasse, isto é a transmissão do direito de propriedade sobre o estabelecimento comercial, juntamente com todos os demais elementos que o integram, não ocorreu, uma vez que não foi celebrado o contrato definitivo de trespasse, na data acordada (e cuja celebração pressupunha o pagamento integral do preço acordado), não tendo emergido provada a transmissão do contrato de arrendamento, que faz parte do estabelecimento comercial dos autos.
Ora, o pagamento do preço (da totalidade do preço) constitui um efeito do contrato de compra e venda.
Com efeito, nos termos do artigo 879º do C.Civil, a compra e venda tem como efeitos essenciais: a) A transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito; b) A obrigação de entregar a coisa; c) A obrigação de pagar o preço.
Resulta do tipo legal do contrato de compra e venda, configurado nos artºs. 874º e 879º do Código Civil, que a propriedade da coisa vendida se transmite para o adquirente pelo contrato, constituindo a transmissão do domínio um dos efeitos essenciais do negócio jurídico, ao lado das obrigações de entrega da coisa e de pagamento do preço respetivo.
A compra e venda é um contrato consensual “quod constitutionem”, em que o aperfeiçoamento do vínculo se atinge mediante o acordo de vontades expresso na forma legal.
Nada impede, é certo, as partes convencionem um pagamento antecipado daquele preço, como se afirma na sentença. E as partes fizeram-no, mas fizeram-no, porém, no pressuposto da celebração do contrato prometido até ao dia celebrado até 31 de Agosto de 2018, sendo que este contrato não poderia ser celebrado sem o pagamento de tal preço.
A celebração do contrato prometido translativo do direito de propriedade do estabelecimento comercial objeto do contrato promessa, só poderá ocorrer, se a totalidade do preço estiver pago, como decorre da Cláusula Oitava nº 1 do contrato, segundo a qual, “O contrato prometido deverá ser celebrado até 31 de Agosto de 2018, tendo, imperativamente, que se encontrar liquidadas todas as quantias mencionadas nas cláusulas terceira e sexta, do presente contrato.”
Acontece que o contrato prometido não se mostra celebrado e a autora pretende obter através desta ação, não obstante, o pagamento do preço do estabelecimento comercial que é um efeito do contrato prometido de trespasse, o qual, porém não foi ainda celebrado.
A entrega do estabelecimento comercial ao réu (com todos os seus elementos, com exceção do direito ao arrendamento, que permaneceu na titularidade da autora, enquanto locatária), permitindo que o réu passasse se imediato a explorar o estabelecimento comercial que lhe foi entregue,(continuando, porém o promitente trespassante a pagar as rendas ao seu senhorio e comprometendo o promitente trespassário a entregar-lhe mensalmente o valor das rendas), não foi acompanhada da transmissão da titularidade do direito de propriedade pela autora sobre o estabelecimento ao réu.
Ocorreu apenas que o réu, beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real sobre o estabelecimento comercial obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido.
A tradição antecipada do objeto do contrato prometido não implicou a transmissão do direito de propriedade sobre o mesmo.
Daí não poder a autora obter o correspetivo pagamento do preço do estabelecimento, que veio reclamar através desta ação.
A mora ou simples atraso no cumprimento de contrato- -promessa é pressuposto da execução específica prevista no artigo 830 do CC
A chamada execução específica é, no plano funcional, a mesma coisa que a acção de cumprimento; apenas este se dirige à condenação do devedor no adimplemento da prestação, enquanto aquela produz imediatamente os efeitos da declaração negocial de faltoso, ou seja, o credor obtém o que poderemos chamar cumprimento funcional, isto é, o resultado prático do cumprimento, independentemente e mesmo contra a vontade do promitente faltoso, em via imediata e sem ter de recorrer à sentença de condenação, nem obviamente ao processo executivo.[5]
Dada a função da execução específica, o recurso à mesma por parte do credor é sempre possível enquanto perdure o interesse deste na execução, ainda possível, embora retardada do contrato-promessa, ou seja, que esta obrigação ainda perdure, o que não acontece no caso de incumprimento definitivo.
Acontece que, perdurando o interesse da autora na celebração do contrato prometido, como se poderá entender, em face da interposição desta ação, (em que visa não a extinção do contrato promessa, mas o seu cumprimento), não sendo possível a execução específica deste contrato promessa, atento o disposto no art. 830º do Código Civil, restará à autora ponderar a eventual extinção do contrato, pela via resolutiva (o réu não logrou provar a resolução do contrato por acordo, com a entrega ado estabelecimento à autora como alegara na contestação), com as legais consequências.
IV-DECISÃO
Pelo exposto e em conclusão, acordam as Juízas que compõem este Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso, revogando a sentença recorrida e absolvendo o réu apelante do pedido contra si formulado.
Custas pela apelada.
Porto, 13 de maio de 2025.
Alexandra Pelayo
Márcia Portela
Maria da Luz Seabra
________________
[1] In Alienação e Oneração de Estabelecimento Comercial, Almedina, pg. 77.
[2] Com o DL64-A/2000 de 22.5, deixou de ser exigível a celebração por escritura pública.
[3] Obra citada, pg. 87.
[4] João Calvão da Silva, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, 4ª edição, Almedina, pág. 299.
[5] Calvão da Silva, Sinal e Contrato-Promessa, páginas 97 e 98.