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INSOLVÊNCIA
ADMINISTRADOR DE FACTO
FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO
Sumário
I - Em sede recurso, só é admissível a junção de documentos com cuja relevância a parte não podia contar em momento anterior: ou pela ocorrência de factos naturalísticos supervenientes ou pelo surgimento de factos processuais que tornam a sua junção necessária. II – Em conjugação dos princípios da celeridade processual e do contraditório, não existe no regime legal do CIRE a obrigação de os gerentes de facto e/ou de direito serem citado/notificado para se pronunciar sobre o requerimento inicial antes da prolação da sentença de decretação da insolvência de sociedade Requerida. Nos termos previstos na lei, defere-se o momento de exercício deste contraditório para momento posterior à declaração da insolvência, sendo-lhes aí atribuída a possibilidade de se defenderem por oposição à sentença e/ou através da interposição de recurso ordinário. III – O despacho que identifica o administrador de facto de sociedade declarada insolvente encerra em si um conjunto de consequências, designadamente, para além da própria imagem social negativa associada a um gestor de uma sociedade insolvente, uma obrigação de fixação de residência pessoal, deveres de colaboração com o administrador da insolvência e com o tribunal, eventual instauração contra si de incidente de qualificação de insolvência, eventual constituição como arguido em crime de insolvência dolosa ou negligente e eventual objeto de reversões fiscais. Este despacho tem necessidades de fundamentação de facto e de direito bastante menos exigentes das que se impõem numa sentença cível final, mas obrigam a que se descreva a situação de facto (a prática de atos com caráter de continuidade, efetividade, durabilidade, regularidade, com poder de decisão e com independência das funções exercidas) e que, perante os factos, se justifique a fundamentação jurídica subjacente a esta decisão.
Texto Integral
Processo n.º 2833/24.3T8STS-C.P1
Comarca: [Juízo de Comércio de Santo Tirso (...); Comarca do Porto]
Juíza Desembargadora Relatora: Lina Castro Baptista
Juiz Desembargador Adjunto: Pinto dos Santos
Juiz Desembargador Adjunto: João Proença
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SUMÁRIO
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto I - RELATÓRIO “A..., LDA.”, sociedade com sede na Rua ..., ..., ..., ..., veio requerer a declaração de insolvência de “B..., LDA.”, sociedade com sede na Rua ..., ..., alegando, em síntese, ser credora da Requerida do valor de EUR 3 290,47, resultante de diversos fornecimentos de materiais de construção.
Declara que, em 04/03/2024, se viu forçada a dar entrada da competente execução, a qual corre os seus termos no ... do Juízo de Execução de Vila Nova de Famalicão sob o Proc. nº 3149/24.0T8VNF, no âmbito da qual não conseguiu encontrar bens penhoráveis suficientes para garantir o pagamento do seu crédito e dos custos e custas da referida execução.
Alega que a Requerida tem outros credores, designadamente o Instituto de Segurança Social e a Autoridade Tributária, verificando-se ainda o incumprimento generalizado das suas obrigações para com os seus fornecedores.
Diz que esta não dispõe de qualquer crédito bancário.
Afirma que a Requerida apenas possui alguns créditos sobre clientes, cujo montante se desconhece em concreto, sendo, no entanto, de valor superior a €5.000,00.
Conclui que, dado o valor do seu passivo para consigo e outros credores, dada a inexistência de bens desonerados e de meios próprios e a ausência de crédito, a Requerida se encontra impossibilitada de cumprir as suas obrigações, devendo, em consequência, ser declarada a insolvência desta, com todos os devidos e legais efeitos.
Mais alega que a Requerida levou a cabo uma gestão ruinosa do património, gerando amiúde dívidas junto dos seus principais fornecedores, ao mesmo tempo que, às custas destes e do património societário, aumentava o património pessoal dos sócios.
Afirma que era o sócio AA quem, em conjunto com a gerente de Direito, efectivamente e de facto geria com esta as empresas, negociando com fornecedores e clientes e acabando por utilizar a sociedade aqui requerida para continuar a desenvolver actividades conexas.
Alega ainda que a gerência tinha perfeito conhecimento da situação de insolvência iminente em que a sociedade se encontrava e, ainda assim, persistiu em continuar com a actividade comercial quando já se verificava uma situação de insolvência técnica, demonstrando negligência grosseira e agravando o estado de insolvência em que a sociedade já se encontrava.
A Requerida foi citada, através de carta registada com A/R, para a respectiva sede social e não deduziu oposição ao pedido de insolvência.
Foi proferida proferida sentença que considerou provados os seguintes factos: 1. A Requerente decida-se à atividade de comercialização de revestimentos, designadamente pladur e demais tipos de revestimento para a construção civil, do que faz a sua atividade principal e com escopo evidentemente lucrativo. 2. A Requerida dedica-se à construção de edifícios residenciais e não residenciais, compra e venda de imóveis, reabilitação de edifícios. 3. A pedido da Requerida, a Requerente efetuou diversos fornecimentos, que se encontram melhor descriminados nas respetivas faturas, emitidas entre novembro e dezembro de 2023. 4. A Requerente cumpriu a parte que lhe competia, quanto ao fornecimento dos bens. 5. Não obstante as faturas emitidas estarem há muito vencidas, não foram pagas pela Requerida, estando em dívida mais de €3.290,47 (três mil duzentos e noventa euros e quarenta e sete cêntimos). 6. Em 19/03/2024, a Requerente apresentou contra a Requerida um requerimento de injunção, relativamente ao qual a Requerida não apresentou oposição. 7. Porque nada foi pago pela Requerida na sequência do referido em 6., em 04/03/2024, a Requerente deu entrada da competente execução, a qual corre os seus termos no ... do Juízo de Execução de Vila Nova de Famalicão sob o Proc. nº 3149/24.0T8VNF. 8. A Requerente não conseguiu obter qualquer pagamento por conta das quantias devidas, sendo certo que, até à presente data, a Requerente não conseguiu encontrar bens penhoráveis suficientes para garantir o pagamento do seu crédito e dos custos e custas da referida execução. 9. Na presente data encontra-se em dívida a quantia global de €3.645,25 (três mil seiscentos e quarenta e cinco euros e vinte e cinco cêntimos – €2.776,43 a título de capital e o remanescente a título de juros vencidos e demais despesas), acrescida dos juros vincendos até efetivo e integral pagamento e, bem assim, das custas e honorários do agente de execução nomeado a liquidar em sede própria. 10. A Requerida não possui meios próprios, nem crédito bastante que lhe permita reassumir o cumprimento das referidas obrigações para com a Requerente. 11. Não foram encontrados, na execução referida em 7, quaisquer bens livres e desonerados suficientes para pagamento da dívida em referência, propriedade da Requerida. 12. No decurso da execução supra referida e porque dela teve conhecimento, com o propósito de iludir os seus credores, a Requerida alterou a sua sede para uma incubadora de empresas. 13. A Requerida apenas possui alguns créditos sobre clientes, de valor superior a €5.000,00. 14. A Requerida não dispõe de qualquer crédito bancário. 15. A Requerida é executada nas execuções constantes da informação junta aos autos em 4.10.2024, que aqui se dá por reproduzida para todos os legais efeitos.
E concluiu nos seguintes termos: “Pelo exposto: a) Declaro reconhecida a situação de insolvência de B..., LDA, NIPC ...49, com sede na Rua ..., ... .... b) Fixo a morada dos gerentes da insolvente, de facto e de direito, respectivamente AA e BB, contribuintes fiscais n.º s ...79 e ...84, respectivamente, na Rua ..., ... ... e Rua ..., ..., ... ..., respectivamente. c) … d) … e) … f) … g) Declaro aberto o incidente da qualificação da insolvência, com carácter pleno”
Foram notificados da sentença, na qualidade de gerentes de facto e direito da Insolvente, AA e BB.
Entretanto, já depois da interposição do presente recurso, foi proferido despacho com o seguinte teor: “Pelo exposto e de acordo com as normas conjugadas previstas nos artigos 230.º, nº 1, al. d), 232.º, nºs 1, 2 e 7, 233.º, nº 2 e 234.º, nº 4, do CIRE, declaro encerrado o processo de insolvência de B..., LDA., NIPC ...49, por insuficiência da massa insolvente para a satisfação das custas do processo e das restantes dívidas da massa insolvente.”
No mesmo dia da prolação desta antecedente despacho, a credora “C..., Lda.”, sociedade com sede na Rua ..., ..., ..., veio requerer que a presente insolvência fosse qualificada como culposa, ficando AA e BB inibidos para administrarem patrimónios terceiros e para o exercício do comércio por um período de 10 anos, bem como inibidos de ocupar qualquer cargo em sociedade comercial ou civil ou associação ou fundação privadas, e ainda condenados, solidariamente, a indemnizarem os credores da devedora no montante dos créditos não satisfeitos.
Entretanto, esta credora veio desistir deste requerido e, sequencialmente, proferiu-se despacho a qualificar como fortuita a insolvência da Requerida.
Inconformado com esta decisão, veio AA recorrer, pedindo que a sentença, no segmento decisório impugnado, seja declarada nula, ao abrigo do disposto no art.º 615,º, n,.º 1, b) e d), do CPC, com as legais consequências e que o presente recurso seja julgado procedente e, por via dele, seja o segmento da sentença que se impugnou revogado, não se declarando gerente de facto e não se lhe fixando residência para efeitos de ulterior incidente de qualificação, rematando com as seguintes
CONCLUSÕES: 1. Vem o presente recurso interposto relativamente ao segmento decisório da sentença que determina ser gerente de facto da insolvente AA, ora recorrente, fixando-lhe a respectiva morada na Rua ..., ..., ..., ... ... (cf. alínea b) do dispositivo da sentença). 2. A decisão recorrida fixa um status do ora recorrente – considerando-o como gerente de facto da insolvente, com todas as consequências que tal decisão acarreta (v.g. reversões fiscais, incidente de qualificação de insolvência, deveres específicos de colaboração com o administrador de insolvência) – sem que o mesmo tenha sido previamente ouvido quanto a tal, pois como a própria sentença refere, apenas foi regularmente citada da petição inicial a insolvente, na sua sede – Rua ..., ... ... – não tendo esta deduzido oposição à mesma. 3. A ausência de oposição da requerida não pode valer como confissão quanto a factos que dizem respeito a terceiros, como é o caso do aqui recorrente, que é mero sócio da insolvente e não seu gerente, não tendo tido acesso nem à sede, nem à referida petição inicial. 4. Resulta do n.º 3 do artigo 3.º do CPC, o juiz deve observar e fazer cumprir ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade – o que não é o caso – decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem. 5. A sentença proferida é nula, na parte em que se refere ao aqui recorrente e em que o considera “gerente de facto/legal representante” da insolvente, por excesso de pronúncia, nos termos arts. 615.º, n.º 1, al. d), 666.º, n.º 1, e 685.º do mesmo diploma, já que o juiz a quo conheceu de uma questão de que não podia tomar conhecimento, sem dar oportunidade ao recorrente de sobre ela se pronunciar, já que diretamente afetado pela mesma. 6. A violação do princípio do contraditório do art.º 3.º, n.º 3 do CPC dá origem não a uma nulidade processual nos termos do art. 195.º do CPC, que origina a anulação do acórdão, mas a uma nulidade do próprio acórdão, por excesso de pronúncia, nos termos arts. 615.º, n.º 1, al. d), 666.º, n.º 1, e 685.º do mesmo diploma (cfr. Ac. STJ, de 13.10.2020, tirado no processo n.º 392/14.4T8CHV-A.G1.S1). 7. A prova da gestão de facto tem de ser evidenciada por referência a atos praticados pelo potencial visado, suscetíveis de demonstrar tal efetividade do exercício de funções, entendendo-se como tal a prática de atos com caráter de continuidade, efetividade, durabilidade, regularidade, com poder de decisão e com independência das funções exercidas. 8. Porém, nenhum, facto dado como assente na sentença se reporta ao ora recorrente, a seus comportamentos e às suas relações com a insolvente ou com terceiros. 9. Verifica-se assim a causa de nulidade da sentença prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea b) do CPC, o que expressamente se invoca com as legais consequências, porquanto o Tribunal a quo não especificou quaisquer fundamentos de facto que o levaram a concluir ser o ora recorrente “gerente de facto/representante legal” da sociedade insolvente. 10. Subsidiariamente, caso não se entenda ocorrer a nulidade identificada na conclusão anterior, sempre se dirá que a sentença proferida incorreu em erro de julgamento por ter sido proferida decisão de direito sobre factos inexistentes indispensáveis àquela, o que acarreta insuficiência da matéria de facto para a decisão proferida. 11. Os documentos ora juntos ao abrigo do disposto nos artigos 425.º e 651.º, n.º 1 do CPC, demonstram que o ora recorrente não conhecia o giro comercial da sociedade insolvente nem acompanhava a sua gestão, requerendo informações à gerente. 12. A existência do presente recurso demonstra o interesse do recorrente no presente processo, atentas as consequências que para si podem decorrer, pelo que, exercesse a gerência de facto, atento aquele interesse, o comportamento normal que teria seria determinar que a sociedade contestasse a ação. O facto de a citação da sociedade ter sido dirigida à sua sede e de não ter havido contestação indicia também que o ora recorrente não teve acesso àquela, que não frequentava a sede e que não acompanhava a sua gestão. 13. Atento o exposto, para além das nulidades invocadas supra, ao determinar que o recorrente era gerente de facto da insolvente, a sentença violou o disposto nos artigos 6.º, n.º 1, a), 36.º, n.º 1, c), do CIRE.
A sócia de direito da Insolvente, BB, veio apresentar contra-alegações, pedindo que o presente recurso seja julgado não provado e improcedente e, em consequência, a decisão confirmada, rematando com as seguintes
CONCLUSÕES: 1. O Recorrente apresentou alegações de recurso da decisão do Tribunal a quo na parte em que foi declarado gerente de facto da sociedade insolvente; 2. Para o efeito alegou e juntou documentos de prova (5 cartas remetidas à aqui Contra-Alegante durante o ano de 2024), os quais demonstram apenas e só a concretização de uma efetiva estratégia por si planeada, para, malevolamente, imputar, à aqui Contra-Alegante o cargo de gerente de facto; 3. Fazendo assim crer de que aparenta um completo alheamento na gestão corrente da empresa e, consequentemente, de que não tinha a gestão concreta e efetiva a sociedade insolvente, o que de todo não corresponde à VERDADE. 4. O Recorrente foi quem sempre assumiu e teve a seu cargo o efetivo e concreto giro comercial da sociedade, nomeadamente, contactando fornecedores e clientes, programando e realizando ou dando ordens de pagamento, negociando com clientes/fornecedores e, entre muitos outros atos, orientando ou dando instruções à própria contabilista da sociedade insolvente, Dr. CC. 5. Ou seja, tinha a gestão normal, que sempre desempenhou e que agora pretende fazer passar o contrário; 6. Só a partir de meados de 4.º trimestre de 2023, que a aqui Contra-Alegante se foi inteirando das reais intenções do Recorrente, desde que a convidou a constituírem a sociedade insolvente, a B..., Lda.; 7. Ou seja, aproveitou-se o Recorrente da sua ingenuidade e boa fé da Contra-Alegante, para tirar proveito próprio em detrimento da sociedade em que ambos eram sócios, tendo usado, para o efeito, a sociedade D..., Lda., com NIF ...23, de que o Recorrente era único sócio. 8. Assim, a partir do momento que a Contra-Alegante começou a questionar determinados atos de gestão, a mesma deparou-se com uma postura arrogante, inflexível e de um despojar de responsabilidade por parte do Recorrente, por via das cartas juntas pelo mesmo com as suas alegações de recurso. 9. Contudo, conforme documentos de prova (doc. 1 a dos. 6), que a Contra-Alegante junta com as presentes contra-alegações, facilmente se apreende e prova de que era o Recorrente que tinha o cargo de gerente de facto, praticando atos de gestão efetivos, contínuos, duradouros e regulares, sempre com poder de decisão e com independência, nomeadamente: a) Com todos os fornecedores, realizando encomendas de material, procedente ou emitindo ordens de pagamento (Doc. 1) b) Com todos os clientes, realizando reuniões com os mesmos, procedendo à elaboração e envio de quadros de contas finais das obras e demais operações, recebendo pagamento efetuados pelos mesmos e etc.. (Doc. 2) c) Com a contabilidade da insolvente, efetuando instruções quanto a matéria de contas e lançamentos contabilísticos (Doc. 3) d) Com as instituições de bancárias da insolvente, abrindo contas bancárias em nome da insolvente, uso de cartões da sociedade e etc. (Doc. 4) e) Em relação a toda a logística relacionada com a atividade da insolvente e à estratégia empresarial, que a seu belo prazer/interesse implementava na insolvente, tais como (Doc. 5): i) Divisão das obras que a insolvente estava a executar, em obras do norte e obras do sul, com o propósito de mais tarde vir a imputar os prejuízos da insolvente às obras do norte, quando estas continuaram a ser geridas pelo próprio Recorrente, por via do seu colaborador da sociedade D..., o Eng. DD; ii) Controlar as ações, da aqui Contra-Alegante, que já por si eram controladas, pois esta apenas executava o que o Recorrente lhe ordenava; iii) Controlar, inclusive, a remuneração da Contra-Alegante. 10. Ademais, até o próprio Recorrente admite ter o cargo de gerente de facto, quando, em 20/10/2023, se insurge ao afirmar “Como informei, a gestão da B... seguirá as minhas diretrizes. Não reconheço à atual gerência qualquer noção de gestão empresarial, pelo que conselho vivamente que siga as minhas recomendações e instruções.” (Doc. 6) 11. Isto quando começou a sentir-se questionado sobre determinados atos da sua gestão pela aqui Contra-Alegante; 12. O gerente de direito é quem foi investido, nos termos do Código das Sociedades Comerciais ou do contrato de sociedade, nas funções de gerente, adquirindo, assim, por via desse ato de nomeação, automaticamente poderes para, nos termos da lei e do contrato de sociedade, administrar e representar a sociedade.” 13. Por sua vez, o gerente de facto é quem, não tendo sido investido no cargo de gerência, não detendo, por isso, nos termos da lei e do contrato de sociedade, competência para exercer atos de gerência (adminstrar e representar a sociedade), material e ontologicamente exerce atos, ocorrendo, nessas situações, um divórcio entre a realidade jurídica e material (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 16/05/2023, Proc.º n.º 2364/21.3T8STS-B.P1) 14. A Contra-Alegante, embora gerende de direito, exerceu apenas as funções de Diretora de Obra (e, esporadicamente, funções administrativas a mando e sob orientações do Recorrente); 15. Por conseguinte, nunca teve quaisquer poderes efetivos para vincular a empresa ou tomar decisões estratégicas, sendo que a gestão da sociedade insolvente e a exteriorização da vontade da mesma, quer a nível interno quer a nível externo (a terceiros), foram sempre exercidas pelo Recorrido; 16. Sobre esta temática, os Senhores Desembargadores do Tribunal Central Administrativo Sul, no Acórdão de 11/01/2023, processo n.º 403/07.0BELSB, esclareceram, e bem, em situação semelhante ao presente objeto de recurso, mas no caso em matéria de reversão fiscal sobre os gerentes, o seguinte: “Com efeito e ao contrário do que alega, a ora Recorrente não conseguiu demostrar que o Opoente era gerente efectivo da empresa, não bastando para o efeito a assinatura esporádica de declarações da sociedade perante a Autoridade Tributária e Aduaneira ou da Segurança Social. Teria de ter demonstrado a prática de atos com caráter de continuidade, efetividade, durabilidade, regularidade, com poder de decisão e com independência das funções exercidas. Nesse sentido veja-se, nomeadamente os recentes Ac. TCAS de 2022.03.10, proferido no Proc. n.º 901/13.6BELLE e de 2022.09.29, proferido no Proc. n.º 97/11.8BELRS, os quais subscrevemos na qualidade de 1.º Adjunto.” 17. Face a prova produzida pela aqui Contra-Alegante, dúvidas não subsistem de que o cargo de gerente de facto foi exercido, desde a constituição da sociedade, pelo Recorrente; 18. Tendo sido quem praticou atos de continuidade, efetividade, durabilidade, regularidade, com poderes de decisão e com independência das funções exercidas, não acatando ordens ou instruções de quem quer que fosse – veja-se o autoritarismo da afirmação do Recorrente de 20/10/2023, constante no doc. 6; 19. O Recorrente alega que não era gerente de facto, contudo, o mesmo não fez a prova que lhe competia, nos termos do art.º 342.º, do Código Civil; 20. A junção de 5 cartas pelo Recorrente, durante o ano de 2024, apenas faz prova do que aqui Contra-Alegante no início das suas alegações – manobra planeada pelo Recorrente para tentar “fugir” das responsabilidades dos seus atos de gestão da sociedade insolvente, para depois, malevolamente, tentar imputar tais atos à aqui Contra-Alegante; 21. Face a todo o exposto e à prova produzida, deve a douta sentença, ser integralmente confirmada, mantendo reconhecido como gerente de facto da sociedade insolvente o Sócio AA.
Foi proferido despacho a admitir o recurso como de apelação, com subida imediata e em separado.
Já neste Tribunal da Relação, determinou-se a notificação do Recorrente para, tendo em conta que foi declarado encerrado o processo de insolvência por insuficiência da massa insolvente para satisfação das custas e pagamento das demais despesas e tendo principalmente em conta que se qualificou como furtuita a insolvência de “B..., Lda.”, informar se concorda que ocorreu inutilidade superveniente da lide recursiva ou se, pelo contrário, mantém interesse no prosseguimento do recurso.
O Recorrente veio responder pedindo o prosseguimento do presente recurso.
Justifica que, não obstante a sociedade insolvente não ter à data dívidas tributárias ou contributivas, não decorreu ainda o prazo de liquidação de tributos ou contribuições, podendo vir a ser praticados atos tributários de liquidação adicional, subsequentes execuções e reversões contra gerentes de direito e/ou de facto.
Mais justifica que no Processo n.º 7291/24.0T8BRG, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo Central Cível de Braga – Juiz 1, o ali Autor, pedindo o levantamento da personalidade jurídica da sociedade aqui insolvente, alega que o ora recorrente era gerente de facto daquela.
Defende que o seu interesse é, assim, legítimo e não implica a prática de ato inútil, atentos os efeitos extraprocessuais decorrentes da decisão do presente recurso.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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II – DA ADMISSIBILIDADE DA JUNÇÃO DE DOCUMENTOS
O Recorrente AA juntou às alegações de recurso três documentos, sem qualquer justificação específica quanto à sua oportunidade e/ou tempestividade.
Estes documentos constituem cópias de cartas enviadas por este para a Recorrida e, segundo alegações do Recorrente, destinam-se a comprovar que este nunca foi gerente de facto da sociedade insolvente.
Por sua vez, a Recorrida BB juntou às suas contra-alegações 06 documentos, de igual forma sem qualquer justificação específica quanto à sua oportunidade e/ou tempestividade.
Tais documentos são cópias de E-mails e, segundo alegações desta, são tendentes a comprovar que o Recorrente sempre exerceu funções de gerente de facto da sociedade insolvente.
O Recorrente, em face da sentença de insolvência, poderia, alternativa ou cumulativamente, ter deduzido oposição através de embargos e/ou recorrido.
Tal como realça Maria do Rosário Epifánio[1], “São dois os meios possíveis de impugnação da sentença declaratória de insolvência, os quais podem funcionar cumulativa ou alternativamente: a oposição de embargos e o recurso.” – acrescentando, em nota de rodapé: “A impugnação por via de embargos funda-se na alegação pelo embargante de factos ou indicação de meios de prova que não tenham sido tidos em conta pelo tribunal e que possam afastar os fundamentos da declaração de insolvência (art.º 40.º, n.º 2). Já o recurso baseia-se antes na consideração que, face aos elementos apurados, a declaração de insolvência não devia ter sido proferida (art.º 42.º, n.º 1).”
Ou seja, caso o Recorrente pretendesse, o que lhe era perfeitamente legítimo, afastar os fundamentos da decisão e apresentar novos meios de prova deveria ter, individual ou cumulativamente com o presente recurso, deduzido oposição através de embargos.
Tendo optado “apenas” por deduzir o presente recurso, são aplicáveis as disposições legais gerais atinentes à junção de documentos, nos termos consagrados no Código de Processo Civil.
O CP Civil determina, como regime processual regra, que “Os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da ação ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes” e, como exceções admissíveis, que “Se não forem juntos com o articulado respetivo, os documento podem ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final (…).”e que “Após o limite temporal previsto no número anterior, só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior.” – cf. art.º 423.º.
Dispõe, sequencialmente, o art.º 425.º do CP Civil que “Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.”
Ou seja, os documentos têm, em regra, que ser apresentados até ao encerramento da discussão em 1ª instância. Em sede de recurso, só é admissível a junção de documentos com cuja relevância a parte não podia contar em momento anterior: ou pela ocorrência de factos naturalísticos supervenientes ou pelo surgimento de factos processuais que tornam a sua junção necessária.
Isso mesmo vem sendo decidido de forma pacífica nos nossos Tribunais, citando-se - a título meramente exemplificativo – o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/02/2010[2], onde se decidiu: “São três os fundamentos excecionais justificativos da apresentação de documentos supervenientes com as alegações de recurso, ou seja, quando os documentos se destinem a provar factos posteriores aos articulados, quando a sua junção se tenha tornado necessária, por virtude de ocorrência posterior e, finalmente, no caso de a sua apresentação apenas se revelar necessário, devido ao julgamento proferido em 1ª instância.”
É manifesto que a junção dos documentos acima referidos não se enquadra em nenhuma destas situações excecionais.
Desde logo, nenhum deles se destina a provar factos posteriores à decisão recorrida, destinando-se antes a provar factos anteriores à mesma.
Por outro lado, é evidente que a sua junção não se tornou necessária devido à decisão do tribunal recorrido. Sendo os fundamentos do recurso apresentado a violação do direito do contraditório e a nulidade da decisão recorrida, a junção de documentos tendentes a apreciar se o Recorrente era ou não gerente de facto da sociedade insolvente são absolutamente irrelevantes para a apreciação deste neste Tribunal da Relação e, perante este objeto de recurso, não têm a virtualidade de, por si só, alterar a decisão recorrida.
A conclusão necessária é, portanto, a da não admissibilidade dos documentos juntos quer pelo Recorrente, quer pela Recorrida.
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Custas do presente incidente a cargo de cada uma das partes, fixadas em 01 UC para cada uma delas (art.º 7.º, n.º 4, e Tabela ii anexa ao Regulamento das Custas Processuais).
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III - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Resulta do disposto no art.º 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil[3], aqui aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, e 639.º, n.º 1 a 3, do mesmo Código, que, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.
As questões a apreciar, delimitadas pelas conclusões do recurso, são as seguintes:
o Violação do princípio do contraditório;
o Nulidade da decisão recorrida por falta de fundamentação de facto e de direito.
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IV – VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
O Recorrente alega que a decisão recorrida lhe fixa um status, considerando-o como gerente de facto da insolvente, com todas as consequências que tal decisão acarreta, sem que o mesmo tenha sido previamente ouvido quanto a tal, pois, como a própria sentença refere, apenas foi regularmente citada da petição inicial a insolvente, na sua sede.
Defende que, por este motivo, a sentença proferida é nula, na parte em que se refere à sua pessoa e em que o considera “gerente de facto/legal representante” da insolvente, por excesso de pronúncia, nos termos dos art.ºs 615.º, n.º 1, al. d), 666.º, n.º 1, e 685.º do CP Civil, já que o juiz a quo conheceu de uma questão de que não podia tomar conhecimento, sem lhe dar oportunidade de sobre ela se pronunciar, já que diretamente afetado pela mesma.
Em termos gerais, o princípio da contradição ou do contraditório é um dos princípios gerais estruturantes do processo civil, com uma matriz constitucional, assente no princípio de acesso ao direito e aos tribunais e no princípio da igualdade.
Os princípios constitucionais de igualdade das partes, de acesso ao direito e ao contraditório, previstos nos Art.º 13.º e 20.º da Constituição da República Portuguesa têm em todas as situações de ser respeitados, sob pena de o sistema de jutiça perder a dimensão substancial que o deve caracterizar.
Interpretando este princípio geral de forma actualista, refere Lebre de Freitas[4] que existe hoje uma noção ampla de contraditoriedade “com origem na garantia constitucional do rechtliches Gehor germânico, entendida como garantia da participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objecto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão. O escopo principal do princípio do contraditório deixou assim de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à actuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito de incidir activamente no desenvolvimento e no êxito do processo.”
Concordamos com o Recorrente na defesa da tese que a violação do princípio do contraditório gera nulidade da decisão, por excesso de pronúncia.
Entende-se, assim, que a interposição do presente recurso constitui a forma adequada para atacar a decisão em causa.
Feita esta análise geral da questão, importa apreciar se, nos termos defendidos, o Recorrente deveria ter sido citado/notificado para se pronunciar sobre o requerimento inicial antes da prolação da sentença de decretação da insolvência da sociedade Requerida.
Analisado o regime legal especial consagrado no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas[5], verifica-se que o mesmo é claro a prescrever, no art.º 29.º, n.º 1, que “Sem prejuízo do disposto no n.º 3 do art.º 3.º, se a petição não tiver sido apresentada pelo próprio devedor e não houver motivo para indeferimento liminar, o juiz manda citar pessoalmente o devedor (…).”
Sendo, no caso, o devedor uma sociedade comercial a mesma foi citada nos termos legais, para a respetiva sede (de acordo com as disposições legais do CP Civil, aplicadas analogicamente).
É, portanto, certo que, nos termos da lei, apenas a sociedade tinha que ser citada para contestar o pedido de insolvência e não cumulativamente os gerentes da mesma, sejam de direito ou de facto.
No caso dos autos, a Requerida não apresentou contestação, o que determinou a imediata prolação de sentença de insolvência.
Nesta sentença, e nos termos prescritos no art.º 36.º, n.º 1, alínea c), do CIRE, fez-se constar “Fixo a morada dos gerentes da insolvente, de facto e de direito, respetivamente AA e BB, contribuintes fiscais n.ºs (…), respetivamente na Rua (…) e Rua (…).”
Nos termos previstos no art.º 37.º, n.º 1, do CIRE, a sentença foi notificada ao Recorrente e à Recorrida, de onde decorre que “Os administradores do devedor a quem tenha sido fixada residência são notificados pessoalmente da sentença, nos termos e pelas formas prescritas na lei processual para a citação, sendo-lhes igualmente enviadas cópias da petição inicial.”
Esta notificação visou, designadamente, possibilitar aos gerentes deduzir, querendo, oposição através de embargos (cf. art.º 40.º, n.º 1, alínea f) do CIRE) ou interpor recurso ordinário.
Constata-se, pois, que nos autos foram observados todos os trâmites legais previstos no CIRE.
Em nosso entendimento, não ocorreu, nos termos defendidos pelo Recorrente, violação do princípio do contraditório.
O processo de insolvência tem um conjunto de especificidades que justificaram a sua regulamentação em diploma autónomo, através da aprovação, pelo D.L. n.º 132/93, de 23/04, do Código dos Processos Especiais e de Recuperação da Empresa e de Falência, entretanto substituído pelo atual Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
O princípio da celeridade é um dos princípios basilares deste processo especial, estando expressamente consagrado no art.º 9.º do CIRE.
Tal como se explica no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 350/2012,[6]: “O fomento da celeridade do processo de insolvência foi um dos objetivos do novo Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, como tal expressamente assumido pelo legislador (cf. nº 13 da exposição de motivos do diploma preambular) e que se pretendeu potenciar através de diversos fatores atinentes quer à estrutura do processo quer à própria tramitação processual, e, neste caso, por via, designadamente, da supressão da duplicação do chamamento de credores ao processo, que agora se concentra numa única fase de citação com vista à reclamação dos respetivos créditos (artigos 37º e 128º e segs.).”
Aliás, o art.º 12.º, n.º 1, do CIRE prevê inclusivamente a possibilidade de dispensa de audição do devedor, nos seguintes termos: “A audiência do devedor prevista em qualquer das normas deste Código, incluindo a citação, pode ser dispensada quando acarrete demora excessiva pelo facto de o devedor, sendo uma pessoa singular, residir no estrangeiro, ou por ser desconhecido o seu paradeiro.”
Quer esta disposição legal, quer a consagrada no indicado art.º 37.º, n.º1, do CIRE justificam-se pelas imperiosas necessidades de celeridade no processo de insolvência.
Recorrendo, uma vez mais, às palavras do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 350/2012: “Assim, entre os valores da “proibição da indefesa” e do contraditório e os princípios da celeridade processual, da segurança e da paz jurídica existe à partida, e como se afirmou no acórdão n.º 508/2002, uma relação de equivalência constitucional: todos estes valores detêm igual relevância e todos eles são constitucionalmente protegidos. Ora, quando vinculado por vários valores constitucionais, díspares entre si pelo conteúdo mas iguais entre si pela relevância, deve o legislador optar por soluções de concordância prática, de tal modo que das suas escolhas não resulte o sacrifício unilateral de nenhum dos valores em conflito, em benefício exclusivo de outro ou de outros (em idêntico sentido, mais recentemente, o acórdão n.º 20/2010).”
Concluímos que, em conjugação dos princípios da celeridade processual e do contraditório, não existe no regime legal do CIRE a obrigação de os gerentes de factos e/ou de direito serem citado/notificado para se pronunciar sobre o requerimento inicial antes da prolação da sentença de decretação da insolvência da sociedade Requerida.
Nos termos previstos na lei, fixa-se um diferimento do momento de exercício do contraditório para momento posterior à declaração da insolvência, podendo estes defender-se por oposição à sentença e/ou por recurso ordinário.
Por todos estes argumentos jurídico-processuais, a conclusão necessária é a da improcedência do presente fundamento de recurso.
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V – NULIDADE DA DECISÃO RECORRIDA POR FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO E DE DIREITO
O Recorrente, em novo fundamento de recurso, sustenta que a prova da gestão de facto tem de ser evidenciada por referência a atos praticados pelo potencial visado, suscetíveis de demonstrar tal efetividade do exercício de funções, entendendo-se como tal a prática de atos com caráter de continuidade, efetividade, durabilidade, regularidade, com poder de decisão e com independência das funções exercidas.
Declara que nenhum facto dado como assente na sentença se reporta ao ora recorrente, a seus comportamentos e às suas relações com a insolvente ou com terceiros.
Defende que se verifica a causa de nulidade da sentença prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea b) do CP Civil, o que expressamente se invoca com as legais consequências, porquanto o Tribunal a quo não especificou quaisquer fundamentos de facto que o levaram a concluir ser o ora recorrente “gerente de facto/representante legal” da sociedade insolvente.
Efetivamente, a sentença que declarou a insolvência da sociedade requerida não incluiu no elenco dos factos provados nenhum facto atinente à gestão da sociedade, designadamente à atuação do Recorrente nesta como gerente de facto.
Não fez, da mesma forma, qualquer alusão à atuação do Recorrente em sede de fundamentação de Direito.
A final, no dispositivo, concluiu, designadamente: “Declaro reconhecida a situação de insolvência de B..., LDA, NIPC ...49, com sede na Rua ..., ... ....” E “Fixo a morada dos gerentes da insolvente, de facto e de direito, respetivamente AA e BB, contribuintes fiscais n.º s ...79 e ...84, respetivamente, na Rua ..., ... ... e Rua ..., ..., ... ..., respetivamente.”
Efetivamente, decorre do disposto no art.º 615.º, n.º 1, alínea b), do CP Civil que a sentença é nula – entre o mais – quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
O dever de fundamentação surgiu, em termos constitucionais, com a Revisão Constitucional de 1982[7], que operou a introdução do art.º 210.º, n.º 1, com a seguinte redação: “As decisões dos tribunais são fundamentadas nos casos e nos termos previstos na lei.” Atualmente, a mesma previsão legal consta do art.º 205.º, n.º 1, tendo-lhe sendo aditada uma exclusão respeitante aos despachos de mero expediente.
Tal obrigação constitucional é uma decorrência do Estado de Direito Democrático, traduzindo-se num ato de transparência democrática.
À luz deste princípio constitucional, referem Jorge Miranda e Rui Medeiros[8]: “Antes de mais, a fundamentação há-de ser expressa. Apesar de, em confronto com o artigo 268º, nº 3 [da Constituição], que trata da fundamentação dos atos administrativos, nada se dizer no artigo 205º quanto ao carácter expresso da fundamentação, uma opção que deixe ao destinatário a descoberta das razões da decisão não cumpre a exigência constitucional da fundamentação (…); a fundamentação deve, além disso, ser clara e coerente. Os motivos apresentados pelo órgão decisor não podem ser obscuros ou de difícil compreensão, nem padecer de vícios lógicos, que tornam o raciocínio que lhe está subjacente em algo de imprestável para a inteligibilidade da decisão (…). Por fim, a fundamentação há-de ser suficiente. Para que a fundamentação seja suficiente, dela devem constar os motivos, de facto e de direito, que justificam o sentido da decisão, de modo a que o seu destinatário a possa compreender e, sobretudo, apreciá-la criticamente”.
Nas últimas décadas, tem-se vindo crescentemente a defender a necessidade de um especial cuidado na fundamentação das decisões judiciais.
A decisão judicial é, cada vez mais, um ato de comunicação entre o Tribunal e os intervenientes processuais, exigindo-se que seja coerente e justificada. A sua fundamentação deve ser cabalmente exteriorizada no respetivo texto, de forma clara e compreensível para o cidadão comum.
Noutra perspetiva, a necessidade de fundamentação prende-se igualmente com a garantia do direito ao recurso.
No campo do processo civil, o art.º 154.º do CP Civil dispõe que “As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas” (n.º 1), acrescentando-se que “A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição (…).” (n.º 2).
Assim, o juiz tem de indicar a situação fáctica que reclama a sua intervenção judicial e, num segundo momento, expor e justificar a fundamentação jurídica que, no seu entender, legitima a decisão final tomada.
Ora, no caso em apreciação, estamos perante um despacho, proferido em sede de sentença de declaração de insolvência, declarando uma certa pessoa, aqui Recorrente, como gerente de facto, fixando-lhe a respetiva morada.
Esta decisão recorrida fixa um estatuto ao ora recorrente, considerando-o como gerente de facto da insolvente, com todas as consequências que tal decisão acarreta, designadamente, para além da própria imagem social negativa associada a um gestor de uma sociedade insolvente, obrigação de fixação de residência pessoal, deveres de colaboração com o administrador da insolvência e com o tribunal, eventual instauração contra si de incidente de qualificação de insolvência, eventual constituição como arguido em crime de insolvência dolosa ou negligente e eventual objeto de reversões fiscais.
As necessidades de fundamentação de facto e de direito deste despacho são bastante menos exigentes das que se impõem numa sentença cível final, mas obrigam a que se descreva a situação de facto e que, perante os factos, se justifique a fundamentação jurídica subjacente a esta decisão.
A decisão recorrida não tem qualquer fundamentação de facto, designadamente a enunciar os factos que justificam a qualificação do Recorrente como gerente de facto nem qualquer fundamentação de direito a justificar essa mesma decisão, limitando-se a concluir nos termos acima transcritos.
Esta indefinição factual e jurídica impede o real conhecimento pelos destinatários da decisão judicial quanto aos factos considerados relevantes. Bem como impede a verificação da correta aplicação do direito aos factos.
Tal como defende o Recorrente, impunha-se que a declaração de gerente de facto resultasse de factos reveladores de atos suscetíveis de demonstrar tal efetividade do exercício de funções, entendendo-se como tal a prática de atos com caráter de continuidade, efetividade, durabilidade, regularidade, com poder de decisão e com independência das funções exercidas.
A inexistência de uma decisão sobre a matéria de facto e sobre a fundamentação jurídica trata-se de um vício que encerra um desvalor que excede o mero erro de julgamento e que, por isso, inutiliza a decisão em causa.
Procede, portanto, este fundamento de recurso, declarando-se a nulidade da decisão recorrida, por falta de fundamentação, por aplicação do disposto no art.º 615.º, n.º 1, alínea b), do CP Civil.
Tendo em conta que - tal como ficou enunciado no Relatório – já foi declarado encerrado o processo de insolvência por insuficiência da massa insolvente para a satisfação das custas do processo e das demais dívidas da massa insolvente e que, em sede de incidente de qualificação da insolvência, ocorreu desistência do pedido formulado, proferindo-se despacho a qualificar a insolvência como fortuita, não há, neste momento, qualquer utilidade em suprir (neste tribunal da Relação ou no tribunal recorrido) a omissão das formalidades essenciais apontadas, designadamente fixando os factos atinentes à gerência de facto do Recorrente e proferindo nova decisão sobre a questão.
Perante tal inutilidade prática, determina-se que apenas se elimine o segmento objeto do presente recurso da sentença recorrida, decisão que satisfará os invocados interesses extraprocessuais do Recorrente.
A conclusão final é, portanto, a da procedência do recurso.
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VI - DECISÃO Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação em julgar totalmente procedente o recurso do Recorrente/declarado gerente de facto, alterando-se a parte decisória da sentença recorrida nos seguintes termos: Alínea b) do decisório: “Fixo a morada da gerente da insolvente BB, contribuinte fiscal n.º ...84, na Rua ..., ..., ... ....”
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Custas do presente recurso a cargo da massa insolvente - art.ºs 303.º e 304.º do CIRE.
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Notifique e registe.
(Processado e revisto com recurso a meios informáticos)
Porto, 13 de maio de 2025
Lina Castro Baptista
Pinto dos Santos
João Proença
___________________________ [1] In Manual de Direito da Insolvência, 8.ª Edição, Almedina, pág. 70. [2] Proferido no Processo n.º 941/06.1TBMGR.C1.S1, tendo como Relator Hélder Roque e disponível em www.dgsi.ptna data do presente Acórdão. [3] Doravante designado apenas por CP Civil, por questões de operacionalidade e celeridade. [4] In Introdução do Processo Civil – Conceito e princípios gerais à luz do novo código, 2013, 3ª Edição, Coimbra Editora, pág. 124-125. [5] Doravante apenas designado por CIRE, por questões de operacionalidade e celeridade. [6] Tendo como Relator Carlos Fernandes Cadilha. [7] Lei Constitucional n.º 1/82, publicada no D.R. n.º 277/82, I Série, de 30/09. [8] In Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. III, 2.º Edição, Coimbra Editora, pág. 73.