QUALIFICAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
INSOLVÊNCIA CULPOSA
OBRIGAÇÃO DE APRESENTAÇÃO À INSOLVÊNCIA
Sumário

I – Ao contrário do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, que estabelece presunções inilidíveis de insolvência culposa (que alguma doutrina e jurisprudência prefere qualificar como “ficções legais”), o n.º 3 consagra meras presunções relativas de culpa grave, não dispensando a prova do nexo de causalidade entre a conduta do administrador e a situação de insolvência.
II – O prazo para cumprimento da obrigação de apresentação à insolvência – prevista no artigo 18.º, n.º 1, do CIRE e cuja violação constitui a base da presunção de culpa prevista no artigo 186.º, n.º 3, al. a), do CIRE – foi suspenso entre 9 de Março de 2020 e 5 de Julho de 2023, por força do disposto, sucessivamente: - no artigo 7.º, n.º 6, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, na redacção introduzida pela Lei n.º 4-A/2020, de 6 de Abril; - no artigo 6.º-A, n.º 6, al. a), da mesma Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, na redacção introduzida pela Lei n.º 16/2020, de 29 de Maio; - no artigo 6.º-B, n.º 6, alínea a), da mesma Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na redação introduzida pela Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro; -no artigo 6.º-E, n.º 7, alínea a), da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na redação introduzida pela Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril.

Texto Integral

Processo: 8393/23.5T8VNG-B.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
Por apenso aos autos de insolvência em que figura como devedora A... – Unipessoal, Lda., veio B..., Lda. requerer a abertura do incidente pleno de qualificação da insolvência, pedindo que esta seja qualificada como culposa e que sejam afectados por essa qualificação AA e BB.
Declarado aberto o incidente de qualificação da insolvência, a Administradora da Insolvência (AI) emitiu parecer, nos termos do artigo 188.º, n.º 6, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), no sentido da insolvência ser qualificada como culposa, com base no artigo 186.º, n.º 2, alíneas g) e i), e n.º 3, alíneas a) e b), do CIRE, e de ser afectada por tal qualificação a gerente AA.
O Ministério Público pronunciou-se, ao abrigo do disposto no artigo 188.º, n.º 7, do CIRE, aderindo ao entendimento preconizado pela credora B..., Lda.
Notificada a devedora e citados os requeridos, nos termos previstos no artigo 188.º, n.º 9, do CIRE, estes deduziram oposição, arguindo a ilegitimidade do 2.º requerido e pugnando pela qualificação da insolvência como fortuita.
A AI e a requerente responderam, mantendo as posições anteriormente assumidas.
Foi proferido despacho saneador, identificado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.
Veio a realizar-se audiência de julgamento, na sequência do qual foi proferida sentença que termina com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto:
a) qualifico como culposa a insolvência de A... – Unipessoal, Lda, declarando afectado pela mesma AA;
b) fixo em 4 (quatro) anos o período da sua inibição para o exercício do comércio, ocupação de cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa e em igual período a inibição do requerido para administrar patrimónios de terceiros;
c) determino a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos por AA e condeno-a na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos;
d) condeno, ainda, a requerida AA a pagar aos seus credores e montantes descritos em P) da matéria de facto assente, se não satisfeitos após encerramento do processo de insolvência, até às forças do seu património;
e) decido não afectar BB com a presente qualificação da insolvência.
Custas pela requerida AA».

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Inconformados, a insolvente e a requerida apelaram desta decisão, apresentando a respectiva alegação, que termina com as seguintes conclusões:
(…)
O MP apresentou resposta a esta alegação, pugnando pela improcedência da apelação.
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II. Fundamentação
A. Objecto do recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, como decorre do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), não podendo o Tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC). Não obstante, o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do citado diploma legal).
Tendo em conta o teor das conclusões formuladas pelos recorrentes, importa decidir se ocorreu algum erro no julgamento dos pontos P), Q) e R) dos factos provados e se a insolvência deve ser qualificada como culposa.
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B. Os Factos
1. Factos julgados provados pelo Tribunal a quo
São os seguintes os factos julgados provados pelo tribunal de primeira instância:
A. A insolvente foi constituída em 12 de outubro de 2016 e tem como objecto instalações eléctricas, pintura e colocação de vidros, outras actividades de acabamentos em edifícios.
B. Sempre teve como gerente indicada no registo comercial da sociedade, AA.
C. Por petição inicial que deu entrada em juízo a 2/11/2023, a sociedade A... – Unipessoal, Lda. apresentou-se à insolvência, a qual foi declarada por sentença proferida a 22/11/2023, já transitada em julgado.
D. A sociedade tinha a sede registada na habitação da gerente e não se encontra a laborar desde o ano de 2022.
E. Da análise aos documentos contabilísticos foi possível apurar, o seguinte:
RESULTADOS LÍQUIDOS
Ano202020212022
Total(€ 19.246,02)(€ 24.602,30)€ 0,00
F. O ativo da sociedade corresponde ao Veículo de marca Peugeot, modelo ..., matrícula ..-HX-.., com reserva de propriedade registada a favor do Banco 1..., S. A., sendo que o respetivo contrato foi resolvido em 22 de junho de 2018.
G. O saldo da rúbrica de clientes é:
Ano2020202120222023 (agosto)
Total€ 19.063,12€ 14.265,69€ 14.265,69€ 14.265,69
H. O Total do Passivo é de:
Ano202020212022
Total€ 39.186,00€ 57.057,32€ 55.557,32

I. O capital próprio é sempre negativo no periodo em análise:
Ano202020212022
Total(€ 14.619,95)(€ 39.222,25)(€ 39.222,25)
J. As últimas contas depositadas na Conservatória do Registo Comercial são referentes ao exercício económico de 2019.
K. No âmbito do presente processo de insolvência foram reclamados e reconhecidos créditos no montante global de € 104.494,06 (cento e quatro mil, quatrocentos e noventa e quatro euros e seis cêntimos).
L. Do montante reclamado e reconhecido, no final do ano de 2017, data da constituição das dívidas mais antigas, encontravam-se já constituídos e vencidos créditos no montante global de € 8.130,18 (oito mil, cento e trinta euros e dezoito cêntimos), relativos a dividas à Autoridade Tributária e Aduaneira (€ 278,72), Instituto de Segurança Social (€ 2.343,69) e banca (€ 5.507,77).
M. Desde o início do ano de 2018, venceram-se novos créditos, no montante global de € 96.363,88 (noventa e seis mil, trezentos e sessenta e três euros e oitenta e oito cêntimos), relativos a dividas à Autoridade Tributária e Aduaneira, Instituto de Segurança Social, I.P., fornecedores e banca.
N. Das dívidas mencionadas no ponto anterior, € 59.382,54 (cinquenta e nove mil, trezentos e oitenta e dois euros e cinquenta e quatro cêntimos) correspondem a dívidas para com o Estado.
O. No cômputo geral, as dívidas ao Estado representam 56,83% do valor total dos créditos reclamados e reconhecidos, dos quais 8,62% se venceram até final do ano de 2017 e 91,38% desde o ano de 2018.
P. Após 2020, venceram-se as seguintes dividas, das que foram reclamadas neste processo de insolvência:
• Parte do crédito da “Autoridade Tributária e Aduaneira”, no valor de € 21.490,07, assim discriminado:
Taxas de Portagem e Custos administrativos - € 1.496,67;
Coimas - € 18.237,90;
IUC -€ 182,48;
IRS - € 754,11;
IRC - € 818,91;
• Crédito da “C..., Lda.”, no valor de € 31.649,92;
• Parte do crédito “D..., Lda.”, no valor de € 809,48;
• Parte do crédito “Instituto de Segurança Social, I.P.”, no valor de € 13.336,52;
• Crédito da “B..., Lda.”, no valor de € 5.198,16;
• Crédito da “E... S.A.”, no valor de € 5.507,77.
Q. Pelo menos no início do ano de 2020, a devedora se encontrava impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas.
R. Desde, pelo menos o início do ano de 2020 que a gerente da insolvente não poderia ignorar, sem culpa grave, a inexistência de qualquer perspectiva séria de melhoria da situação económica da insolvente, tanto mais que sabia que os proveitos decorrentes da sua actividade comercial não eram susceptíveis de permitir honrar as respectivas obrigações, desde logo, porque a insolvente deixou de cumprir com os diversos créditos que tinha junto do Estado.
S. A não observância da obrigação da elaboração e depósito de contas anuais impede, e impediu, o Tribunal, os credores, e a Administradora de Insolvência de saber o que se passou com a sociedade.
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2. Factos julgados não provados pelo Tribunal a quo
O tribunal recorrido julgou não provados os seguintes factos:
T. Era BB que, apesar de formalmente não investido da função de gerência, chamou a si todas as decisões respeitantes à vida empresarial da “A..., Unipessoal, Ldª” nomeadamente, nas relações da mesma com a administração pública, fornecedores e funcionários, assumindo efetivamente a gestão financeira, contabilística e fiscal da mesma, dando indicações a AA, que, em termos registrais, sempre se manteve como gerente para executar as ordens que ele ia tomando e assinar toda a documentação que, a cada momento, se mostrasse necessária, o que mereceu desta absoluta anuência.
U. Pelo menos no início do ano de 2018, a devedora se encontrava impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas.
V. Desde, pelo menos o início do ano de 2018 que a gerente da insolvente não poderia ignorar, sem culpa grave, a inexistência de qualquer perspectiva séria de melhoria da situação económica da insolvente, tanto mais que sabia que os proveitos decorrentes da sua actividade comercial não eram susceptíveis de permitir honrar as respectivas obrigações, desde logo, porque a insolvente deixou de cumprir com os diversos créditos que tinha junto do Estado.
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3. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
a. Nos termos do artigo 640.º, n.º 1, do CPC, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, (a) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, (b) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa da recorrida, e (c) a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes, conforme preceitua a al. a), do n.º 2, do mesmo artigo.
No caso vertente, os recorrentes cumpriram tanto os ónus primários consagrados nas diversas alíneas do n.º 1, do referido artigo 640.º, como o ónus secundário estabelecido na al. a), do n.º 2, do mesmo artigo. Na verdade, indicaram de forma expressa e discriminada, tanto na motivação como nas conclusões da sua alegação, os pontos de facto que consideram incorretamente julgados (os pontis P, Q e R dos factos julgados provados), indicaram a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre cada um desses pontos (afirmando que o seu teor deve ser julgado não provado) e fundamentaram a sua discordância na prova que descrevem e analisam na referida alegação. Acresce que os recorrentes transcreveram as partes dos depoimentos em que se baseiam, indicando o minuto e o segundo do início e do fim desses excertos.
Nestes termos, nada obsta ao conhecimento da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
b. Dispõe, por sua vez, o artigo 662.º, n.º 1, do CPC, que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
A análise e a valoração da prova na segunda instância está, naturalmente, sujeita às mesmas normas e princípios que regem essa actividade na primeira instância, nomeadamente a regra da livre apreciação da prova e as respectivas excepções, nos termos previstos no artigo 607.º, n.º 5, do CPC, conjugado com a disciplina adjectiva dos artigos 410.º e seguintes do mesmo código e com a disciplina substantiva dos artigos 341.º e seguintes do Código Civil (CC), designadamente o artigo 396.º no que respeita à força probatória dos depoimentos das testemunhas.
É consabido que a livre apreciação da prova não se traduz numa apreciação arbitrária, pelo que, nas palavras de Ana Luísa Geraldes (Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, pág. 591), «o Tribunal ao expressar a sua convicção, deve indicar os fundamentos suficientes que a determinaram, para que através das regras da lógica e da experiência se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento dos factos provados e não provados, permitindo aferir das razões que motivaram o julgador a concluir num sentido ou noutro (…), de modo a possibilitar a reapreciação da respectiva decisão da matéria de facto pelo Tribunal de 2ª Instância». De resto, como escrevem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, Coimbra 2019, p. 720), o juiz deve «expor a análise crítica das provas que foram produzidas, quer quando se trate de prova vinculada, em que a margem de liberdade é inexistente, quer quando se trate de provas submetidas à sua livre apreciação, envolvendo os motivos que o determinaram a formular o juízo probatório relativamente aos factos considerados provados e não provados».
Mas não podemos olvidar que, por força da imediação, da oralidade e da concentração que caracterizam a produção da prova perante o juiz da primeira instância, este está numa posição privilegiada para apreciar essa prova, designadamente para surpreender no comportamento das testemunhas elementos relevantes para aferir a espontaneidade e a credibilidade dos seus depoimentos, que frequentemente não transparecem na gravação. Por esta razão, Ana Luísa Geraldes (ob. cit. página 609) salienta que, em caso de dúvida, «face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte».
No caso vertente, como vimos, os recorrentes pugnaram pela alteração do sentido da decisão no que respeita aos pontos P, Q e R dos factos provados.
Vejamos se lhe assiste razão.
c. Os recorrentes começam por impugnar o ponto P, na parte em que julga provado que a requerente B..., Lda. é titular de um crédito sobre a insolvente no valor de 5.198,16 €, baseando-se no depoimento prestado pela AI e nos documentos que instruíram a reclamação de créditos apresentada pela mencionada requerente, assim concluindo pela falta de legitimidade desta para deduzir o incidente de qualificação da insolvência.
É manifesta a improcedência desta argumentação e, por conseguinte, da impugnação em causa, pelas razões que passamos a expor.
De harmonia com o disposto nos artigos 36.º, n.º 1, al. i), 188.º, n.º 1, e 191.º, n.º 1, do CIRE, o incidente de qualificação da insolvência pode ser declarado aberto na própria sentença que declara a insolvência, por iniciativa do juiz, ou posteriormente, a pedido do AI ou de qualquer interessado, aqui se incluindo, naturalmente, os credores.
No presente caso, a abertura do incidente foi requerida pela credora B..., Lda. Depois de emitidos pareceres pela AI e pelo MP, a devedora foi notificada e os requeridos foram citados para se oporem, querendo. A primeira nada disse. Os segundos apresentaram oposição, sem nunca questionarem o crédito da requerente do incidente.
Apenas neste recurso as recorrentes vieram pôr em causa a existência desse crédito. Esta é, portanto, uma questão totalmente nova, que não foi apreciada pelo tribunal a quo e que, por conseguinte, não poderá ser apreciada por este tribunal ad quem.
Na verdade, em matéria de recursos, usando a terminologia proposta por Miguel Teixeira de Sousa, o nosso sistema processual civil adoptou um modelo de reponderação, que visa o controlo da decisão recorrida, e não um modelo de reexame, que vise a repetição da instância no tribunal de recurso. Assim, os recursos destinam-se apenas a reapreciar as decisões proferidas e não a analisar questões novas, a não ser que estas sejam de conhecimento oficioso e o processo contenha os elementos necessários para esse conhecimento (cfr. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina, 6.ª ed., 2020, pp. 139-140). Ora, a existência ou inexistência do crédito da requerente não configura uma questão de conhecimento oficioso.
É certo que a sua apreciação determina o reconhecimento ou não reconhecimento da qualidade de credor da massa insolvente e, nessa medida, a legitimidade para requerer a abertura do incidente da qualificação da insolvência.
Em todo o caso, tal apreciação tem a sua sede própria no apenso de verificação e graduação de créditos (cfr. artigos 128.º e seguintes do CIRE), no apenso de verificação ulterior de créditos (cfr. artigos 146.º e seguintes do CIRE) ou, eventualmente, nos autos principais, se estiver em causa o crédito do próprio requerente da insolvência (cfr. artigos 25.º, n.º 1, e 30.º, n.º 3, do CIRE), e não neste incidente de qualificação da insolvência. Note-se que o artigo 128.º, n.º 5, do CIRE tem ínsito o princípio geral de que o exercício dos direitos dos credores no processo de insolvência depende da reclamação do respectivo crédito nos moldes previstos no CIRE.
No caso dos autos, verifica-se que a credora B..., Lda. reclamou o seu crédito, este foi incluído na lista dos credores reconhecidos pela AI, nos termos previstos no artigo 129.º do CIRE e, na falta de impugnações, aquela lista foi homologada por sentença proferida em 08.02.2024, já transitada em julgado.
Nestes termos, o crédito da requerente deste incidente de qualificação da insolvência foi reconhecido por sentença transitada em julgado, com o valor definido no artigo 619.º do CPC (bem como no artigo 233.º, n.º 1, al. c), do CIRE, de acordo com o qual está dotada de força executiva dentro e fora deste processo), não podendo o tribunal reapreciar essa questão, sob pena de violação do caso julgado.
Pelo exposto, improcede a impugnação em apreço.
d. Os recorrentes impugnaram também que os créditos indicados no ponto P se tenham vencido após 2020, afirmando que se venceram antes desse ano e que a não apresentação à insolvência nos 3 meses posteriores ao incumprimento generalizado de obrigações de alguns dos tipos referidos na alínea g), do n.º 1, do artigo 20.º, do CIRE, não provocou um aumento das dívidas ou qualquer prejuízo para os credores, para além de eventuais juros. Acrescentaram que embora o crédito da C..., Lda. tenha sido objecto de sentença apenas no final de 2020, os factos concretos que justificam a respetiva constituição são anteriores a 2020, conforme decorre das reclamações de créditos juntas aos presentes autos.
Não está agora em causa a existência dos créditos descritos no ponto P dos factos provados, mas sim as datas em que os mesmos se venceram, que o Tribunal a quo considerou relevante para o estabelecimento do nexo de causalidade entre o comportamento da requerida, designadamente a violação do dever de requerer a declaração da insolvência da devedora, e o agravamento da situação de insolvência.
Contudo, não cremos que as datas de vencimento das dívidas discriminadas no ponto P tenham esta relevância, ou seja, que possam evidenciar aquele nexo causal. Na verdade, se uma determinada dívida for constituída antes da data em que o respectivo devedor (ou o seu representante legal) estava obrigado a apresentar-se à insolvência, a circunstância de a mesma se vencer após esta data, por si só, não revela que a falta apresentação à insolvência tenha agravado a situação de insolvência, pois o aumento do passivo exigível gerado pelo vencimento da referida dívida será o mesmo quer o devedor requeira a declaração da sua insolvência no prazo previsto na lei ou já depois desse prazo.
O que poderá revelar o nexo de causalidade entre a violação do dever que vimos referindo e a criação ou o agravamento da situação de insolvência é a própria constituição da dívida depois da data em que o respectivo devedor estava obrigado a apresentar-se à insolvência, na medida em que traduz um aumento do passivo por via da assunção de responsabilidades financeiras quando já existe e é conhecida ou cognoscível a impossibilidade de cumprir as obrigações vencidas.
Assim, é esta a factualidade enquadrável no tema da prova n.º 1), maxime na sua parte final: «Da data em que a insolvente se viu definitivamente impossibilitada de cumprir com as suas obrigações vencidas e do prejuízo para os credores pela não apresentação à insolvência nos 30 dias seguintes» (itálico nosso).
Isto mesmo parecem pressupor as recorrentes quando, ao impugnarem a decisão sobre a matéria de facto, alegam que após 2020 a insolvente não contraiu novas dívidas.
Nestes termos, independentemente das datas de vencimento das dívidas discriminadas no ponto P, o que importa apurar é a data da constituição de cada uma dessas dívidas.
Para o efeito, afigura-se desnecessário recorrer ao mecanismo cassatório previsto no artigo 662.º, n.º 2, al. c), do CPC, uma vez que do processo constam todos os elementos para que este tribunal o faça, ao abrigo da regra da substituição ao tribunal recorrido consagrada no artigo 665.º do CPC.
No quer concerne aos créditos da AT (cujo valor global ascende a 27.666,85 € mais juros, num total de 28.746,76 €, de acordo com a sentença de verificação e graduação de créditos antes mencionada), da certidão de dívidas que instrui a reclamação de créditos apresentada pelo MP em representação daquela credora (cfr. requerimento apresentado pela AI em 18.11.2024 e respectivos documentos) resulta que os mesmos se constituíram entre 01.01.2017 e 31.03.2023.
Relativamente ao crédito da sociedade C..., Lda. (cujo valor global ascende a 29.923,21 € mais juros, num total de 31.649,92 €, de acordo com a sentença de verificação e graduação de créditos antes mencionada), a prova documental junta com a respectiva reclamação de créditos (cfr. requerimento apresentado pela AI em 18.11.2024 e respectivos documentos) confirma que a constituição do crédito emergente do contrato de sub-empreitada ocorreu no ano de 2019, o que não é contrariado, antes sendo confirmado, pela sentença datada de 31.12.2020 que declarou judicialmente esse crédito; mas demonstra igualmente que parte do crédito reclamado se refere a custas de parte relativas à acção declarativa e à acção executiva intentadas nos anos de 2020 e 2021, respectivamente, para cobrança daquele crédito.
Quanto ao crédito da Segurança Social (cujo valor global ascende a 25.140,53 € mais juros, num total de 30.635,78 €, de acordo com a sentença de verificação e graduação de créditos antes mencionada), a prova documental junta com a respectiva reclamação de créditos (cfr. requerimento apresentado pela AI em 18.11.2024 e respectivos documentos) demonstra que o mesmo se constituiu entre Abril de 2017 e Outubro de 2021.
No que concerne ao crédito da sociedade D..., Lda. (cujo valor global ascende a 2.103,65, de acordo com a sentença de verificação e graduação de créditos antes mencionada), a prova documental junta com a respectiva reclamação de créditos (cfr. requerimento apresentado pela AI em 18.11.2024 e respectivos documentos) demonstra que parte do mesmo se constituiu no ano de 2019 e a parte restante em 04.02.2020.
Quanto ao crédito da aqui requerente (cujo valor global ascende a 5.198,16, de acordo com a sentença de verificação e graduação de créditos antes mencionada), a prova documental junta com a respectiva reclamação de créditos (cfr. requerimento apresentado pela AI em 18.11.2024 e respectivos documentos) demonstra que o mesmo se constituiu em Abril de 2020.
No que respeita ao crédito da sociedade E..., S.A. (cujo valor global ascende a 5.128,93 mais juros, de acordo com a sentença de verificação e graduação de créditos antes mencionada), a prova documental junta com a respectiva reclamação de créditos (cfr. requerimento apresentado pela AI em 18.11.2024 e respectivos documentos) corrobora que o mesmo se constituiu antes de 2020.
Por fim, nenhuma prova se produziu nestes autos quanto ao crédito reclamado pela sociedade F..., Lda., pelo que nos resta dar como bom o que consta da lista homologada pela sentença proferida no apenso de reclamação de créditos, ou seja, que o mesmo se constitui em 02.12.2022.
Não se ignora que, em alguns casos, as datas de constituição das dívidas agora apuradas não coincidem com as indicadas na lista de credores que foi homologada por sentença proferida no apenso de reclamação de créditos e já transitada em julgado.
Contudo, ao contrário do que sucede com o reconhecimento do crédito e com a sua graduação, as datas de constituição das dívidas ali indicadas não estrão cobertas pela força do caso julgado.
Sobre este alcance do caso julgado material regem os artigos 619.º e seguintes do CPC, preceituando este artigo 619.º que «[t]ransitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º», acrescentando o artigo 621.º que «[a] sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga».
Como se refere no sumário do ac. do STJ, de 12.07.2011 (proc. n.º 129/07.4TBPST.S1), tem-se entendido que «[a] expressão “limites e termos em que julga”, constante do art. 673.º do CPC [correspondente ao actual artigo 621.º], significa que a extensão objectiva do caso julgado se afere face às regras substantivas relativas à natureza da situação que ela define, à luz dos factos jurídicos invocados pelas partes e do pedido ou pedidos formulados na acção». Com efeito, toda e qualquer decisão assenta em concretos pressupostos, quer de facto, quer de direito, sendo o caso julgado referenciado com um âmbito extensivo a certos fundamentos.
Como se diz no mesmo sumário, «[r]elativamente à questão de saber que parte da sentença adquire, com o trânsito desta, força obrigatória dentro e fora do processo – problema dos limites objectivos do caso julgado –, tem de reconhecer-se que, considerando o caso julgado restrito à parte dispositiva do julgamento, há que alargar a sua força probatória à resolução das questões que a sentença tenha tido necessidade de resolver como premissa da condenação firmada» (cfr., no mesmo sentido, os acs. do STJ, de 23.11.2011, proc. n.º 644/08.2TBVFR.P1.S1, e de 22.09.2016, proc. n.º 106/11.0TBCPV.P2.S1).
«Não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão» (Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 1997, p. 578 e 579).
Na verdade, como refere Manuel de Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, p. 306), «[s]eria intolerável que cada um nem ao menos pudesse confiar nos direitos que uma sentença lhe reconheceu; que nem sequer a estes bens pudesse chamar seus, nesta base organizando os seus planos de vida; que tivesse constantemente que defendê-los em juízo contra reiteradas investidas da outra parte, e para mais com a possibilidade de nalgum dos novos processos eles lhe serem negados pela respectiva sentença».
Assim, como se escreve no TRC, de 12.12.2017 (proc. n.º 3435/16.3T8VIS-A.C1, rel. Isaías Pádua), citando Lebre de Freitas «“a determinação do âmbito objectivo do caso julgado postula a interpretação prévia da sentença, isto é, a determinação exacta do seu conteúdo (dos seus “precisos limites e termos”), de que fala o citado artº. 621º [correspondente ao actual artigo 619.º]. Relevando, nomeadamente, para o efeito “a leitura que a sentença faça sobre o objecto do processo, isto é, sobre os pedidos formulados pelo autor e pelo réu reconvinte: o caso julgado tem a extensão objectiva definida pelo pedido e pela causa de pedir”».
Voltando ao caso concreto, afigura-se de linear clareza que, embora o pedido de cada um dos credores reclamantes se baseie na válida constituição dos respectivos créditos, a data em que essa constituição ocorreu não constituiu pressuposto desses pedidos, tal como não constituiu pressuposto da sua verificação judicial e da sua graduação. Dito de outro modo, o Tribunal não teve a necessidade de resolver essa questão como premissa do reconhecimento e da graduação dos créditos reclamados.
Assim, não estando abrangida pela força do caso julgado, nada obsta a que o Tribunal aprecie tal questão, como fez.
Em suma, importa alterar o ponto P dos factos provados em consonância com o exposto supra.
e. Os recorrentes impugnam ainda os pontos Q e R dos factos provados.
Quanto ao primeiro destes pontos – que no início de 2020 a devedora se encontrasse impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas –, começaram por se basear no depoimento prestado pela AI, afirmando que esta confessou não ter contactado os eventuais credores, designadamente a Autoridade Tributária (AT) e a Segurança Social (SS), para indagar a possibilidade de estarem a ser realizados acordos de pagamento, acrescentando que tais acordos existiam. Mas esta ignorância da AI acerca da existência ou inexistência de acordos de pagamento com a AT e com a SS não infirma o facto impugnado, pois da mesma não se pode extrair que aqueles acordos existam, nem que a devedora tivesse meios para cumprir as suas obrigações vencidas. De resto, embora as recorrentes afirmem a existência de tais acordos de pagamento, nenhuma prova, designadamente documental, os demonstra.
Relativamente a ambos os pontos, as recorrentes invocaram ainda os depoimentos da requerida e de CC, contabilista da devedora, afirmando que a não apresentação à insolvência em 2020 não causou um agravamento da situação de insolvência, que a recorrente, esforçadamente, ia cumprindo com as suas obrigações através de acordos de pagamento, para além da adjudicação de vários serviços, mas que a pandemia de Covid-19 e, mais tarde, os problemas de saúde da recorrente fizeram gorar as sua expectativas de melhoria, invocando ainda a elevada idade e a baixa escolaridade da recorrente para impugnar o conhecimento ou a cognoscibilidade da situação de insolvência referidos no ponto R.
Tendo em vista uma visão global e rigorosa do teor das declarações e depoimentos prestados, procedeu-se à audição integral de toda a prova gravada.
A AI situou em 2020 tanto a impossibilidade da devedora para cumprir a generalidade das suas obrigações como a cognoscibilidade desse facto pela requerida, mas sem nunca referir de forma expressa que tal sucedeu no início desse ano, aludindo apenas às dificuldades geradas pela pandemia de Covid-19 (que, em Portugal, foi declarada no mês de Março de 2020).
As declarações de parte da requerida AA revelaram-se totalmente inconcludentes no que concerne à data em que a devedora deixou de conseguir cumprir a generalidade das obrigações vencidas e em que teve conhecimento dessa situação, pois aquela limitou-se a aludir aos crescentes problemas gerados pela dificuldade em cobrar os créditos da insolvente, sem chegar a situá-los no tempo.
Mais esclarecedor se revelou o depoimento da testemunha DD, que foi contabilista da insolvente a partir de finais de 2017 ou inícios de 2018, a qual situou as dificuldades da insolvente a partir da pandemia de Covid-19, ocorrida no ano de 2020, até ao encerramento da actividade, esclarecendo que no ano de 2020 a devedora apresentou prejuízos e que no ano de 2021 quase não teve trabalho.
Por fim, o requerido BB, filho da requerida AA e funcionário da insolvente até 2020, referiu que esta começou a ter dificuldades em cobrar os seus créditos a partir de 2018 ou 2019 e que isso afectou a sua liquidez, mas que foi a partir da pandemia de Covid-19 que ficou sem trabalho, o que o levou a deixar de trabalhar para insolvente a meio desse ano de 2020.
Tal como concluiu o tribunal a quo, esta prova demonstra que no ano de 2020 a devedora deixou de poder cumprir as suas obrigações vencidas e que esse facto não podia ser ignorado pela sua gerente. Mas não demonstra que tal tenha ocorrido no início desse ano – formulação que, na ausência de outras balizas temporais, nos remete para o primeiro dia do ano. Ainda que desta prova decorra que a insolvente já antes de 2020 enfrentava dificuldades em cobrar créditos e em solver dívidas, da mesma apenas se pode extrair com segurança que a impossibilidade de cumprir a generalidade das obrigações vencidas ocorreu durante o ano de 2020, mas após a declaração da pandemia de Covid-19.
Acrescente-se que o contrário não decorre dos dados contabilísticos descritos nos pontos E, G, H e I dos factos provados, designadamente os respeitantes ao exercício de 2020, visto que esses dados se referem, naturalmente, ao final do exercício e não ao seu início.
Nestes termos, impõe-se alterar a parte inicial dos pontos Q e R dos factos provados, substituindo a referência temporal deles constante (o início do ano de 2020), situando-se os factos aí descritos no ano de 2020, mas após a declaração da situação de Pandemia de Covid-19, mantendo-se inalterado o restante teor desses pontos.
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Pelo exposto, na procedência parcial da impugnação em apreço, decide-se alterar a redacção dos pontos P, Q e R dos factos provados, nos seguintes termos:
P. Os créditos verificados e graduados no apenso de reclamação de créditos foram constituídos nas seguintes datas:
• Os créditos da AT foram constituídos entre 01.01.2017 e 31.03.2023;
• Os créditos da sociedade C..., Lda. foram constituídos no ano de 2019, na parte que emerge do contrato de sub-empreitada, e nos anos de 2020 e 2021 na parte respeitante a custas de parte;
• O crédito da Segurança Social foi constituído entre Abril de 2017 e Outubro de 2021;
• O crédito da da sociedade D..., Lda. foi constituído em parte no ano de 2019 e na parte restante em 04.02.2020;
• O crédito da sociedade B..., Lda. foi constituído em Abril de 2020;
• O crédito da sociedade E..., S.A. foi constituído antes de 2020;
• O crédito da sociedade F..., Lda. foi constituído 2.12.2022.
Q. No ano de 2020, após a declaração da Pandemia de Covid-19, a devedora encontrava-se impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas.
R. Desde então, a gerente da insolvente não poderia ignorar, sem culpa grave, a inexistência de qualquer perspectiva séria de melhoria da situação económica da insolvente, tanto mais que sabia que os proveitos decorrentes da sua actividade comercial não eram susceptíveis de permitir honrar as respectivas obrigações, desde logo, porque a insolvente deixou de cumprir com os diversos créditos que tinha junto do Estado.
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C. O Direito
1. Nos termos do disposto no artigo 186.º, n.º 1, do CIRE, a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave (mas já não com culpa leve ou levíssima), do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
Dispõe, por sua vez, o n.º 2 do mesmo artigo que se considera sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham praticado alguma das condutas tipificadas nas suas diversas alíneas.
É maioritário na jurisprudência o entendimento de que este n.º 2 consagra presunções juris et de jure, pelo que a prova de alguma das situações ali contempladas determina, inexoravelmente, a qualificação da insolvência como culposa, dispensando a prova tanto do dolo ou da culpa grave do gerente ou administrador, como do nexo de causalidade entre a sua conduta e a criação ou o agravamento da situação de insolvência, e não admitindo prova em contrário, nos termos do disposto no artigo 350.º, n.º 2, parte final, do Código Civil (CC).
Alguma doutrina e alguma jurisprudência suscitam reservas quanto à qualificação das regras deste n.º 2 como verdadeiras presunções – que o artigo 349.º do CC define como «as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido» – e quanto à sua falta de autonomia relativamente ao n.º 1.
Neste sentido, Rui Pinto Duarte escreve o seguinte: «o n.º 1 do art. 186.º contém uma proposição que visa ligar certos efeitos (mediados pela qualificação da insolvência como culposa) ao facto de a insolvência ter sido criada ou agravada por actuação dolosa ou culposa do devedor ou dos seus administradores; o n.º 2 não tem, pelo menos, nalgumas das suas alíneas, por objecto ligar o estabelecimento desse facto a outros, como seria próprio de uma presunção, antes contém proposições substantivas especiais, que em parte são concretizações da proposição geral e em parte afastamentos dela; na medida em que não visam a aplicação do n.º 1, os enunciados do n.º 2 não são presunções da existência da hipótese de facto nele descrita; as regras do n.º 3, essas sim, admitindo a categoria das presunções legais (sobre cuja utilidade tenho dúvidas, por entender que as mesmas se reconduzem tendencialmente a regras sobre ónus de prova e ficções), podem ser qualificadas como presunções de a insolvência ter sido criada ou agravada por actuação dolosa ou culposa dos administradores do devedor» (Responsabilidade dos administradores: coordenação dos regimes do CSC e do CIRE, III Congresso de Direito da Insolvência, Cord. Catarina Serra, Coimbra 2015, p. 160, nota 22).
No mesmo sentido, escreve-se o seguinte no ac. TRP de 10.02.2011 (proc. n.º 1283/07.0TJPRT-AG.P1):
«Neste contexto, e como se refere em douto acórdão do Tribunal Constitucional referido pelo recorrente – acórdão n.º 570/2008 – “… é duvidoso que na previsão do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE se instituam verdadeiras presunções… o que o legislador faz corresponder à prova da ocorrência de determinados factos não é a ilação de que um outro facto (fenómeno ou acontecimento da realidade empírico-sensível) ocorreu, mas a valoração normativa da conduta que esses factos integram. Neste sentido, mais do que perante presunções inilidíveis, estaríamos perante a enunciação legal de situações típicas de insolvência culposa”.
Por isso que seja mais correcto afirmar-se em nosso entender, que nas situações a que se faz referência no artº 186º, nº2, do CIRE, mais do que uma presunção legal, se verifica o que Batista Machado define – “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, págs. 108 e 109 – como “ficções legais”, pois que, o que o legislador extrai a partir do facto base, não é um outro facto, mas antes uma conclusão jurídica, numa remissão implícita para a situação definida no nº 1 do artº 186º do CIRE. E por isso que, à semelhança das presunções juris et de jure não admita prova em contrário, sendo que dispensa a alegação – e consequentemente a prova – de qualquer outro facto, ficcionando desde logo, a partir da situação dada, a verificação da situação de insolvência dolosa».
Seja como for, estas diferentes qualificações da natureza das regras do n.º 2 não geram dissensos relevantes quanto ao seu efeito prático: a prova de uma das hipóteses previstas naquele n.º 2 conduz necessariamente à qualificação da insolvência como culposa e à afectação do seu autor por esta qualificação.
Nos termos do n.º 3, do mesmo artigo 186.º do CIRE, presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido alguma das obrigações descritas nas suas alíneas.
É pacífico na jurisprudência e na doutrina que esta norma consagra verdadeiras presunções juris tantum da culpa grave a que alude o n.º 1 do mesmo artigo, que apenas serão afastadas se o visado lograr fazer prova do contrário, nos termos do disposto na primeira parte do n.º 2 do artigo 350.º do CC.
Menos pacífica começou por ser a questão de saber se esta presunção abrange igualmente o nexo de causalidade, isto é, se esta norma dispensa igualmente a prova do nexo de causal entre a conduta do administrador (que se presume gravemente culposa) e a criação ou agravamento da situação de insolvência.
Na jurisprudência sempre foi claramente maioritária a resposta negativa a esta questão. Neste sentido, escreveu-se o seguinte no ac. do TRC de 16.09.2014 (proc. n.º 1146/12.8TBCVL-B.C1):
«A qualificação da insolvência como culposa pressupõe, (…) de acordo com a norma citada [referindo-se ao artigo 186.º, n.º 1, do CIRE]: que a situação de insolvência tenha sido criada ou agravada por determinada conduta ou actuação do devedor ou dos seus administradores; que tal actuação seja dolosa ou gravemente culposa e que esta actuação tenha ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
Contudo, o nº 2 da norma citada enuncia um conjunto de situações, cuja verificação determina, por si só, a qualificação da insolvência como culposa, presumindo o legislador – sem admitir prova em contrário, como decorre da expressão “considera-se sempre” – que em tais situações a insolvência é sempre culposa, sem que seja necessária a efectiva constatação de que existiu dolo ou culpa grave do devedor e de que existiu um nexo causal entre a actuação (dolosa ou gravemente culposa) do devedor ou dos seus administradores e a criação ou agravamento da situação de insolvência.
Situação diversa ocorre nas situações previstas no nº 3 da norma citada, onde apenas se presume a existência de culpa grave, sem dispensa, portanto, da demonstração do nexo causal entre o comportamento do devedor – que a lei presume como gravemente culposo – e a criação ou agravamento da situação de insolvência. Por outro lado, e ao contrário do que acontece nas situações a que alude o nº 2, a presunção de culpa estabelecida no nº 3 pode ser ilidida mediante prova em contrário (conclusão que se impõe em face do disposto no art. 350º, nº 2, do C.Civil e em face da circunstância de a lei o não proibir)».
No mesmo sentido, a título meramente exemplificativo, vide os ac. do STJ de 06.10.2011 (proc. n.º 46/07.8TBSVC-O.L1.S1) e de 29.10.2019 (proc. n.º 434/14.3T8VFX-C.L1.S1), o ac. do TRC de 14.01.2014 (proc. n.º 785/11.9TBLRA-A.C1) e os ac. do TRP de 10.02.2011 (proc. n.º 1283/07.0TJPRT-AG.P1) e de 27.10.2020 (proc. n.º 1139/19.4T8AMT-B.P1).
Mas alguma jurisprudência minoritária, com o apoio de diversa doutrina, vinha fazendo uma leitura distinta da norma deste n.º 3.
Assim, escreveu-se no ac. do TRC, de 22.11.2016 (proc. n.º 2675/13.1TBLRA-E.C1) que «[o] incumprimento do dever de apresentação à insolvência, acarretando uma presunção de culpa qualificada na insolvência (art. 186º, nº3, al. a)), dispensa a prova do nexo causal entre tal facto e a criação ou agravamento da insolvência, onerando o devedor com o ónus da prova de que não foi a sua conduta que deu causa à insolvência ou ao seu agravamento, mas outros fator externo ou independente da sua vontade».
Na doutrina, Catarina Serra sustentou que o n.º 3, do artigo 186.º, do CIRE «consagra não meras presunções (relativas) de culpa grave, como vinha defendendo grande parte da jurisprudência portuguesa, mas autênticas presunções (relativas) de insolvência culposa (ou de culpa na insolvência), como tem sido entendido mais recentemente» (O Regime Português da Insolvência, 5.ª ed., Coimbra 2012, p. 141).
Tal como afirmavam os defensores da tese maioritária, cremos que este entendimento de que a presunção abrange o próprio nexo de causalidade não tinha a indispensável correspondência na letra da lei, como impõe o artigo 9.º, n.º 2, do CC (neste sentido: Rui Pinto Duarte, cit., p. 161, nota 24; ac. do TRP, de 10.02.11, já antes citado).
Em todo o caso, julgamos que a questão está hoje ultrapassada, por força da nova redacção do corpo do n.º 3, do artigo 186.º, do CIRE, introduzida pela Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro, que, numa clara interpretação autêntica deste preceito, passou a afirmar que se presume unicamente a existência de culpa grave, não prescindindo, portanto, da prova do nexo de causalidade exigido pelo n.º 1, do mesmo artigo.
Para além do exposto, importa ainda realçar que, como se afirma no ac. do STJ, de 29.10.2019 (proc. n.º 434/14.3T8VFX-C.L1.S1), «[a] insolvência culposa tem consequências gravosas, previstas nos n.2 e 3 do art.189º do CIRE, traduzidas em inibições várias, às quais é conferida publicidade, por via da inscrição no registo civil e no registo comercial. Por isso, deve a matéria de facto provada fornecer uma inequívoca demonstração do preenchimento dos requisitos exigidos pelas diversas hipóteses do art.186º do CIRE».
2. No caso dos autos, o Tribunal a quo qualificou a insolvência como culposa por considerar verificada a circunstância previstas na al. a), do n.º 3, do artigo 186.º do CIRE, e demonstrado o nexo de causalidade entre a conduta aí prevista e o agravamento da situação de insolvência.
Nos termos desta norma legal, presume-se unicamente a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido o dever de requerer a declaração de insolvência.
Esta presunção remete-nos para o disposto no artigo 18.º do CIRE, de acordo com o qual o devedor deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 30 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência, tal como descrita no n.º 1 do artigo 3.º, ou à data em que devesse conhecê-la.
De acordo com o citado artigo 3.º, n.º 1, é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas. Esta definição legal de insolvência erige como critério aferidor dessa situação a impossibilidade financeira de cumprir as obrigações vencidas, não relevando outros critérios, inclusivamente a evolução dos capitais próprios. Note-se que a diferença entre o activo e o passivo só serve de critério aferidor da insolvência nas situações previstas no n.º 2 do mesmo artigo 3.º, não relevando esta norma para os efeitos do dever de apresentação à insolvência, atenta a remissão efectuada pelo artigo 18.º do CIRE. Como se escreve no ac. do TRP de 27.10.2020, já antes citado, «para a situação de insolvência assume importância decisiva tão só o “fluxo de caixa”, no sentido de que o devedor apenas se torna insolvente quando é incapaz, por ausência de liquidez suficiente, de pagar as suas dívidas no momento em que elas se vencem, e não revela perspectivas de que o venha a ser (veja-se, por todos, Prof. Menezes Leitão, Dtº da Insolvência, 2ª ed., pg.77)».
É pacificamente aceite pela doutrina e pela jurisprudência que esta “impossibilidade de cumprir” não pressupõe o incumprimento de todas as obrigações vencidas do devedor. Como escrevem Carvalho Fernandes e João Labareda (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, vol. I, Lisboa 2005, pp. 70 e 71), «[o] que verdadeiramente releva para a insolvência é a insusceptibilidade de satisfazer obrigações que, pelo seu significado no conjunto do passivo do devedor, ou pelas próprias circunstâncias do incumprimento, evidenciam a impotência, para o obrigado, de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos. Assim mesmo, pode até suceder que a não satisfação de um pequeno número de obrigações ou até de uma única indicie, só por si, a penúria do devedor, característica da sua insolvência, do mesmo modo que o facto de continuar a honrar um número quantitativamente significativo pode não ser suficiente para fundar saúde financeira bastante». No mesmo sentido se pronunciam Maria do Rosário Epifânio (Manual de Direito da Insolvência, 8.ª ed., Coimbra 2022, p. 28) e Catarina Serra (cit., pp. 54 e 55), acrescentando esta última que «o incumprimento é um facto enquanto a insolvência é um estado ou uma situação. (…) a insolvência não se identifica nem depende do incumprimento», pelo que «pode haver insolvência quando há apenas um incumprimento e até quando não há incumprimento algum», «assim como existem casos de incumprimento sem impossibilidade de cumprimento», por exemplo quando o devedor, apesar de o poder fazer, não cumpre porque não quer ou porque contesta a dívida. Ainda no mesmo sentido, na jurisprudência, vide, a título de mero exemplo, o ac. do TRP, de 09.03.2020 (proc. n.º 3800/19.4T8VNG.P1, rel. Rodrigues Pires), o ac. do TRG, de 29.06.2017 (proc. n.º 174/16.9T8VPC.G1, rel. Jorge Teixeira), e o ac. do TRC, de 26.10.2021 (proc. n.º 315/10.0TBTND-A.C1, rel. Regina Rosa).
Quando o devedor seja titular de uma empresa, presume-se de forma inilidível o conhecimento da situação de insolvência decorridos pelo menos três meses sobre o incumprimento generalizado de obrigações de algum dos tipos referidos na alínea g) do n.º 1 do artigo 20.º.
No caso concreto, provou-se que no ano de 2020, após a declaração da Pandemia de Covid-19, a devedora se encontrava impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas e que, desde então, a gerente da insolvente não poderia ignorar, sem culpa grave, a inexistência de qualquer perspectiva séria de melhoria da situação económica da insolvente, tanto mais que sabia que os proveitos decorrentes da sua actividade comercial não eram susceptíveis de permitir honrar as respectivas obrigações, desde logo, porque a insolvente deixou de cumprir com os diversos créditos que tinha junto do Estado (cfr. pontos Q e R dos factos provados).
Perante esta factualidade, podemos concluir que o prazo de 30 dias previsto no artigo 18.º, n.º 1, do CIRE não começou a correr antes da declaração da Pandemia de Civid-19, ocorrida em Março de 2020.
Mas, se assim é, impõe-se concluir também que esse prazo não começou a correr antes de 5 de Julho de 2023.
Na verdade, o referido prazo foi suspenso a partir de 9 de Março de 2020, por força do disposto, sucessivamente:
- No artigo 7.º, n.º 6, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, na redacção introduzida pela Lei n.º 4-A/2020, de 6 de Abril;
- No artigo 6.º-A, n.º 6, al. a), da mesma Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, na redacção introduzida pela Lei n.º 16/2020, de 29 de Maio;
- No artigo 6.º-B, n.º 6, alínea a), da mesma Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na redação introduzida pela Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro;
- No artigo 6.º-E, n.º 7, alínea a), da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na redação introduzida pela Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril.
Esta suspensão apenas cessou em 5 de Julho de 2023, por força do artigo 3.º, al. a), da Lei n.º 31/2023, de 4 de Julho.
Assim, como se escreve no ac. do TRL, de 13.09.2024 (proc. n.º 1722/21.8 T8FNC-E.L1-1), «os devedores obrigados à apresentação à insolvência, que tiveram conhecimento de tal situação no decurso da suspensão do prazo, deveriam dar cumprimento a tal dever até ao dia 5/8/2023».
É precisamente esta, como vimos, a situação em apreço nestes autos.
Ainda assim, tendo a devedora requerido a sua insolvência apenas em 02.11.2023 (cfr. ponto c dos factos provados), é ostensivo que não o fez dentro do prazo referido no artigo 18.º, n.º 1, do CIRE.
Está, assim, verificada a situação prevista no artigo 186.º, n.º 3, al. a), do CIRE, pelo que se presume a culpa grave da gerente da insolvente, aqui requerida, tal como decidiu o Tribunal a quo.
3. No que concerne ao nexo causal entre este comportamento da requerida e o agravamento da situação de insolvência, o Tribunal a quo considerou que o atraso na apresentação da devedora à insolvência trouxe prejuízo para os credores, pois venceram-se entretanto novas dívidas. Porém, já vimos que o mero vencimento de dívidas, por si só, não traduz qualquer prejuízo, ou melhor, não traduz o agravamento da situação de insolvência, uma vez que esse vencimento pode reportar-se a dívidas constituídas antes de o devedor estar obrigado a apresentar-se à insolvência ou, mesmo, antes de estar em situação de insolvência. Vimos igualmente que é a constituição de novas dívidas que pode configurar um agravamento da situação de insolvência.
No caso concreto, resulta dos factos provados que todas as dívidas da insolvente se constituíram entre 01.01.2017 e 31.03.2023. Assim, embora parte destas dívidas tenha sido contraída já depois de verificada a situação de insolvência, ocorrido durante o ano de 2020, nenhuma delas o foi já depois de decorrido o prazo para a devedora se apresentar à insolvência. Dito de outro modo, a devedora não contraiu qualquer dívida depois de se ter esgotado o prazo para se apresentar à insolvência. Por conseguinte, os factos apurados não permitem estabelecer o nexo de causalidade entre a violação do dever de requerer a declaração de insolvência e a criação ou, sequer, o agravamento da situação de insolvência.
Nestes termos, apesar de verificada a situação prevista no artigo 186.º, n.º 3, al. a), do CIRE, não estão preenchidos todos os requisitos de que o n.º 1 do mesmo artigo faz depender a qualificação da insolvência como culposa, maxime o nexo de causalidade.
Como dissemos anteriormente, a lei não permite dispensar a prova do nexo causal previsto no n.º 1 do artigo 186.º, sob pena de se transformar esta presunção de culpa grave numa presunção (ou ficção legal) de insolvência culposa (que apenas se distanciaria das presunções ou ficções consagradas no n.º 2 por ser ilidível), ou seja, sob pena de adoptarmos a interpretação que chegou a ser defendida à luz da anterior redacção do n.º 3 do artigo 186.º, já antes referida, mas que foi afastada pela interpretação autêntica levada a cabo pela Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro.
Por conseguinte, impõe-se qualificar a insolvência como fortuita.
Na procedência da apelação, as custas da acção e da apelação são a responsabilidade da recorrida, nos termos do disposto no artigo 527.º do CPC.
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Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
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III. Decisão
Pelo exposto, os Juízes desta 2.ª secção do Tribunal da Relação do Porto revogam a decisão recorrida e qualificam como fortuita a insolvência da devedora A... – Unipessoal, Lda.
Custas pela recorrida.
Registe e notifique.
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Porto, 13 de Maio de 2025
Artur Dionísio Oliveira
João Proença
João Diogo Rodrigues