EMBARGOS DE EXECUTADO
ÓNUS DA PROVA DO EMBARGANTE
Sumário

No âmbito da oposição à execução, ao embargante caberá a prova dos fundamentos de oposição que por si foram invocados, porque desta são factos constitutivos, o que significa que lhe cabe o encargo da prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito cuja satisfação coativa é objeto da execução.

Texto Integral

Proc. nº 4848/21.4T8PRT-A.P1

Comarca do Porto – Juízo de Execução da Maia – Juiz 2

Apelação

Recorrente: AA

Recorrido: BB

Relator: Eduardo Rodrigues Pires

Adjuntos: Desembargadores Ramos Lopes e Márcia Portela

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO

A executada AA veio deduzir embargos contra o exequente BB, alegando, em síntese, que:

- a execução deve ser extinta porquanto estamos perante uma venda de bens alheios que conduz à nulidade do contrato;

- estamos, ainda, no campo da anulabilidade, pois que a vontade negocial foi viciada desde a sua formação até ao momento da decisão;

- o embargado não cumpriu um pressuposto legal para a resolução do contrato, uma vez que não assinou a missiva enviada à embargante e aos restantes senhorios, pelo que a resolução carece de qualquer efeito, mantendo-se em vigor o contrato de arrendamento;

- por usar um expediente legal no sentido de prejudicar a ora embargante, o embargado deverá ser condenado como litigante de má-fé, em multa, de valor nunca inferior a 3.500,00€, e em indemnização à embargante, que deverá integrar todas as despesas processuais com a presente demanda, a liquidar em momento oportuno.

Concluiu requerendo que os embargos sejam julgados procedentes e, em conformidade, extinta a execução e o embargado condenado como litigante de má-fé.

Regularmente notificado, veio o embargado BB contestar impugnando a versão dos factos trazida aos autos pela embargante e referindo que a mesma nunca foi condicionada na sua vontade na contratação.

Mais alegou que apenas foi celebrada uma promessa de arrendamento e que o contrato definitivo nunca chegou a ser celebrado e nunca foi reduzido a escrito, o que o torna nulo, sendo ainda certo que não foi sequer outorgada por todos os que à data eram proprietários do imóvel.

Concluiu requerendo que os embargos sejam julgados improcedentes por não provados e o embargado absolvido dos pedidos contra si formulados.

Por ter sido requerida, foi declarada suspensa a instância nos presentes embargos, com fundamento em causa prejudicial, até que fosse proferida decisão final, transitada em julgado, no processo nº 4503/20.2T8MAI, conforme despacho proferido nos autos em 21.1.2022.

Após ter sido proferida sentença transitada em julgado no processo nº 4503/20.2T8MAI foi levantada a suspensão da instância e prosseguiram os presentes autos os seus termos.

Foi realizada audiência prévia, na qual se proferiu despacho saneador, fixou-se o objeto do litígio, enunciaram-se os temas de prova e designou-se audiência de julgamento.

Esta efetuou-se com observância do legal formalismo.

Seguidamente proferiu-se sentença que julgou improcedentes os embargos deduzidos e absolveu o embargado dos pedidos contra si formulados.

Inconformada com o decidido, interpôs recurso a embargante que finalizou as suas alegações com as seguintes conclusões:

A. Verifica-se o incumprimento de uma formalidade legal na resolução do contrato de arrendamento.

B. Nos termos do artigo 9º do NRAU, a comunicação relativa à comunicação da cessação do contrato de arrendamento deve ser remetida por carta registada com aviso de receção e devidamente assinada pelo declarante.

C. No documento nº 4 que foi anexo à petição inicial de embargos, e que se trata de um original, não contém a assinatura do arrendatário.

D. Aquele documento dirigido a todos os proprietários do imóvel sobre o qual incidia o contrato de arrendamento e, que se encontrava em posse destes, é evidente que se trata de um original, já que a haver uma cópia não estaria na posse daqueles, mas sim na posse do recorrido.

E. Aquele documento foi anexo à petição inicial como prova de fundamento de um incumprimento de formalidade legal na resolução do contrato de arrendamento, e que não foi devidamente atendido pelo Tribunal.

F. Sendo a prova do facto do incumprimento da formalidade legal uma prova vinculada, que não pode ser afastado por qualquer outro meio de prova, deveria ter sido o documento junto aos autos, considerado válido, se o Tribunal a quo houvesse analisado criteriosamente as provas e retirasse daquelas, as ilações e presunções extraídas das regras da experiência e da lógica que devia ter incluído no âmbito do direito probatório.

G. Pelo que o contrato de arrendamento deveria ter sido considerado não resolvido por incumprimento de uma formalidade legal prevista nos termos do artigo 9º do NRAU e, consequentemente, ser considerado em vigor, com todos os efeitos do mesmo decorrente.

H. Pelo que o Tribunal a quo, ao não analisar, criteriosamente, a prova, violou o artigo 9º do NRAU e o disposto no artigo 607º do CPC.

Pretende assim que se considere inválida a resolução do contrato de arrendamento, com todas as consequências legais.

Não foram apresentadas contra-alegações.

O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos autos e efeito devolutivo.

Cumpre, então, apreciar e decidir.


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FUNDAMENTAÇÃO

O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil.


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A questão a decidir é a seguinte:

Apurar se a executada/embargante logrou provar que a resolução do contrato de arrendamento foi efetuada pelo exequente/embargado com desrespeito por formalidades legais.


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É a seguinte a matéria de facto dada como provada na sentença recorrida:

1 - BB é sócio e gerente da sociedade por quotas unipessoal A..., Unipessoal Ldª, cujo objecto social corresponde a actividade de cabeleireiro, estética, spa, gestão de instalações desportivas, dermatologia cosmética, medicina tradicional chinesa, osteopatia, podologia, nutricionismo, prática clínica em ambulatório, serviços de psicologia, café e snack-bar.

2 - O embargado era o arrendatário da fracção autónoma designada pela letra A do prédio em regime de propriedade horizontal sito na Rua ..., Matosinhos.

3 - O imóvel foi dado de arrendamento ao embargado por contrato de arrendamento celebrado em 1/1/2015 entre o mesmo e o Banco 1... (proprietário à data do arrendamento).

4 - Era nessa fracção autónoma que a sociedade desenvolvia a sua actividade.

5 - A embargante AA era esteticista e cosmetologista.

6 - No mês de Junho de 2019, após pesquisa de anúncios de emprego, a embargante verificou a publicidade de uma vaga para exercer atividade na sua área, na A..., Unipessoal Ldª.

7 - Depois de ter realizado a sua candidatura foi contactada pelo embargado para agendamento de uma entrevista no local.

8 - Na entrevista, a embargante percebeu que a A..., Unipessoal Ldª funcionava em duas vertentes instaladas na mesma fracção autónoma, a vertente de estética (lugar ao qual a se candidatou para substituição de uma funcionária) e a vertente de cabeleireiro (assegurada pelo embargado).

9 - A embargante iniciou funções em Julho de 2019, tendo a colega que iria ser substituída cessado funções dois ou três dias após a sua entrada.

10 - Durante os primeiros tempos de atividade, a embargante verificou que o espaço vocacionado para a área estética não tinha muitos Clientes, pelo que a estratégia de angariação de nova Clientela teve de ser revista e a actividade repensada.

11 - O embargado estava mais vocacionado para a área de cabeleireiro.

12 - A receção e a caixa da A... era comum para o espaço de estética e de cabeleireiro, tudo era colocado numa folha diária por parte da embargante no que aos tratamentos estéticos respeitava e as contas feitas a final.

13 - A 18 outubro de 2019, a embargante e embargado, deslocaram-se a uma Feira ... em Espanha e nos meses seguintes a relação de proximidade foi-se mantendo.

14 - Entre Novembro e Dezembro, o embargado contou à embargante a intenção da proprietária do imóvel na venda do mesmo e que ele próprio não tinha o propósito de exercer o seu direito de preferência e adquirir o espaço.

15 - O embargado aconselhou o CC a adquirir a fracção com o argumento de que era um bom negócio.

16 - Quando o CC se dirigiu para verificar o imóvel, o embargado informou-o que tencionava vender o seu negócio de estética, nomeadamente as máquinas, a carteira de clientes e que seria um ótimo negócio para a embargada AA, já que estava completamente envolvida na área, pois até então era ela que assegurava todos os procedimentos inerentes ao negócio, ainda que como funcionária.

17 - Os AA. conversaram entre si e, já que iriam adquirir o imóvel, acharam que também seria um bom negócio a embargada AA adquirir o negócio de estética, pois era a sua área específica de formação e estaria a comprar algo que seria seu e para o qual já tinha contribuído com muito esforço naqueles meses em que foi contratada.

18 - Foi o embargado que tratou da elaboração do contrato de compra do negócio, tendo o mesmo solicitado a intervenção da sua Advogada para a redacção das cláusulas.

19 - Os AA. foram tendo conhecimento da elaboração do mesmo, através dos emails que o embargado foi enviando à embargante AA.

20 - Em 19/2/2020 a embargante AA celebrou com o embargado BB um contrato de compra e venda de bens móveis usados – equipamento diverso de estética e outros (com termo de autenticação).

21 - Na mesma ocasião a embargante e os progenitores e o embargado assinaram o designado contrato-promessa de arrendamento ao réu da fracção A.

22 - O contrato de compra e venda foi celebrado pelo montante de €100.000,00 (cfr. a cláusula 4.ª), a ser pago em duzentas prestações de €500,00, a contar da assinatura do mesmo (cfr. a cláusula 3.ª), mas cujo pagamento seria compensado pela renda que o embargado teria a pagar, já que continuaria a ser arrendatário do espaço, após a compra do mesmo pelos AA.

23 - O contrato foi assinado na sala de espera do imóvel e sem que o conteúdo do mesmo fosse explicado na íntegra às partes por parte da entidade autenticadora do documento, ou seja a Advogada do embargado.

24 - Os AA. não recorreram a aconselhamento jurídico.

25 - No e-mail datado de 13.02.2020, o embargado informou que iria discriminar os montantes de cada um dos equipamentos, o que acabou por não fazer.

26 - Os AA. confiaram no embargado. e, os AA. sempre acharam e foi o que o embargado transmitiu que a compensação seria feita até ao fim do contrato, não havendo lugar a qualquer tipo de pagamento de ambas as partes.

27 – Era intenção do embargado manter o seu cabeleireiro no local.

28 - No dia seguinte, AA, CC e DD adquiriram, através de uma escritura de compra e venda celebrada, a fração autónoma designada pela letra “A”, acima referida.

29 - O CC ainda hoje entende que a aquisição da fracção foi um bom negócio.

30 - O contrato de compra e venda dos bens móveis plasmava na cláusula 2.ª.5 que a Segunda Outorgante declara ter verificado e inspecionado a existência e condições de todos os bens e equipamentos no momento da assinatura do presente contrato, após o que o assina e adquire de imediato os mesmos, passando a ser sua propriedade, no exato estado em que os mesmos se encontram, a mesma confiou na palavra do R. e que este efectuaria o arranjo do material danificado.

31 - A AA pagou a reparação de uma máquina.

32 - Após a celebração dos contratos de compra e venda (entre a AA e o BB) e de promessa de arrendamento (entre todos os AA. e o R.) a situação começou a degradar-se diariamente com a convivência da senhoria AA e do arrendatário BB, no locado.

33 - Entretanto, o embargado viajou em Agosto, de férias, durante três semanas.

34 - Quando regressou, o embargado acusou a embargante de maltratar a sua Clientela quando atendia os telefonemas, de apagar contactos do telefone utilizado no espaço.

35 - A embargante tentou um acordo com o embargado que passaria pela anulação dos contratos efectuados, sem qualquer contrapartida monetária entre ambos e se o embargado estivesse interessado celebraria um novo contrato de arrendamento com os AA.

36 - O embargado comunicou por carta, datada de 28.09.2020, a resolução do contrato de arrendamento.

37 - Posteriormente, o embargado retirou todo o material que lhe pertencia da fração autónoma designada pela letra “A”, deixando o espaço devoluto.

38 - A embargante cessou em data indeterminada a atividade que tinha na Clínica.

39 - Pela ap. ... foram registadas a dissolução, encerramento da liquidação, e cancelamento da matrícula da sociedade A..., Unipessoal, Lda.

39 - A embargante AA foi observada em consulta médica num quadro depressivo/ansioso em Novembro de 2019 e é acompanhada com consultas do foro psiquiátrico desde Setembro de 2020.

40 - O CC padece de perturbação distímica com episódios regulares de depressão major, sendo acompanhado por psiquiatras.

41 - A DD padece de síndrome depressivo/ansioso com anos de evolução.

42 - Pela ap. ... foram registadas a dissolução, encerramento da liquidação, e cancelamento da matrícula da sociedade A..., Unipessoal, lda.

43 - Antes do embargado tomar de arrendamento a fracção, esteve lá instalado um estabelecimento comercial denominado B... da sociedade comercial “C..., Ldª.”

44 - Sociedade dissolvida e liquidada em Janeiro de 2012.

45 - Essa sociedade celebrou em 4/6/2007 um contrato de empreitada com um empreiteiro para a realização de obras e fornecimento de equipamentos para instalar o referido estabelecimento;

46 - Tendo o montante desse contrato ascendido a €41.685,67.

47 - O contrato de compra e venda de móveis celebrado entre a embargante AA e o embargado incluiu equipamentos objecto do contrato de empreitada celebrado pela “C...”.

São eles:

a) Na receção - a porta da receção, o alarme de emergência da casa de banho, o sistema de sensor de incêndio, um vidro temperado de divisão, o sistema de som;

b) Na sala de espera – um vidro de divisória;

c) Na primeira sala, entrada esquerda – um móvel de apoio com lavatório, um espelho, duas prateleiras;

d) Na segunda sala, entrada direita – um lavatório com móvel, um espelho grande, detetor de incendio;

e) Na terceira sala – uma cabine de banho, um lavatório com armário;

f) Na quarta sala – um lavatório com móvel, um espelho;

g) Na quinta sala – um lavatório com armário, um espelho;

h) No quarto de banho das senhoras – lavatório adaptado para cadeira de rodas, sanita;

i) No quarto de banho dos homens – um lavatório com móvel, uma sanita;

j) No vestiário – um chuveiro com vidro duplo, um cacifo com oito portas, dois lavatórios com um móvel, uma sanita, espelho da casa de banho;

k) No ginásio e sala de fisioterapia – um móvel de apoio;

l) Produtos – divisórias da loja em pladur, portas de gabinete, detetores de saída de emergência, instalações elétricas focos, ar condicionado, ventilação, sistemas de incêndio.

48 - O embargado não comprou ou pagou qualquer montante por estes bens.

49 - Desde que tomou a fracção de arrendamento o embargado sempre usou e fruiu de tais bens.

50 - Procedeu à manutenção, limpeza e reparação dos mesmos.

51 - O embargado praticou tais actos materiais à vista de todos, sem oposição de ninguém, ininterruptamente.

52 - Encontra-se junta aos autos como doc. 4 com a p.i., uma carta que tem como remetente o embargado e foi junta pela embargante, que não se mostra assinada pelo embargado.


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Não se provou com relevância para os presentes autos que:

A sociedade A..., Unipessoal Ldª, era a proprietária dos bens vendidos à embargante AA.


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Passemos à apreciação do mérito do recurso.

1. A oposição à execução por embargos consiste num incidente de natureza declarativa, enxertado no processo executivo, por via do qual o executado requer ao tribunal a improcedência total ou parcial da execução, seja pelo não preenchimento dos pressupostos substantivos ou processuais de exequibilidade extrínseca ou intrínseca, seja pela verificação de um vício de natureza formal que obste ao prosseguimento da execução – cfr. MARCO CARVALHO GONÇALVES, “Lições de Processo Executivo”, 2016, págs.195/196.

Diversamente da contestação da ação declarativa, a oposição à execução, por constituir, do ponto de vista estrutural, algo de extrínseco à ação executiva, toma o caráter de uma contra-ação tendente a obstar à produção dos efeitos do título executivo e (ou) da ação que nele se baseia. Quando veicula uma oposição de mérito à execução, visa um acertamento negativo da situação substantiva (obrigação exequenda), de sentido contrário ao acertamento positivo consubstanciado no título executivo (judicial ou não), cujo escopo é obstar ao prosseguimento da ação executiva mediante a eliminação, por via indireta, da eficácia do título executivo enquanto tal. Quando a oposição tem um fundamento processual, o seu objeto é, já não uma pretensão de acertamento negativo do direito exequendo, mas uma pretensão de acertamento, também negativo, da falta de um pressuposto processual, que pode ser o próprio título executivo, igualmente obstando ao prosseguimento da ação executiva, mediante o reconhecimento da sua inadmissibilidade – cfr. LEBRE DE FREITAS, “A Ação Executiva”, 7ª ed., págs. 214/216.

Por seu turno, FERNANDO AMÂNCIO FERREIRA (in “Curso de Processo de Execução”, 10ª ed., pág. 178) diz-nos que “a propositura da demanda de oposição implica a constituição de uma nova relação processual autónoma, não reconduzível a uma fase da relação processual executiva, por poder apresentar pressupostos próprios e se delinear como uma relação processual de cognição, com a estrutura do processo normal de declaração, enquanto a relação executória jamais conduz a um provimento decisório.”

Assim, se os embargos de executado se desenham como uma ação declarativa em que o embargante surge como autor e o embargado como réu, são de lhe aplicar os critérios gerais da repartição do ónus da prova, definidas no art. 342º do Cód. Civil.

Ou seja:

- o autor terá o ónus de alegar e provar os factos constitutivos correspondentes à situação de facto traçada na norma substantiva em que funda a sua pretensão;

- ao réu compete-lhe a alegação e prova dos factos impeditivos ou extintivos da pretensão da contraparte, determinados de acordo com a norma em que assenta a exceção por ele invocada.[1]

Por conseguinte, transpondo estas regras para o domínio da oposição à execução, ao embargante caberá a prova dos fundamentos de oposição que por si foram invocados, porque desta são factos constitutivos, o que significa que lhe cabe o encargo da prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito cuja satisfação coativa é objeto da execução.[2]

A oposição por embargos não implica assim qualquer desvio às regras gerais sobre a distribuição do ónus da prova.

2. Regressando ao caso dos autos, verifica-se que no âmbito do presente recurso se encontra em apreciação apenas um dos fundamentos em que a executada fundou os seus embargos e que se prende com o incumprimento, por parte do exequente, de uma formalidade legal na resolução do contrato de arrendamento, uma vez que a carta enviada com vista a essa resolução, segundo alega a embargante, não se mostra assinada.

Dispõe o art. 9º, nº 1 do NRAU [Novo Regime do Arrendamento Urbano] que «salvo disposição da lei em contrário, as comunicações legalmente exigíveis entre as partes, relativas a cessação do contrato de arrendamento, atualização da renda e obras, são realizadas mediante escrito assinado pelo declarante e remetido por carta registada com aviso de receção.»

Resulta desta disposição legal que no tocante à comunicação resolutiva do arrendatário basta que esta se faça por escrito assinado pelo declarante e remetido por carta registada com A/R, sendo que, caso a forma exigida por lei não seja seguida, a consequência deverá ser a nulidade da comunicação – art.220º do Cód. Civil.[3]

Ora, se a embargante, ora recorrente, sustenta que o contrato de arrendamento não deveria ter sido considerado resolvido, por incumprimento de uma formalidade legal prevista no art. 9º, nº 1 do NRAU, projetando-se a eventual invalidade dessa resolução na inexequibilidade do título dado à execução, cabe-lhe, de acordo com o já exposto, o ónus da prova desse incumprimento.

3. Acontece que na sentença recorrida, cuja factualidade não se mostra impugnada, deram-se como provados sobre esta questão os seguintes factos:

- O embargado comunicou por carta, datada de 28.9.2020, a resolução do contrato de arrendamento (nº 36);

- Encontra-se junta aos autos como doc. 4 com a p.i., uma carta que tem como remetente o embargado e foi junta pela embargante, que não se mostra assinada pelo embargado (nº 52).

No que concerne ao facto provado nº 52 a Mmª Juíza “a quo”, em sede de fundamentação de facto, escreveu que este “assentou na prova documental junta aos autos, designadamente no documento 4 junto com a p.i. de embargos, o qual se trata da carta de resolução junta pela embargante e que lhe terá sido remetida pelo embargado e da qual não consta a assinatura deste. Todavia, não se logrou apurar se se trata da carta original remetida pelo embargado à embargante ou de uma cópia, se os exemplares remetidos aos outros destinatários da carta também não estavam assinados.”

A questão que então se coloca é a de saber se estes dois factos provados – nºs 36 e 52 – são suficientes para se considerar que a executada/embargante logrou demonstrar que a resolução do contrato de arrendamento por parte do exequente/embargado foi efetuada sem respeito pelas formalidades legais atinentes, mais concretamente sem que a carta resolutiva estivesse assinada por este último.

Como já atrás se referiu, trata-se de matéria cuja prova incumbia à embargante e daquilo que se provou apenas resulta que foi junta ao processo, como documento nº 4 da petição inicial, uma carta que tem como remetente o embargado e que não se mostra assinada por este.

Ora, a simples junção deste documento não nos permite concluir que o embargado cumpriu todas as formalidades legais relativas à resolução do contrato de arrendamento, nem que não as cumpriu.

Com efeito, a factualidade assente não é de molde a considerar que o embargado assinou a carta resolutiva enviada à embargante e aos restantes senhorios, nem que não a assinou. Até porque, tal como salientou a Mmª Juíza “a quo”, não se conseguiu apurar se o referido documento nº 4 corresponde à carta original remetida à embargante ou se se trata de uma mera cópia.

Sucede que no art. 414º do Cód. Proc. Civil, cuja epígrafe é «princípio a observar em casos de dúvida», estatui-se o seguinte:

“A dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita.”

Existindo uma situação de incerteza probatória, a decisão só pode ser tomada mediante a aplicação da regra do ónus da prova objetivo. O ónus da prova objetivo significa que é sempre sobre a parte onerada com a prova dos factos que recaem as consequências da falta ou insuficiência da prova, ou seja, perante a dúvida irredutível sobre a realidade do facto que é pressuposto da aplicação de uma norma jurídica, o julgador decide como se estivesse provado o facto contrário. Assim, se após a valoração da prova, o juiz entender que há factos que permanecem duvidosos e incertos (ocorre uma deficiência probatória), terá de recorrer ao ónus da prova, valorando a prova contra a parte a quem incumbia tal ónus, respondendo não provado ao artigo factual correspondente – cfr. LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, “Prova por Presunção no Direito Civil”, 3ª ed., págs. 171/172.

Por seu turno, LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2º, 4ª ed, pág. 215) afirmam que no art. 414º do Cód. Proc. Civil, ao consagrar-se que a dúvida sobre a realidade de um facto se resolve contra a parte a quem o facto aproveita, tal significa que a dúvida do julgador sobre a ocorrência de um facto equivale à falta de prova desse facto, pelo que resulta em desvantagem para a parte que tinha o ónus de o provar.

Neste contexto, atendendo a que à embargante cabia fazer a prova dos factos impeditivos ou extintivos da obrigação exequenda, o que, neste caso, se prende com a prova de que a resolução do contrato de arrendamento por parte do embargado foi feita sem respeito pelas pertinentes formalidades legais, teremos de concluir que essa prova não se concretizou.

É que não se tendo provado que a carta através da qual o embargado procedeu à resolução do contrato de arrendamento foi assinada por este, nem que não foi assinada, estamos remetidos para uma situação de dúvida.

A junção aos autos pela embargante de uma carta que tem como remetente o embargado e não se mostra assinada por este não basta para afastar essa dúvida, desde logo porque não se logrou apurar se essa carta é, ou não, o original remetido à embargante ou se se trata de uma cópia.

Assim, o quadro de dúvida impõe que esta seja resolvida contra a parte a quem o facto aproveita, ou seja, contra a embargante, o que impõe a confirmação da decisão recorrida que julgou improcedentes os embargos.


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Sumário (da responsabilidade do relator – art. 663º, nº 7 do Cód. Proc. Civil):

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DECISÃO

Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este tribunal em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pela embargante AA e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.

Custas a cargo da embargante/recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido.


Porto, 13.5.2025
Rodrigues Pires
João Ramos Lopes
Márcia Portela
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[1] Cfr. Ac. STJ de 13.2.2003, p. 02B4577, relator MIRANDA GUSMÃO, disponível in www.dgsi.pt.
[2] Cfr. Ac. Rel. Coimbra de 15.1.2013, p. 1500/03.6TBGRD-B.C1, relator HENRIQUE ANTUNES, disponível in www.dgsi.pt.
[3] Cfr. FERNANDO BAPTISTA DE OLIVEIRA, “A Resolução do Contrato no Novo Regime do Arrendamento Urbano”, 2007, pág. 152.