I - A causa de pedir na ação executiva não se confunde com o título executivo.
II - Sendo o título executivo constituído por documento em que a executada reconhece unilateralmente uma dívida, sem indicação da respetiva causa, entende-se, em face do disposto no art. 458º nº 1 do C.C, que a declaração de dívida faz presumir a existência da mesma, invertendo o respetivo ónus da prova (apesar de não exonerar o credor da alegação da fonte constitutiva da obrigação).
III - Dessa forma, a presunção da existência de causa debendi para a promessa de prestação ou o reconhecimento de dívida referidos no art.º 458.º n.º 1 do Código Civil, que constitui a verdadeira fonte da obrigação a executar, pode ser afastada por prova em contrário da executada.
IV - Tal acontece se a executada logrou provar não existirem movimentos contabilísticos da sociedade de suporte ao empréstimo invocado pelo exequente no requerimento executivo como causa debendi.
Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo de Execução do Porto - Juiz 1
Juíza Desembargadora Relatora:
Alexandra Pelayo
Juízes Desembargadores Adjuntos:
Rui Moreira
Alberto Eduardo Taveira
SUMÁRIO:
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Acordam os Juízes que compõem este Tribunal da Relação do Porto:
I-RELATÓRIO:
Nos autos de execução para pagamento de quantia certa que AA move contra a sociedade A..., Lda. a executada A..., Lda., veio apresentar EMBARGOS DE EXECUTADO, tendo invocado a inexistência e inexequibilidade do documento particular dado à execução e a falta de autenticidade do documento particular junto no Requerimento Executivo, o que pretende ver declarado, com a consequente absolvição da Embargante da instância, e extinção da execução.
Defendeu-se ainda afirmando desconhecer a dívida perante o exequente, com base num direito de crédito sobre a Embargante num total de Euros 44.129,00, dizendo que a sua contabilidade não revela qualquer outro movimento financeiro efetuado pelo Exequente a crédito de uma conta bancária da Executada, para além dum movimento datado de 07.12.2016, no valor de € 3.000,00 e que desconhecia a existência do documento oferecido como titulo executivo.
Pede a condenação do Exequente como litigante de má-fé em indemnização a pagar à Embargante nos termos do disposto no artigo 542º, nº 1 do CPC.
Admitidos liminarmente os Embargos, veio o Exequente contestar, pugnando pela improcedência das exceções invocadas, defendendo-se dizendo em suma que o título executivo não constitui um mero documento particular porquanto se encontra devidamente autenticado, constituindo por isso título executivo válido.
Veio a ser proferido despacho saneador que julgou procedentes os embargos de executado e determinou a extinção da execução por falta de título executivo.
Interposto recurso pelo exequente foi proferido acórdão por este Tribunal da Relação, datado de 13.6.2023, que julgou o mesmo procedente e determinou a substituição daquele despacho por outro que pressuponha que o documento dado à execução é um documento autenticado, sendo válido e podendo servir de base à ação executiva.
Tendo baixado o processo à primeira instância, foi proferido despacho saneador e despacho a fixar o objeto do litigio e a enunciar os temas da prova, que não mereceu reclamações.
Foram arroladas testemunhas, juntos documentos, e determinada oficiosamente a realização de uma perícia à contabilidade da executada.
Foi realizada a audiência de julgamento e no final, foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, julgo os presentes procedentes por provados e consequentemente, determino a extinção da execução.
Mais se determina o levantamento de eventuais penhoras efetuadas na execução.
Condeno a exequente/embargada nas custas do processo.”
Inconformado, o exequente AA, veio interpor o presente recurso, tendo apresentado as seguintes conclusões:
(…)
Respondeu ao Recurso a executada/embargada, A..., LDA, pugnando pela sua improcedência, concluindo da seguinte forma:
(…)
Foi proferido despacho que admitiu o recurso como apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo – art. 629.º, n.º 1, do art. 637º, nº 1, art.638º, nº 1 art. 644º, nº 1 al. a), art. 645º, n.º 1 e art. 647º, nº 1, todos do Código de Processo Civil.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II-OBJETO DO RECURSO
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do Recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso.
As questões decidendas são as seguintes:
-valor probatório da confissão de dívida corporizada no documento que constitui o título executivo;
-existência de contradição na sentença entre a confissão da dívida e os factos dados como provados nºs 6 7 e 8.
III-FUNDAMENTAÇÃO:
Na sentença, foram julgados provados os seguintes factos:
1.O título que serve de base à execução apensa, é o documento denominado “Declaração de Dívida, datada de 25.9.2017, subscrita e assinada por BB, na qualidade de gerente da sociedade executada, “A..., LDA”, cuja assinatura, nessa qualidade foi reconhecida por CC, Advogada, nos termos constantes do Registo On Line dos Atos dos Advogados, e nos demais termos desse documento constante, e com o seguinte teor:
2) BB, sócio da executada, foi nomeado gerente único da sociedade em 7.6.2016, estando essa nomeação registada no Registo Comercial pela AP. ..., e renunciou à gerência em 14 de fevereiro de 2020 (cfr. An. 1 – 20200416)
3) O Exequente, em 25.1.2017, adquiriu uma quota na sociedade executada de € 1650,00, a BB, que assim foi titular até 21.09.2017, data em que transmitiu essa quota e nesse montante à Executada, A..., Lda.
4) Posteriormente, e sucessivamente, DD, adquiriu essa quota, à A..., em 2018-11-07, e bem ainda, sucessivamente, em 2018-11-07 e 2020-02-16 adquiriu a BB, as quotas de que este era titular na sociedade executada, nos demais termos constantes da certidão do registo comercial junta aos autos, e cujo teor no mais, relativamente a essas aquisições se dá aqui por reproduzida, e bem ainda nos termos constantes do Contrato de Cessão de Quotas da A..., Lda, datado de 7.2.2020, junto aos autos em 10.1.2023, e cujo teor no mais se dá aqui por reproduzido.
5) Assim, à data de entrada em juízo que da execução, quer da petição de embargos de executado, e sem prejuízo das ulteriores alterações ao contrato/cessões de quotas constantes na Certidão do Registo Comercial junta aos autos, e na sequência de contratos de cessão de quotas celebrados entre DD e BB, as quotas da Embargante estavam concentradas na esfera jurídica da primeira.
6) Apenas em Dezembro de 2019 o documento dado à presente execução foi entregue pelo mencionado BB ao então contabilista da Executada, Senhor EE.
7) Facto que mais tarde, e passados meses foi dado a conhecer pelo referido EE à identificada DD, nessa altura gerente única da Executada
8) A contabilidade da Executada não revela movimentos financeiros a crédito efetuados pelo Exequente para contas bancárias da Executada, ou pagamentos por este a terceiros, fornecedores ou credores da executada.
E foram julgados não provados os seguintes factos:
a) Que o valor que consta no titulo dado à execução – Confissão de Divida – referido em 1, resulta de empréstimos pelo Exequente a pedido da executada e por manifesta dificuldade de tesouraria desta, para pagamento de diversas mercadorias, umas diretamente pelo exequente, outras através de transferências do exequente para a conta da executada.
IV-APLICAÇÃO DO DIREITO AOS FACTOS:
Na sentença sob recurso, o tribunal julgou procedentes os embargos de executado, deduzidos pela sociedade executada A..., LDA, com o seguinte fundamento: “O título dado à execução consiste num documento, assinado por BB, na qualidade de gerente da sociedade da executada, intitulado como “Declaração de Dívida,” e junto aos autos de execução, cujo teor se dá qui por reproduzido, datado de 25.9.20217.
Nos termos do artigo 458º, n.º 1, do Código Civil “Se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respetiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário”. Consagra tal preceito uma inversão do ónus da prova da relação fundamental ou subjacente, estabelecendo uma presunção da sua existência a favor do credor.
Reitera-se, uma presunção, o que não é o mesmo que dizer-se que se prescinde da causa, que a obrigação seja abstrata e autónoma. Simplesmente se presume até prova em contrário que a causa existe. (…)
E, desde que preencha os requisitos externos de exequibilidade previstos por lei, presume-se a existência do direito que o título corporiza, só suscetível de ser afastada pela prova da inexigibilidade ou inexistência do direito, a alegar e a provar pelo executado em oposição à execução.
Tal presunção só funciona, contudo, no confronto do devedor. Este sim, tem de provar a ausência da relação fundamental caso pretenda eximir-se à realização da prestação ou ao cumprimento da dívida.
Ora, no caso dos autos a embargante logrou tal prova.
Não existe qualquer obrigação do opoente subjacente àquela declaração de dívida.
O que tudo leva à procedência dos presentes Embargos de Executado, procedentes por provados, com a consequente extinção da execução a que estes autos se encontram apensos.”
O exequente ora Apelante, discorda da sentença desde logo, por entender que o documento que corporiza o título executivo não constitui uma “simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida”, mas sim um documento que integra uma confissão de dívida da executada, confissão essa com força probatória plena, pelo que, independentemente da prova produzida, porque não foi alegada a falsidade do documento, nem a existência de qualquer vício de vontade da declaração confessória, não podia a confissão de dívida contida naquele documento ser afastada, como foi na sentença.
Vejamos.
Não há dúvida que o documento dado à execução como título executivo corporiza uma declaração confessória, uma vez que a sociedade executada, através do seu então gerente, declara confessar-se devedor do exequente da quantia de €44.129,00 euros.
Declara ainda que irá proceder ao pagamento da aludida quantia, “após concordância do credor” da forma aí descrita.
Faz ainda esta declaração: “O devedor declara que o teor desta declaração corresponde à verdade e que irão cumprir integral e pontualmente os termos acima descritos, pelo que assina o presente acordo de pagamento”.
Como se assinala na sentença esta declaração confessória mostra-se unicamente assinada pelo então gerente da sociedade ora executada, nessa qualidade.
Desde já não concordamos com a afirmação feita pelo apelante na conclusão 16ª deste recurso, quando afirma que o documento “não deixa (quase) de formalizar um contrato celebrado entre as partes, pois bastar atentar no clausulado nos seus pontos 1, 2, 3, 4, 5, para facilmente se constatar que as mesmas, na decorrência do reconhecimento da dívida plasmado na confissão, estabeleceram, por mútuo acordo, o tempo e o modo de realização do pagamento devido pela embargante.”
É certo que no documento em causa o declarante faz alusão a um “acordo de pagamento”.
Porém, estando o documento subscrito apenas pela declarante (através do seu legal representante), a alusão a um acordo de pagamento, não lhe retira a nosso ver, a natureza de reconhecimento unilateral de dívida e de promessa de pagamento.
Feito este esclarecimento, a confissão assenta no princípio da autorresponsabilidade das partes e na regra da experiência segundo a qual, ninguém reconhece um facto desfavorável, salvo se o mesmo for verdadeiro.[1]
É consabido que a confissão constitui um meio de prova na medida em que se traduz no reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária (cf. art.º 352.º do Código Civil).
Explicando melhor o conceito de confissão, refere Lebre de Freitas que o reconhecimento incide sobre facto constitutivo do dever ou sujeição do confitente, extintivo ou impeditivo dum seu direito ou modificativo duma situação jurídica em sentido contrário ao seu interesse ou, a negação da realidade dum facto que lhe é favorável. [2]
A este propósito ensinava já o Professor Alberto dos Reis[3], que a confissão constitui prova, não a favor de quem a emite, mas a favor da parte contrária; recaindo necessariamente sobre factos desfavoráveis ao confitente e favoráveis ao seu adversário.
Segundo o disposto no artigo 358.º, n.º 2 do Código Civil, a confissão extrajudicial, em documento autêntico ou particular, considera-se provada nos termos aplicáveis a estes documentos e, se for feita à parte contrária ou a quem a represente, tem força probatória plena.
Com efeito, nos termos do art. 352º do C.C., a confissão é o reconhecimento que a parte faz de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária.
Dispõe o art. 376º nº 1 do C.Civil que o documento particular cuja autoria seja reconhecida nos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento.
2-Os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante.
Porque não foi impugnado de falso o documento em questão, nem foi invocada a invalidade da declaração por falta ou vício de vontade, temos de concluir que foi feita prova da existência de uma dívida de €44.129,00 euros da executada ao exequente, reconhecida pela executada.
Porém, na declaração confessória, que constitui uma declaração unilateral da devedora, não é indicada a origem daquela dívida, isto é a fonte da obrigação.
O apelante defende a não aplicabilidade do regime estabelecido no art. 458º do Código Civil, tal como foi entendido na sentença, por estarmos perante um documento que corporiza uma confissão sujeita a força plena, que apenas poderá ser afastada com base na falsidade do documento ou com a declaração da sua nulidade ou anulação, por falta ou vícios de vontade, nos termos do art. 359º do C.C.
Acontece que o que está aqui em causa é a exequibilidade do documento que corporiza o reconhecimento daquela dívida.
Este tribunal da Relação apreciou já em recurso anterior a questão da exequibilidade formal do título executivo, tendo-se entendido que, por se tratar de documento particular autenticado, o mesmo é suscetível de constituir título executivo, á luz do que dispõe o art. 703º nº 1 al b) do CPC.
O reconhecimento da dívida feita pela executada em documento autenticado constitui título executivo na execução apensa. Trata-se de um ato jurídico formalmente válido.
Tendo-se aí decidido pela validade formal do título executivo, por decisão transitada em julgado, a mesma impõe-se a título de caso julgado formal, nos termos do disposto nos artigos 619º e 620º do CPC.
Porém, essa decisão apreciou a validade do título no plano formal e já não da materialidade do título, questão diversa que está ora em apreço.
Como refere Rui Pinto[4], “Constituem títulos executivos extrajudiciais privados, por força da al. b) do nº 1 do art. 703º, os documento autênticos ou autenticados por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação, existente em face do titulo, vencida ou a vencer-se.
No plano formal cabem tanto as escrituras e testamentos públicos, como os cerrados, no seu original ou na certidão ou fotocópia autentica (cfr. arts. 383º,384º, 386º e 387º do C.C).
No plano material, tanto pode ser um titulo constitutivo – contrato de mútuo superior a 25.000 euros (cfr. art. 1143º do C.C), contrato de compra e venda de coisa imóvel (art. 875º CC) – como um título recognitivo da obrigação – confissão do ato ou facto que constituiu a dívida, nos termos dos artigos 352º, 358º nº 2 e 364º CC, ou reconhecimento da dívida nos termos do art. 458º CC. Mister é que se cumpram as exigência s de forma da al. b).”
A constituição ou o reconhecimento da obrigação deverão assim constar do titulo.
Acontece que, analisando o titulo executivo, não estamos perante um título executivo constitutivo de obrigações, mas antes perante um título executivo recognitivo, que serve para executar as obrigações que reconhece.
Isto posto, estamos ainda perante um título executivo em que se reconhece uma obrigação sem contudo estar indicada a respetiva causa.
O referido documento consubstancia uma declaração cujo conteúdo integra o reconhecimento de uma obrigação pecuniária do devedor – a ora executada - para com o credor – o ora exequente.
Dispõe o artigo 458.ºdo C.C sob o título Promessa de cumprimento e reconhecimento de dívida:
1. Se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respetiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário.
2. A promessa ou reconhecimento deve, porém, constar de documento escrito, se outras formalidades não forem exigidas para a prova da relação fundamental.
Como ensinam Pires de Lima e Antunes Varela,[5] em anotação a esta norma, não se consagra neste artigo o principio do negócio abstrato. O que se estabelece é apenas a inversão do ónus da prova da existência da relação fundamental.
Nos termos do n.º 1 do art.º 458.º do Código Civil, essa declaração faz presumir a existência e a validade da relação negocial fundamental, que in casu constitui a fonte da obrigação exequenda.
De facto, reconhece-se atualmente que a causa de pedir na ação executiva não se confunde com o título executivo, sendo certo que este, pese embora constitua a base da execução, por vezes carece de prova e alegação complementar para fundar a pretensão deduzida na execução (vide, desde logo, as alegações e diligências destinadas a tornar a obrigação exequenda certa, exigível e líquida, se o não for em face do título executivo – artigos 713.º e seguintes do CPC - além das situações de sucessão no direito ou na obrigação exequenda – art.º 54.º n.º 1 do CPC) - nomeadamente a alegação da causa da obrigação exequenda, se não constar do título executivo, conforme ocorre nas situações previstas no art.º 458.º n.º 1 do Código Civil.
Pensa-se, como Lebre de Freitas[6], que a presunção da existência de causa para a promessa de prestação ou o reconhecimento de dívida referidos no art.º 458.º n.º 1 do Código Civil não eximem o credor de, tanto na ação executiva como na ação declarativa, invocar a relação fundamental, enquanto facto constitutivo e individualizador da sua pretensão, face ao qual o alegado devedor deduzirá a sua defesa e serão invocáveis as exceções da litispendência e do caso julgado.
Desta forma, o que está em causa é a prova da relação fundamental enquanto facto constitutivo e individualizador da pretensão do exequente.
Na declaração de dívida em execução não consta a indicação da fonte constitutiva da obrigação, devendo por isso, tal fonte ser indicada no requerimento executivo.
Porém, o exequente, indicou no requerimento executivo a existência de um causa para a obrigação objeto de confissão.
Alegou no ponto 2 do requerimento inicial que: “O valor em causa foi emprestado pelo Exequente a pedido da executada e por manifesta dificuldade de tesouraria desta, para pagamento de diversas mercadorias, umas diretamente pelo exequente, outras através de transferências do exequente para a conta da executada, como em sede própria se provará.”
A indicação da causa no requerimento inicial, visa responder à exigência dela dever ser indicada no requerimento executivo, sob pena de ineptidão por omissão de indicação de causa de pedir (art.º 724.º n.º 1, alínea e), 186.º n.ºs 1 e 2 alínea a), 196.º, 577.º alínea b), 726.º n.º 2 alínea b) do CPC.[7]
Em face do disposto no art. 458º nº 1 do C.C, entende-se, com efeito que, a declaração de dívida faz presumir a existência da dívida, invertendo o respetivo ónus da prova, mas não exonerando o credor da alegação da fonte constitutiva da obrigação.
Porém em sede de prova, o exequente está dispensado de a provar, nos termos do art. 458º do CPC, uma vez que a existência de tal causa se presume, até prova em contrário.
No caso em apreço constata-se que, a executada logrou afastar a prova da existência da fonte da obrigação invocada como constitutiva da dívida confessada.
Com efeito, emergiu provado que:
8) A contabilidade da Executada não revela movimentos financeiros a crédito efetuados pelo Exequente para contas bancárias da Executada, ou pagamentos por este a terceiros, fornecedores ou credores da executada.
E concomitantemente foi julgado não provado que:
a) Que o valor que consta no titulo dado à execução – Confissão de Divida – referido em 1, resulta de empréstimos pelo Exequente a pedido da executada e por manifesta dificuldade de tesouraria desta, para pagamento de diversas mercadorias, umas diretamente pelo exequente, outras através de transferências do exequente para a conta da executada.
Tem assim de considerar-se afastada a presunção da existência da causa debendi invocada.
Quais as consequências desta situação na presente execução?
Toda a execução tem de ter por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva. Ora, o título executivo constitui pressuposto de carácter formal da acção executiva, destinado a conferir à pretensão substantiva um grau de certeza reputado suficiente para consentir a subsequente agressão patrimonial aos bens do devedor. Nessa medida, a acção executiva só pode ser intentada se tiver por base um título executivo que, para além de documentar os factos jurídicos que constituem a causa de pedir da pretensão deduzida pelo exequente, confira, igualmente, o grau de certeza necessário para que sejam aplicadas medidas coercivas contra o executado.
Como refere Lebre de Freitas,[8] “para que possa ter lugar a realização coativa duma prestação devida (ou do seu equivalente), há que satisfazer dois tipos de condição, dos quais depende a exequibilidade do direito à prestação:
a) O dever de prestar deve constar dum título: o título executivo. Trata-se dum pressuposto de carácter formal, que extrinsecamente condiciona a exequibilidade do direito (…), na medida em que lhe confere o grau de certeza que o sistema reputa suficiente para a admissibilidade da acção executiva.
b) A prestação deve mostrar-se certa, exigível e líquida (…). Certeza, exigibilidade e liquidez são pressupostos de carácter material que intrinsecamente condicionam a exequibilidade do direito, na medida em que sem eles não é admissível a satisfação coativa da pretensão”.
Se através da acção declarativa se visa a declaração de direitos – pré-existentes ou a constituir pela sentença –, na acção executiva não se cuida já de declarar direitos, mas de assegurar a sua reparação coativa, no pressuposto de que existem e de que foram violados.
Na acção executiva, face à inexistência de qualquer atividade declarativa, a obrigação exequenda tem de emergir diretamente do próprio título.
Tendo sido afastada, mediante prova do contrário, a presunção contida no título executivo, da existência de uma fonte da obrigação nas palavras de Pires de Lima e Antunes Varela, “a obrigação cai, não lhe servindo de suporte bastante nem a promessa de cumprimento nem o reconhecimento da dívida.”
Com efeito, como sublinham estes Professores, [9] em anotação ao artigo 458º do C.C., o nº 1: “(...). Nenhum dos atos a que nele se aludem (promessa de uma prestação ou reconhecimento de uma divida) constitui com efeito, fonte autónoma de uma obrigação (…). Criam apenas a presunção da existência negocial ou extranegocial (a relação fundamental a que aquele preceito se refere), sendo esta a verdadeira fonte da obrigação. Se o declarante ou seus sucessores alegarem e provarem que semelhante relação não existe (porque o negocio não chegou a constituir-se; porque é nulo ou foi anulado; porque não foi afinal o promitente o ator do dano que pretende reparar; porque contar a sua convicção inicial, não há responsabilidade objetiva naquele tipo de casos, etc), a obrigação cai, não lhe servindo de suporte bastante nem a promessa de cumprimento nem o reconhecimento da dívida”.
Assim sendo, em face da matéria de facto provada, a nosso ver outro não poderia ter sido o entendimento, que o que se mostra acolhido na sentença sob recurso.
Só assim não será, se se reconhecer a existência do vício apontado pelo recorrente no julgamento da matéria de facto, que se apreciará de seguida.
O apelante, nas conclusões de recurso não impugnou a matéria de facto, no sentido de requerer a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, pontos concretos da mesma, nos termos do disposto no art. 662.º, n.º 1 do CPCivil que dispõe que, “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos dados como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Para tanto, isto é, se o apelante pretendesse a reapreciação da matéria de facto, estaria sujeito aos ónus que lhe são impostos pelo art. 640º do CPC, que se traduzem na indicação dos concretos pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados; na indicação da decisão diversa que aos mesmos deva caber, devendo ainda especificar os meios de prova constantes do processo que no seu entender determinem uma decisão diversa quanto a cada um dos factos (nº 1 do art. 640º), ónus que não se mostra observado.
Com efeito, para que a parte que pretenda beneficiar dum “segundo julgamento” da matéria de facto, para poder ver ser reapreciada a prova produzida pelo tribunal superior, a lei impõe-lhe o cumprimento daqueles ónus, sob pena da rejeição do recurso.
No caso em apreço o apelante não impugna factos concretos cuja resposta pretende ver alterada, mediante um segundo julgamento por este tribunal de recurso.
Resulta das conclusões de recurso que delimitam o objeto do mesmo que, o que apelante pretende, é ver reconhecida a existência de um vício no julgamento da matéria de facto, traduzido na existência de contradição entre a confissão da devedora corporizada no titulo executivo e os factos dados como provados nºs 6 7 e 8, que têm a seguinte redação:
“6) Apenas em Dezembro de 2019 o documento dado à presente execução foi entregue pelo mencionado BB ao então contabilista da Executada, Senhor EE.
7) Facto que mais tarde, e passados meses foi dado a conhecer pelo referido EE à identificada DD, nessa altura gerente única da Executada
8) A contabilidade da Executada não revela movimentos financeiros a crédito efetuados pelo Exequente para contas bancárias da Executada, ou pagamentos por este a terceiros, fornecedores ou credores da executada.”
A contradição, segundo o exequente existirá com o teor do documento denominado “Declaração de Dívida, datada de 25.9.2017, subscrita e assinada por BB, na qualidade de gerente da sociedade executada, “A..., LDA em que aquela se confessa devedor àquele da quantia de €44.129,00 euros.
Como refere Abrantes Geraldes,[10] “a decisão da matéria de facto pode conter patologias que não correspondem verdadeiramente a erros de apreciação ou de julgamento. Umas poderão e deverão ser solucionadas de imediato pela Relação; outras poderão determinar a anulação total ou parcial do julgamento.”
A contradição constitui uma patologia que não corresponde verdadeiramente a erros de apreciação ou de julgamento, mas é suscetível de conduzir a anulação da decisão, nos termos do que dispõe o art. 662º nº 2 al.c) do CPC.
Como vimos o apelante não impugna a matéria de facto, com observância do art. 640º do CPC, limitando-se a invocar o vício de contradição, traduzida em factos provados inconciliáveis entre si.
Sob o conteúdo de respostas contraditórias, ensinava já o Professor Alberto dos Reis,[11]que “as respostas são contraditórias quando tem um conteúdo logicamente incompatível, isto é, quando não podem subsistir ambas utilmente”.
No acórdão da Relação de Èvora de 6.10.88,[12] “ a contradição implica a existência de “colisão” entre a matéria de facto constante de uma das respostas e a matéria de facto constante de outra das respostas, ou então com a factualidade provada nos eu conjunto, de tal modo que uma delas seja contrária da outra”.
Transpondo estes ensinamentos para o caso em apreço, a nosso ver não ocorre a contradição invocada pela simples razão de que os factos supostamente contraditórios reportam-se a realidades distintas.
Do teor do documento onde consta o reconhecimento da dívida pela executada não consta a causa debendi, presumindo a sua existência nos termos do art. 458º do Código Civil, que expressamente prevê a presunção “até prova em contrário”.
O facto 8 reporta-se á prova de factos que afastam a causa debendi invocada pelo exequente.
O documento que constitui o título executivo não integra no seu conteúdo a indicação da fonte, ou da causa da dívida confessada.
Já o facto provado 8 reporta-se à prova de factos que afastam a fonte da obrigação indicada pelo exequente no requerimento executivo de que “o valor em causa foi emprestado pelo Exequente a pedido da executada e por manifesta dificuldade de tesouraria desta, para pagamento de diversas mercadorias, umas diretamente pelo exequente, outras através de transferências do exequente para a conta da executada”, causa que não consta do documento.
Os demais factos reportam-se apenas ao conhecimento da gerência que substituiu o signatário do documento em causa, do teor desse documento.
Não sendo indicada no documento a causa debendi, cuja existência apenas se presume, não existe a contradição invocada.
Desta forma, resta julgar improcedente o recurso e confirmar a sentença recorrida.
V-DECISÃO:
Pelo exposto e em conclusão acordam os Juízes que compõem este Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso e em confirmar a decisão recorrida.
Custas pelo apelante.
Porto, 13 de maio de 2025
Alexandra Pelayo
Rui Moreira
Alberto Taveira
____________
[1] Luís Filipe de Sousa, in Direito Probatório Material, Comentado, 2ª edição, Pg. 92.
[2] A Acção Declarativa Comum, à luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª edição, Coimbra Editora, pág. 254.).
[3] In Código de Processo Civil Anotado, vol. IV, pág. 76.
[4] In a Ação Executiva, Almedina, 2020, pg. 182.
[5] In Código Civil anotado, Vol I, 3º edição, Coimbra Editora, Limitada, pg 412.
[6] In A acção declarativa comum, Coimbra Editora, 2000, páginas 182 a 185 e A confissão no direito probatório, Coimbra Editora, 1991, páginas 387 a 391. Também Rui Pinto, ob citada, pgs. 311 e 312.
[7] Ver acórdão do STJ de 9.7.2024, no P 1591/17.2T8LOU-A.P1.S1, disponível in www.dgsi.pt.
[8] In “A Acção Executiva Depois da Reforma da Reforma”, pág. 29
[9] Ob citada pg. 413.
[10] In Recursos no Novo Código de processo Civil, Almedina, 5º edição, pg. 304.
[11] in CPC anotado, Vol IV, pg. 553.
[12] In BMJ380/559, citado por Geraldes, pg, Recursos, pg. 306 em nota de rodape´.