INSOLVÊNCIA CULPOSA
APRESENTAÇÃO À INSOLVÊNCIA
PRESUNÇÃO DE CULPA
NEXO DE CAUSALIDADE
Sumário

Sumário (do relator) – artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil.
I – A impugnação da matéria de facto não cumpre o ónus de especificação previsto na alínea c) do n.º1 do artigo 640.º do CPC, quando nem na motivação do recurso, nem nas respectivas conclusões se indica quais os factos a eliminar ou a alterar dos factos provados e não provados ou que os que haveria a inserir nuns ou noutros.
II – Segundo a alínea a) do nº 3 do artigo 186º do CIRE o incumprimento do dever de requerer a declaração de insolvência (artigo 18º, nº 1 do CIRE) faz presumir (“presume-se unicamente”) a culpa grave de quem não cumpriu tal dever, pese embora não faça presumir que a insolvência foi agravada por tal incumprimento, razão pela qual a qualificação da insolvência como culposa ao abrigo da referida alínea exige ainda a demonstração de que o incumprimento desse dever agravou a situação de insolvência.
III – Mostra-se ilidida a presunção de culpa grave resultante do incumprimento do dever de requerer atempadamente a insolvência da devedora, se não resultou provado que entre 2015 e 2016 o património da sociedade devedora tivesse diminuído e, designadamente com o objectivo de lesar os interesses dos credores ou até dos próprios administradores ou de terceiros.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa,

1. A sociedade S.T.A. – SOCIEDADE TORREENSE DE AUTOMÓVEIS, S.A., com os demais sinais nos autos, foi declarada insolvente por sentença proferida em 15/07/2016, transitada em julgado.
Entretanto, o Ministério Público veio requerer a abertura do incidente de qualificação da insolvência.
Declarado aberto o incidente de qualificação da insolvência, o Sr. Administrador da Insolvência juntou aos autos o seu parecer, que finaliza pela qualificação da insolvência como fortuita, por a insolvência da devedora se ter ficado a dever à difícil conjuntura económica que a economia nacional atravessou, à cessação de contrato com a PSA Gestão, factores que conduziram a queda de receitas, insuficientes para satisfazer as despesas, inviabilizando a manutenção da actividade, não se tendo apurado uma relação de benefício/prejuízo entre a insolvente e a Goiab, Lda.
Também o Ministério Público emitiu o seu parecer, que finaliza pela qualificação da insolvência como culposa, com fundamento no artigo 186º, nº 2, alíneas a), d), e), h), g) e i) e nº 3, alínea a) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante CIRE), devendo ser afectados pela referida qualificação os administradores, F1 e F2.
Notificada a devedora e citados os Requeridos/afectados nos termos do disposto no artigo 188º, nº 9 do CIRE, apenas o Requerido, F1, veio deduzir oposição, que termina com a qualificação da insolvência como fortuita.
Foi proferido despacho saneador, que fixou o objecto do litígio e enunciou os temas da prova.
Finda a audiência de julgamento, foi proferida sentença que termina com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, julgo procedente o presente incidente e, em consequência:
A) Qualifico como culposa a insolvência de S.T.A. – Sociedade Torreense de Automóveis, S.A. NIPC 503537993, com sede em Cruz do Barro, 2560-241 Torres Vedras;
B) Declaro afectados pela referida qualificação, F1 e F2;
C) Decreto a inibição de F1 para administrar patrimónios de terceiros por um período de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses;
D) Decreto a inibição de F2 para administrar patrimónios de terceiros por um período de 3 (três) anos;
E) Declaro F1 inibido para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa, pelo período de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses;
F) Declaro F2 inibido para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa, pelo período de 3 (três) anos;
G) Determino a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos por F1 e F2, condenando-os na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos;
H) Condeno F1 e F2 a indemnizarem os credores da sociedade devedora declarada insolvente, mediante montante a liquidar em incidente de liquidação, execução de sentença, nos termos do n.º 4 do art. 189.º do CIRE, até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos e considerando as forças dos respectivos patrimónios.
(…)”.
É desta sentença que vem interposto recurso, pelo afectado pela qualificação, F1, que o termina formulando as conclusões, que ora se transcrevem:
I. A decisão de que ora se recorre, após considerar não se verificarem os pressupostos das diversas alíneas do n.º 2 do art. 186.º do CIRE, qualificou como culposa a insolvência de S.T.A. – Sociedade Torreense de Automóveis, S.A. NIPC 503537993, com sede em Cruz do Barro, 2560-241 Torres Vedras, nos termos dos arts. 185.º e 186.º, n.º 3, alínea a) do CIRE (deixando, aqui, cair a acusação pelas diversas alíneas do n.º 2 do art. 186.ª do CIRE, pelas quais vinham indiciados), com todas as demais e legais consequências para os administradores F1 e F2, ao nível pessoal, profissional e patrimonial.
II. A simples apreciação dos factos dados como provados, conjugados com a prova documental junta ao PER (agora, Apenso A), a este Apenso E (Incidente) e aos autos principais e, ainda, complementarmente, a conjuntura vivida ao tempo (anos 2015 e 2016, com a crise anteriormente instalada, mormente, no mercado automóvel) impõe, a nosso ver, conclusão diversa daquela que o Tribunal a quo adoptou e a, consequente, revogação da decisão recorrida, pelo importa (re)apreciar a matéria de facto que a seguir se identificará, nos termos do art. 640.º, n.º 1, alíneas b) e c) e n.º 2 do CPC.
III. Sabemos que, a insolvência é culposa quando esse estado tiver sido criado ou agravado em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência (artº 186 nº 1 do CIRE) e que
IV. a qualificação da insolvência como culposa implica, necessariamente, uma conduta ilícita e culposa (elementos objectivos e subjectivos), no caso, dos seus administradores e que esta apreciação decorra de um juízo de censurabilidade, em cuja formulação devem ser consideradas as condições que justificam que lhes seja dirigida essa censura.
V. É, precisamente, com a conclusão pela censurabilidade da conduta que o Recorrente não pode concordar, pois, acredita que, de nenhum dos factos dados como provados e da sua apreciação como um todo (quando até conjugados com as regras da experiência comum), poderia resultar a conclusão que os administradores da Insolvente, STA – Sociedade Torreense de Automóveis, SA, nas circunstâncias concretas em que actuaram (tal como provado), podiam ter adoptado conduta, suficientemente diferente, de molde evitar a queda daquela na situação de insolvência ou o agravamento do seu estado, uma vez tida por verificada.
VI. Acredita o Recorrente que nada se pode retirar dos factos dados como provados que possa levar a deduzir que o comportamentos do(s) seu(s) administrador(es) foi censurável ao ponto de levar à insolvência e/ou de agravar o seu estado, quando,
VII. na verdade, aquilo que, daqueles factos, da documentação junta aos autos (principais e Apensos A e E) e da prova testemunhal apresentada, inclusive dos pareceres e depoimento do AI), tal como elencados nas supra cláusulas 9.ª e 26.ª das presentes alegações, se retira é o contrário: que tudo foi feito, pelo administrador aqui Recorrente (agora com 78 anos), para evitar que a sociedade (de cariz familiar e constituída por si em 16/11/1995) caísse naquela situação, e, também, que não foi a apresentação do PER (e os 4 meses em que correu termos - de Fevereiro a Junho de 2016) que levou ao agravamento da situação, tendo sido o Recorrente a reconhecer que nada mais haveria a recuperar e a, mediante requerimento ao processo, juntamente com o Administrador de Insolvência, pedir que viesse a ser declarada a Insolvência, mesmo antes de decorrido o prazo para apresentação do Plano de Recuperação.
VIII. Errou o Tribunal na apreciação da qualificação da culpa e errou o Tribunal no pressuposto de que partiu para essa qualificação: o de que o Recorrente (a Insolvente) deixou passar o prazo para apresentação do Plano no PER, sem o justificar, porquanto está demonstrado nos autos que, antes de decorridos os 2 meses (e sem recorrer a qualquer pedido de prorrogação), o Recorrente apresentou junto do AI e este junto do processo (requerimento com a ref.ª 4038978 de 30/06/2016 – email do AI junto a 29/06/2016 ao Apenso A) o pedido de declaração de insolvência, justificando o porquê de ter afinal optado por não prosseguir com o PER.
IX. Ao contrário daquele mesmo pressuposto, está demonstrado nos autos o seguinte:
a. a 26/02/2016 foi apresentado o requerimento inicial de submissão a PER;
b. a 26/04/2016 foi apresentada a Lista Provisória de Credores;
c. em 11/06/2016 foi apresentada a Lista Provisória de Credores corrigida, após despacho de aperfeiçoamento pedido pelo próprio Tribunal;
d. a 29/06/2016 pela Insolvente foi pedida a declaração da Insolvência, por se entender que apresentar um Plano, após frustradas as negociações com as (outrora) entidades financiadoras, de nada adiantaria, podendo tudo isto ser verificado pela consulta do Apenso A – tudo conforme, requerimentos com as ref.ªs 3572730 (18/04/2016), ref.ª 129260275 (08/06/2016) e ref.ª 4038978 e 30/06/2016.
X. Aquilo que aqui se contesta é o entendimento jurídico sufragado no acórdão recorrido, o erro de decisão (error in iudicando), mas também a contradição entre a prova (documental e testemunhal) produzida nos autos e a decisão de mérito.
XI. Sem prejuízo da reapreciação da prova, nomeadamente dos documentos (juntos aos autos ou para os quais neste Apenso E se remeteu – processo principal e Apenso A -) e testemunhos prestados, desde logo, de nenhum facto da matéria que está provada se pode retirar que foi o incumprimento da alínea a) do n.º 3 do art. 186.º do CIRE foi causal da criação da situação de insolvência da sociedade ou do agravamento dessa situação.
XII. Isto é, para além de termos como ilidida a culpa (grave, tal como presumida na alínea a) do n.º 3 do art. 186.º do CIRE), a ter acontecido tal comportamento culposo não terá o mesmo funcionado, in casu, como causa do estado insolvencial da sociedade ou sequer o tenha agravado.
XIII. A qualificação como culposa, no caso concreto, teve como único fundamento o da alínea a) do n.º 3 do art. 186.º do CIRE: o incumprimento do dever de requerer a insolvência.
XIV. Conclusão que entendemos ser errada, porquanto, desde logo contrária aos diversos elementos de prova trazidos aos autos, nomeadamente, (I) ao parecer do AI (ref.ª 10109453 – fortuita); (II) ao relatório Art. 155.º do CIRE ( ref.ª4383584 dos autos principais, de 12/09/2016); (III) ao Complemento ao parecer do AI ( ref.ª 10752354 – fortuita); (IV) ao testemunho do Sr. Administrador Judicial, JC - cfr. depoimento prestado em audiência, entre as 10:06:39 e as 10:31:57 do 29/11/2023 - onde afirma defender a qualificação da insolvência como fortuita, por força da conjuntura geral e da crise na própria actividade, concretizando que, no caso concreto, após a perda da concessão Peugeot e do apoio financeiro da PSA Finance (posteriormente Banco Santander Consumer), a devedora não possuía a liquidez necessária para a manutenção da sua atividade; que a última prestação de contas depositada reporta-se ao ano de 2015 e data de 26-09-2016; que mantendo-se a falta de liquidez da sociedade, o Requerido F1 decidiu apresentar a sociedade insolvente a um PER.; que relativamente ao ano de 2015, a insolvente apresentou Capital Próprio: - 403.342,42; Passivo: 3.034.173,12; Ativo: 2.630.830,70; Resultado Líquido do Exercício: -210.046,70; que em 26-02-2016, a devedora apresentou-se a PER (Processo Especial de Revitalização), o qual foi encerrado sem plano de recuperação; que foram reconhecidos créditos no valor total de € 4 057 342, 49, sendo € 96 201, 05, da Autoridade Tributária, referente a impostos vencidos de Agosto a Dezembro de 2015 e de Janeiro a Junho de 2016, e € 180 738, 98, do ISS, IP, referente a contribuições vencidas desde Setembro de 2014, 2015, até Junho de 2016, incluindo créditos laborais, vencidos em 2012 e, na sua maioria, em 2015,
XV. aos testemunhos dos trabalhadores da STA, SA,
a. T1, afirmou ter trabalhado como administrativa para a STA de 1992 até 2016 - depoimento prestado a 29/11/2023, entre as 10:33:23 e as 10:39:15;
b. T2, afirmou ter trabalhado para a insolvente cerca de 10 anos no balcão das peças da STA, até à insolvência - depoimento prestado entre as 10:40:12 e as 10:45:01 daquele mesmo dia;
c. T3, que trabalhou como mecânico de automóveis de 2013 a 2015 na STA, SA - depoimento prestado a 29/11/2023, entre as 10:45:39 e as 10:51:32) e, ainda
d. T4, que afirmou ter trabalhado cerca de 9 anos, até 2016, para a STA, nos recursos humanos, economato e seguros – vide depoimento prestado entre as 10:52:25 e as 10:58:09 do dia 29/11/2023 e
XVI. ao IES de 2015 da insolvente, junto ao Apenso E, a 29/11/2023;
XVII. Não se verificou a situação contida na alínea a) n.º 3 do art. 186.º do CIRE, pela qual o Tribunal qualificou como culposa da insolvência, porquanto não se retira dos factos provados ou dos testemunhos prestados que a situação de insolvência foi criada ou agravada por qualquer conduta ou omissão dos Administradores, nos 3 anos anteriores ao início do processo, inexistindo qualquer nexo de causalidade entre uma coisa e outra, tanto mais que:
a. nesse mesmo ano foram prestadas as contas relativas ao ano de 2015 e apenas nesse ano houve saldo negativo e de cerca de €210.000,00 (Facto Provado da alínea p), Parecer, Relatório e depoimentos do AI acima identificados);
b. o Requerido F1 decidiu recorrer ao PER, em Fevereiro de 2016, por acreditar na empresa, pelo facto de ser Administrador da STA,SA e desta estar no mercado automóvel há mais de 20 anos (1995 a 2016), sendo que até 2014 havia dado lucro; (Factos Provado alíneas das a), f), g), l), m), n) e o), Parecer, Relatório e depoimento do AI, tal como acima identificados);
c. Foi o Requerido F1 que, antes de decorrido o prazo para apresentação do Plano de Insolvência ( o AI apenas o veio a apresentar, após ordem de aperfeiçoamento pelo Tribunal, em Junho de 2016), a 29 de Junho de 2016, em conjunto com o AI e com o conhecimento deste veio prescindir do direito de apresentar o mesmo e pediu que fosse, desde logo ( sem esgotar o prazo de apresentação ou solicitar prorrogação), declarada a Insolvência – cfr. requerimento junto ao agora Apenso A – PER, ao tempo o P.º n.º 875/16.1T8VFX, Juízo de Comércio de Vila Franca de Xira - Juiz 2 (PER), pelo AI, em 30/06/2016 – Ref.ª 4038978.
d. A insolvente identificou os veículos automóveis, tendo prestado nos autos a colaboração possível quanto à sua titularidade e paradeiro, cfr. se retira, desde logo, da Acta da Assembleia de Credores de 16/09/2006 – Ref.ª 130594705, 130839283 e 131181927 e alínea O) dos factos dados como provados, bem como depoimento do AI, prestado a 29/11/2023.
XVIII. Como acima já referido, foi o recorrente, enquanto administrador da Insolvente que, Junho de 2016, ao invés de atrasar o processo apresentando Plano de Recuperação que, a essa altura, já sabia que não seria aprovado pela financeira aliada à Peugeot (PSA e, depois, Santander Consumer), veio, de imediato, justificando o porquê, apresentar-se à Insolvência, conforme requerimento junto ao agora Apenso A – PER, ao tempo o P.º n.º 875/16.1T8VFX, Juízo de Comércio de Vila Franca de Xira - Juiz 2 (PER), pelo AI, em 30/06/2016 – Ref.ª 4038978, não tendo, também aqui contribuído, entorpecendo-a, para o agravamento da insolvência àquela data reconhecida.
XIX. Sentido algum fará serem penalizados os Administradores por não terem apresentado Plano de Recuperação (e tal implicaria, sim, adiar a declaração de insolvência), e terem, desde logo, ao invés, pedido que a mesma viesse a ser declarada - requerimento junto ao PER, P.º n.º 875/16.1T8VFX, Juízo de Comércio de Vila Franca de Xira - Juiz 2 (PER), pelo AI, em 30/06/2016 – Ref.ª 4038978.
XX. Acreditamos, pois, que os factos dados como provados, nomeadamente os descritos nas alíneas f), g), m), n), o), p) e u) da decisão recorrida, levam, por si só, à qualificação como fortuita e
XXI. a esta classificação levam, igualmente, os relatório, parecer e complemento a este (requerimento de 08/04/2021, com as ref.ª 0752354) do AI, JC, bem como os depoimentos prestados por este e pelas testemunhas, em audiência, sendo que todos esses elementos de prova foram já acima identificados.
XXII. Ainda que tivessem os Administradores incumprido o dever constante da alínea a) do n.º do art. 186.º do CIRE, não basta a simples demonstração da sua existência e a consequente presunção de culpa que sobre os administradores recai pois estas presunções (ilidíveis) exigem a demonstração do nexo causal entre as atuações omissivas e a situação da verificação da insolvência ou do seu agravamento – Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06.10.2011, disponível in www.dgsi.pt.
XXIII. A crise financeira, agravada pela conjuntura mundial e europeia que se viveu desde o ano 2009, e que durante os anos de 2015 e 2016 se manteve; a resolução pela Peugeot Portugal do negócio da venda dos veículos novos e do da reparação de veículos usados e a consequente exigência de pagamento do saldo da conta corrente, sem o apoio, já, da PSA (financeira que intermediava a Peugeot e os concessionários, viabilizando os créditos e compras, etc.) bem como o vencimento de garantias, etc., fez com que a Devedora nos anos de 2014 e 2015 quase colapsasse e em 2016 colapsasse mesmo, à semelhança de muitas outras congéneres da sua zona geográfica e de todo o país (vide Relatório a que se refere o art. 155.º do CIRE no PER, Parecer, Complemento e depoimento do AI - Parecer AI (ref.ª 10109453 – fortuita); Relatório Art. 155.º do CIRE ( ref.ª4383584 dos autos principais, de 12/09/2016); Complemento ao parecer do AI ( ref.ª 10752354 – fortuita); E depoimento prestado em audiência, entre as 10:06:39 e as 10:31:57 do 29/11/2023.
XXIV. Tal, por sua vez, levou a restrições para recurso ao crédito, que outrora era oferecido de forma abundante e quase impingido, sem o qual as PME – Pequenas e Médias Empresa-, como a Devedora, não sobrevivem, tendo em conta as obrigações contraídas e contratos de financiamento em vigor (vide Relatório a que se refere o art. 155.º do CIRE no PER, Parecer, Complemento e depoimento do AI - Parecer AI (ref.ª 10109453 – fortuita); Relatório Art. 155.º do CIRE (ref.ª4383584 dos autos principais, de 12/09/2016); Complemento ao parecer do AI (ref.ª 10752354 – fortuita); E depoimento prestado em audiência, entre as 10:06:39 e as 10:31:57 do 29/11/2023.
XXV. Como refere Rui Estrela de Oliveira, quanto à apreciação da culpa na conduta do(s) administrador(es) “É preciso que a mesma se revele irracional, desinformada, e/ou movida por interesses alheios à empresa.(...) e que “A racionalidade, neste caso concreto, permite-nos servir de bitola para casos fronteira na definição da insolvência culposa uma vez que assumindo a posição do visado pela insolvência nos é possível, muitas das vezes, apurar se a sua acção ou omissão se traduziu num acto passível de integrar o art. 186.º n.º 1 al. a) do CIRE.”
XXVI. A nosso ver, pode, mesmo, concluir-se, face ao teor dos factos dados como provados, aos testemunhos prestados pelo Sr. Administrador de Insolvência e pelas testemunhas, bem como face ao teor do Relatório, do Parecer e do complemento deste, todos elementos de prova já descritos nas cláusulas 9.ª e 26.ª supra (aqui se dão por reproduzidos), que a insolvência da STA, SA deveu-se a uma série de circunstancialismos, mormente externos e, no essencial, independentes da vontade dos seus administradores, sendo que tal não pode levar a concluir-se que foi a conduta destes (por acção ou omissão) que deu causa à insolvência ou que a tenha agravado.
XXVII. A qualificação da insolvência como culposa implicará sempre a alegação e prova do nexo de causalidade entre a omissão a que se refere a al. a) do n.º 3 do art. 186.º do CIRE e a criação ou agravamento da situação de insolvência. E como no caso vertente nada foi alegado e provado nesse sentido, teria a insolvência que ser qualificada como fortuita.
XXVIII. Deve, pois, ao contrário daquilo que conclui o Tribunal a quo, considerar-se que
- a apreciação da matéria constante dos factos dados como provados, conjugados com a prova documental junta ao PER (agora, Apenso A), a este Apenso E (Incidente) e aos autos principais e com os testemunhos, nomeadamente do AI, quando, interpretados com a conjuntura vivida ao tempo (anos 2015 e 2016, com a crise anteriormente instalada, mormente, no mercado automóvel) impõe, a nosso ver, conclusão diversa daquela que o Tribunal a quo adoptou e a, consequente, revogação da decisão recorrida, o que ora se alega, nos termos e para os efeitos do preceituado no art.º 640.º, n.º 1, alíneas b) e c) e n.º 2 do CPC, nomeadamente
- não se verificar o circunstancialismo da alínea a) do n.º 3 do art. 186.º do CIRE e ter-se por ilidida a presunção de culpa inerente à verificação desse circunstancialismo, previsto na alínea a) do n.º 3 do art. 183.º do CIRE e, ainda,
- a dar-se por verificado tal circunstancialismo, ter-se por inexistente qualquer nexo causal entre um eventual atraso na apresentação da insolvência e a criação desse estado ou seu agravamento, alterando-se a qualificação da insolvência para fortuita, julgando-se procedentes as presentes alegações, revogando-se a douta sentença.
Notificado da interposição do recurso, veio o MP apresentar contra-alegações onde conclui inexistir qualquer erro, por parte do Tribunal a quo, na apreciação da qualificação da culpa, ou no pressuposto de que partiu para essa qualificação, negando ainda qualquer “contradição entre a prova (documental e testemunhal) produzida nos autos e a decisão de mérito”, pugnando pela manutenção, na sua integralidade, da matéria de facto provada e não provada constante da sentença proferida pelo tribunal a quo, por suficiente para a decisão proferida, por esta não padecer de qualquer vício, erro ou nulidade.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
2. Como é sabido, o teor das conclusões formuladas pelo recorrente define o objecto e delimitam o âmbito do recurso (artigos 608º, nº 2, 609º, 635º, nº 3 e 639º, nº 1 todos do Código de Processo Civil).
Ora, segundo as alegações de recurso, o que o Recorrente pretende, para além da, pelo menos aparentemente alegada impugnação da matéria de facto, é que se esclareça se a factualidade dada por assente é suficiente para se concluir se actuou de forma a preencher a conduta previstas na alínea a), do nº 3 do artigo 186º do CIRE.
2.1. Pese embora não o diga com suficiente clareza, deduz-se das suas alegações – designadamente das várias vezes que refere o artigo 640º, nºs 1, alíneas b) e c) e 2 do CPC – que o Recorrente pretende impugnar a decisão relativa à matéria de facto.
Mas, decorre daquele preceito que, se for impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente tem o ónus de especificar, sob pena de rejeição da alegação nessa parte:
- os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (artigo 640º, nº 1, alínea a));
- os concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida (artigo 640º, nº 1, alínea b));
- a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (artigo 640º, nº 1, alínea c).
Segundo comenta ABRANTES GERALDES, a alínea c) do nº 1 do artigo 640º do CPC impõe ao apelante que impugne a decisão sobre a matéria de facto, que, na motivação, expresse “a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do ónus de alegação, por forma a obviar a interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente.”[1] A falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação, acarreta a rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto.[2] É só não estará “vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações”.[3]
Ora, apesar da referência inicial ao artigo 640º, nºs 1, alíneas b) e c) e nº 2 e seguintes do CPC, o certo é que, nem na motivação do recurso, nem nas respectivas conclusões se indica quais os factos a eliminar ou a alterar dos factos provados e não provados ou que os que haveria a inserir nuns ou noutros. Ou seja, a afirmação do Recorrente de que a apreciação da matéria constante dos factos dados como provados, conjugados com a prova documental junta ao PER, a este apenso e aos autos principais e depoimentos, nomeadamente do AI, leva a conclusão diversa daquela a que chegou o tribunal a quo (cfr. conclusão XXVIII, primeiro parágrafo), não tem qualquer consequência em termos de impugnação da decisão recorrida, uma vez que não indica “a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas” (artigo 640º, nº 1, alínea c) do CPC).
Assim, desde logo, cremos que a impugnação da matéria de facto não cumpre o ónus de especificação previsto na alínea c) do n.º1 do artigo 640.º do CPC. Como tal, não se admite o recurso, na parte respeitante à impugnação da matéria de facto.
3. Na sentença impugnada foram dados como provados os seguintes factos, que ora se transcrevem:
a) A insolvente S.T.A. – Sociedade Torreense de Automóveis, S.A., NIPC 503537993, é uma sociedade comercial anónima, constituída em 16-11-1995, com sede em Cruz do Barro, 2560-241 Torres Vedras, e com o objecto social “Compra e venda de veículos automóveis, peças; acessórios e componentes, sua manutenção e reparação; compra e venda de combustíveis e lubrificantes”.
b) Tem o capital social de € 400.000,00, realizado em 80.000 acções, com o valor nominal de € 5,00, cada, ao portador, podendo ser convertidas em nominativas.
c) Integram o Conselho de Administração F2 e F1.
d) Desde a data da constituição até 31-10-2014 (registada a 03-02-2016), integrou o Conselho de Administração RA, que presidiu desde 07-10-2010.
e) A sociedade obriga-se com a assinatura de qualquer dos administradores.
f) A última prestação de contas depositada reporta-se ao ano de 2015 e data de 26-09-2016.
g) Em 26-02-2016, a devedora apresentou-se a PER (Processo Especial de Revitalização), o qual foi encerrado sem plano de recuperação.
h) Na sequência de certidão extraída do PER, junta aos autos em 11-07-2016, foi proferida, em 15-07-2016, sentença declaratória de insolvência da devedora, transitada em julgado.
i) Foram reconhecidos créditos no valor total de € 4.057.342,49, sendo € 96.201,05, da Autoridade Tributária, referente a impostos vencidos de Agosto a Dezembro de 2015 e de Janeiro a Junho de 2016, e € 180.738,98, do ISS, IP, referente a contribuições vencidas desde Setembro de 2014, 2015, até Junho de 2016, incluindo créditos laborais, vencidos em 2012 e, na sua maioria, em 2015.
j) Para a massa insolvente, foram apreendidos bens móveis (31 verbas), liquidadas pelo valor de € 8.050,00 e saldo de conta bancária no montante de € 11.062,91, encontrando-se finda a liquidação.
k) Foi deduzida acusação, no processo 2818/16.3T9LRS, Juízo Local Criminal de Torres Vedras, Juiz 2, contra o Requerido F1 como autor material, na forma consumada, de um crime de insolvência dolosa, p. e p. pelo art. 227.º, n.º 1, al. a), e n.º 3, agravado, nos termos do disposto do art. 229.º-A, ambos do C. Penal, tendo sido proferida sentença “verbal” em 21-04-2023, ainda não depositada.
l) Era o Requerido F1 quem sempre tomava todas as decisões, por conta e no interesse da insolvente, quem geria os pagamentos e a contabilidade da sociedade, cabendo ao Requerido F2 compor, formalmente, o conselho de administração da empresa.
m) Após a perda da concessão Peugeot e do apoio financeiro da PSA Finance (posteriormente Banco Santander Consumer), a devedora não possuía a liquidez necessária para a manutenção da sua atividade.
n) A GOIAB, Unipessoal, Lda., entre Setembro e Dezembro de 2015, liquidou vencimentos dos trabalhadores da insolvente, pagou a fornecedores, a prestadores de serviços de consumos (como a EDP) e prestações bancárias, permitindo que a insolvente fosse honrando os seus compromissos nos últimos meses de 2015.
o) Mantendo-se a falta de liquidez da sociedade, o Requerido F1 decidiu apresentar a sociedade insolvente a um PER.
p) Relativamente ao ano de 2015, a insolvente apresentou Capital Próprio: -403.342,42; Passivo: 3.034.173,12; Ativo: 2.630.830,70; Resultado Líquido do Exercício: -210.046,70.
q) A propriedade do veículo … está registada a favor da insolvente, desde 11-12-2013, sendo desconhecida a sua localização.
r) A propriedade dos veículos … está registada a favor de Stellantis Portugal, S.A., desde Maio/Julho de 2015.
s) A propriedade do veículo … está registada a favor de JG, desde 20-07-2018.
t) A propriedade do veículo … está registada a favor de AA, desde 10-02-2023.
u) A apreensão dos referidos veículos ficou dependente da localização dos mesmos e do eventual cumprimento de contratos de locação financeira em curso.
v) A sociedade Goiab, Unipessoal, Lda. foi constituída em 12-09-1990, da qual o Requerido F1 foi sócio e gerente até Maio de 2015.
w) A sociedade Oestcar – Aluguer de Veículos, Lda. foi declarada insolvente, tem a matrícula cancelada e foi constituída em 20-07-1989, da qual os Requeridos F1 e F2 foram sócios e gerentes, o primeiro até à insolvência, em Junho de 2016, o segundo até Dezembro de 2014.
x) O Requerido F2 nasceu em 19-01-1971, consta registado como filho do Requerido F1 e está casado.
y) O Requerido F1 nasceu em 11-02-1946 e está casado.
4. Na sentença constam ainda como não provados os seguintes factos:
1. O Requerido F2 era administrador de facto da insolvente.
2. As quantias entregues pela Goiab, Unipessoal, Lda. revestiram a forma de empréstimos à insolvente, que dos mesmos ficou devedora.
3. Todas as quantias entregues pela Goiab – de que ficou credora – foram para compensar ou restituir valores, previamente liquidados, ou no imediato a liquidar, por aquela, por conta da insolvente, pelo que em exclusivo benefício desta e, mormente dos seus trabalhadores e fornecedores.
4. Também a Oestcar, Lda. pagava os salários dos trabalhadores da insolvente.
5. Tendo em conta a matéria de facto dada por assente pela 1ª instância, cumpre agora apreciar as questões suscitadas pelo Recorrente, a saber:
- se a sentença errou ao qualificar a insolvência como culposa, com fundamento na alínea a) do nº 3 do artigo 186º do CIRE, por se mostrar ilidida a presunção de culpa inerente à verificação desse circunstancialismo; e
- caso se dê por verificada a circunstância referida naquela alínea, se, ainda assim, inexiste qualquer nexo causal entre um eventual atraso na apresentação da insolvência e a criação desse estado ou o seu agravamento.
É evidente que, caso este tribunal decida que a insolvência seja de qualificar como fortuita por se mostrar ilidida a presunção de culpa do nº 3 do artigo 186º, ficará prejudicada a apreciação da segunda questão.
Por isso, conheceremos ambas as questões pela ordem acima exposta.
5.1. O artigo 185º do CIRE prevê dois tipos de insolvência: fortuita e culposa. Será culposa “quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.” (artigo 186º, nº 1 do CIRE). Assim, para qualificar a insolvência como culposa torna-se necessário; a) que ocorra uma actuação do devedor ou dos seus administradores, relevando aqui quer a actuação dos administradores de direito, quer a actuação dos administradores de facto; b) que essa actuação seja dolosa ou com culpa grave, excluindo-se, assim, a culpa leve; c) exigindo-se ainda um nexo causal entre essa conduta e a situação de insolvência, ou seja, aquela actuação deve ter criado a situação de insolvência ou, pelo menos, deve tê-la agravado; e, por fim, d) que aquela actuação tenha ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.[4]
Contudo, de forma a garantir uma maior “eficiência da ordem jurídica na responsabilização dos administradores por condutas censuráveis que originaram ou agravaram insolvências”[5] e também para facilitar o intérprete, nos nºs 2 e 3 do artigo 186º veio o legislador estabelecer dois conjuntos de presunções: no nº 2 um grupo de presunções iure et de iure de insolvência culposa de administradores de direito e de facto do insolvente e do próprio insolvente pessoa singular; e, no nº 3 um elenco de presunções iuris tantum de culpa grave dos administradores de direito e de facto e do próprio insolvente pessoa singular.[6] As primeiras, são presunções inilidíveis (artigo 350º, nº 2, in fine do Código Civil), como se deduz da letra da lei (“considera-se sempre culposa”), cujo efeito se estende quer à existência de culpa, quer à existência de um nexo causal entre a actuação do devedor insolvente e a criação ou agravamento da insolvência.[7] Já as segundas (do nº 3) apenas consagram presunções “de culpa grave, em resultado da actuação dos seus administradores, de direito ou de facto, mas não uma presunção de causalidade da sua conduta em relação à situação de insolvência, exigindo-se a demonstração, nos termos do art. 186º, nº 1, que a insolvência foi causada ou agravada em consequência dessa mesma conduta”.[8] [9]
No caso de se tratar de presunções do nº 2 do artigo 186º do CIRE, portanto inilidíveis, quando se preencha algum dos factos elencados nas suas várias alíneas, “a única forma de escapar à qualificação da insolvência como culposa será a prova, pela pessoa afetada, de que não praticou o ato”.[10]
Quanto ao nº 3 do artigo 186º, depois das alterações operadas pela Lei nº 9/2022, de 11 de Janeiro[11], não subsiste agora qualquer dúvida, “de que consagra presunções (relativas) de culpa grave, como vinha defendendo parte da doutrina e a maioria da jurisprudência, e não já presunções (relativas) de insolvência culposa, como vinha sustentando, até aqui, a parte restante da doutrina, com a paulatina mas crescente adesão da jurisprudência.[12]
5.2. No caso dos autos, a sentença recorrida qualificou a insolvência como culposa apenas por julgar verificada a circunstância a que alude a alínea a) do nº 3 artigo 186º do CIRE, assentando tal qualificação na circunstância de “não se ter apresentado à insolvência, no final do ano de 2015/início de 2016”, omissão essa que, segundo concluiu, levou ao agravamento da insolvência, dado que, “após Janeiro de 2016 e até Junho de 2016 continuaram a vencer-se dívidas tributárias e contribuições devidas à Segurança Social (facto i)), a somar ao passivo, inferior ao activo, que já vinha do anos de 2015 (facto p))”.
Contrariamente, entende o Recorrente que “não se verificou a situação contida na alínea a) n.º 3 do art. 186.º do CIRE, pela qual o Tribunal qualificou como culposa a insolvência, porquanto não se retira dos factos provados ou dos testemunhos prestados que a situação de insolvência foi criada ou agravada por qualquer conduta ou omissão dos Administradores, nos 3 anos anteriores ao início do processo, inexistindo qualquer nexo de causalidade entre uma coisa e outra” (cfr. conclusão XVII).
Segundo a alínea a) do nº 3 do artigo 186º do CIRE o incumprimento do dever de requerer a declaração de insolvência (artigo 18º, nº 1 do CIRE) faz presumir (“presume-se unicamente”) a culpa grave de quem não cumpriu tal dever, pese embora não faça presumir que a insolvência foi agravada por tal incumprimento, razão pela qual “a qualificação da insolvência como culposa ao abrigo da referida alínea exige ainda a demonstração de que o incumprimento desse dever agravou a situação de insolvência”.[13] Ou seja, a qualificação da insolvência como culposa dependerá, necessariamente, da prova de que a insolvência resultou ou foi agravada em virtude de o devedor ter incumprido o dever de requerer a declaração de insolvência. De forma a evitar tal qualificação, poderá o devedor não só ilidir a presunção de insolvência culposa, ou seja, que se apresentou oportunamente à insolvência, como também poderá demonstrar que, não obstante o incumprimento desse dever, “tal incumprimento não contribuiu para a criação ou o agravamento da sua situação de insolvência”.[14]
Na tentativa de ilidir aquela presunção relativa, veio o ora Recorrente alegar, desde logo, estar “demonstrado nos autos que, antes de decorridos os 2 meses (e sem recorrer a qualquer pedido de prorrogação), (…) apresentou junto do AI e este junto do processo (requerimento com a refª 4038978 de 30/06/2016 – email do AI junto a 29/06/2016 ao Apenso A) o pedido de declaração de insolvência, justificando o porquê de ter afinal optado por não prosseguir com o PER.” (cfr. conclusão VIII).
Com efeito, resulta do nº 1 do artigo 18º do CIRE que o devedor tem o dever de requerer a declaração da sua insolvência “dentro dos 30 dias seguintes à data do conhecimento da situação, tal como descrita no nº 1 do artigo 3º, ou à data em que devesse conhecê-la.” Mas, se for titular de empresa, “é estabelecida uma presunção juris et de jure quanto ao seu conhecimento da situação de insolvência, passados três meses sobre o incumprimento generalizado, nos últimos seis meses, das suas obrigações tributárias, ou das suas obrigações à segurança social, ou das suas obrigações de retribuição laboral, ou das rendas devidas por locação, incluindo financeira, ou ainda de dívidas respeitantes a empréstimo hipotecário para aquisição do local da actividade, sede ou residência (art. 18º, nº 3). Dado que se trata de um prazo dilatório (art. 139º, nº 2 do CPC), a sua ultrapassagem não extingue o direito de o devedor realizar posteriormente a apresentação à insolvência, apenas o sujeita às consequências legais.”[15]
No caso dos autos, sendo a devedora uma sociedade titular de uma empresa, e provando-se que foram reconhecidos os créditos de € 96.201,05, da Autoridade Tributária, referente a impostos vencidos de Agosto a Dezembro de 2015 e de Janeiro a Junho de 2016, e de € 180.738,98, do ISS, IP, referente a contribuições vencidas desde Setembro de 2014, 2015, até Junho de 2016, incluindo créditos laborais, vencidos em 2012 e, na sua maioria, em 2015 (cfr. alínea i) dos factos provados), “presume-se de forma inilidível” que havia tomado conhecimento da situação da sua insolvência decorridos pelo menos três meses sobre o incumprimento generalizado das obrigações tributárias e de contribuições para a Segurança Social, ou seja, nos 9 meses a partir do momento em que deixou de pagar os impostos e as contribuições. Ora se tivermos em conta, como na sentença recorrida, que o incumprimento generalizado da devedora se situa em 2015, aquela presunção de conhecimento da sua insolvência fixa-se até final de Março de 2016. Daí que, de acordo com o prazo previsto no nº 1 do artigo 18º do CIRE, teria de requerer a sua declaração de insolvência até final de Abril de 2016.
O facto de a devedora, em 26/02/2016, se ter apresentado a PER (Processo Especial de Revitalização), em nada altera a contagem daquele prazo, tendo em conta que, à data, o artigo 18º do CIRE não previa, como efeito do despacho de abertura do PER, a suspensão da obrigação de apresentação à insolvência. Apesar de a Lei nº 9/2022, de 11 de Janeiro (entrada em vigor em 11/04/2022) ter alterado, entre muitos outros, o artigo 18º, nº 2 do CIRE – cuja alínea a) passou a prever a dispensa da empresa da obrigação de apresentação à insolvência durante o período de suspensão do PER – e determinar a sua aplicabilidade imediata aos processos pendentes na data da sua entrada em vigor (artigo 10º, nº 1), o certo é que no nº 2 do artigo 10º veio ressalvar que “O disposto nos artigos 17º-C a 17º-F, 17º-I e 18º Do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, com a redacção introduzida pela presente lei, apenas se aplica aos processos especiais de revitalização instaurados após a sua entrada em vigor.” Daí que se possa concluir que, à data dos factos, “o recurso ao PER não suspendia (justificadamente) o prazo para a apresentação à insolvência previsto no artigo 18º, nº 1 do CIRE”.[16]
Resulta, pois, que em 29/06/2016 – data em que, segundo a devedora, pediu a declaração da insolvência, “por se entender que apresentar um plano, após frustradas as negociações com as (outrora) entidades financiadores, de nada adiantaria” (cfr. conclusão IX, parágrafo iv)) – , já se havia esgotado o prazo para cumprir a sua obrigação de requerer a declaração de insolvência.
Desta feita, por não se ter apresentado oportunamente à insolvência, não poderemos afirmar que a devedora ilidiu a presunção de insolvência culposa.
5.3. Vejamos agora se tal incumprimento – do dever de requerer atempadamente a declaração de insolvência – contribuiu para a criação ou o agravamento da sua situação de insolvência.
O Recorrente entende “não se [pode] retirar dos factos provados ou dos testemunhos prestados que a situação de insolvência foi criada ou agravada por qualquer conduta ou omissão dos Administradores, nos 3 anos anteriores ao início do processo, inexistindo qualquer nexo de causalidade entre uma coisa e outra” (conclusão XVII), ficando antes a dever-se a circunstâncias externas e independentes da vontade dos seus administradores (conclusão XXVI).
Contudo, segundo a sentença recorrida, está demonstrado o nexo de causalidade entre o incumprimento do dever de apresentação à insolvência e o respectivo agravamento, em virtude de após Janeiro de 2016 e até Junho desse ano continuarem a vencer-se dívidas tributárias e contribuições devidas à Segurança Social, a acrescer ao passivo, inferior ao activo, que vinha de 2015, conclusão que retira dos factos provados sob as alíneas i) e p). Com efeito, na alínea i), os valores globais aí mencionados como impostos e contribuições à Segurança Social, incluem tanto os que se haviam vencido até final de 2015, como os que se venceram até Junho de 2016. Por sua vez, a alínea p) resume as contas relativas ao ano de 2015, mencionado um resultado líquido desse exercício de com um saldo negativo de 210.046,70 €.
Como se referiu no já citado Acórdão do TRP de 21/03/2022 (proc. 195/21.0T8AMT-A.P1), nestas situações de qualificação da insolvência como culposa, “o administrador alegadamente incumpridor pode não só ilidir a presunção de culpa grave na não adopção do comportamento a que estava obrigado (v.g. alegando que se apresentou oportunamente à insolvência), mediante prova em contrário, nos termos do nº 2 do art. 350º do C.C., como poderá demonstrar que aquela omissão em nada contribuiu para criar ou agravar a situação de insolvência.”
Na verdade, quando o artigo 186º, nº 3, alínea a) do CIRE afirma que o incumprimento do dever de requerer a declaração de insolvência faz presumir “unicamente” a existência de culpa grave, veio esclarecer que a qualificação como culposa depende, necessariamente, da demonstração de que a situação de insolvência foi causada ou agravada em virtude da verificação desse mesmo incumprimento.[17] Como se trata de uma presunção que admite prova em contrário, pode-se opor que durante o período decorrido desde que se verificou o incumprimento até que se requereu a declaração de insolvência não houve agravamento significativo da situação de insolvência. A relevância do agravamento da insolvência é relativa, tendo em conta a insolvência já existente quando surgiu o dever de pedir a respectiva declaração.
Assim, tendo em conta que o critério normativo que determina o incumprimento do dever de requerer a declaração de insolvência como causa para qualificar a insolvência como culposa é a agravação da situação de insolvência e o aumento do défice patrimonial que este atraso pode acarretar, se a sociedade continuar a exercer a sua actividade comercial, contraindo novas obrigações, quando já não as podia cumprir regularmente, os elementos referentes à duração da demora em pedir a declaração de insolvência e a importância do aumento do défice patrimonial, são, sem dúvida, elementos objectivos pertinentes, de acordo com aquele critério normativo, para qualificar a insolvência como culposa.
Ora, cremos que não será esta a situação dos autos, tendo em consideração que os (escassos) factos dados como provados apenas retratam a situação da empresa em 2015, nada se tendo apurado relativamente ao ano de 2016 (cfr. alínea p) dos factos provados). O facto de continuarem a vencer-se dívidas tributárias e contribuições devidas à Segurança Social é insuficiente para se concluir que o défice patrimonial gerado aumentou com o atraso do pedido de declaração de insolvência.
Assim, ponderada a factualidade dada por assente, julgamos que o Recorrente logrou ilidir a presunção de culpa grave resultante do incumprimento do dever de requerer atempadamente a insolvência da devedora, em resultado de não ter ficado demonstrado que aquele incumprimento tivesse contribuído para criar ou agravar a situação de insolvência.[18] Com efeito, não resultou provado que entre 2015 e 2016 o património da sociedade devedora tivesse diminuído, e, designadamente, com o objectivo de lesar os interesses dos credores ou até dos próprios administradores ou de terceiros. Aliás, se na matéria de facto provada nem sequer se especificou qual o património da insolvente em cada um desses dois anos, também não se poderia apurar se houve ou não diminuição.
Desta feita, e, desde logo, porque não resultou provado um agravamento da situação de insolvência, temos de discordar da decisão recorrida quando conclui que “está demonstrado o nexo de causalidade entre o incumprimento do dever de apresentação à insolvência e o agravamento da mesma”.
Em suma, porque a factualidade dada por provada é omissa no que respeita ao agravamento dos prejuízos patrimoniais dos credores, não se pode considerar verificada a situação que resultou na qualificação da insolvência da devedora como culposa, e, consequentemente, dar como preenchida a previsão da alínea a) do nº 3 do artigo 186º do CIRE. Daí que a insolvência da sociedade devedora tenha que ser qualificada como fortuita, deixando, por isso, de subsistir os efeitos decorrentes da respectiva qualificação como culposa.
Procedem, pois, as alegações de recurso.

6. Pelo exposto, acordam os Juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente a apelação, pelo que, revogando a sentença, qualificam como fortuita a insolvência da sociedade S.T.A. – SOCIEDADE TORREENSE DE AUTOMÓVEIS, S.A., com as inerentes consequências legais.
Custas a cargo da massa insolvente (artigos 303º e 304º do CIRE).

Lisboa, 13 de Maio de 2025
Nuno Teixeira
Ana Rute Costa Pereira
Isabel Maria Brás Fonseca
_______________________________________________________
[1] Cfr. Recursos em Processo Civil, 6ª Edição Actualizada, Coimbra, 2020, pág. 197.
[2] Cfr. ABRANTES GERALDES, Ob. Cit., pp.199-200.
[3] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 12/2023 (Proc. n.º 8344/17.6T8STB.E1-A.S1), de 14 de Novembro.
[4] Cfr. SOVERAL MARTINS, Um Curso de Direito da Insolvência, volume I, 3ª Edição, Almedina, Coimbra, 2021, pág. 508 e ss..
[5] Cfr. CARNEIRO DA FRADA, “A Responsabilidade dos Administradores na Insolvência”, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 66, II, Lisboa, Setembro de 2006, pág. 701, disponível em https://portal.oa.pt/publicacoes/revista-da-ordem-dos-advogados/ano-2006/ano-66-vol-ii set2006/doutrina/manuel-a-carneiro-da-frada-a-responsabilidade-dos-administradores-na insolvencia/).
[6] Cfr. MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO, Manual de Direito da Insolvência, 7ª Edição, Almedina, Coimbra, 2020, pág. 151.
[7] Este é, cremos, o entendimento maioritário da jurisprudência e designadamente desta Relação. Cfr. STJ, Ac. de 15/02/2018 (proc. 7353/15.4T8VNG-A.P1.S1) e TRL, Acs. de 05/02/2019 (proc. 664/10.7TYLSB-C-L1-1) e de 23/03/2021 (proc. 1396/11.4TYLSB-B.L1-1). Também neste sentido, ver MENEZES LEITÃO, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, 11ª Edição, Coimbra, 2021, pág. 237; e SOVERAL MARTINS, Ob. Cit., pág. 512.                              
[8] Cfr. MENEZES LEITÃO, Ob. Cit., pág. 237.
[9] Este entendimento saiu reforçado com a reforma do CIRE levada a cabo pela Lei nº 9/2022, de 11 de Janeiro, que alterou o nº 3 do artigo 186º, acrescentando-lhe o advérbio “unicamente”.
[10] Cfr. MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO, Ob. Cit., pág. 155.
[11] O artigo 2º da Lei nº 9/2022, de 11 de Janeiro alterou o artigo 186º, nº 3 do CIRE, que passou a ter a seguinte redacção: “Presume-se unicamente a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido:
(…)”
[12] Cfr. CATARINA SERRA, Lições de Direito da Insolvência, 3ª Edição, Coimbra, 2025, pp. 384-385, que, em nota de rodapé, menciona quer os autores, quer os acórdãos que defendiam uma e outra tese.
[13] Cfr. neste sentido, TRC, Ac. de 14/06/2022 (proc. 139/21.9T8SEI-C.C1), disponível www.direitoemdis.pt.
[14] Cfr. MARCO CARVALHO GONÇALVES, Processo de Insolvência e Processos Pré-Insolvenciais, Coimbra, 2023, pág. 589, bem como TRP, Ac. de 21/03/2022 (proc. 195/21.0T8AMT-A.P1), publicado em www.direitoemdia.pt, em cujo sumário se consignou o seguinte: “(…) II - Nos termos do art. 186º, nº 3, als. a) e b) do CIRE presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido: a) O dever de requerer a declaração de insolvência e b) a obrigação de depositar as contas na conservatória do registo comercial, sendo que o que está em causa com a consagração destes deveres é, sobretudo, a protecção dos credores contra o risco da diminuição do património social. III - Nestas situações, o administrador alegadamente incumpridor pode não só ilidir a presunção de culpa grave na não adopção do comportamento a que estava obrigado (v.g. alegando que se apresentou oportunamente à insolvência ou que cumpriu a obrigação de apresentação das contas na Conservatória competente), mediante prova em contrário, nos termos do nº 2 do art. 350º do C.C., como poderá demonstrar que aquela omissão em nada contribuiu para criar ou agravar a situação de insolvência.”
[15] Cfr. MENEZES LEITÃO, Ob. Cit., pág. 100.
[16] Cfr. STJ, Ac. de 23/10/2018 (proc. 8074/16.6T8CBR-D.C1.S1), relatado por CATARINA SERRA, disponível em www.direitoemdia.pt.
[17] Cfr. neste sentido, MARCO CARVALHO GONÇALVES, Ob. Cit., pág. 588, bem como TRC, Ac. de 14/06/2022 (proc. 4114/19.5T8LRA-C.C1), disponível em www.direitoemdia.pt.
[18] Como refere CARNEIRO DA FRADA, in “A responsabilidade dos administradores na insolvência”, já citada, no artigo 186º, nº 3, alínea a) do CIRE “não se imputam ao administrador os prejuízos derivados da causação, por ele, de uma insolvência, mas apenas os danos advenientes da omissão ou do retardamento da apresentação à insolvência. São essencialmente os prejuízos derivados para os credores da diminuição do património resultante da não apresentação (atempada) à insolvência e, portanto, da diminuição daquela quota na massa da insolvência que a cada credor caberia se o dever tivesse sido cumprido. Pela sua natureza, o cômputo desse dano requererá que o processo de insolvência se encontre em suficiente estado de adiantamento.”