PEAP
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
INDEFERIMENTO LIMINAR
NOTIFICAÇÃO AO DEVEDOR
PRAZO
Sumário

Sumário (cf. nº 7, do art.º 663º, do CPC):
I - No âmbito do Processo Especial Para Pagamento, quando ocorre a conclusão do processo negocial sem aprovação do acordo de pagamento, o devedor pode requerer a exoneração do passivo restante nos termos do disposto nos arts. 235º e ss. do CIRE - art.º 222º-G, n.º5 do CIRE.
II - O instituto da exoneração do passivo restante, tendo sido legalmente instituído em benefício do devedor, é da sua exclusiva disponibilidade/vontade.
III - A previsão da alínea a) do art.º 238º do CIRE, relativa à tempestividade do pedido de exoneração do passivo restante, consubstancia um pressuposto formal, exigindo-se que o pedido seja apresentado em determinado prazo ou em determinada fase do processo. Diferentemente, os requisitos materiais da exoneração do passivo restante previstos nas als. b) a g) do art.º 238º do CIRE têm subjacente a não concessão discricionária desse benefício a quem quer que ao mesmo se habilite.
IV - O disposto no art.º 236º, n.º1 do CIRE ao dispor que “(…) o juiz decide livremente sobre a admissão ou rejeição de pedido apresentado no período intermédio” assenta no regime instituído nas alíneas b) a g) do nº 1 do art.º 238º CIRE, normativo que fornece as razões que no entender do legislador justificam o indeferimento liminar do pedido de exoneração.
V – É extemporâneo o pedido de exoneração do passivo restante quando os devedores, apesar de notificados para o efeito, não o requereram no prazo de cinco dias a que alude o art.º 222º-G, n.º5 do CIRE, nem o fizeram após ter sido proferida a sentença a declarar a insolvência e até ao 60º dia após a data desta, ainda que tenham interposto recurso do despacho que indeferiu o pedido de apresentação de plano de insolvência, atento o efeito do recurso daquele despacho interlocutório na marcha do processo.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório
“AA” e “BB”, casados entre si, no regime de comunhão de adquiridos, ambos residentes (…), requereram a exoneração do passivo restante, a 25.06.2024 (cf. ref. Citius …).
Em 26.08.2022 foi proferida sentença, já transitada, que declarou a insolvência dos requerentes deste Incidente, tendo sido dispensada, naquela sentença a convocação de Assembleia de Credores para Apreciação do Relatório.
Os devedores pediram a convocação de Assembleia de Credores, com o propósito de apresentarem um plano de insolvência, nos termos do artigo 192.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas - Ref. citius …, de 30.08.2022, o que foi indeferido por despacho de 24.11.2022.
Interposto recurso daquele despacho, o Tribunal da Relação de Lisboa, em Acórdão de 02.05.2024 julgou improcedente o recurso. Interposto recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, em Acórdão de 16.01.2024, decidiu não tomar conhecimento do recurso com fundamento na sua inadmissibilidade. Deste Acórdão recorreram os devedores para o Tribunal Constitucional, que por Decisão Sumária n.º 208/2024 decidiu não tomar conhecimento do objeto do recurso, da qual os devedores reclamaram para a Conferência, que por Acórdão de 05.06.2024, indeferiu a reclamação.
Em 06.10.2022 o Sr. Administrador apresentou o relatório previsto no artigo 155.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, no qual propôs a liquidação do património dos devedores e tomou posição quanto à exoneração do passivo restante, apesar de àquela data não ter sido tal pedido apresentado pedido pelos devedores.
Por despacho de 02.01.2024 ordenou-se a notificação dos devedores para se pronunciarem quanto aos requerimentos apresentados a 26.06.2024 – ref.: 49314973 de 02.07.2024 – 49370668; de 04.07.2024 – ref.: 49400079, pelos credores (…) ADVOGADOS, SP, RL, “CC”, “DD” e “EE” e “FF”, UNIPESSOAL, LDA., a pugnarem pela extemporaneidade do pedido de exoneração.
Por requerimento de 10/10/2024 – ref. …., pediram os devedores que lhes seja concedida da exoneração do passivo restante, argumentando que os autos reúnem os elementos necessários para efeitos do artigo 238.º,do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, mais considerando, para efeitos do prazo de apresentação do pedido, a notificação do Acórdão do Tribunal Constitucional.
Em 29/11/2024 foi proferida sentença que indeferiu o pedido de exoneração do pedido restante deduzido pelos devedores com fundamento na sua extemporaneidade, com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, rejeito o pedido de exoneração do passivo restante apresentado por “AA” e “BB”, casados entre si, no regime de comunhão de adquiridos, ambos residentes (…), ao abrigo do disposto nos artigos 236.º, n.º 1 e 238.º, n.º 1, alínea a), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Sem custas.
Proceda às legais notificações, publicite e registe - artigos 37.º, 38.º e 230.º, n.º 2 aplicável ex vi 247.º do CIRE.»

Os insolventes, inconformados com a decisão que rejeitou o pedido de exoneração do passivo restante, interpuseram RECURSO formulando as respetivas CONCLUSÕES que agora se reproduzem:
I. Vem o presente Recurso interposto do Despacho de fls., nos termos do qual o Tribunal a quo rejeitou o pedido de exoneração do passivo restante apresentado pelos ora Recorrentes, ao abrigo do disposto nos artigos 236.º, n.º 1 e 238.º, n.º 1, alínea a) do CIRE.
II. Entendimento este que merece a discordância dos Recorrentes e impõe o presente recurso, pois resulta de uma interpretação do artigo 236.º, n.º 1 do CIRE manifestamente violadora dos princípios gerais de Direito, pelo que, nessa medida, se impugna.
III. Os aqui Recorrentes apresentaram-se em juízo com um plano de pagamentos no âmbito do Processo Especial para Acordo de Pagamento, ao abrigo do disposto nos artigos 222.º-A e seguintes do CIRE, dando origem aos autos n.º 5851/22.2T8LSB que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo de Comércio de Lisboa – Juiz (…).
IV. Sucede, porém, que, no âmbito do referido processo, os aqui Recorrentes não lograram obter a maioria dos votos necessária à aprovação do acordo de pagamento.
V. Face à não aprovação do acordo de pagamento, aqueles autos prosseguiram os seus ulteriores termos legais, tendo os aqui Recorrentes sido notificados, nos termos e para os efeitos previstos nos números 5, 6 e 7 do artigo 222.º-G do CIRE, por ofício de 17.08.2022.
VI. Foi nesse âmbito que, logo em 18/08/2022, os aqui Insolventes apresentaram aos autos n.º 5851/22.2T8LSB, hoje apensados aos presentes autos (apenso n.º 20066/22.1T8LSB-A) o requerimento com a referência Citius …, no qual manifestaram intenção de apresentarem plano de insolvência, mais requerendo a extração de certidão para tramitação do processo de insolvência.
VII. Não obstante o teor do requerimento junto, ainda no âmbito dos autos n.º 5851/22.2T8LSB, foram os aqui Recorrentes notificados do Despacho datado de 25/08/2022, com a referência Citius … , do qual resulta: “Nos termos e para os efeitos do disposto nos números 5 e 7 do artigo 222º-G do CIRE, autue o requerimento dos devedores de 19-08-2022 como processo de Insolvência Singular (Apresentação), apensando ao mesmo o presente PEAP, e notifique logo, no seu âmbito, os devedores para, em cinco dias, apresentarem o plano de pagamentos previsto nos artigos 249º e seguintes do CIRE que ali se propuseram apresentar”.
VIII. Com efeito, nos termos gerais, no caso de não aprovação do acordo de pagamentos no âmbito do Processo Especial para Acordo de Pagamento, concluindo o Administrador pela insolvência do devedor pode este, notificado nos termos do artigo 222.º-G, número 5 do CIRE, deduzir oposição, apresentar plano de pagamentos nos termos do artigo 249.º e seguintes ou requerer a exoneração do passivo restante nos termos do disposto nos artigos 253.º e seguintes do CIRE.
IX. No caso de o devedor não deduzir oposição, o plano de pagamentos deve ser apresentado no prazo de cinco dias a partir da notificação para o efeito, nos termos do disposto nos números 5, 6 e 7 do artigo 222.º-G do CIRE.
X. Ora, face o teor do Despacho que supra se transcreveu, logo em 26/08/2022, através do requerimento com a referência Citius …, os aqui Recorrentes expuseram e requereram ao Tribunal que se considerasse sem efeito a parte que respeita à apresentação pelos Insolventes de plano de pagamentos previsto no artigo 249º e seguintes do CIRE.
XI. Face ao requerido pelos aqui Recorrentes, o Tribunal proferiu despacho, datado de 26/08/2022 com a referência Citius …, nos termos do qual determinou o seguinte: “Assiste razão aos requerentes de 26-08-2022, devendo considerar-se não escrita a parte final do despacho que antecede, não sendo de efetuar a notificação ali ordenada.” (Sublinhado e negrito nosso)
XII. Apesar do teor do Despacho com a referência Citius … e ainda da reiterada manifestação de intenção/vontade dos Insolventes, aqui Recorrentes, em apresentarem plano de insolvência, foi declarada nos presentes autos a insolvência dos mesmos, tendo sido dispensada a marcação de assembleia de credores, porquanto “considerando a reduzida dimensão da massa insolvente, simplicidade da liquidação e ao facto de o devedor não ser titular de empresa, sendo que não está em causa nenhuma das situações previstas no n.º 2 do artigo 36.º - cfr. artigo 36º, n.º 1, alínea n), do aludido diploma legal.”
XIII. Ante o teor da referida Sentença, os aqui Recorrentes apresentaram aos autos o requerimento datado de 30/08/2022, com a referência Citius …, nos termos do qual requereram a marcação de Assembleia de Credores, manifestando, uma vez mais, a sua intenção de apresentar Plano de Insolvência.
XIV. Posteriormente, em 06/10/2022, o Administrador de Insolvência procedeu à junção aos autos do Relatório a que alude o artigo 155.º do CIRE, e face ao teor do aludido relatório, vieram os aqui Recorrentes apresentar requerimento, datado de 11/10/2022 e com a referência Citius …, nos termos do qual reiteraram o pedido de convocação de Assembleia de Credores, face à sua intenção de apresentarem Plano de Insolvência.
XV. Subsequentemente, o Tribunal a quo proferiu Despacho datado de 24.11.2022 e que indeferiu a requerida convocação de Assembleia de Credores, por considerar legalmente inadmissível a apresentação de Plano de Insolvência pelos aqui Recorrentes, e, paralelamente, indeferindo a apresentação de plano de pagamentos por alegada extemporaneidade.
XVI. Os ora Recorrentes interpuseram recurso do Despacho, o qual foi julgado improcedente por Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa de 02.05.2024.
XVII. Com efeito, por não se conformarem com o decidido, os Recorrentes interpuseram recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, que, por Acórdão proferido em 16.01.2024, decidiu não conhecer o objeto do recurso, com fundamento na sua inadmissibilidade.
XVIII. Daquele Acórdão recorreram novamente os Insolventes para o Tribunal Constitucional, o qual, por Decisão Sumária com o n.º 208/2024, decidiu não tomar conhecimento do objeto do recurso.
XIX. Os ora Recorrentes apresentaram reclamação para a Conferência, que, por Acórdão de 05.06.2024, indeferiu a reclamação apresentada, decisão que transitou em julgado em 21.06.2024.
XX. Por requerimento datado de 25.06.2024 e com a referência Citius …, os aqui Insolventes requereram a exoneração do passivo restante, ao abrigo do disposto no artigo 235.º do CIRE.
XXI. Sucede que, por Despacho proferido em 29.11.2024, com a referência Citius …, com data certificação Citius de 18.12.2024, o Tribunal a quo indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante deduzido pelos Insolventes, aqui Recorrentes, com fundamento na alegada extemporaneidade.
XXII. Para tanto, considerou o Tribunal a quo que “O pedido de exoneração do passivo restante foi apresentado pelos devedores a 25.06.2024, data em que tinham decorrido quase dois anos da declaração de insolvência, há muito que tinha decorrido o período intermédio, (…)”.
XXIII. Com o devido respeito, o Despacho em crise olvida, em absoluto e por completo, as especificidades dos presentes autos, mormente no que concerne à data em que se transitou em julgado a decisão proferida pelo Tribunal Constitucional, no âmbito do recurso interposto pelos Insolventes, limitando-se a uma interpretação literal do disposto no artigo 236.º, n.º 1 do CIRE.
XXIV. No caso dos autos, após o encerramento do processo especial para acordo de pagamento, os Insolventes manifestaram o seu propósito de apresentação de um plano de insolvência, nos termos e para os efeitos dos artigos 192.º e seguintes do CIRE, o que, sendo aprovado após a tramitação processual respetiva, não se coadunaria com pedido de exoneração do passivo restante.
XXV. Tanto assim é que, nos termos do disposto no n.º 5 do artigo 222.º-G do CIRE, não se afigura legalmente admissível que os aqui Insolventes requeressem, no prazo de cinco dias, a apresentação de plano de insolvência (como efetivamente o fizeram) e, simultaneamente, a apresentação de pedido de exoneração do passivo restante.
XXVI. Sopesa que o recurso interposto pelos Insolventes nos presentes autos tinha por objeto a decisão proferida pelo Tribunal a quo em que pugnou pela inadmissibilidade de apresentação de plano de pagamentos, e, paralelamente, indeferiu a convocação de assembleia de credores nos termos requeridos pelos Insolventes,
XXVII. Quer isto, portanto, significar que a questão atinente à admissibilidade (ou inadmissibilidade) da apresentação de plano de insolvência pelos Recorrentes nos presentes autos foi definitivamente decidida apenas em 21.06.2024, com a prolação da Decisão Sumária pelo Tribunal Constitucional.
XXVIII. Ora, com o devido respeito por entendimento diverso, apenas com o trânsito em julgado da referida Decisão Sumária é que se tornou juridicamente admissível aos Insolventes requererem a exoneração do passivo restante.
XXIX. Isto porque, na eventualidade de o recurso ser julgado procedente, seria convocada a Assembleia de Credores e aos Insolventes seria concedida a possibilidade de apresentação de plano de insolvência – o que, como supra se referiu, não se coaduna com a (agora) requerida exoneração do passivo restante.
XXX. Sendo certo que não pode ser imputável aos Recorrentes o facto de terem decorrido mais de dois anos desde a data da declaração de insolvência até ao trânsito em julgado da Decisão Sumária, contrariamente ao entendimento pugnado pelo Despacho em crise.
XXXI. Com o devido respeito, o Despacho objeto do presente recurso olvida as particularidades do caso sub judice, pois andou mal o Tribunal a quo, na medida em que a interpretação conjugada dos artigos 235.º e 236.º do CIRE permite concluir que a extemporaneidade do pedido só por si não releva para efeito de indeferimento liminar, cabendo ao juiz apreciar livremente se deve ser admitido ou rejeitado o pedido, em função de outros dados (substanciais) que o processo releve.
XXXII. Na verdade, dispõe o artigo 236.º, n.º 1 do CIRE que “o pedido de exoneração do passivo restante é feito pelo devedor no requerimento de apresentação à insolvência ou no prazo de 10 dias posteriores à citação e será sempre rejeitado se for deduzido após a assembleia de apreciação do relatório; o juiz decide livremente sobre a admissão ou rejeição de pedido apresentado no período intermédio”. (Destaque nosso)
XXXIII. Ora, no caso sub judice, foi dispensada a realização da assembleia, pelo que os Insolventes interpuseram recurso da decisão que indeferiu a convocação de Assembleia de Credores requerida pelos Insolventes,
XXXIV. E, logo que transitou em julgado a decisão sumária proferida Tribunal Constitucional, os aqui Insolventes requereram a exoneração do passivo restante dentro dos 60 dias subsequentes a decisão que transitada em julgado, determinou a não realização de assembleia de credores nos presentes autos.
XXXV. Do exposto resulta que o despacho recorrido interpretou incorretamente a alínea a) do n.º 1 do cit. artigo 236.º, uma vez que se tem por atempado o pedido formulado pelos aqui Recorrentes, cumprindo apreciá-lo livremente, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 238.º e seguintes do CIRE.
XXXVI. Importa ainda referir que, contrariamente ao que resulta no Despacho objeto do presente recurso, os aqui Recorrentes não foram notificados nos termos e para os efeitos dos números 5, 6 e 7 do artigo 222.º-G do CIRE.
XXXVII. A este propósito, releva o teor do Despacho proferido em 26.08.2022 no âmbito do processo especial para acordo de pagamento n.º 5851/22.2T8LSB ora apenso aos presentes autos (apenso n.º 20066/22.1T8LSB-A), nos termos do qual se determinou a não notificação dos Insolventes para a apresentação de plano de pagamentos.
XXXVIII. Salvo melhor entendimento, até ao presente, os Insolventes, aqui Recorrentes, não ainda foram notificados para dar cumprimento ao artigo 222º-G, números 5, 6 e 7 do CIRE.
XXXIX. Ao que acresce ainda que, nos termos do Despacho supratranscrito, datado de 26.08.2022, foi dada sem efeito a notificação a que alude o artigo 222.º-G, números 5, 6 e 7 do CIRE, pelo que, no limite, a contagem de tal prazo processual ainda não se iniciou.
XL. Por tudo o quanto se expôs, impõe-se a revogação in totum do Despacho objeto do presente recurso, substituindo-o por outro que julgue tempestivo o requerimento de exoneração do passivo restante, devendo o Tribunal a quo pronunciar-se sobre a admissibilidade ou rejeição do pedido apresentado naquele requerimento, nos termos do disposto no artigo 238.º do CIRE.
Do processo não consta que tenham sido apresentadas contra-alegações.
O recurso foi corretamente admitido por despacho proferido em 6/03/2025 (ref. n.º …).

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II – DO OBJECTO DO RECURSO
Como resulta do disposto nos arts. 608º, n.º 2, aplicável ex vi art. 663º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4, 639.º n.ºs 1 a 3 e 641.º n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil, sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se “ex officio” e daquelas cuja solução fique prejudicada pela solução dada a outras, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objeto do recurso. Frisa-se, porém, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito – art.º 5º, nº3 do mesmo diploma.
No seguimento desta orientação cumpre ao tribunal ad quem apreciar uma única questão que consiste em saber se o despacho recorrido (que julgou extemporâneo o pedido de exoneração do passivo restante) padece de erro de direito e se, em consequência, se impõe a sua revogação.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
Fundamentação de facto
Foram os seguintes os factos julgados provados em primeira instância:
1. “AA” e “BB”, casados entre si, ambos residentes (…) foram declarados insolventes por sentença proferida a 26.08.2022.
2. Por requerimento de 25.06.2024 pediram a exoneração do passivo restante – ref.: (…).
3. No Apenso de Processo Especial para Acordo de Pagamento, o Acordo de pagamento apresentado pelos devedores foi recusado por sentença de 05.08.2022.
4. Notificado o Sr. Administrador veio apresentar o Parecer a que alude o artigo 222.º-G, n.º 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, no qual concluiu pela situação de insolvência dos devedores – cfr. Parecer ref.: (…), de 16.08.2022, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
5. Por ofício de 17.08.2022, os devedores foram notificados, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 222.º G, n.º 5, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, «para no prazo de 5 dias, deduzir oposição, por mero requerimento, ou para, querendo e caso se mostrem preenchidos os respetivos pressupostos, apresentar plano de pagamentos nos termos do artº 249º e seguintes do CIRE ou requerer a exoneração do passivo restante nos termos do disposto nos artigos 235º e seguintes do CIRE.»
6. Em resposta, os devedores vieram requerer extração de certidão do requerimento que apresentam, para que, juntamente com o parecer do Administrador, seja tramitado no processo de insolvência - Ref.:(…), de 19.08.2024.
7. Por despacho de 25.08.2024 ordenou-se a autuação do requerimento de 19.08.2022, como processo de insolvência e a notificação dos devedores para apresentarem plano de pagamento previsto no artigo 249.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
8. Os devedores pediram a convocação de Assembleia de Credores, com o propósito de apresentarem um plano de insolvência, nos termos do artigo 192.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas - Ref.: (…), de 30.08.2022, o qual foi indeferido por despacho de 24.11.2022.
9. Interposto recurso daquele despacho, o Tribunal da Relação de Lisboa, em Acórdão de 02.05.2024 julgou improcedente o recurso.
10. Interposto recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, em Acórdão de 16.01.2024, decidiu não tomar conhecimento do recurso com fundamento na sua inadmissibilidade.
11. Daquele Acórdão recorreram os devedores para o Tribunal Constitucional, que por Decisão Sumária n.º 208/2024 decidiu não tomar conhecimento do objecto do recurso, os devedores reclamaram para a Conferência, que por Acórdão de 05.06.2024, indeferiu a reclamação.

Ao abrigo do disposto nos arts. 662º, n.º 1, 663º, n.º 2 e 607º, n.º 3, do CPC aditam-se ainda os seguintes factos, resultantes dos autos de Processo Especial para Acordo de Pagamento que correram os seus termos sob o apenso A) com relevância para a decisão da causa:
- Notificados do despacho referido em 7) vieram os devedores, por requerimento de 26/08/2022 (ref. n.º …), pedir que fosse dado “sem efeito a parte que respeita à apresentação pelos Insolventes de plano de pagamentos previsto no artigo 249º do CIRE, no despacho que antecede”.
- Em 26/08/2022 (ref. n.º …),foi proferido o seguinte despacho pelo tribunal a quo: “Assiste razão aos requerentes de 26-08-2022, devendo considerar-se não escrita a parte final do despacho que antecede, não sendo de efetuar a notificação ali ordenada.”
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Fundamentação de Direito
Com o presente recurso pretendem os recorrentes que o despacho que indeferiu o pedido de exoneração do passivo restante por extemporâneo seja admitido por outro que o admita, por entenderem que ainda estão em tempo para formular tal pedido.
O Tribunal a quo indeferiu o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelos devedores com a seguinte linha de argumentação: i) o pedido dos devedores foi apresentado a 25.06.2024; ii) a sentença de insolvência foi proferida a 26.08.2022, após a recusa de homologação do Acordo de Pagamento apresentado pelos devedores no Apenso A e o relatório previsto no artigo 155.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas apresentado a 06.10.2022; iii) o artigo 236.º, n.º 1, do CIRE, na redação dada pelo DL 79/2017, de 30 de Junho, com início de vigência a 1 de Julho de 2017, dispõe que o pedido de exoneração do passivo restante é feito pelo devedor no requerimento de apresentação à insolvência ou no prazo de 10 dias posteriores à citação, e será sempre rejeitado, se for deduzido após a assembleia de apreciação do relatório, ou, no caso de dispensa da realização desta, após os 60 dias subsequentes à sentença que tenha declarado a insolvência; iv) os devedores foram notificados nos termos previstos no n.º5 do artigo 222.º-G; os devedores notificados não apresentaram pedido de exoneração – no prazo de 5 dias, nem apresentaram tal pedido, aquando da interposição do Processo Especial de Acordo de Pagamento; v) na sentença foi dispensada a realização de assembleia de apreciação do relatório, caberia decidir da admissibilidade do pedido, caso tivesse sido apresentado nos 60 dias subsequentes à sentença que declarou a insolvência, mas não é o caso; vi) o pedido de exoneração do passivo restante foi apresentado pelos devedores a 25.06.2024, data em que tinham decorrido quase dois anos da declaração de insolvência, há muito tinha decorrido o período intermédio, pelo que de acordo com o artigo 236.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas o pedido de exoneração do passivo restante será sempre rejeitado, se for deduzido após a assembleia de apreciação do relatório, ou, no caso de dispensa da realização desta, após os 60 dias subsequentes à sentença que tenha declarado a insolvência.
É quanto a este entendimento que se insurgem os apelantes por entenderem, em suma, que a decisão do Tribunal a quo desconsiderou as especificidades dos presentes autos, mormente no que diz respeito à data em que transitou em julgado a decisão proferida pelo Tribunal Constitucional no âmbito do recurso interposto pelos insolventes, limitando-se a uma interpretação literal do disposto no art.º 236º, n.º1 do CIRE e isto porquanto tendo manifestado o propósito de apresentação de um plano de insolvência, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 192º do CIRE, caso este fosse aprovado, tal não se coadunaria com o pedido de exoneração do passivo restante, de modo que, apenas com o trânsito em julgado da decisão prolatada pelo Tribunal Constitucional se tornou juridicamente admissível aos devedores requerer a exoneração do passivo restante.
Vejamos.
Importa, antes de mais, dar como estabelecido que os apelantes, em momento algum, do seu requerimento de recurso, conclusões e alegações de recurso, impugnam a decisão da matéria de facto. Desta feita, o presente recurso versa somente sobre direito, sendo que a matéria de facto a considerar é a que supra se mencionou.
Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março, o CIRE introduziu, na legislação portuguesa, o instituto da exoneração do passivo restante, previsto no seu título XII, Capítulo I, artigos 235.º e ss.
Na base do mesmo e como se conclui do ponto 45 do preâmbulo do Decreto-Lei que aprovou o diploma, esteve a intenção de regulação do sobre-endividamento das pessoas singulares, que atingira uma dimensão preocupante, face à facilidade de acesso ao crédito. Pretendeu-se reequilibrar a relação devedor/credor, gravemente alterada pelo crescente insucesso financeiro da economia portuguesa (e mundial), pelo aumento das taxas de juro e precariedade do emprego.
Nos termos do disposto no art.º 235.º do CIRE: «Se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições do presente capítulo.»
Refere Catarina Serra, in Lições de Direito da Insolvência, pág. 611 que: “A principal vantagem da exoneração é a libertação do devedor das dívidas que ficaram por pagar no processo de insolvência, permitindo-lhe encetar uma vida nova.” A exoneração do passivo restante é assim um instituto que é aplicável aos devedores singulares com a finalidade de dar uma oportunidade de começar de novo. Por via deste instituto, os credores do insolvente não obtêm pagamento integral dos seus créditos do processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao seu encerramento – artigo 235.º do CIRE. Ou seja, o instituto da exoneração do passivo restante posterga a finalidade do processo de insolvência – a satisfação dos credores (art.º 1º do CIRE) em nome não apenas do benefício direto (exoneração e segunda oportunidade) do devedor, mas de uma série de interesses de índole mais geral: a possibilidade de exoneração estimula a apresentação tempestiva dos devedores à insolvência, permite a tendencial uniformização entre os efeitos da insolvência para pessoas jurídicas e pessoas singulares e, em última análise, beneficia a economia em geral, provocando, a contração do crédito mas gerando maior responsabilidade e responsabilidade na concessão do mesmo (cf. Catarina Serra, in Loc. Cit., págs. 613 e 614).
Consagrou, assim, o CIRE, uma “versão bastante mitigada” do modelo do fresh start, na medida em que, a seguir à liquidação, decorre um “período probatório” de três anos, durante o qual o devedor deverá afetar o seu rendimento disponível ao pagamento das dívidas aos credores que não foram integralmente satisfeitas no processo de insolvência. Só depois de decorrido tal período e se a sua conduta tiver sido exemplar, poderá o devedor requerer a exoneração, obtendo, assim, o perdão do remanescente não pago (cf. Acórdão da Relação de Coimbra de 04/02/2020, Relatora Maria João Areias, proc. n.º 1350/19.8T8LRA-D.C1, in www.dgsi.pt, citando Maria Manuel Leitão Marques e Catarina Frade, in Regular o sobre-endividamento” in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Comunicações Sobre o Anteprojeto de Código”, Ministério da Justiça – Gabinete de Justiça e Planeamento, Coimbra Editora, Outubro de 2004, pp.88-91).
Como resulta, entre outros, do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15/09/2015, processo n.º 24/14.0T2AVR-C.P1, Relator José Igreja Matos, e do Acórdão desta secção de 28/09/2021, processo n.º 3688/20.2T8SNT-C.L1-1, relatora Fátima Reis Silva, é precisamente a ponderação destes interesses contrapostos que deve ser considerada como guião para a interpretação das normas dos arts. 235º e ss. do CIRE, entre as quais os arts. 236º e 238º, que ao caso importa aplicar.
Quanto à oportunidade da dedução do pedido de exoneração do passivo restante dispõem o art.º 236º do CIRE nos seguintes termos:
«1 - O pedido de exoneração do passivo restante é feito pelo devedor no requerimento de apresentação à insolvência ou no prazo de 10 dias posteriores à citação, e será sempre rejeitado, se for deduzido após a assembleia de apreciação do relatório, ou, no caso de dispensa da realização desta, após os 60 dias subsequentes à sentença que tenha declarado a insolvência; o juiz decide livremente sobre a admissão ou rejeição de pedido apresentado no período intermédio.// 2 - Se não tiver sido dele a iniciativa do processo de insolvência, deve constar do acto de citação do devedor pessoa singular a indicação da possibilidade de solicitar a exoneração do passivo restante, nos termos previstos no número anterior. // 3 - Do requerimento consta expressamente a declaração de que o devedor preenche os requisitos e se dispõe a observar todas as condições exigidas nos artigos seguintes. // 4 - Na assembleia de apreciação de relatório ou, sendo dispensada a realização da mesma, no prazo de 10 dias subsequente ao decurso do prazo de 60 dias previsto na parte final do n.º 1, é dada aos credores e ao administrador da insolvência a possibilidade de se pronunciarem sobre o requerimento.»
Referem Carvalho Fernandes e João Labareda in CIRE anotado, 3ª edição, pág. 849 que: “o pedido é sempre feito por requerimento do devedor; todavia, os termos concretos em que deve ser apresentado dependem de o processo de insolvência se ter iniciado por apresentação do devedor ou por iniciativa de terceiros. No primeiro caso, o pedido de exoneração deve ser feito no requerimento de apresentação, ou em terminologia mais correta, na petição inicial.”
O presente processo apresenta uma especificidade que importa salientar: a declaração de insolvência dos apelantes foi antecedida por um Processo Especial para Acordo de Pagamento (apenso A), no qual o acordo apresentado pelos devedores foi recusado por sentença datada de 05/08/2022. Subsequentemente, o administrador judicial provisório emitiu parecer favorável à declaração de insolvência, nos termos do artigo 222.º-G, n.º 5, do CIRE.
De acordo com o art.º 222º-G, n.ºs 3, 4 e 5 quem requer a declaração de insolvência é o administrador judicial provisório, mas este requerimento equivale a uma apresentação à insolvência, devendo a mesma ser declarada pelo juiz no prazo de três dias úteis, caso o devedor não deduza oposição (art.º 222º-G, n.º7) (cf. Catarina Serra, in Ob. Cit., pág. 642).
Deste modo, no âmbito do processo especial para pagamento, quando ocorre a conclusão do processo negocial sem aprovação do acordo de pagamento, o devedor pode requerer a exoneração do passivo restante nos termos do disposto nos arts. 235º e ss. (n.º5 do art.º 222º-G).
Na sequência da não aprovação do plano de pagamentos no âmbito do apenso A, como resulta do facto provado em 4) notificado o Sr. Administrador Judicial Provisório veio apresentar o parecer a que alude o artigo 222.º-G, n.º 3, do CIRE, no qual concluiu pela situação de insolvência dos devedores. Por ofício de 17.08.2022, os devedores foram notificados, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 222.º G, n.º 5, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, «para no prazo de 5 dias, deduzir oposição, por mero requerimento, ou para, querendo e caso se mostrem preenchidos os respetivos pressupostos, apresentar plano de pagamentos nos termos do artº 249º e seguintes do CIRE ou requerer a exoneração do passivo restante nos termos do disposto nos artigos 235º e seguintes do CIRE.» (facto 5).
Não procede, por conseguinte, a afirmação constante da conclusão XXXVI, segundo a qual os recorrentes não terão sido notificados nos termos e para os efeitos previstos nos n.ºs 5, 6 e 7 do artigo 222.º-G do CIRE, porquanto, na realidade, tal notificação ocorreu.
Decorre do artigo 222º-G, nº 5 do CIRE (na redação dada pela Lei nº 9/2022, de 11 de Janeiro) que caso o administrador judicial provisório emita parecer concluindo pela insolvência do devedor, a secretaria do tribunal notifica o devedor para: a) deduzir oposição, que deve ser apresentada no prazo de cinco dias, por meio de requerimento; ou, b) querendo, e caso estejam preenchidos os respectivos pressupostos, apresentar plano de pagamentos de acordo com o disposto nos artigos 249º e ss.; ou, c) querendo, e caso estejam preenchidos os respectivos pressupostos, requerer a exoneração do passivo restante de acordo com o disposto nos artigos 235º e ss.
O que sucedeu foi que, em 19/08/2022, na sequência deste despacho, vieram os recorrentes requerer a extração de certidão do requerimento que apresentaram para que, juntamente com o parecer do administrador, seja tramitado no processo de insolvência, mais tendo requerido a apresentação de um plano de insolvência, no processo em que vier a ser declarada a sua insolvência, nos termos e para os efeitos dos artigos 192.º e seguintes do CIRE.
O despacho datado de 25/08/2022 (que ordenou a autuação do requerimento de 19/08/2022 como processo de Insolvência Singular (Apresentação) e a respetiva apensação aos presentes autos de processo especial para acordo de pagamento, determinou a notificação dos devedores, nos termos do artigo 222º-G, nº 5 do CIRE, “para, em cinco dias, apresentarem o plano de pagamentos previsto nos artigos 249º e seguintes do CIRE que ali se propuseram apresentar”, teve como pressuposto que o requerentes pretendiam apresentar plano de pagamento o que lhes seria possível face ao disposto no art.º 249º do CIRE. Porém, os recorrentes, tendo sido notificados do despacho de 25/08/2022 e, concretamente, para, em cinco dias, apresentarem plano de pagamentos, o certo é que por requerimento de 26/08/2022, vieram pedir que fosse dado “sem efeito a parte que respeita à apresentação pelos Insolventes de plano de pagamentos previsto no artigo 249º do CIRE, no despacho que antecede”, e, como se concluiu no acórdão desta secção proferido no apenso E, com o qual concordamos, foi neste pressuposto que o tribunal proferiu o despacho subsequente de 26/08/2022, considerando “não escrita a parte final do despacho que antecede, não sendo de efetuar a notificação ordenada”. Ou seja, considerando, tão só, não escrita a notificação para que os devedores apresentassem no prazo de cinco dias plano de pagamentos e isto porque a verdadeira intenção dos recorrentes não era apresentar qualquer plano de pagamentos, pretendendo antes, apresentar plano de insolvência que veio a ser julgado inadmissível.
Em conclusão, apesar de notificados para o efeito, não pediram (porque não o pretendiam), pedido de exoneração do passivo restante nos termos do disposto nos arts. 235º e ss.
Ora, como se disse, uma vez que foi legalmente instituído em seu benefício, o pedido de concessão da exoneração do pedido restante é da exclusiva disponibilidade/vontade do devedor, de cuja iniciativa depende a instauração e prosseguimento do incidente e cuja admissibilidade depende (antes de mais) da prévia declaração da insolvência do requerente e, no âmbito desta, da verificação de requisitos (pela positiva ou pela negativa), uns de natureza formal ou processual, e outros de natureza material ou substantiva (cf. o Acórdão desta secção de 29/10/2024, processo n.º 11766/18.1T8LSB-G.L1-1, Relatora Amélia Sofia Rebelo e em que foi segunda adjunta a ora relatora).
Estabelece, por sua vez, o art. 238º, sob a epígrafe Indeferimento liminar que: «1- O pedido de exoneração é liminarmente indeferido se: a)- For apresentado fora de prazo; (…) 2- O despacho de indeferimento liminar é proferido após a audição dos credores e do administrador da insolvência nos termos previstos no n.º 4 do artigo 236.º, exceto se o pedido for apresentado fora do prazo ou constar já dos autos documento autêntico comprovativo de algum dos factos referidos no número anterior.».
O art.º 238º não prevê um “verdadeiro e próprio indeferimento liminar”, mas algo mais, porquanto alguns dos requisitos previstos obrigam à produção de prova e a um juízo de mérito do tribunal (cf. Catarina Serra, in Ob. Cit., pág. 616 e Menezes Leitão, em Código da Insolvência e Recuperação de Empresas Anotado, pág. 304).
Como se referiu no Acórdão deste secção de 22/02/2022, proferido no processo 2246/19.9T8VFX.L1-1, relatora Fátima Reis Silva: “o juízo de mérito exigido no preceito não é relativo à concessão ou não concessão da exoneração do passivo restante, mas antes sobre a oportunidade de o devedor se submeter a um período probatório que, a final, pode resultar na oportunidade de ser liberado das dívidas. Este é o primeiro de dois momentos fundamentais no procedimento de exoneração, o despacho inicial, sendo o segundo o despacho de exoneração, propriamente dito. De entre as causas de indeferimento liminar previstas, a alínea a) reveste natureza processual e as demais são requisitos de ordem substantiva.”
Na previsão da alínea a), relativa à sua tempestividade, trata-se, pois, de um pressuposto formal, exigindo-se que o pedido seja apresentado em determinado prazo ou em determinada fase do processo. Este formalismo e a oportunidade temporal do pedido constitui pressuposto de conhecimento oficioso, que é aferido pelo teor do requerimento e do processado nos autos, independentemente de alegação e pedido nesse sentido. Distintamente, os requisitos materiais da exoneração do passivo restante têm subjacente a não concessão discricionária desse benefício a quem quer que ao mesmo se habilite e, simultaneamente, que o mesmo também “não deve ser discricionariamente rejeitado.” (cf. o já citado Acórdão desta secção de 29/10/2024).
No caso, não tendo havido oposição dos devedores ao parecer do Sr. Administrador Judicial Provisório, impunha-se aos devedores, se assim o pretendessem, formular o pedido de exoneração do pedido restante. As hipóteses ali previstas – de apresentar plano de pagamento ou de exoneração do passivo restante -, são alternativas, o que significa que podem optar por uma ou por outra. No entanto, os devedores não requereram nem uma nem outra, simplesmente porque, naquele circunstancialismo, pretendiam apresentar plano de insolvência e por isso pugnaram, interpondo sucessivos recursos (todos eles sem que tivessem a virtualidade de conferir efeito suspensivo do processo – art.º 14º, n.º5 do CIRE), até que estes se mostraram esgotados.
Tendo os sucessivos recursos do despacho proferido efeito meramente devolutivo, passam-se as coisas no que concerne à eficácia da decisão, quer no que toca ao andamento do processo, como se o recurso não tivesse sido interposto (cf. Amâncio Ferreira, in Manual dos Recursos em Processo Civil, pág. 178 e o Acórdão do STJ de 16/10/2018, processo n.º 923/13.7TBGDM-B.P1.S1, Relatora Ana Paula Boularot, onde se lê que: “Sendo interposto recurso de uma decisão interlocutória, ao qual seja atribuído efeito devolutivo, o processo continua os seus termos, e decisão assim proferida, embora pendente de impugnação, é imediatamente exequível, tudo se passando no processo, quer a nível do seu andamento, quer ao nível da eficácia do que foi determinado, como se nenhuma impugnação tivesse existido.”).
Outro tanto já não sucede quanto aos efeitos que poderão ser produzidos pelas decisões que as Instâncias Superiores venham a proferir, uma vez transitadas em julgado e formando caso julgado formal e material (art.º 619º do CPC). Se a decisão final revoga totalmente a decisão recorrida, os seus efeitos repercutem-se na marcha do processo. O cumprimento do decidido pelo Tribunal Superior no âmbito da apreciação da apelação interposta da decisão interlocutória implicará, forçosamente, a invalidação do processado posterior por ela prejudicado.
Neste contexto legal e processual, não o tendo feito na sequência da notificação a que alude o art.º 222º-G, n.º 5, os devedores poderiam ainda requerer o incidente da exoneração do passivo restante num dos períodos que no art.º 236º, nº 1, parte final, a lei designa de intermédio: até e no âmbito da assembleia de credores para apreciação do relatório caso esta tenha sido designada; ou, caso não tenha sido designada, nos 60 dias subsequentes à sentença de declaração da insolvência. A admissão ou rejeição do pedido de exoneração do passivo restante apresentado em qualquer um dos períodos intermédios é decidida livremente pelo juiz (cfr. art.º 236º, nº 1, parte final).
Sendo designada assembleia de credores, estes e o administrador da insolvência podem pronunciar-se sobre o pedido de exoneração do passivo restante até esse ato ou no âmbito do mesmo seja deduzido; não sendo designada assembleia de credores, como sucedeu nos autos, em coerência lógica e cronológica com o art.º 36º, nº 1, al. n) e nº 3, o administrador da insolvência e os credores dispõem do prazo de 10 dias subsequente ao período de 60 dias após a sentença para sobre ele se pronunciarem (cfr. art.º 236º, nº 3).
Dispõem o art. 236º, n.º1 do CIRE que “(…) o juiz decide livremente sobre a admissão ou rejeição de pedido apresentado no período intermédio”
O que se deve entender por poder o Juiz decidir livremente, sobretudo numa situação em que estão em causa direitos patrimoniais relevantes quer do devedor quer dos seus credores, não se trata de um poder absoluto e discricionário. A decisão a ser proferida tem de ser fundamentada, por imposição constitucional e legal (art.º 205º, n.º1 CRP e art.º 154º, n.º1 do CPC), mas ao contrário do que defendem os apelantes (conclusões XXXII a XXXV) tem de assentar no regime instituído nas alíneas b) a g) do nº 1 do art.º 238º CIRE, normativo que fornece as razões que no entender do legislador justificam o indeferimento liminar do pedido de exoneração (Neste mesmo sentido, o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 21 de Janeiro de 2016, processo n.º 334/14.7TBBGC-C.G1, Relatora Helena Melo, excluindo-se, pois, a verificação do pressuposto formal enunciado no art.º 238º, n.º1, al. a).
Nos casos como o presente, em que os devedores foram notificados nos termos do art.º 222º-G do CIRE para, no prazo de cinco dias, requererem o incidente de exoneração do passivo restante, não o tendo feito naquele prazo, declarada a insolvência por sentença proferida em 26/08/2022 poderiam tê-lo feito, na ausência de designação da assembleia de credores para aprovação do relatório (que foi dispensada) até ao 60º dia subsequente à prolação da sentença, ou seja, até ao termo final absoluto para a possibilidade de o insolvente requerer a exoneração do passivo restante (até ao encerramento da assembleia de credores ou até 60 dias após a sentença de insolvência) depois de ultrapassada a fase ou o prazo legalmente previstos para o efeito (art.º 222º-G, n.º5), termo a partir do qual a lei impõe, sempre, a sua rejeição.
Apesar de notificados para o efeito, não vieram atempadamente requerer a exoneração do passivo restante (porque nem o pretendiam). Após ter sido proferida a sentença a declarar a insolvência e até ao 60º dia após a data desta, considerando que não foi designada data para a Assembleia de Credores, os devedores não pediram a exoneração do pedido restante, devendo tê-lo feito sem prejuízo dos recursos interpostos (atendo o efeito destes na marcha do processo), não podendo vir agora requerê-lo, por ser claramente extemporâneo.
Improcedem, assim, as conclusões das alegações de recurso, não merecendo qualquer censura a decisão recorrida.
*
IV. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desta 1ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelos apelantes/insolventes.
Notifique.

Lisboa, 13-05-2025
Susana Santos Silva
Amélia Sofia Rebelo
Nuno Teixeira