IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
RESOLUÇÃO EM BENEFÍCIO DA MASSA INSOLVENTE
PRAZO
PRESUNÇÃO LEGAL
ÓNUS DA PROVA
Sumário

Sumário da responsabilidade da relatora – art. 663º nº7 do CPC.
1 – Sendo o único facto identificável nas conclusões como objeto de impugnação da matéria de facto um facto misto (fáctico e conclusivo), e não tendo sido ali referidos os demais factos, provados e não provados, que conduzem à parte conclusiva daquele, não pode considerar-se ter sido cumprido o disposto na al. a) do nº1 do art. 640º do CPC quanto àquele único facto identificável, sendo consequentemente, de rejeitar a impugnação da matéria de facto.
2 – O período previsto no nº4 do art. 120º do CIRE é exatamente o mesmo previsto no art. 49º do mesmo diploma, pelo que a menção da lei à inexistência de relação especial à data da prática do ato apenas pode ter como sentido, embora com limites, o alargamento do prazo previsto no art. 49º para as relações especiais não vitalícias (casamento e união de facto) para antes e depois do prazo de dois anos antes do início do processo, englobando o período decorrido até à sentença.
3 – Provando-se que a união de facto entre a insolvente e o adquirente cessou no final de 2013 e não foi retomada, mas sendo o bem, vendido em 2020, ainda consequência dessa relação especial e estando diretamente relacionado com ela (adquirido em compropriedade), justifica-se que este seja um dos casos abrangido pela presunção quando o processo de insolvência se iniciou em 2021.
4 - Formada a presunção caberia ao A. provar a inexistência dos elementos previstos no nº5 do art. 120º.

Texto Integral

Acordam os Juízes da Secção de Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa

1. Relatório
Por apenso ao processo especial de insolvência no qual, por sentença de 06/09/2021, foi declarada a insolvência de AC veio, em 30/03/2022,
JM, intentar contra a massa insolvente de AC,
Ação declarativa sob a forma comum,
Pedindo seja julgada procedente a impugnação e, em consequência, declarada ineficaz a resolução efetuada pelo administrador judicial.
Alegou, em síntese, ter recebido do Sr. Administrador da Insolvência carta procedendo à resolução do contrato de compra e venda de prédio urbano celebrado com a insolvente nos termos dos arts. 120º nºs 4 e 5, alíneas a) e b) e 49º nº1, al. d) do CIRE.
O A. desconhecia a situação patrimonial da insolvente e agiu de boa-fé. Separaram-se em finais de 2013 e combinaram que a casa ficaria para o A., apenas não tendo procedido de imediato à transmissão da propriedade. Desde 2013 que paga integralmente o empréstimo e todas as despesas. O processo de transmissão iniciou-se em 2019 mas foi atrasado pelo covid e burocracias, só se concluindo em 2020.
A resolução é nula por não se encontrarem reunidos os requisitos formais e materiais, e por falta/insuficiência de fundamentação.
Citada a R. contestou, pedindo seja a ação julgada improcedente por não provada e a condenação do A. como litigante de má-fé.
Alegou, em síntese, estarem verificados os pressupostos de facto e de direito que legitimam a resolução, por impugnação e que o conteúdo da carta de resolução enumera os pressupostos da resolução. Como fundamento da condenação como litigante de má-fé alegou ter o A. invocado factos falsos quanto ao crédito da CGD.
Por despacho de 30/11/2022 foi enunciado o objeto do litígio e foram fixados os temas de prova.
Realizou-se audiência de discussão e julgamento.
Em 01/06/2023 foi proferida sentença, nos seguintes termos:
A) Julgo improcedente, por não provada, a presente ação e, em consequência, absolvo a R. do peticionado;
B) Condeno o A. como litigante de má fé:
i. Na multa de 2 U.C.;
ii. Mais determinando que a R., em 10 dias, se pronuncie sobre o montante da indemnização a arbitrar, nos termos do disposto no artº 543.º, nº 3, do Código de Processo Civil;
iii. Podendo o A. pronunciar-se também, querendo, no mesmo prazo, contado desde a notificação que lhe vier a ser feita do requerimento referido em B.ii).
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Valor da ação: o fixado no saneador.
Incidente sem tributação autónoma – artº 304°, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
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Registe e notifique.”
Inconformado apelou o A., pedindo a revogação da sentença proferida e a condenação da recorrida, formulando as seguintes conclusões:
“I. A transmissão do imóvel não foi celebrada com o propósito de dissipar património da insolvente.
II. O Recorrente sempre assumiu o imóvel como seu na sua totalidade, do qual sempre se responsabilizou pelos custos e despesas inerentes.
III. O Recorrente procedeu a benfeitorias do imóvel até outubro de 2021, pois caso existisse ou estivesse de má-fé não teria procedido a benfeitorias no imóvel no valor total de €12.099,93 (dois mil e noventa e nove euros e noventa e três cêntimos).
IV. A morada que a insolvente tinha no imóvel apenas seria de correspondência, uma vez que tinha morada instável, nunca mais tendo residido no imóvel desde a separação em finais de 2013.
V. A Insolvente apenas tinha relação com o Recorrente relativamente aos filhos que têm em comum desconhecendo aspectos das suas vidas pessoais.
VI. Apesar de terem dois filhos em comum, a relação de ambos era inexistente no que toca às suas vidas pessoais, não partilhando qualquer informação da vida privada de cada um, não existindo qualquer relação especialmente privilegiada por causa dos filhos, conforme se pode retirar dos depoimentos prestados e dar como provado.
VII. O Recorrente apenas lhe entregava as cartas não reparando no remetente nem sendo do seu conhecimento saber sequer o que é uma injunção ou Balcão Nacional de Injunções ou do que se tratava, nem tão pouco as abria, em suma, não tinha qualquer conhecimento da situação económica da insolvente.
VIII. O Recorrente sempre agiu de boa-fé junto com a insolvente e tanto é verdade que procedeu a benfeitorias ao imóvel na sua globalidade o que valorizou em termos de valor de mercado, sem que nada fizesse prever que estava a dissipar ou a prejudicar a massa insolvente.
IX. Se assim fosse, o Recorrente tivesse a consciência ou agisse de má-fé, em momento algum despenderia de valores monetários para realizar melhoramentos no imóvel, sabendo que poderia perder ½ daquele.
X. O requisito principal à resolução em benefício da massa insolvente é a “máfé” que não se encontra provada nem demonstrada.
XI. Para que possa ter lugar a resolução em benefício da massa insolvência teria de ter havido o propósito deliberado de prejudicar a massa insolvente e violar o princípio de igualdade dos credores, isto é, ter havido deliberação entre as partes nos ditos negócios e ter a mesma sido tomada e empreendida com os referidos propósitos, o que é de concluir que o negócio celebrado não teve esse propósito e requisito de má-fé.
XII. As partes, neste caso a insolvente e o Recorrente não acordaram na celebração dos negócios para prejudicar a massa insolvente e violar o princípio de igualdade dos credores, porque ainda que verbal foi muito anterior aos processos de incumprimento por parte da insolvente e declaração de insolvência.
XIII. Segundo a própria insolvente sempre se tratou da “propriedade” do Recorrente, não tendo moralmente qualquer direito sobre o mesmo.
XIV. A própria insolvente em momento algum despendeu algum valor monetário para aquele imóvel ou contribuiu para a manutenção e conservação do mesmo, porque sempre agiu como se o imóvel não fosse seu e foi aferido através do seu próprio depoimento enquanto testemunha.
XV. Não se encontram preenchidos os requisitos que fundamentam a resolução, a qual deve ser revogada.
XVI. Foi ilidida a alegada “má fé”, necessária à resolução do negócio, o que podemos concluir com o teor dos respetivos depoimentos prestados, quer pelo depoimento de parte do Autor, quer da sua testemunhas, quer até pela testemunha da Ré.
XVII. Pelo que deverá ser reapreciada a prova gravada e, consequentemente, concluir que não existiu má-fé na transmissão do imóvel, não houve conluio, o Autor desconhecia a condição económica da insolvente, sendo o negócio válido.
XVIII. Para que estivesse presente a “má-fé” na transmissão do imóvel, seria necessário verificar que o Recorrente e a Insolvente se encontravam em conluio na celebração do negócio com o objetivo de dissipar património, em prejuízo da massa insolvente, o que não se pode retirar tal conclusão através da prova gravada, uma vez que em ambos os depoimentos está demonstrada a boa fé na transmissão, tal como o acordo já realizado e feito antes e o desconhecimento por parte do Recorrente da situação económica da insolvente.
XIX. Em termos de direito que não se preenchem os requisitos do artigo 120º do C.I.R.E. para que ocorra a resolução concluindo-se que o Recorrente, face aos depoimentos e declarações considera ilidida.”
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A recorrida massa insolvente de AC, apresentou contra-alegações, nas quais concluiu:
“A) Em sede de impugnação da matéria de facto o recorrente tem de especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
B) O recorrente não especificou os concretos pontos de facto que considerou incorrectamente julgados;
C) Não o tendo feito, o recorrente incumpriu com o exigido na al. a), do nº1, do artigo 640º, do C.P.C.;
D) A violação da al. a), do nº1, do artigo 640º, do C.P.C., tem como consequência a rejeição do recurso;
E) Deve, por isso, o recurso apresentado pelo recorrente ser rejeitado liminarmente, com as legais consequências;
Caso assim não se decida:
F) Devem ser mantidos todos os factos dados por provados pelo tribunal “a quo”, em particular os seguintes i) Era do conhecimento do Autor a existência da injunção instaurada pela Unicre; ii) A Insolvente foi notificada e, ou, citada para execução nº3956/19.6T8STB, do Juízo de Execução do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal movida pela Unicre na morada em que reside o Autor, tendo este tido conhecimento daquele processo judicial antes de Agosto de 2020; iii) Era do conhecimento do Autor e da Insolvente que o património desta, nomeadamente a ½ prédio urbano, destinado a habitação, com dois pisos e garagem, sito na Rua …, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de …, sob o nº …, da Freguesia de … e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …, podia ser penhorado para garantir as dívidas que a insolvente contraiu antes de Agosto de 2020; iv) Para que tal não acontecesse, em 20.8.2020, foi celebrado entre o Autor e a Insolvente o título de compra e venda e assunção de dívida, procedimento Casa Pronta nº …/2020;
G) À luz do princípio de que o juiz aprecia livremente a prova, bem como das regras da experiência comum e do critério do homem médio, afigura-se não ser plausível que o recorrente desconhecesse a situação financeira da insolvente;
H) A decisão em crise não merece qualquer censura e aplicou correctamente o Direito aos factos provados, devendo, por isso, ser mantida na íntegra.”
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O recurso foi admitido por despacho de 26/09/2023 (ref.ª 428724798).
Os autos foram remetidos a este Tribunal de recurso em 17/03/2025, na sequência de despacho de 20/02/2025.
Foram colhidos os vistos.
Cumpre apreciar.
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2. Objeto do recurso
Como resulta do disposto nos arts. 608º, n.º 2, aplicável ex vi art. 663º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4, 639.º n.ºs 1 a 3 e 641.º n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil, sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio e daquelas cuja solução fique prejudicada pela solução dada a outras, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objeto do recurso. Frisa-se, porém, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito –  art.º 5º, nº3 do mesmo diploma.
Consideradas as conclusões acima transcritas são as seguintes as questões a decidir:
- impugnação da decisão relativa à matéria de facto;
- verificação de se estão reunidos os requisitos para que seja declarada válida a resolução em benefício da massa insolvente do negócio celebrado entre a insolvente e o A.
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3. Fundamentos de facto
Foi proferida, na 1ª instância, a seguinte decisão relativa à matéria de facto:
“A) FACTOS
a) Factos provados[1]
1 - Em 31/12/2021, o autor recebeu carta registada do senhor administrador da insolvência que, ao abrigo dos artigos 120º, nºs 1 e 2 e 123º nº 1 todos do CIRE, comunicou a resolução do negócio celebrado entre aquele e a Insolvente AC. (artº 1º requerimento inicial)
2 - A referida carta reporta-se ao negócio de compra e venda relativo ao prédio urbano, destinado à habitação, com 2 pisos e garagem, sito na rua …, descrito na Primeira Conservatória do Registo Predial de …, sob o nº 3391, da freguesia de … e inscrito na matriz predial sob o artigo nº …. (artº 2º requerimento inicial)
3 - Como fundamento da resolução, invoca que o ato de compra e venda foi prejudicial à massa insolvente, por diminuir o património da devedora, e, consequentemente reduzir a probabilidade dos credores recuperarem os respetivos créditos. (artº 3º requerimento inicial)
4 - Invoca ainda como fundamento, o facto de ter decorrido dentro dos 2 anos anteriores à data do início do processo de insolvência. (artº 4º requerimento inicial)
5 - Mais invocando que, por o Autor se tratar de pessoa especialmente relacionada com a Insolvente, os factos são geradores de suspeição e que fazem presumir, nos termos legais, a existência de má-fé, enquadrando tal situação na previsão do artigo 120º nºs 4 e 5, alíneas a) e b), bem como do artigo 49º nº 1, alínea d), todos do CIRE. (artº 5º requerimento inicial)
6 - O Autor e a Insolvente separaram-se em finais de 2013. (artº 8º requerimento inicial).
7 - Nessa data, acordaram que o imóvel supra identificado ficava atribuído ao Autor. (artº 9º requerimento inicial)
8 - Todavia, não procederam de imediato à transmissão da propriedade. (artº 10º requerimento inicial)
9 - O Autor assumiu na totalidade o pagamento do empréstimo com a aquisição do imóvel, mantendo a copropriedade. (artº 12º requerimento inicial)
10 - Desde 2013 que o Autor paga integralmente a prestação do empréstimo bancário para aquisição do imóvel e todas as demais despesas inerentes àquele, como impostos e benfeitorias. (artº 13º requerimento inicial)
11 - Independentemente de terem filhos em comum, Autor e Insolvente passaram a ter vidas totalmente independentes. (artº 14º requerimento inicial)
12 - Em 2019, o Autor iniciou o processo de transmissão da propriedade do imóvel, na sua totalidade, para o seu nome. (artº 15º requerimento inicial)
13 - Processo esse que só foi possível concluir em Agosto de 2020, atentas as burocracias e os atrasos causados com a pandemia de Covid 19. (artº 16º requerimento inicial)
14 - Autor e Insolvente já haviam acordado, entre si e em 2013, que seria o Autor quem pagaria todas as prestações e despesas com o imóvel. (artº 19º requerimento inicial)
15 - Após a transmissão da propriedade, em Setembro de 2020, o Autor e a sua companheira procederam a obras de melhoramento no imóvel. (artº 24º requerimento inicial)
16 - As obras decorreram até Outubro de 2021 e importaram uma despesa de €12.099,93. (artº 25º requerimento inicial)
17 - Atenta a qualidade de credora, o negócio foi celebrado com a colaboração e conhecimento da Caixa Geral de Depósitos. (artºs 36º e 37º requerimento inicial)
18 - Não existindo diminuição do seu património. (artº 28º requerimento inicial)
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19 - Em 10.11.2021, o Sr. AI apresentou o relatório do artigo 155º do C.I.R.E. em que fez constar que:
a) “Após investigação, no Registo Predial, verifica-se que a devedora não é, atualmente, dona de qualquer imóvel.
Houve um prédio que pertenceu à insolvente e ao pai dos dois filhos de ambos, JM, sito na Rua …, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de …, sob o nº …, da Freguesia de … (cfr. descrição predial que segue em anexo ao presente Relatório), a qual foi desconhecendo-se se ainda é, casa de morada de família das pessoas em causa.
Sucede que a insolvente, em Agosto de 2020, ou seja, menos de dois anos antes de se apresentar à insolvência, vendeu a ½ que lhe pertencia no prédio identificado no parágrafo anterior, com o valor patrimonial de €176.132,95, exatamente ao outro comproprietário – que é o progenitor dos filhos – logo, pessoa especialmente relacionada com a devedora, tal como prevê o artigo 49º, nº 1, alínea d), do C.I.R.E.
Assim, o Administrador de Insolvência irá acionar o mecanismo legal que prevê a resolução em benefício da massa insolvente de tal transmissão onerosa de imóvel, ao abrigo do que é estabelecido pelos artigos 120º, nºs 1, 2 e 4, do C.I.R.E.
b) A data em que ocorreu o início do incumprimento da pessoa em causa deve fixar-se, em Dezembro de 2017, quanto à “UNICRE”, em Março de 2019, no que se refere ao “BNP Paribas”, em Abril de 2019, no que concerne à “COFIDIS” e, em Junho de 2019, no que respeita ao “NOVO BANCO”, tendo ainda dívidas à Previdência, embora de baixa monta, desde Outubro de 2006, bem como ao Fisco.
c) Existem, pelo menos, quatro execuções judiciais contra a devedora”. Doc.1- requerimento com a ref. 40413531. (artº 3º contestação)
20 - Em 25.11.2021, o Sr. AI emitiu o Parecer previsto no artigo 188º do C.I.R.E., do qual se extrai a seguinte factualidade:
1) A devedora, em 19 de Agosto de 2003, foi mãe do seu filho G, sendo pai do mesmo JM;
2) Em 25 de Junho de 2004, a insolvente e o companheiro, JM, compraram um imóvel sito na Rua …, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de …, sob o nº …, da Freguesia de … (cfr. descrição predial junta ao Relatório);
3) Tal prédio constituiu, desde então, a casa de morada desse agregado familiar;
4) E, em 15 de Setembro de 2006, o mesmo cresceu pois nasceu o outro filho da devedora, H, do qual também foi progenitor JM;
5) Em virtude de ter contraído dívidas cujo pagamento não honrou, a insolvente, a partir de 2019, foi Executada em, pelo menos, quatro acções executivas, como, aliás, resulta do Doc. 10 junto à p.i.;
6) A insolvente, em Agosto de 2020, decidiu vender a ½ que lhe pertencia no prédio identificado no ponto 2 anterior, com o valor patrimonial de €176.132,95, ao outro comproprietário que é o pai dos seus dois filhos;
7) Cerca de um ano depois, em 2 de Setembro de 2021, a devedora apresentou-se à insolvência;
8) Ficou demonstrado que, em Agosto de 2020, quando já tinha conhecimento das execuções que lhe foram instauradas pelos credores, a insolvente alienou o único bem imóvel que integrava o respetivo património, ou seja, a ½ que lhe pertencia, precisamente, ao outro comproprietário que é o companheiro, isto é, a pessoa com quem vive, ou viveu, em comunhão de leito e mesa;
9) os Factos 2), 3), 5) e 6) incluem-se na alínea d), do nº2, do artigo 186º do C.I.R.E. preceito em causa, que enuncia como causa de insolvência culposa o facto da devedora ter disposto dos seus bens em proveito pessoal ou de terceiros, já que foi exatamente isso que sucedeu ao ter dissipado um imóvel para a esfera jurídica duma pessoa especialmente relacionada consigo própria, o pai dos filhos e companheiro (cfr. artigo 49º, nº 1, alínea d), do C.I.R.E.), sendo certo que tal negócio foi celebrado em 2020, pelo que, assim, também fica observado o último requisito exigido pelo artigo 186º, nº 1, do C.I.R.E.- Doc. 2- requerimento com a ref. 40577326 (artº 4º contestação)
21 - Foram reclamados créditos no valor total de €41.392,36, conforme lista de credores reconhecidos – doc. 3 requerimento com a ref. 40799873 de 6.1.2022. (artº 5º contestação)
22 - O crédito da credora reclamante BNP Paribas Personal Finance, S.A. – Sucursal em Portugal venceu-se a partir de 28.3.2019 – reclamação de créditos com a ref.40084488.doc.4 (artº 6º contestação)
23 - O crédito da Cofidis Sucursal em Portugal venceu-se a partir de 1.4.2019, tendo-se operado a resolução do contrato de crédito, após interpelação, em 29.11.2019 – doc. 5, reclamação de créditos com a referência 40066923. (artº 7º contestação)
24 - O crédito do Novo Banco S.A. venceu-se a partir de 2.6.2019, constando no contrato de crédito ao consumo que, a insolvente em 24.6.2016 residia em união de facto com o autor na Urbanização …, bem como da ficha de cliente e dos extratos bancários que a insolvente residia naquela morada. doc.6, reclamação de créditos com a referência 40079837. (artº 8º contestação)
25 - O crédito do Oney Bank- Sucursal em Portugal vencido em 2020, atento ao número do processo executivo instaurado pela credora- Proc. 5550/20.0T8ALM. doc.7, reclamação de créditos com a referência 399901355. (artº 9º contestação)
26 - O crédito da Unicre – Instituição Financeira de Crédito S.A. venceu-se a partir de 18.12.2017, constando no contrato de crédito pessoal que a insolvente em 29.6.2014, residia em união de facto com o autor na Urbanização …, tendo a insolvente aquela morada aquando da notificação para procedimento de injunção com nº 35377/18.2YPRT, o qual veio a servir de título executivo no processo nº3956/19.6T8STB, do Juízo de Execução do Tribunal Judicial da Comarca de …. doc. 8, da reclamação de créditos com a referência 40052292. (artº 10º contestação)
27 - Na execução nº3956/19.6T8STB, consta do requerimento executivo, apresentado pela Unicre, que a insolvente tem residência na Urbanização …, morada para onde foram remetidas as notificações do Agente de Execução. doc.8 (artº 11º contestação)
28 - Em 28.12.2021, o Sr. AI remeteu ao Autor a carta, cujo texto se transcreve:
“…Assunto: Insolvência de AC, a correr termos no Juízo de Comércio do Barreiro, Juiz 3 (Proc. nº 1594/21.2T8BRR) – Resolução em benefício da massa insolvente;
Exmo. Senhor,
Na qualidade de Administrador de Insolvência no processo mencionado em epígrafe, comunico que, ao abrigo do disposto nos artigos 120º, nºs 1 e 2 e 123º, nº 1, ambos do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (C.I.R.E.), declaro resolvido a favor da massa insolvente o negócio relativo à aquisição que V. Exa. fez à referida insolvente, de metade do imóvel abaixo identificado, negócio esse efetuado em 20 de Agosto de 2020 e sendo certo que a vendedora foi declarada insolvente em 6 de Setembro de 2021:
- Prédio urbano, destinado a habitação, com dois pisos e garagem, sito na Rua …, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de …, sob o nº …, da Freguesia de … e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …;
A resolução tem fundamento na seguinte factualidade:
a) tal acto foi prejudicial à massa insolvente por diminuir o património da devedora e, logo, reduzir a probabilidade dos credores recuperarem os respetivos créditos, os quais lhes foram reconhecidos pelo signatário;
b) por a compra e venda a que se alude ter ocorrido dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência; e
c) por V. Exa. se tratar de pessoa especialmente relacionada com a insolvente na medida em que, além de seu companheiro ou ex-companheiro, é pai dos dois filhos da mesma, factos esses geradores de suspeição e que fazem presumir, nos termos legais, a V. má-fé, pelo que tal situação se enquadra na previsão do artigo 120º, nº 4 e nº 5, alíneas a) e b), bem como do artigo 49º, nº 1, alínea d), ambos do C.I.R.E..
Nessa conformidade, transmito a V. Exa. que a metade do imóvel atrás identificado irá ser apreendida nos autos judiciais em causa, em benefício da massa insolvente que o subscritor representa, sendo tal propósito já do conhecimento do Tribunal…” Doc.9, requerimento com a referência 40913036. (artº 12º contestação)
29 - Na sequência da resolução, operada em 31.12.2021, data em que o Autor recebeu a carta de resolução, o Sr. AI procedeu à apreensão do imóvel, tudo conforme deu conta aos autos em 6.1.2022, através do requerimento com a referência nº40913207. Doc. 9 e 10. (artº 13º contestação)
30 - Era para a morada sita na Urbanização … que o Novo Banco enviava os extratos bancários em nome da Insolvente e para onde foram remetidas citações e notificações judiciais decorrentes do incumprimento do contrato de crédito pessoal por parte da insolvente, desde Junho de 2019. (artº 14º contestação)
31 - O autor recebeu a correspondência do Novo Banco remetida para a Urbanização …, em nome da insolvente. (artº 15º contestação)
32 - A insolvente foi notificada e, ou citada, da injunção instaurada pela Unicre em 2019, na Urbanização …. (artº 17º contestação)
33 - Era do conhecimento do Autor a existência da injunção instaurada pela Unicre. (artº 18º contestação)
34 - A Insolvente foi notificada e, ou, citada para execução nº3956/19.6T8STB, do Juízo de Execução do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal movida pela Unicre na morada em que reside o Autor, tendo este tido conhecimento daquele processo judicial antes de Agosto de 2020. (artº 19º contestação)
35 - Era do conhecimento do Autor e da Insolvente que o património desta, nomeadamente a ½ prédio urbano, destinado a habitação, com dois pisos e garagem, sito na Rua …, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de …, sob o nº …, da Freguesia de … e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …, podia ser penhorado para garantir as dívidas que a insolvente contraiu antes de Agosto de 2020. (artº 20º contestação)
36 - Para que tal não acontecesse, em 20.8.2020, foi celebrado entre o Autor e a Insolvente o título de compra e venda e assunção de dívida, procedimento Casa Pronta nº 15095/2020, cuja cópia se junta aos autos e se dá por reproduzido. Doc.11 (artº 21º contestação)
37 - Do referido título de compra e venda e assunção de dívida resulta que:
a) O prédio urbano, destinado a habitação, com dois pisos e garagem, sito na Rua …, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de …, sob o nº …, da Freguesia de .. e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …, tem o valor patrimonial de € 176.132,95;
b) Sobre o mencionado prédio incidia uma hipoteca a favor da CGD, S.A., resultante do empréstimo bancário realizado pela insolvente e pelo Autor para a sua aquisição em partes iguais, cujo cancelamento estava assegurado;
c) Em 20.8.2021 o Autor e a Insolvente deviam à CGD a quantia de €88.125,08;
d) Pelo preço de € 44.064,04 a insolvente vendeu ao Autor o seu direito a metade do mencionado prédio;
e) O Autor não pagou à Insolvente qualquer quantia por ter assumido o encargo do pagamento que tinha na referida dívida bancária;
f) O Autor obrigou-se a pagar à CGD o valor do crédito que esta tinha sobre a Insolvente e o Autor;
g) O contrato firmado era apenas eficaz entre o Autor e Insolvente;
h) A sua eficácia perante a CGD dependida da sua retificação por esta. (artº 22º contestação)
38 - A CGD recebeu na integra o crédito que tinha concedido ao Autor e à Insolvente, o que levou ao cancelamento da hipoteca registada pela AP 10 de 2004/05/06 conforme se prova pela AP376 de 2020/08/20. Doc. 12 (artº 23º contestação)
39- O prédio urbano, destinado a habitação, com dois pisos e garagem, sito na Rua …, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de …, sob o nº …, da Freguesia de … e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …, tem um valor de mercado superior a € 250.000,00. (artº 27º contestação)
40 - A venda de metade daquele prédio, a preço de mercado, era suficiente para pagar ao credor hipotecário e ainda sobravam valores para satisfazer os demais credores da Insolvente. (artº 28º contestação)
41 - O Autor, para além de ex-companheiro da insolvente, é pai dos dois filhos da mesma. (artº 33º contestação)
42 - O Autor conhecia que insolvente tinha uma situação económica difícil à data da realização do contrato de compra e venda e assunção de dívida de 20.8.2020. (artº 35 contestação)
43 - A preço de mercado imobiliário, a metade do prédio urbano, destinado a habitação, com dois pisos e garagem, sito na Rua …, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de …., sob o nº …, da Freguesia de … e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …, não vale o montante de € 44.064,04. (artº 49º contestação)
44 - Mas sim, um valor superior a € 125.000,00. (artº 50º contestação)
45 - Segundo consta do contrato celebrado na Casa Pronta, a CGD recebeu a totalidade do empréstimo hipotecário celebrado com a Insolvente e o Autor, tendo entregue o distrate da hipoteca, pelo pagamento do seu crédito. (artº 64º contestação).
*
b) Factos não provados[2]
A - O Autor desconhecia a situação patrimonial da Insolvente à data da realização da transmissão da propriedade da meação daquela. (artº 6º requerimento inicial)
B - Não procederam de imediato à transmissão da propriedade em virtude da entidade bancária hipotecante, no caso a Caixa Geral de Depósitos, não ter prescindido da garantia do crédito de ambos os titulares. (artº 10º requerimento inicial)
C - Por outro lado, naquela data, a situação económica do Autor também não lhe conferia a capacidade de assumir mais compromissos financeiros. (artº 11º requerimento inicial)
D - Desconhecia o Autor que a Insolvente se encontrava em situação económica difícil. (artº 17º requerimento inicial)
E - O Autor só teve conhecimento da existência do processo de insolvência quando recebeu a carta do senhor Administrador. (artº 18º requerimento inicial)
F - Em Julho de 2019, em virtude de ter uma nova companheira, o Autor solicitou à Insolvente, que se pusesse termo à copropriedade do imóvel. (artº 20º requerimento inicial)
G - Uma vez que passou a fazer do imóvel a sua casa morada de família com a sua atual companheira, não fazia sentido manter a Insolvente na copropriedade. (artº 21º requerimento inicial)
H - Não foi a Insolvente que pediu a realização da transmissão da propriedade, mas sim o Autor que pediu àquela. (artº 23º requerimento inicial)
I - O Autor suportou as despesas com o processo de transmissão da propriedade. (artº 28º requerimento inicial)
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J - O autor tinha conhecimento da existência de valores em dívida ao Novo Banco e das tentativas da sua cobrança pela entidade bancária. (artº 15º contestação)
K - O Autor deu conhecimento à insolvente da existência de valores devidos ao Novo Banco antes de Agosto de 2021. (artº 16º contestação)
L - O Autor sabia da situação económica e da intenção da insolvente em se apresentar à insolvência. (artº 46º contestação)
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Não se consignam mais factos porque repetitivos, conclusivos e/ou irrelevantes para a decisão da causa.”
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Nos termos e ao abrigo do disposto no art. 662º nº1 do CPC, com base nos elementos dos autos, mostram-se ainda provados, com relevância para a decisão da causa, os seguintes factos:
46 – A ação de insolvência deu entrada no dia 02/09/2021 (refª 39736361, no processo principal).
47 – A insolvência foi decretada por sentença de 06/09/2021, transitada em julgado (sentença refª 408163830, proferida no processo principal).
48 – Por sentença de 09/02/2022, transitada em julgado, foram verificados e graduados os créditos reclamados referidos em “21” (sentença refª 412859891, proferida no apenso B).
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4. Fundamentos do recurso
4.1. Impugnação da matéria de facto
O recorrente fez constar das conclusões a necessidade de reapreciação da prova gravada para, “consequentemente, concluir que não existiu má-fé na transmissão do imóvel, não houve conluio, o Autor desconhecia a condição económica da insolvente, sendo o negócio válido.”
Tal pode ser entendido, como o foi, aliás pela recorrida, como pretensão de impugnação da decisão relativa à matéria de facto.
A recorrida, assim o entendeu e alegou que o recorrente não deu cumprimento às exigências previstas no art. 640º do CPC, nomeadamente não tendo identificado os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, pelo que o recurso deve ser liminarmente rejeitado quanto à impugnação da matéria de facto.
Apreciando:
   O atual CPC introduziu o duplo grau de jurisdição também quanto à matéria de facto havendo que aferir, relativamente a cada uma das impugnações deduzidas se estão preenchidos todos os requisitos enunciados nos n.ºs 1 e 2, alínea a) do art.º 640.º do CPC.
Na reapreciação da decisão de facto cumpre à Relação observar o que dispõe o art.º 662.º do CPC, devendo formar a sua própria convicção, para o que lhe cumpre avaliar todas as provas carreadas para os autos, sem ter que estar sujeita às indicações dadas pelo recorrente e pelo recorrido.
Nos termos do disposto no art.º 341.º do Código Civil (doravante CC) as provas têm por função a demonstração da realidade dos factos. Não se podendo exigir que esta demonstração conduza a uma verdade absoluta (objetivo que sempre seria impossível de atingir), quem tem o ónus da prova de um facto terá de conseguir “criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto”[3]
Há que atentar não apenas nas regras sobre o ónus da prova que constam dos art.ºs 342º a 346.º do CC mas também no disposto no art.º 414.º do CPC, que estabelece que na dúvida acerca da realidade de um facto ou sobre a repartição do ónus da prova, tal dúvida se resolve contra a parte à qual o facto aproveita.
Importa recordar que o apenso de impugnação da resolução em insolvência não se encontra abrangido pelo disposto no art. 11º do CIRE, ou seja, não vigora o princípio do inquisitório, aplicando-se, sim, nos termos do disposto no nº1 do art. 17º do CIRE a regra geral do CPC, ou seja, rege o princípio do dispositivo quanto aos factos e o princípio do inquisitório quanto às provas – cfr. art. 5º do CPC.
Assim, os factos essenciais terão que ter sido alegados pela parte para que se possam considerar, podendo o tribunal considerar ainda (art. 5º nº2 do CPC):
- os factos instrumentais que resultem da instrução da causa;
- os factos complementares ou concretizadores dos que as partes tenham alegado que resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar; e
- os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.
É neste enquadramento que devem ser analisadas as impugnações da decisão relativas à matéria de facto.
Nos termos do disposto no nº1 do art. 640º do CPC, quando seja impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Nos termos do nº2, al. a), do referido preceito legal, no caso previsto na alínea b), deve também o recorrente, quando os meios probatórios tenham sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de transcrição dos excertos considerados importantes, sob pena de imediata rejeição.
Nos termos da alínea b) do mesmo nº2, cabe ao recorrido desenvolver a mesma indicação em sentido inverso, ou seja, indicar as concretas passagens que infirmam as conclusões do recorrente, e querendo proceder à sua transcrição, sem prejuízo, porém, dos poderes de investigação oficiosa do tribunal.
Como refere Abrantes Geraldes[4] a verificação das exigências previstas neste preceito deve ser feita à luz de um critério de rigor, já que decorre do princípio da autorresponsabilidade das partes e apenas assim se impede que este tipo de impugnação resvale no mero inconformismo. Importa, porém, não exponenciar os requisitos formais em violação do princípio da proporcionalidade, denegando a reapreciação da matéria de facto “…com invocação de fundamentos que não encontram sustentação clara na letra ou no espírito do legislador.”
É, pois, um exercício de equilíbrio que se pede, sendo necessário rigor ancorado no texto da lei, mas sem excessivo formalismo, garantindo o efetivo conhecimento em impugnação de matéria de facto, sempre que as partes cumpram, efetivamente o seu ónus.
Tal como se refere no Ac. STJ de 17/12/19[5] é “…orientação consolidada da jurisprudência deste Supremo Tribunal no sentido da atenuação do excessivo formalismo no cumprimento dos ónus do art. 640º do CPC, designadamente em todos aqueles casos em que o teor do recurso de apelação se mostre funcionalmente apto à cabal identificação da impugnação da matéria de facto e ao respectivo conhecimento sem esforço excessivo. Cfr., a este respeito, entre muitos, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 08-02-2018 (proc. n.º 8440/14.1T8PRT.P1.S1), de 15-02-2018 (proc. n.º 134116/13.2YIPRT.E1.S1), consultáveis em www.dsgi.pt, e os acórdãos de 17-04-2018 (proc. n.º 1676/10.6TBSTR.E2.S1) e de 24-04-2018 (proc. n.º 3438/13.0TBPRD.P1.S1), cujos sumários se encontram disponíveis em www.stj.pt.”
Recorde-se que, relativamente à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, o art. 640º já citado, tem como solução para o seu incumprimento (diversamente da previsão do art. 639º nº3) a rejeição do recurso, total ou parcialmente, não existindo possibilidade de despacho de aperfeiçoamento - cfr. arts. 635º nº4, 640º nº2, al. a) e 641º nº1, al. b), ambos do CPC[6].
Analisando a alegação do recorrente à luz das exigências do artigo 640º do CPC e mantendo presente que a menção à impugnação da matéria de facto e a identificação dos concretos pontos de facto erradamente julgados devem constar das conclusões [cfr. 635º nº4, 641º, nº2, al. b) e 640º nº1, al. a), todos do CPC] e que a especificação dos meios probatórios, a indicação das passagens da gravação e a posição expressa sobre o resultado pretendido devem constar da motivação[7], constatamos que:
- o recorrente refere, na motivação, que o tribunal deu como não provados factos que deveria ter dado como provados (nº12 da motivação);
- nas conclusões, porém, apenas refere (cfr. cls. XVI, XVII e XVIII) que:
i) “Foi ilidida a alegada “má fé”, necessária à resolução do negócio, o que podemos concluir com o teor dos respetivos depoimentos prestados, quer pelo depoimento de parte do Autor, quer da sua testemunhas, quer até pela testemunha da Ré.”, e que
ii) “Pelo que deverá ser reapreciada a prova gravada e, consequentemente, concluir que não existiu má-fé na transmissão do imóvel, não houve conluio, o Autor desconhecia a condição económica da insolvente, sendo o negócio válido.” e que
iii) “Para que estivesse presente a “má-fé” na transmissão do imóvel, seria necessário verificar que o Recorrente e a Insolvente se encontravam em conluio na celebração do negócio com o objetivo de dissipar património, em prejuízo da massa insolvente, o que não se pode retirar tal conclusão através da prova gravada, uma vez que em ambos os depoimentos está demonstrada a boa fé na transmissão, tal como o acordo já realizado e feito antes e o desconhecimento por parte do Recorrente da situação económica da insolvente.”;
- não indica expressamente, nem na motivação, nem nas conclusões, qual a decisão que no seu entender deve ser proferida;
- indicou, na motivação, passagens do depoimento do A., da insolvente e de uma testemunha que, no seu entender motivam seja dado como provado que estava de boa-fé e nada sabia da situação económica da insolvente (nºs 14, 15, 17, 18 a 20, 27, 30 a 31 e 32 da motivação); passagens do depoimento do A. quanto à data de realização do acordo (nº25 da motivação), passagens do depoimento do A. quanto ao pagamento à Caixa Geral de Depósitos (nºs 36 e 37) e ao não pagamento à insolvente (nº 38 da motivação).
A existência de má-fé é um dos requisitos da resolução, mas não é, em si, um facto, antes uma conclusão a extrair de factos, pelo que a indicação de que “não existiu má-fé” não é suscetível de ser reconduzida a uma impugnação da matéria de facto que sustentou essa conclusão, de todo não indicada ou referida.
Da menção que “deve ser reapreciada a prova gravada” consegue-se, com algum esforço, retirar a menção à pretensão de impugnação da matéria de facto, nestes termos: se a prova deve ser reapreciada pelo Tribunal da Relação, então é porque deve ser proferida uma decisão diversa da que foi proferida pelo tribunal recorrido.
Seguindo a indicação de evitar formalismos excessivos, conseguimos assim discernir, na cls. XVII a menção à impugnação da decisão relativa à matéria de facto.
Seguindo no esforço de interpretação centrado nas conclusões para discernir quais os pontos da matéria de facto impugnados apenas conseguimos discernir, no cruzamento entre estas conclusões e a matéria de facto provada e não provada a alegação de que “o Autor desconhecia a condição económica da insolvente”.
Foi dado como provado sob o nº 42 (numeração introduzida por este tribunal) que “O Autor conhecia que insolvente tinha uma situação económica difícil à data da realização do contrato de compra e venda e assunção de dívida de 20.8.2020. (artº 35 contestação).” E foi dado como não provado o facto de sinal contrário que havia sido alegado pelo A. sob a letra A[8] que “O Autor desconhecia a situação patrimonial da Insolvente à data da realização da transmissão da propriedade da meação daquela. (artº 6º requerimento inicial)”.
No entanto, trata-se, o facto e a sua negação, de facto conclusivo[9], havendo vários factos provados e não provados, cuja impugnação não é referida nas conclusões, que levam a essa conclusão: os factos provados 30 a 35 e os factos não provados enumerados sob as letras J, K e L, que não são referidos, sequer.
 Não pode, pois, considerar-se devidamente impugnado o único facto que se logra identificar nas conclusões, por falta de menção à impugnação dos demais factos que concorrem para a respetiva afirmação.
Assim, não há, verdadeiramente, menção à pretensão de impugnação da matéria de facto nas conclusões, delas não constando a identificação dos concretos pontos de facto erradamente julgados.
Por outro lado, as demais menções exigidas na motivação, estão completamente omissas, não sendo indicada, em qualquer local da motivação ou das conclusões, a decisão a proferir.
A conclusão a retirar é de que o recorrente, pretendendo impugnar a decisão relativa à matéria de facto, não cumpriu o ónus para si previsto nos arts. 639º e 640º do CPC, no tocante ao globo da impugnação da decisão proferida quanto à matéria de facto, omitindo a menção desta impugnação nas conclusões.
Nos termos do disposto no art. 639.º nº1 do CPC «O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou a anulação da decisão.»
Este é um ónus do recorrente e o seu cumprimento permite ao tribunal superior apreender, com clareza, os fundamentos do recurso. A importância e papel das conclusões retiram-se com clareza desta norma, da previsão de rejeição dos recursos em que não sejam formuladas conclusões (art. 641º nº2, al. b) do CPC) e da previsão de aperfeiçoamento nos casos de deficiência, obscuridade, complexidade ou incompletude (nº3 do referido art. 639.º).
Mas relativamente à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, o art. 640º do CPC já citado, tem uma solução diversa daquela: o incumprimento do nº1 dá lugar à rejeição do recurso, total ou parcialmente, não existindo possibilidade de despacho de aperfeiçoamento[10]  - cfr. arts. 635º nº4 e 641º nº1, al. b), ambos do CPC.
Como decidido no Ac. STJ de 09/06/2021 (Ricardo Costa)[11]:
“I - Os ónus processuais de alegação recursiva previstos no art. 640º, 1 e 2, do CPC, relativos à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, conjugam-se com o ónus de formulação de conclusões, cominado, em caso de incumprimento, com o indeferimento do recurso.
II- A rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se quando (i) falte nas conclusões a referência à impugnação da decisão sobre a matéria de facto (arts. 635º, 2 e 4, 639º, 1, 641º, 2, b), CPC); (ii) quando falte nas conclusões, pelo menos, a menção aos «concretos pontos de facto» que se considerem incorrectamente julgados (art. 640º, 1, a)), sendo de admitir que as restantes exigências das als. b) e c) do art. 640º, 1, em articulação com o respectivo n.º 2, sejam cumpridas no corpo das alegações.
III- Se as conclusões recursivas são totalmente omissas quanto à matéria da impugnação da decisão da matéria de facto, verifica-se o manifesto incumprimento da diligência processual mínima do recorrente, resultante da relação intersistemática do art. 640º com os arts. 635º, 2 a 4, e 639º, 1 e 2, espoletando a sanção cominada, em coordenação, pelo corpo do art. 640º, 1, e pelo art. 641º, 2, b), do CPC – a rejeição do recurso (neste caso, da revista normal interposta a título principal).”
O apelante omitiu assim, por completo, a referência à impugnação da matéria de facto nas conclusões, falhando o cumprimento da al. a) do nº1 do art. 640º do CPC, bem como a menção exigida na alínea c) do mesmo preceito.
A consequência é a da rejeição da impugnação da decisão relativa à matéria de facto, que, nestes termos, não será conhecida.
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4.2. Requisitos de validade da resolução em benefício da massa insolvente do negócio celebrado entre a insolvente e o A.
A resolução extrajudicial de atos de natureza patrimonial celebrados pelo devedor em situação de insolvência atual ou de insolvência iminente, nos dois anos anteriores ao início do processo onde esta venha a ser declarada, configura-se juridicamente como um direito potestativo atribuído à massa insolvente e ao universo dos credores da insolvência, representados pelo administrador da insolvência, enquanto instrumento específico do regime falimentar para recuperação das atribuições patrimoniais que, naquela situação, foram concedidas com prejuízo para o património do devedor e, deste modo, com prejuízo das garantias patrimoniais dos respetivos credores.
Subjacente à previsão e faculdade legal de resolução de atos de caráter patrimonial pelo administrador da insolvência estão dois princípios estruturante do processo falimentar: da garantia patrimonial dos bens e direitos dos credores dada pelo património do devedor, e a satisfação igualitária dos direitos dos credores. A resolução permite à massa insolvente a recuperação das atribuições patrimoniais que nesse contexto concedeu em violação da garantia patrimonial constituída pelos seus bens e direitos e do princípio da conditio par creditorum.
“O facto de o devedor insolvente, mediante a prática de actos que visam a dissipação do seu património, facilmente poder frustrar os seus credores, seja em momento anterior ao processo de insolvência, seja até no seu decurso, levou a que o legislador se rodeasse de mecanismos mais simples, mais céleres e mais eficazes para promover a tutela daqueles.”[12]
Querendo reagir e obstar à produção dos efeitos da resolução, os interessados na manutenção do ato na ordem jurídica devem impugnar a resolução através da ação de impugnação da resolução, a instaurar por apenso ao processo de insolvência, e no prazo de três meses após a receção da carta resolutória sob pena da caducidade do referido direito de impugnação (cfr. art 125º do CIRE[13]). Esta ação visa pôr termo à situação gerada pela resolução do ato a favor da massa insolvente, com vista a que a mesma seja revogada e não produza os efeitos a que tende, deixando incólume o ato por ela visado. Assim, a procedência da impugnação tem como consequência a manutenção dos efeitos produzidos pelo ato resolvido; inversamente, a improcedência da impugnação, tal como a ausência de impugnação no prazo legal para o efeito previsto, tem como consequência a manutenção dos efeitos da resolução operada pelo administrador da insolvência e, consequentemente, a destruição dos efeitos produzidos pelo negócio resolvidos, com a reconstrução da situação que existiria se o mesmo não fosse celebrado. 
Pela natureza e efeitos jurídicos visados com a ação de impugnação da resolução, esta configura-se como ação declarativa negativa tendo como objeto imediato a declaração da extinção do direito de resolução, da invalidade da declaração, ou da inexistência do direito da resolução pretendida operar pelo administrador da insolvência[14].
Em traços gerais o regime legal é o seguinte:
- estabelece-se uma cláusula geral de resolução condicional, isto é, dependente da prova de prejudicialidade, relativamente a atos praticados ou omitidos no período de dois anos anteriores à data de abertura do processo de insolvência – 120º nº1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa;
- para o efeito entende-se por má-fé o conhecimento de qualquer destas circunstâncias: i) que o devedor se encontrava em situação de insolvência; ii) o carácter prejudicial do ato e que o devedor estava, à data, em situação de insolvência iminente; iii) o início do processo de insolvência; - art. 120º nº5 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa;
- presumem-se prejudiciais à massa insolvente, sem possibilidade de prova em contrário, os atos elencados no art. 121º nº1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa, nos termos e prazos aí estabelecidos;
- presume-se a má-fé do terceiro, sendo admissível prova em contrário, em atos praticados ou omitidos no período de dois anos anteriores à data de abertura do processo de insolvência em que tenha participado ou de que tenha aproveitado pessoa especialmente relacionada com o insolvente, ainda que a relação especial não existisse a essa data – art. 120º nº4 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa.
A resolução é efetuada pelo Administrador de Insolvência, podendo sê-lo por carta registada com aviso de receção, no prazo de seis meses subsequentes ao conhecimento do ato mas nunca depois de dois anos decorridos sobre a data de declaração de insolvência – art. 123º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa.
A resolução é oponível aos transmissários, pressupondo, em regra, a má-fé destes – art. 124º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa.
Finalmente, o direito de impugnar a resolução deve ser exercido nos três meses subsequentes à mesma, por dependência do processo de insolvência – art. 125º do mesmo diploma.
No caso concreto, o Sr. Administrador da Insolvência exerceu o direito à resolução relativamente a um ato celebrado um ano e alguns dias antes da data de início do processo de insolvência[15], invocando, nos termos do artigo 120º, nº 4 e nº 5, alíneas a) e b), bem como do artigo 49º, nº 1, alínea d), ambos do CIRE:
- tratar-se de ato oneroso, realizado no período dos dois anos anteriores à data de início do processo;
- tratar-se de ato prejudicial à massa dado que diminuiu o património da devedora e reduziu a probabilidade de os credores recuperarem os seus créditos;
- celebrado com pessoa especialmente relacionada o que faz presumir a má-fé.
O A. e ora recorrente impugnou a resolução invocando desconhecer a situação patrimonial da insolvente e ter agido de boa-fé. Alegou que o acordo quanto à casa terá sido celebrado em 2013, quando se separou da insolvente e que desde essa data assegurou integralmente o pagamento do empréstimo e despesas. Alegou ainda ser a resolução nula por não se encontrarem reunidos os requisitos formais e materiais, e por falta/insuficiência de fundamentação.
A R. defendeu-se alegando estarem verificados os pressupostos de facto e de direito que legitimam a resolução, por impugnação e que o conteúdo da carta de resolução enumera os pressupostos da resolução, impugnando o desconhecimento alegado pelo A. quanto à situação económica da insolvente.
A sentença recorrida entendeu “que o negócio ocorreu no período dos dois anos anteriores à insolvência e que foi prejudicial à massa, uma vez que, se o imóvel tivesse sido transmitido pelo seu valor real, o produto da venda teria sido suficiente para pagar a todos os credores.” E que “da conjugação do nº 4 com o 49º, nº 1, al. a), resulta que o A., tendo sido unido de facto com a insolvente, é pessoa especialmente relacionada para efeitos de presunção de ter agido com má fé neste negócio, má fé que de forma alguma ele conseguiu afastar.
Pelo contrário, tendo-se apurado que o A. sabia que a insolvente se encontrava em situação económica difícil, bem como do caráter prejudicial do ato, sempre estaria provada a má fé, nos termos do nº 5 supra transcrito.”
O recorrente, argumenta, em recurso:
- o seu conhecimento da situação de dívidas da insolvente era inexistente;
- a insolvente não reside na casa desde 2013;
- a relação que tinha com a insolvente era inexistente, exceto no tocante aos filhos em comum;
- o acordo tinha sido celebrado em 2013, ainda que verbal;
- o recorrente assumiu as despesas do empréstimo e do imóvel e respetivas benfeitorias;
- a insolvente apesar de constar como proprietária, nunca assumiu a casa como sua;
- pagou a transmissão do imóvel através do pagamento integral do valor do empréstimo que cabia à insolvente à CGD;
- a prejudicialidade do ato necessita de ser demonstrada e o respetivo ónus cabe ao administrador;
- a presunção de má-fé é ilidível e foi ilidida no caso concreto;
- não está preenchido o nº5 do art. 120º do CIRE.
A recorrida reviu-se essencialmente nos argumentos da sentença recorrida.
Apreciando:
A resolução foi, no caso concreto, efetuada ao abrigo da cláusula geral prevista no art. 120º do CIRE o que implica que teremos que verificar, nos termos do art. 120º nºs 1, 2, 4 e 5 do CIRE, se a compra e venda de metade indivisa do imóvel foi praticada no período de dois anos anterior à data do início do processo de insolvência[16], se diminuiu, frustrou, dificultou, pôs em perigo ou retardou a satisfação dos credores e se foi praticado com má-fé.
Está claramente verificado o requisito temporal: o período suspeito, no caso, decorre entre 02/09/2019 e 06/09/2021, tendo o ato sido praticado em 20/08/2020.
O recorrente alega que o acordo foi celebrado em 2013, ainda que de forma verbal, o que o situa muito antes do início do período suspeito, tendo alegado várias circunstâncias que justificaram o adiamento da respetiva celebração.
Nos termos do nº1 do art. 120º do CIRE «Podem ser resolvidos em benefício da massa insolvente os atos prejudiciais à massa praticados dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência.», sendo considerados prejudiciais os atos que « diminuam, frustrem, dificultem, ponham em perigo ou retardem a satisfação dos credores da insolvência.».
O ato que diminuiu o património da insolvente e perigou a satisfação dos credores não foi o acordo verbal que o recorrente e a insolvente celebraram em 2013 (factos nºs 6 e 7 da matéria de facto provada) no sentido de atribuir a casa de que eram comproprietários e onde viviam até aí, ao recorrente. Foi sim a venda da metade indivisa da mesma casa que foi celebrada em agosto de 2020. Até esse momento, fosse qual fosse o acordo que A. e insolvente tinham celebrado, a parte da insolvente no imóvel respondia pelas respetivas dívidas e constituía garantia de cumprimento das suas obrigações.
A prejudicialidade pese embora a alegação do recorrente, está demonstrada – cfr. factos 39, 40, 43 e 44.
O bem em causa foi adquirido em compropriedade pela insolvente e pelo recorrente e essa compropriedade não foi sequer contestada. O que o recorrente alegou e provou – cfr. factos 9 e 10 – foi que após terem acordado que o bem ficaria integralmente para o recorrente, este assumiu o pagamento do empréstimo e despesas com o mesmo.
Aliás, é a própria alegação do recorrente – ao afirmar que pagou a parte do empréstimo que caiba à insolvente à CGD – que confirma que o bem era propriedade de ambos, pois só assim se explica que “parte do empréstimo” coubesse à insolvente.
O que o recorrente alegou e se provou atesta a prejudicialidade do ato: a quota de um bem da insolvente foi vendido ao A./recorrente por preço equivalente, não ao valor dessa quota, mas antes ao valor do que estava em dívida no tocante ao empréstimo para a sua aquisição. O A. adquiriu por cerca de 44 mil euros uma quota do bem de valor superior a € 125.000,00.
Tendo em conta que a insolvente viu verificado um passivo de € 41.392,36 (factos nºs 21 e 48) tal implica que o excedente do valor pago pelo A. seria suficiente para o pagamento das dívidas da insolvente, tal como concluiu a sentença recorrida.
Ou seja, foi este ato que impediu os credores de obterem a satisfação dos seus créditos, estando demonstrada a sua prejudicialidade.
A sentença recorrida considerou verificada a presunção de má-fé prevista no nº4 do art. 120º do CIRE por conjugação com o disposto na al. d)[17] do nº1 do art. 49º do CIRE e ainda que o A. não havia conseguido afastar essa presunção.
Como referem João Labareda e Carvalho Fernandes[18] “A lei não define expressamente em que consiste a relação especial que releva para o efeito do nº4. Entendemos, porém, existir manifesta proximidade entre a suspeição do legislador que aqui está em causa e a que se identifica na qualificação dos créditos subordinados. Por outras palavras, sustentamos que todas as situações previstas no art. 49º relevam para a fixação do requisito do nº4 do art. 120º.”
Nos termos da al. d) do nº1 do art. 49º do CIRE «São exclusivamente considerados especialmente relacionados como devedor pessoa singular: (…) d) As pessoas que tenham vivido habitualmente com o devedor em economia comum em período situado dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência.»
O nº4 do art. 120º, por sua vez refere que a má-fé se presume «quanto a actos cuja prática ou omissão tenha ocorrido dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência e em que tenha participado ou de que tenha aproveitado pessoa especialmente relacionada com o insolvente, ainda que a relação especial não existisse a essa data.»
Referem João Labareda e Carvalho Fernandes que a fórmula constante do preceito “ainda que não existisse a essa data” deve ser interpretada como abrangendo os casos em que já não exista e em que ainda não exista[19], ressalvando-se as situações em que a relação especial terminou antes dos prazos relevados no art. 149º.
Sucede que o período constante do art. 49º do CIRE é exatamente o mesmo que se encontra previsto no nº1 do art. 120º, ou seja, os dois anos anteriores ao início do processo[20].
Ora se o período previsto no nº4 do art. 120º é exatamente o mesmo previsto no art. 49º, a menção da lei à inexistência da relação especial à data da prática do ato apenas pode ter como sentido o alargamento do prazo previsto no art. 49º para as relações especiais não vitalícias (casamento e união de facto) para antes e depois do prazo de dois anos antes do início do processo, englobando o período decorrido até à sentença.
Parece-nos ser também essa a opinião de Fernando Gravato Morais quando, ao ponderar este segmento da norma, enumera como um dos casos aquele em que a relação especial existiu em tempos, não existindo à data da prática do ato, nem ulteriormente e refere que neste “não parece ser de presumir a má fé quando a relação especial tenha existido em momento longínquo.”[21]
No caso dos autos provou-se que a união de facto cessou no final de 2013 e não foi retomada. Mas o bem vendido é ainda consequência dessa relação especial e está diretamente relacionado com ela, justificando que este seja um dos casos abrangido pela presunção.
Formada a presunção caberia ao A. provar a inexistência dos elementos previstos no nº5 do art. 120º, o que não logrou, como concluiu a sentença recorrida.
Não se provou o respetivo desconhecimento quanto à situação económica da insolvente (factos não provados A e D), sendo irrelevante o desconhecimento do início do processo de insolvência dado que o ato foi praticado cerca de um ano antes deste[22].
Por outro lado, e como invocado pelo Sr. Administrador da Insolvência na carta de resolução, provou-se o circunstancialismo previsto na al. b) do nº5 do art. 120º, uma vez que o A. adquiriu, objetivamente, uma quota de bem de valor superior a € 125.000,00 por cerca de € 44.000,00, sabendo das dívidas da insolvente, pelo menos em geral da existência de credores e de procedimento de cobrança – factos 21 a 26, 27, 30 a 34, 37 a 40 e 42 a 44.
O facto, também apurado, de ter procedido a benfeitorias no imóvel não é, por si, demonstrador de boa-fé ou suscetível de ilidir a presunção formada, apenas significando que, celebrado o negócio, entendeu a casa como exclusivamente sua, alheando-se da prejudicialidade para os credores da insolvente.
Estão, assim, verificados todos os requisitos de validade da resolução em benefício da massa insolvente do negócio celebrado entre a insolvente e o A.
Improcede, nestes termos, a presente apelação, devendo a sentença proferida ser mantida.
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O apelante, porque vencido, suportará integralmente as custas do presente recurso que, in casu se traduzem apenas nas custas de parte devidas, porquanto se mostra paga a taxa de justiça devida pelo impulso processual do recurso e este não envolveu diligências geradoras de despesas – arts. 663.º, n.º 2, 607.º, n.º 6, 527.º, n.º 1 e 2, 529.º e 533.º, todos do Código de Processo Civil[23].
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5. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em, julgando integralmente improcedente a apelação, manter a decisão recorrida.
Custas de parte na presente instância recursiva pelo recorrente.
Notifique.
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Lisboa, 13 de maio de 2025
Fátima Reis Silva
Ana Rute Costa Pereira
Nuno Teixeira
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[1] Numeração introduzida por este Tribunal a fim de facilitar a compreensão e referência.
[2] Identificação por letras introduzida por este Tribunal para facilitar a compreensão e referência.
[3] Antunes Varela et Al. em Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, pág. 420.
[4] Cfr. Abrantes Geraldes em Recursos no Novo Código de Processo Civil, 7ª edição, Almedina, 2022, pgs. 201 e 202.
[5] Relatora Maria da Graça Trigo, processo nº 363/07, disponível, como todos os demais citados sem referência, em www.dgsi.pt.
[6] Abrantes Geraldes, local citado, pgs. 199 e 200.
[7] Abrantes Geraldes, local já citado, pgs. 200 e 202 e jurisprudência ali citada e, no sentido de que a decisão alternativa não tem que constar das conclusões, o AUJ nº 12/2023, de 14/11, publicado no DR. Iª série de 14/11/2023.
[8] Indicação de letras introduzida por este tribunal.
[9] Saber ou não saber é facto, mas a situação económica é já conclusiva, sendo assim um facto misto.
[10] Neste sentido, entre outros, acórdão do STJ de 27-10-2016, Ac. TRL de 12/11/2019, ambos disponíveis in www.dgsi.pt e António Abrantes Santos Geraldes in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, Almedina, pg. 167.
[11] Processo nº 10300/18.8T8SNT.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt, como todos os demais citados sem referência.
[12] Fernando Gravato de Morais em Resolução em Benefício da Massa Insolvente, Almedina, 2008, pg. 41.
[13] Diploma ao qual pertencem todas as normas citadas sem referência.
[14] Neste sentido, entre outros, os Acs. STJ de 25/02/2014 (Ana Paula Boularot – 251/09) e de 31/05/2023 (Maria José Mouro – 25911/19).
[15] O contrato foi celebrado em 26/04/23, e o processo de insolvência entrou em juízo em 02/09/2021 – factos nºs 36 e 46.
[16] Que abrange o período decorrido até à declaração de insolvência nos termos do nº2 do art. 4º do CIRE.
[17] A sentença, por certo lapso de escrita refere a al. a) do nº1 do art. 49º, mas refere de imediato que o A. havia sido unido de facto com a insolvente, pelo que é notório o lapso, no próprio contexto do segmento da sentença em que foi cometido.
[18] Em Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª edição, Quid Juris, 2015, pg. 501, com concordância de Gravato de Morais, em Resolução…, pgs. 72 e 73, de Catarina Serra em Lições…, pg. 297, de Alexandre Soveral Martins em Um Curso de Direito da Insolvência, Vol. I, 4ª edição, Almedina, 2022, pg. 308 e de Menezes Leitão em Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 10ª edição, Almedina 2018, pg. 194.
[19] Local citado com anotação concordante de Ana Prata et al em Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Almedina, 2013, pg. 359.
[20] E já era assim na versão inicial do CIRE, na qual o prazo de resolução era de quatro anos, presumindo-se a má-fé apenas quanto aos atos decorridos no período de dois anos anteriores ao início do processo.
[21] Em Resolução…, pg. 75.
[22] A justificação para a al. c) do nº5 do art. 120º é a abrangência quer dos atos praticados antes do início do processo como dos praticados entre esta data e a da declaração de insolvência – cfr. João Labareda e Carvalho Fernandes em Código…, pg. 502 e Fernando Gravato Morais em Resolução…, pg. 68.
[23] Vide neste sentido Salvador da Costa in Responsabilidade das partes pelo pagamento das custas nas ações e nos recursos, disponível em https://blogippc.blogspot.com/.