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FACTOS RELEVANTES
AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
INQUÉRITO JUDICIAL
SOCIEDADE POR QUOTAS
DIREITO À INFORMAÇÃO
RECUSA
Sumário
Sumário (art. 663º, n.º7 do Código de Processo Civil). 1. O inquérito judicial autorizado pela previsão do art.º 216º do CSC, que corresponde ao específico fundamento jurídico da causa, terá que assentar na concreta invocação da recusa de informação, sendo que, para que o inquérito pudesse ser requerido tendo por objeto pontos de facto em relação aos quais não houve um precedente pedido de informação à sociedade, seria necessário alegar e provar (factos essenciais) um conjunto de circunstâncias que permitissem fundar a presunção de que a informação não seria prestada caso houvesse sido solicitada (art. 292º, n.º6 ex vi do art. 216º, n.º2, ambos do CSC). 2. A faculdade de requerer a realização de inquérito tem, como pressuposto, a violação do direito do sócio, sendo precisamente a concreta incidência dessa violação que permite aferir se a situação se subsume a um dos casos em que a lei autoriza que o inquérito tenha lugar. É o específico direito identificado como ilicitamente afetado que define o âmbito do direito a requerer inquérito judicial. 3. O inquérito não pode ser fundado em suspeitas de irregularidades de gestão, nem o processo de inquérito judicial é meio adequado à formalização de um pedido de informações que, até ao momento de propositura da ação, não foram solicitadas à sociedade ou ao seu gerente, o que impõe que se afirme que a prestação de tais informações não foi recusada. 4. Ao negar a realização de inquérito tendo por objeto a resposta a questões jamais dirigidas pelos sócios à sociedade ou ao seu gerente e, consequentemente, não abarcadas pela violação do direito à informação, atua o tribunal de forma que não merece censura.
Texto Integral
Acordam na 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
I.
1. AA. e BB., ambas melhor identificadas nos autos, instauraram processo especial de inquérito judicial contra ELVOLAR MÓVEIS LDA. e CC., com dedução de pedidos cumulados, incluindo, originariamente, a fixação de prazo para o requerido apresentar relatório de gestão e as contas corretamente elaboradas, a notificação dos requeridos para prestarem elementos de informação identificados na petição inicial e a realização de inquérito à requerida.
2. Em 26.10.2020 foi proferido despacho que, considerando que os pedidos cumulados contemplavam processados distintos, com graves inconvenientes na sua tramitação conjunta, determinou a notificação das requerentes para esclarecerem qual o pedido que continuará a ser apreciado, “sob pena de, não o fazendo, serem os requeridos absolvidos da instância quanto a todos os pedidos”.
3. Por requerimento de 9.11.2020, vieram as requerentes informar que “deve ser apreciado o pedido relativo ao inquérito judicial para prestação de informações e esclarecimentos por parte do órgão social obrigado à sua prestação, previsto nos artigos 217.º, 292.º do Código das Sociedades Comerciais e 1048.º do Código de Processo Civil e a que aludem os pontos II. e III. do pedido final do requerimento inicial”.
4. Foi proferido despacho de absolvição da instância dos requeridos quanto ao pedido de inquérito judicial formulado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 1048º, n. º3, do Código de Processo Civil e artigo 67º do Código das Sociedades Comerciais.
Mais se determinou: “(…) Os autos prosseguirão para apreciação do pedido de inquérito judicial formulado nos termos do disposto no artigo 1048º, n. º1 e 2, do Código de Processo Civil em conjugação com o disposto nos artigos 216º e 292º do Código das Sociedades Comerciais. Assim, considerando a petição inicial apresentada, na qual eram alegados factos e fundamentos para ambos os pedidos inicialmente formulados, e o disposto no artigo 1048º, n.º 1 e 2, do Código de Processo Civil, convido as requerentes a aperfeiçoar a sua petição, juntando nova petição, da qual constem tão só os fundamentos do referido pedido de inquérito e os concretos pontos de facto que pretendem sejam averiguados e diligências que reputam convenientes. Prazo: 10 dias.”
5. Em resposta à notificação, em 25.01.2021, as requerentes apresentaram novo articulado inicial, no qual concluem por pedir que:
I. ao abrigo do disposto nos artigos 216.º, n. º1, 292.º do Código das Sociedades, 1048.º e 1049.º, n. º1 do Código de Processo Civil, sejam os Requeridos notificados para prestar os elementos de informação indicados no artigo 28.º da petição inicial, i.e.,
I. Elementos Gerais
1. Cópia das actas da Assembleia-Geral da sociedade desde 2016;
2. Lista de entidades com as quais existam relações especiais tal como definidas no
art.º 63 do CIRC;
3. Certidão de inexistência de dívidas à segurança social actualizada;
4. Certidão de inexistência de dívidas às finanças actualizada;
5. Cópias de contratos que impliquem obrigações para a sociedade e que estejam em vigor ou descrição das condições contratuais nos casos em que não exista contrato escrito (incluindo aditamentos, alterações e renovações);
6. Cópia das apólices de seguros em vigor e do último recibo;
7. Cópia de todas as procurações passadas pelos representantes da sociedade a favor de terceiros, se aplicável (incluindo aditamentos, alterações e renovações);
8. Cópia das certidões de registo predial dos imóveis da titularidade da sociedade;
9. Cópia das certidões de teor matricial dos imóveis da titularidade da sociedade;
10. Cópia dos contratos de arrendamento ou de utilização de loja em vigor tendo por objecto os imóveis da titularidade da sociedade (incluindo aditamentos, alterações e renovações).
II. Dados contabilísticos, económico-financeiros e operacionais
1. Relatório e Contas assinado de 2016 a 2019;
2. Balancetes analíticos de Regularizações e Final, em excel;
3. Balancetes analíticos mensais relativos a 2017 a 2020;
4. Extractos contabilísticos das contas 11 à 88 do exercício de 2017 a 2020;
5. Ficheiro SAFT da contabilidade de 2017 a 2020;
6. Modelo 22 de 2015, 2016, 2017, 2018 e 2019;
7. Inventário à data de 31.12.2016, 31.12.2017 e 31.12.2018 e 31.12.2019;
8. Mapa de responsabilidades de crédito (Banco de Portugal) referente ao mês de Dezembro de 2016, 2017, 2018, 2019 e último mês disponível de 2020;
9. Conciliações bancárias de Dezembro de 2016, 2017, 2018, 2019 anexando cópia do último extracto bancário;
10. Extractos bancários do ano de 2019 e 2020;
11. Folha e Inventário de Caixa assinado a 31 de Dezembro de 2018 e 2019;
12. Mapas de depreciações e amortizações referentes ao exercício de 2016, 2017, 2018 e 2019;
13. Listagem do cadastro de imobilizado da sociedade; 14. Declarações periódicas de IVA dos anos de 2018, 2019 e 2020;
15. Elementos retirados do website das Finanças:
− Cadastro Fiscal: Dados Gerais; Dados de Actividade; Outros Dados Actividade
(Serviços > Consultar > Situação Cadastral Actual);
− Dívidas Fiscais (Serviços > Consultar > Execuções Fiscais);
− Infracções Fiscais (Serviços > Consultar);
− Listagem do Património Predial (Serviços > Consultar > Imóveis > Património
Predial);
− Veículos Automóveis (Consultar > Veículos > Veículos Actuais > Veículos
Automóveis);
− Resumo de Cobrança – IRS (Consultar > Informação Financeira > Movimentos
Financeiros > DMR > 2017 e 2018) com o detalhe por mês;
− Resumo de Cobrança – IRC (Consultar > Informação Financeira > Movimentos
Financeiros > IRC > 2017 e 2019) com o detalhe por mês;
− Conta Corrente, Reembolsos e Movimentos Financeiros de IVA (Serviços > Consultar
> Informação Financeira > Movimentos Financeiros > IVA) com o detalhe por mês de
2017 e de 2019;
II. ao abrigo do disposto nos artigos 216.º, n.º 1, 292.º do Código das Sociedades, 1048.º e 1049.º, n.º2 e nº3 do Código de Processo Civil seja ordenada a realização de inquérito à Requerida, com inspecção dos respectivos livros e documentos e obtenção de informações junto do Requerido, para esclarecimento, designadamente dos pontos de facto descriminados nos artigos 33.º, 37.º, 39.º e 41.º que aqui se dão por reproduzidos, para o que indica perito, revisor oficial de contas inscrito na Ordem dos Revisores Oficiais de Contas;
III. Reservando-se as Requerentes, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 1051º, nº2 do Código de Processo Civil e no prazo aí indicado, virem a requerer, designadamente, a destituição do Requerido e / ou a nomeação judicial de um gerente.
Alegam, para tanto e em síntese, que:
- a requerida foi constituída em 1980 pelo requerido e por DD., cada um com uma quota correspondente a 50% do respetivo capital e desde logo designados gerentes, mantendo-se ao longo de 25 anos como únicos sócios e gerentes, embora o requerido haja conduzido desde sempre na prática os negócio e atividade da requerida;
- em 24.11.2016 faleceu DD., deixando as requerentes (mulher e filha) como únicas herdeiras, tendo estas procedido à partilha da quota representativa de 50% do capital social da requerida registada em nome do falecido e dos suprimentos de que era titular o autor da herança, ficando a 1ª requerente a titular 37,5% do capital social da requerida e a 2ª requerente a titular 12,5% do capital social da requerida;
- desde o falecimento do autor da herança, com exceção do balancete de 2015, o requerido gerente recusa-se a prestar informações às Requerentes relativamente à Requerida, nunca as convocando para qualquer assembleia;
- em 17 de Junho de 2020 enviaram carta à requerida, endereçada ao requerido (doc. 17), na qual solicitavam a consulta na sede da requerida da documentação identificada no pedido, bem como que fosse indicada data para realização da consulta, não obtendo qualquer resposta ou esclarecimento;
- face aos elementos publicados pelo Requerida e na ausência de resposta do Requerido aos pedidos de informação, subsistem dúvidas concretas sobre a situação da Requerida, incluindo sobre algumas rúbricas da respetiva contabilidade, designadamente destino dado aos resultados gerados pela requerida ao longo dos últimos 5 anos de exercício, indicando os pontos de facto que as requerentes pretendem averiguar e têm direito de ver esclarecidos, mediante a consulta e análise dos elementos que solicitaram através da carta junta como DOC. 17;
- o Requerido não respondeu a nenhuma das cartas enviadas pelas Requerentes, não convocou nem realizou quaisquer Assembleias Gerais da Requerida, nem disponibilizou ou permitiu a consulta dos elementos da Requerida pedidos pelas Requerentes.
6. Os requeridos apresentaram contestação, alegando que, assim que as requerentes solicitaram informações aos requeridos, terão dado instruções ao contabilista certificado da empresa, conhecido das requerentes, para prestar todas as informações e entregar todos os documentos, estando toda a informação disponível para ser entregue quando as requerentes o entendam, como sucedeu em relação a outra sociedade que o requerido titulava com o falecido, com consequente desnecessidade de inquérito judicial, mantendo os requeridos o propósito de prestarem todas as informações.
Pedem a improcedência da ação e a absolvição do pedido.
7. Após frustração de prolongadas negociações com vista a realização de transação, foi agendada data para inquirição de testemunhas, que teve lugar em 23.5.2024, tendo sido requerida e deferida a junção de documentos e a prestação de declarações de parte pela requerente BB.
8. Em 31.5.2024, as requerentes dirigiram requerimento aos autos, pedindo a ampliação do objeto do inquérito “para que o mesmo abranja todos os custos / despesas do Requerido CC. suportados pela sociedade Requerida, bem como a referida dívida crescente daquele à sociedade”, matéria que sobreveio durante a inquirição da testemunha EE., contabilista.
Mais requerem a destituição com justa causa do gerente CC., ou pelo menos e cautelarmente, a sua suspensão.
Os requeridos pugnaram, em 17.6.2024, pelo indeferimento do requerido, alegando que as requerentes pretendem usar o processo de inquérito judicialpara fins que não têm relação com o objeto a que o mesmo se destina.
9. Em 10.1.2025 foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente e determinou que sejam exibidos às requerentes para consulta na sede da requerida, no prazo máximo de 30 dias, em data e hora a ajustar com as mesmas, através dos seus mandatários, os seguintes elementos: atas da Assembleia-Geral da sociedade desde 2016; lista de entidades com as quais existam relações especiais tal como definidas no art.º63 do CIRC; certidão de inexistência de dívidas à segurança social atualizada; certidão de inexistência de dívidas às finanças atualizada; contratos que impliquem obrigações para a sociedade e que estejam em vigor ou descrição das condições contratuais nos casos em que não exista contrato escrito (incluindo aditamentos, alterações e renovações); apólices de seguros em vigor e do último recibo; procurações passadas pelos representantes da sociedade a favor de terceiros, se aplicável (incluindo aditamentos, alterações e renovações); certidões de registo predial dos imóveis da titularidade da sociedade; certidões de teor matricial dos imóveis da titularidade da sociedade; os contratos de arrendamento ou de utilização de loja em vigor tendo por objeto os imóveis da titularidade da sociedade (incluindo aditamentos, alterações e renovações); relatório e contas assinado de 2016 a 2019; balancetes analíticos de regularizações e final, em excel; balancetes analíticos mensais relativos a 2017 a 2020; extratos contabilísticos das contas 11 à 88 do exercício de 2017 a 2020; Ficheiro SAFT da contabilidade de 2017 a 2020; Modelo 22 de 2015, 2016, 2017, 2018 e 2019; inventário à data de 31.12.2016, 31.12.2017 e 31.12.2018 e 31.12.2019; mapa de responsabilidades de crédito (Banco de Portugal) referente ao mês de Dezembro de 2016, 2017, 2018, 2019 e último mês disponível de 2020; conciliações bancárias de Dezembro de 2016, 2017, 2018, 2019, exibindo o último extrato bancário; extratos bancários do ano de 2019 e 2020; folha e inventário de caixa assinado a 31 de Dezembro de 2018 e 2019; mapas de depreciações e amortizações referentes ao exercício de 2016, 2017, 2018 e 2019; listagem do cadastro de imobilizado da sociedade; declarações periódicas de IVA dos anos de 2018, 2019 e 2020; cadastro fiscal: dados gerais; dados de atividade; outros dados Atividade (Serviços > Consultar > Situação Cadastral Actual); Dívidas Fiscais (Serviços > Consultar > Execuções Fiscais); Infracções Fiscais (Serviços > Consultar); Listagem do Património Predial (Serviços > Consultar > Imóveis > Património Predial); Veículos Automóveis (Consultar > Veículos > Veículos Actuais > Veículos Automóveis); Resumo de Cobrança – IRS (Consultar > Informação Financeira > Movimentos Financeiros > DMR > 2017 e 2018) com o detalhe por mês; Resumo de Cobrança – IRC (Consultar > Informação Financeira > Movimentos Financeiros > IRC > 2017 e 2019) com o detalhe por mês; Conta Corrente, Reembolsos e Movimentos Financeiros de IVA (Serviços > Consultar > Informação Financeira > Movimentos Financeiros > IVA) com o detalhe por mês de 2017 e de 2019.
10. Inconformadas com a sentença proferida, na parte em que lhes foi desfavorável, vêm as requerentes interpor o presente recurso de apelação, pedindo a revogação da decisão e a substituição por outra que ordene a realização de inquérito à recorrida e ordene a destituição do recorrido do cargo de gerente, ou pelo menos a sua suspensão.
Sintetizam os fundamentos do recurso nas seguintes conclusões:
1. Vem o presente recurso da sentença na parte que rejeitou os seguintes pedidos formulados pelas Recorrentes:
a. Realização de inquérito para esclarecimento, designadamente dos pontos de facto descriminados nos artigos 33.º, 37.º, 39.º e 41.º da petição inicial, com nomeação de um perito (tal como havia sido formulado no ponto II. do pedido final desse articulado);
b. Ampliação do objecto do inquérito e destituição, ou pelo menos suspensão, do Recorrido, tal como formulados no requerimento das Recorrentes de 31.5.2024 e no ponto III. do pedido final.
2. A sentença recorrida julgou incorrectamente alguns pontos da matéria de facto e, além do mais, fez uma incorrecta aplicação das regras jurídicas ao caso concreto, concretamente os artigos 986.º, 987.º e 1048.º, n.º1, 1050.º, 1051.º, n.º 2 e 1055.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, e os artigos 216.º, 257.º e 292.º do Código das Sociedades Comerciais.
3. Desde logo, deve ser aditado ao elenco dos factos provados, imediatamente a seguir ao Ponto n.º 1, o facto de que “foi o Requerido quem desde sempre conduziu na prática os negócios e actividade da Requerida”, tal como vertido no artigo 4.º da petição inicial.
a. Para além de relevante para a decisão da causa, tal facto foi confirmado no depoimento da Recorrente, interrogada directamente pelo Juiz a este respeito, e nos termos transcritos e citados no corpo desta peça.
b. De resto, o referido facto não foi impugnado na contestação, pelo que o mesmo tem-se por confessado por força do disposto nos artigos 574.º e 293.º ex vi 986.º do Código de Processo Civil.
4. Também devem ser aditados ao elenco dos factos provados, imediatamente a seguir ao actual Ponto n.º 3, os factos vertidos no artigo 13.º (propriedade de 5 imóveis), 14.º (exploração dos mesmos com recebimento de rendas) e 38.º (valor de caixa e depósitos da Recorrida), todos da petição inicial.
a. A factualidade vertida nos referidos artigos 13.º, 14.º e 38.º tem efectiva relevância para a decisão da causa, na medida em que os pontos de facto que as Recorrentes indicaram para serem esclarecidos através da realização de inquérito à sociedade Recorrida prendem-se directamente com a existência das referidas rendas e respectivo destino (cf. pontos indicados nos artigos 33.º, 37.º, 39.º e 41.º da petição inicial).
b. Ora, para além da prova documental apresentada (certidões prediais juntas como Docs. 6 a 10 da petição inicial e contas juntas como Docs. 12 a 15), os referidos factos vertidos nos artigos 13.º, 14.º e 38.º não foram impugnados na contestação, pelo que os mesmos têm-se por confessados por força do disposto nos artigos 574.º e 293.º ex vi 986.º do Código de Processo Civil.
5. Devem, por outro lado, aditar-se ao elenco dos factos provados, imediatamente antes do actual Ponto n.º 4, os factos vertidos no artigo 17.º (interpelação do Recorrido para convocatória das assembleias gerais) e 18.º (ausência de resposta), ambos da petição inicial.
a. A referida factualidade é relevante para a confirmação da falta de acesso das Recorrentes à informação sobre a Recorrida e também para apreciação da conduta do Recorrido enquanto gerente único da sociedade Recorrida.
b. Ora, para além da prova documental apresentada (cf. carta e comprovativo de envio juntos como Doc. 11 da petição inicial), os referidos factos não foram impugnados na contestação dos Recorridos.
6. Por outro lado ainda, deve a redacção do ponto n.º4 do elenco dos factos provados ser alterada, por forma a ali também se incluir o exercício de 2019.
a. Com efeito, nos artigos 52.º a 54.º da petição inicial as Recorrentes alegaram que também com referência ao exercício de 2019, as mesmas nunca foram convocadas para qualquer assembleia geral da Recorrida e, não obstante, esta depositou as contas desse exercício com a menção de que foram aprovadas por unanimidade em Assembleia Geral.
b. Esta factualidade resulta do Doc. 19 junto com petição inicial (contas de 2019 da sociedade Recorrida) e do depoimento da testemunha EE., nos termos transcritos e citados no corpo destas alegações.
7. Deve ainda aditar-se ao elenco dos factos provados, imediatamente a seguir ao actual Ponto n.º 4, o facto referido na parte final do artigo 22.º da petição inicial de que as Recorrentes nunca tiveram acesso aos relatórios de gestão.
a. Para além do depoimento da testemunha EE. nos termos transcritos e citados no corpo destas alegações, este facto resulta ainda da acta da assembleia geral judicialmente convocada cuja junção aos autos foi admitida em audiência final, sendo que além do mais, não foi impugnado na contestação, pelo que o mesmo tem-se por confessado por força do disposto nos artigos 574.º e 293.º ex vi 986.º do Código de Processo Civil.
b. Este facto reputa-se essencial à boa decisão da causa, não só por permitir o preenchimento dos pressupostos legais para a realização do inquérito judicial, como é demonstrativo da conduta ilegal do Recorrido enquanto gerente da sociedade Recorrida.
8. Da instrução da causa resultaram ainda três outros factos, que são complemento e concretização dos factos alegados pelas Recorrentes acerca da conduta ilícita que o Recorrido tem adoptado na gestão da sociedade Recorrida, os quais, pela sua relevância e suporte na prova produzida, também deveriam ter sido considerados pela sentença recorrida, nos termos do artigo 5.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, tanto mais que as partes se pronunciaram a respeito dos mesmos (cf. requerimentos das Recorrentes de 31.5.2024 e dos Recorridos de 17.6.2024).
a. Em primeiro lugar, tal como alegado no requerimento apresentado a 31 de Maio de 2024 e resulta do documento da contabilidade junto na audiência final, “do balancete de Dezembro de 2023 consta da conta 26.2.5.1 um saldo devedor do Requerido CC. no valor de € 497.979,88, sendo a sociedade Requerida credora de tal montante”;
b. Em segundo lugar, conforme alegado no referido requerimento de 31 de Maio de 2024 e resultou do depoimento da testemunha EE., nos termos citados e transcritos no corpo destas alegações, “o referido saldo devedor de € 497.979,88 consiste no acumular de levantamentos de numerário através de cartões de débito e crédito da sociedade Requerida e de transferências bancárias através do homebanking da sociedade Requerida para contas do Requerido CC.”.
c. Em terceiro lugar, conforme alegado no referido requerimento de 31 de Maio de 2024 e resultou do depoimento da testemunha EE., nos termos citados e transcritos no corpo destas alegações, “nos casos em que as utilizações de dinheiro da sociedade Recorrida para fins pessoais do gerente Recorrido sejam documentadas com facturas das quais conste o número de contribuinte da sociedade – e.g. despesas de supermercado, de refeições, de alojamento, de combustíveis, etc. –, os movimentos contabilísticos associados são registados em contas próprias do balancete da sociedade Recorrida, sendo tais gastos pessoais do Recorrido integralmente imputados e suportados por aquela”.
9. Tratam-se, assim, de factos que se reputam essenciais à boa decisão da causa, não só por permitirem o preenchimento dos pressupostos legais para a realização do inquérito judicial, como são demonstrativos da conduta ilegal do Recorrido enquanto gerente da sociedade Recorrida, que utiliza abusivamente o património da sociedade para fins pessoais.
10. Em face da factualidade demonstrada, desde logo na própria sentença recorrida quanto à não prestação de informação solicitada, não restam dúvidas quanto à necessidade e legitimidade das Recorrentes requererem inquérito judicial nos termos dos supra citados artigos 986.º e 1048.º, n.º1 do Código de Processo Civil, 216.º e 292.º do Código das Sociedades Comerciais.
11. Por seu turno, o artigo 1048.º do Código de Processo Civil determina que “o interessado que pretenda a realização de inquérito judicial à sociedade, nos casos em que a lei o permita, alegará os fundamentos do pedido de inquérito, indicará os pontos de facto que interesse averiguar e requererá as providências que repute convenientes”,
12. cabendo ao juiz, nos termos do do n.º2 do artigo 1049.º do mesmo diploma, se for ordenada a realização do inquérito, fixar os pontos que a diligência deve abranger, nomeando perito que deve realizar a investigação (cf. ainda artigo 1051.º quanto à ulterior tramitação).
13. Tendo as Recorrentes na petição inicial que apresentaram em 25.1.2021 listado nos artigos 33.º, 37.º, 39.º e 41.º os pontos de facto que consideram relevante averiguar (a que aditaram um outro por requerimento de 31.5.2024, ampliando o objecto do inquérito nos termos do artigo 1049.º, n.º2 do Código de Processo Civil), o Tribunal a quo rejeitou esse inquérito com fundamento em esses pontos de facto não estarem vertidos nas cartas / pedidos de informação que foram submetidos pelas Recorrentes.
14. Ora, salvo o devido respeito, esses pontos não carecem de estar nos pedidos de informação, tendo o Tribunal o quo confundido o pressuposto de decretamento de inquérito – a recusa de informação – com o alcance da diligência.
15. Isto é, demonstrada que foi a recusa de informação, o inquérito deve abranger todos os pontos de facto que essa informação se destinava a elucidar, sendo que, em qualquer caso, a recusa de prestação dos elementos solicitados pelas Recorrentes e demais factualidade dada como provada facilmente permite presumir a recusa de esclarecimento quanto àqueles pontos de facto, caso também tivesse sido pedido o respectivo esclarecimento.
16. Da factualidade demonstrada, desde logo na própria sentença recorrida, resulta ainda que o comportamento adoptado pelo Recorrido consubstancia um incumprimento grave dos seus deveres fiduciários de gerente ao longo de sucessivos exercícios, incluindo:
(i) Deve de elaborar o relatório de gestão
(ii) Dever de convocar a Assembleia Geral para deliberar sobre o relatório de gestão e contas do exercício e proposta de aplicação de resultados da Requerida (artigos 65.º, n.º 1, 248.º, n.º1 e 2, 263.º, n.º 1, 375.º, n.º 2 e 3 e 376.º do Código das Sociedades Comerciais);
(iii) Dever de preparar a contabilidade da Recorrida com respeito pelos requisitos previstos na lei – por, pelo menos, no que concerne ao activo da Requerida, não representar o valor actual dos imóveis que esta em princípio deterá (artigo 65.º, n.º 2 do Código das Sociedades Comerciais);
(iv) Dever de prestar às Recorrentes os esclarecimentos solicitados sobre a gestão da Requerida (artigo 214.º, n.º1 e 3 do Código das Sociedades Comerciais);
(v) Dever de facultar às Recorrentes, na sede da Recorrida, a consulta dos documentos, livros e escrituração da Requerida (artigo 214.º, n.º1 e 4 do Código das Sociedades Comerciais);
(vi) Dever de não falsificar documentos, ao publicar as contas da Recorrida, sem obter aprovação prévia da Assembleia Geral, indicando nas mesmas que tal aprovação foi obtida.
(vii) Dever de não levantar fundos da sociedade Recorrida para gastos pessoais, nem imputar despesas suas como custos daquela, em prejuízo da própria sociedade, das Recorrentes e da Fazenda Pública.
17. Assim, na parte que rejeitou o peticionado pelas Recorrentes, a sentença recorrida violou as disposições legais citadas na conclusão n.º 2 supra, pelo que, na procedência do presente recurso, deve ser revogada e substituída por
decisão que:
a. ordene a realização do inquérito à Recorrida, abrangendo a diligência os pontos de facto indicados pelas Recorrentes nos artigos 33.º, 37.º, 39.º e 41.º da petição inicial e no requerimento de 31.5.2024, nomeando-se como perito para efeito, o sugerido pelas Recorrentes;
b. ordene a destituição do Recorrido do cargo de gerente, ou pelo menos a sua suspensão.
11. Os recorridos apresentaram contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso, para o que apresentam as seguintes conclusões:
a) O presente recurso vem interposto da decisão que julgou parcialmente procedente, por parcialmente provada a ação de inquérito judicial à sociedade Requerida nos presentes autos.
b) A decisão recorrida considerou – de forma acertada – não se verificar por parte dos Requeridos violação do direito à informação que pudesse consubstanciar o inquérito judicial à sociedade;
c) Nem tampouco, existem pressupostos que fundamentem a destituição, ou a suspensão, do Requerido, do exercício de funções de gerente;
d) Sendo que, apenas no que concerne à consulta documental solicitada, estão verificados os pressupostos de que depende o inquérito judicial.
e) As Recorrentes elencam, nas suas alegações, factos que constam da sua petição inicial e que deveriam ter sido considerados provados na douta decisão;
f) E referem ainda os factos que resultaram da instrução e que, na convicção das requerentes, deveriam igualmente constar da decisão, como factos provados.
g) No entanto, consideram os Requeridos (e bem assim o douto tribunal a quo) não existirem quaisquer razões para a alteração dos factos julgados provados.
h) Na verdade, a conclusão que pretendem obter não tem fundamento suficiente nas declarações e nos factos por estas produzidos.
i) São assim pressupostos do inquérito judicial à sociedade: que tenha sido formulado previamente um pedido de informação, ao abrigo do artigo 214º; que tenha havido recusa de informação, quer na vertente de não fornecimento de informações em sentido estrito, quer na vertente de recusa do direito de consulta ou do direito de inspeção, ou que a informação prestada seja presumivelmente falsa, incompleta ou não elucidativa.
j) Ora, de acordo com a douta sentença, a solicitação de consulta documental feita pela Recorrentes insere-se globalmente no direito à informação previsto no artigo 214º n.º 1 do Código das Sociedades Comerciais.
k) No entanto, não se pode afirmar que, quanto a estas se verificou qualquer violação do direito à informação pela simples razão de que as requerentes não exerceram o correlativo direito à informação apresentando as questões sobre as quais queriam ser informadas;
l) Em requerimento posterior apresentado pela Requerentes, ora Recorridas, foi por elas peticionada a ampliação do objeto de inquérito ao abrigo do artigo 1049º n.º 4 do CPC, requerendo a destituição com justa causa do gerente, ora Recorrido, sendo que face ao já decidido, refere, e muito bem, a douta sentença que fica prejudicada a apreciação desta pretensão, uma vez que supõem a realização de inquérito à Requerida.
m) A douta sentença recorrida não padece assim de qualquer contradição ou falta de fundamento em matéria de facto, nomeadamente na apreciação da prova testemunhal, pelo que deverá ser mantida na íntegra e confirmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa.
O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata nos próprios autos.
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar.
II.
Dado que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação das recorrentes, sem prejuízo das questões passíveis de conhecimento oficioso (artigos 608º, n.º 2, parte final, ex vi do art.º 663º, n.º 2, ambos do Código de Processo Civil), identificam-se, como questões a decidir:
i. apreciar a impugnação dirigida à matéria de facto (ampliação da matéria de facto provada e retificação de facto provado);
ii. apreciar da existência de fundamento para realização de inquérito judicial, nos termos, com a amplitude peticionada pelas recorrentes;
iii. caso se conclua pela verificação dos pressupostos de realização de inquérito judicial, aferir da admissibilidade da ampliação do objeto do inquérito e da existência de fundamento para destituição/suspensão do gerente da recorrida.
III.
O tribunal recorrido considerou provados, com interesse para a decisão da causa, os seguintes factos:
1. A requerida, Elvolar Móveis, Lda., pessoa coletiva n.º.., com sede na Rua … em Lisboa, é uma sociedade comercial por quotas, constituída em 1980, com o capital social no valor de €329,206,62, dividido em duas quotas no valor de €164.603,31 cada, uma pertencente ao requerido e outra pertencente a DD., sendo ambos gerentes.
2. DD. faleceu no dia 24 de Novembro de 2016, sucedendo-lhe as requerentes, respetivamente mulher e filha, tendo assumido a primeira o cargo de cabeça de casal.
3. Por acordo celebrado o dia 3 de Julho de 2019, as requerentes procederam à partilha da quota de DD., no valor nominal de €164.603,31, correspondente a 50% do capital social da requerida, dividindo-a em duas quotas, uma no valor nominal de €123.452,48, correspondente a 37% do capital social, pertencente à primeira requerente, e outra no valor nominal de €41.150,83, correspondente a 12,5% do capital social, pertencente à segunda requerente.
4. As requerentes nunca foram convocadas para qualquer assembleia geral da requerida e, não obstante, a requerida depositou as contas dos exercícios de 2015 a 2018, com a menção de que foram aprovadas por unanimidade em Assembleia Geral.
5. No dia 17 de Junho de 2020, as requerentes enviaram à requerida, endereçada ao requerido, carta, que receberam, nos termos da qual lhe solicitam a consulta na sede da requerida, no dia 14 ou 15 de Julho de 2020, em hora que indicasse, dos seguintes elementos:CópiadasatasdaAssembleia-Geraldasociedadedesde2016;Listadeentidadescomasquaisexistamrelaçõesespeciaistalcomodefinidasnoart.º63doCIRC;Certidãodeinexistênciadedívidasàsegurançasocialatualizada;Certidãodeinexistênciadedívidasàsfinançasatualizada;Cópiasdecontratosqueimpliquemobrigaçõesparaasociedadeequeestejamemvigoroudescriçãodascondiçõescontratuaisnoscasosemquenãoexistacontratoescrito(incluindoaditamentos,alteraçõeserenovações);Cópiadasapólicesdesegurosemvigoredoúltimorecibo;Cópiadetodasasprocuraçõespassadaspelosrepresentantesdasociedadeafavordeterceiros,seaplicável(incluindoaditamentos,alteraçõeserenovações);Cópiadascertidõesderegistopredialdosimóveisdatitularidadedasociedade;Cópiadascertidõesdeteormatricialdosimóveisdatitularidadedasociedade;Cópiadoscontratosdearrendamentooudeutilizaçãodelojaemvigortendoporobjetoosimóveisdatitularidadedasociedade(incluindoaditamentos,alteraçõeserenovações);RelatórioeContasassinadode2016a2019;BalancetesanalíticosdeRegularizaçõeseFinal,emexcel;Balancetesanalíticosmensaisrelativosa2017a2020;Extractoscontabilísticosdascontas11à88doexercíciode2017a2020;FicheiroSAFTdacontabilidadede2017a2020;Modelo22de2015,2016,2017,2018e2019;Inventárioàdatade31.12.2016,31.12.2017e31.12.2018e31.12.2019;Mapaderesponsabilidadesdecrédito(BancodePortugal)referenteaomêsdeDezembrode2016,2017,2018,2019eúltimomêsdisponívelde2020;ConciliaçõesbancáriasdeDezembrode2016,2017,2018,2019anexandocópiadoúltimoextratobancário;Extratosbancáriosdoanode2019e2020;FolhaeInventáriodeCaixaassinadoa31deDezembrode2018e2019;Mapasdedepreciaçõeseamortizaçõesreferentesaoexercíciode2016,2017,2018e2019;Listagemdocadastrodeimobilizadodasociedade;DeclaraçõesperiódicasdeIVAdosanosde2018,2019e2020;CadastroFiscal:DadosGerais;DadosdeActividade;OutrosDadosActividade(Serviços>Consultar>SituaçãoCadastralActual);DívidasFiscais(Serviços>Consultar>ExecuçõesFiscais);InfracçõesFiscais(Serviços>Consultar);ListagemdoPatrimónioPredial(Serviços>Consultar>Imóveis>PatrimónioPredial);VeículosAutomóveis(Consultar>Veículos>VeículosActuais>VeículosAutomóveis);ResumodeCobrança–IRS(Consultar>InformaçãoFinanceira>MovimentosFinanceiros>DMR>2017e2018)comodetalhepormês;ResumodeCobrança–IRC(Consultar>InformaçãoFinanceira>MovimentosFinanceiros>IRC>2017e2019)comodetalhepormês;ContaCorrente,ReembolsoseMovimentosFinanceirosdeIVA(Serviços>Consultar>InformaçãoFinanceira>MovimentosFinanceiros>IVA)comodetalhepormêsde2017ede2019.
6. As requerentes não obtiveram qualquer resposta.
7. Em conformidade, no dia 22 de Julho de 2020, as requerentes, através dos respetivos mandatários, enviaram à requerida, endereçada ao requerido, carta, que receberam, nos termos da qual insistem pela consulta na sede da requerida, até 7 de Agosto de 2020, da documentação a que se alude no ponto 5.
8. As requerentes não obtiveram qualquer resposta
Mais considerou o tribunal recorrido que com interesse para a decisão da causa não resulta demonstrada qualquer outra factualidade, nomeadamente que: a) o requerido, na sequência e em resposta às cartas referidas nos pontos 5 e i7, informou as requerentes no sentido de que todas as informações deveriam ser pedidas e obtidas junto do contabilista certificado da sociedade, Sr. EE.
IV.
i. Impugnação da decisão relativa à matéria de facto.
Com relevância para a reapreciação da matéria de facto pretendida pelas apelantes, importa tecer algumas considerações introdutórias, que serão úteis por ocasião da apreciação do objeto do recurso.
Por força do disposto no art.º 549º, n.º1 do Código de Processo Civil, os processos especiais regulam-se pelas disposições que lhes são próprias e pelas disposições gerais e comuns, sendo que em tudo o que não estiver prevenido numas e noutras, observa-se o que se acha previsto para o processo comum. Em relação aos processos de jurisdição voluntária – em que se inclui o processo de inquérito judicial à sociedade -, prevê o art.º 986º, n.º1 que lhes são aplicáveis as disposições dos artigos 292º a 295º (incidentes da instância).
A matéria de facto a considerar na fundamentação da sentença, nos termos previstos pelo art.º 607º, n.º3 do Código de Processo Civil, terá que respeitar os limites previstos pelo art.º 5º, n.º1, do Código de Processo Civil, sendo imprescindível que contemple a matéria de facto alegada pelas partes e que se mostre relevante para apreciação das concretas questões jurídicas que integram o objeto da causa. Para além dos factos essenciais, tal como decorre do n.º2 do art.º 5º, poderão, na decisão, ser considerados pelo juiz: a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa; b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar; c) Os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.
Por efeito da redação vigente do Código de Processo Civil, designadamente no que respeita à delimitação da matéria de facto controvertida que é objeto de julgamento, a sentença tem como único elemento integrante obrigatório os factos essenciais alegados pelas partes. Naturalmente que, sob pena de o tribunal superior divergir da limitada enunciação de factos que o tribunal tem por necessários para a decisão da causa, impondo a sua ampliação, deve a sentença contemplar todos os factos passíveis de relevar para a solução jurídica.
Ainda com relevância para a apreciação do objeto do recurso, importa ter em conta que, não obstante os amplos poderes de reapreciação do julgamento da matéria de facto conferidos ao tribunal da Relação, essa tarefa não deverá ser desenvolvida, com incidência pormenorizada, quando os pontos de facto indicados pela parte inconformada se revelem inúteis para a decisão da causa.
Tal como a este respeito se refere no Ac. do TRG de 19-12-2023 (processo n.º1526/22.0T8VRL.G1, rel. Maria João Matos, disponível em www.dgsi.pt), aludindo ao que a jurisprudência tem vindo a confirmar, “a impugnação da decisão de facto não se justifica a se, de forma independente e autónoma da decisão de mérito proferida, assumindo antes um carácter instrumental face à mesma «(…) O seu efectivo objectivo é conceder à parte uma ferramenta processual que lhe permita modificar a matéria de facto considerada provada ou não provada, de modo a que, por essa via, obtenha um efeito juridicamente útil ou relevante» (Ac. da RC, de 24.04.2012, António Beça Pereira, Processo n.º 219/10.6T2VGS.C1). Logo, por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto «quando o(s) facto(s) concreto(s) objecto da impugnação for insusceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente», convertendo-a numa «pura actividade gratuita ou diletante» (conforme Ac. da RC, de 27.05.2014, Moreira do Carmo, Processo n.º 1024/12.0T2AVR.C1).”
Em suma, na apreciação da impugnação dirigida ao julgamento da matéria de facto deve o tribunal superior abster-se de desenvolver a atividade inútil de fundamentar a (in)correção do juízo da 1ª instância, quando desta não advenha qualquer efeito juridicamente relevante.
A esta luz, convirá ter presente a natureza especial do processo instaurado, delimitado quanto ao efeito jurídico a que se destina na sequência de despacho dirigido às requerentes para o efeito.
A ação prosseguiu os seus termos na vertente de processo especial de inquérito judicial “ao abrigo do disposto nos artigos 986.º e 1048.º, n.º1 do Código de Processo Civil, 216.º e 292.º do Código das Sociedades Comerciais” tendo por fundamento (causa de pedir) a recusa pela requerida, notificada na pessoa do requerido, seu gerente, em prestar informação que lhe foi solicitada pelas requerentes, corporizada, num primeiro momento, na carta correspondente ao documento n.º17 anexo à petição inicial e que integrava os elementos elencados no art.º 28º da petição inicial.
Por outro lado, ainda com relevância para a apreciação da impugnação dirigida à matéria de facto, não poderá ser desconsiderado que os requeridos foram absolvidos da instância em relação ao pedido originariamente deduzido de fixação de prazo para o requerido apresentar o relatório de gestão e as contas corretamente elaboradas, assente na previsão do art.º 67º do CSC, que possibilita aos sócios requererem a realização de inquérito “se o relatório de gestão, as contas de exercício e os demais documentos de prestação de contas não forem apresentados nos dois meses seguintes ao termo do prazo fixado no artigo 65º, n.º5” do CSC”.
Efetuada esta introdução, analisemos a impugnação dirigida à matéria de facto.
Entendem as recorrentes que:
- o tribunal desconsiderou o facto vertido no artigo 4º da petição inicial – foi o requerido quem desde sempre conduziu na prática os negócios e atividade da Requerida -, que consideram relevante por sustentar o domínio efetivo que o mesmo tem da sociedade recorrida, dependendo as recorrentes daquele para terem acesso à informação; tal facto não foi impugnado na contestação, pelo que pretendem que seja aditado ao elenco de factos provados;
- os factos alegados nos artigos 13º, 14º e 38º da petição inicial, onde as recorrentes alegaram que a sociedade é titular de 5 frações autónomas (identificadas com anexação de certidões), que os referidos imóveis foram sendo explorados pela requerida, que os dava de arrendamento, bem como alegaram e documentaram que os valores de caixa e depósitos bancários têm vindo a diminuir ao longo dos anos, em termos que identificam, considerando as recorrentes que tal factualidade tem relevância na medida em que os pontos de factos que pretendem ver esclarecidos através da realização de inquérito se prendem com a existência de rendas e respetivo destino; tais factos não foram impugnados na contestação, pelo que deverão ser aditados ao elenco de factos provados;
- os factos alegados pelas recorrentes nos artigos 17º e 18º da petição inicial – interpelação do requerido para convocatória das assembleias gerais, para deliberar sobre a apreciação e votação das contas da recorrida relativas aos anos de 2015, 2016 e 2017, bem como sobre a aplicação de resultados desses anos, que não obtiveram qualquer resposta, matéria provada por documento e não impugnada, que as recorrentes consideram relevante para confirmação da falta de acesso à informação sobre a recorrida e para apreciação da conduta do recorrido, gerente único da sociedade recorrida e violação dos deveres legais que sobre o mesmo impendem, devendo tais factos ser aditados ao elenco de factos provados;
- entendem que o facto provado n.º4 está incompleto, por não incluir o depósito das contas de 2019 sem aprovação, exercício que se inclui na matéria que as recorrentes alegaram nos artigos 52º e 54º da petição inicial e que deve igualmente ser dada como provada (resulta do Doc. 19 junto com petição inicial, que corresponde à versão disponível para consulta da IES de 2019 da sociedade Recorrida e é corroborado pelo depoimento da testemunha EE.), não tendo sido impugnada na contestação;
- o facto vertido no final do artigo 22º da petição inicial – falta de acesso aos relatórios de gestão -, não impugnado na contestação e essencial à boa decisão da causa, por permitir o preenchimento dos pressupostos legais para realização do inquérito judicial e demonstra a conduta ilegal do recorrido “que omite sucessivamente as contas e os relatórios de gestão da sociedade Recorrida das demais sócias, declarando que as primeiras foram aprovadas em assembleia geral que, na verdade, nunca ocorreram”;
- mais pretendem que sejam aditados ao elenco de factos provados três factos que resultaram da instrução da causa “que são complemento e concretização dos factos alegados pelas Recorrentes acerca da conduta ilícita que o gerente Recorrido tem adoptado na gestão da sociedade Recorrida”, a saber: “do balancete de Dezembro de 2023 consta da conta 26.2.5.1 um saldo devedor do Requerido CC. no valor de € 497.979,88, sendo a sociedade Requerida credora de tal montante”; “o referido saldo devedor de € 497.979,88 consiste no acumular de levantamentos de numerário através de cartões de débito e crédito da sociedade Requerida e de transferências bancárias através do homebanking da sociedade Requerida para contas do Requerido CC.”; “nos casos em que as utilizações de dinheiro da sociedade Recorrida para fins pessoais do gerente Recorrido sejam documentadas com faturas das quais conste o número de contribuinte da sociedade – e.g. despesas de supermercado, de refeições, de alojamento, de combustíveis, etc. –, os movimentos contabilísticos associados são registados em contas próprias do balancete da sociedade Recorrida, sendo tais gastos pessoais do Recorrido integralmente imputados e suportados por aquela”.
Analisemos a pertinência da impugnação dirigida à matéria de facto, pautada exclusivamente por pretensões de aditamento de factos à matéria elencada pelo tribunal (não é questionada a efetiva prova/não prova dos factos enunciados pelo tribunal recorrido, antes sendo pretendida a inclusão de factos alegados e ali não mencionados ou a ampliação do âmbito temporal de um dos factos).
A este propósito, relembrando o que foi já referido, o tribunal superior deve abster-se de alterar o juízo da 1ª instância quando em causa esteja matéria de facto cuja inclusão não produza qualquer efeito jurídico relevante, sendo que este é definido pelo concreto objeto da causa.
Muito embora, conforme referimos, sejam aplicáveis aos processos de jurisdição voluntária as disposições dos artigos 292º a 295º do Código de Processo Civil, prevendo o art.º 293º, n.º2 que a falta de oposição no prazo legal determina, quanto à matéria do incidente, a produção do efeito cominatório que vigore na causa em que o incidente se insere, a decisão de proceder a inquérito não depende do conteúdo da resposta, como resulta do disposto no art.º 1049º, n.º1 do Código de Processo Civil – haja ou não resposta dos requeridos, o juiz decide se há motivos para proceder ao inquérito.
Dispõe o art.º 214º, n.º 1 do CSC que “1 - Os gerentes devem prestar a qualquer sócio que o requeira informação verdadeira, completa e elucidativa sobre a gestão da sociedade, e bem assim facultar-lhe na sede social a consulta da respectiva escrituração, livros e documentos. A informação será dada por escrito, se assim for solicitado”, acrescendo, em conformidade com a previsão do art.º 216º do CSC que “1 - O sócio a quem tenha sido recusada a informação ou que tenha recebido informação presumivelmente falsa, incompleta ou não elucidativa pode requerer ao tribunal inquérito à sociedade.2 - O inquérito é regulado pelo disposto nos n.os 2 e seguintes do artigo 292.º”.
As recorrentes requereram a realização de inquérito judicial por lhes ter sido recusada pelo gerente – por omissão de resposta a solicitação escrita expressa – a consulta, na sede social da requerida, de um conjunto de elementos documentais devidamente identificados.
Essa é a factualidade que preenche a previsão legal (artigo 216º do CSC) e delimita o objeto do processo, pelo que a prova a produzir é direcionada exclusivamente para a apreciação da verificação dos factos (essenciais e instrumentais) que suportam o pedido, sendo de realçar que a acrescida pretensão de realização de inquérito com suporte jurídico na previsão do art.º 67º do CSC – não apresentação do relatório de gestão, das contas de exercício e demais documentos de prestação de contas no prazo legalmente fixado – foi excluída do objeto do processo por efeito da absolvição da instância dos requeridos, declarada na fase inicial do processo.
A afirmação das recorrentes de que os factos cujo aditamento é pretendido “se reputam essenciais à boa decisão da causa, não só por permitirem o preenchimento dos pressupostos legais para a realização do inquérito judicial, como são demonstrativos da conduta ilegal do Recorrido enquanto gerente da sociedade Recorrida, que utiliza abusivamente o património da sociedade para fins pessoais” - conclusão 9 -, parte do princípio, não verificado, de que o pressuposto formal que legalmente autorizaria a realização de inquérito assentaria na apontada factualidade, quando, na realidade, esses factos são externos ao particular objeto da ação especial instaurada, não sendo abarcados pela previsão legal que lhe serviu de base, correspondente ao artigo 216º do CSC, que tem como pressuposto a existência de uma recusa de informação, não coincidente com qualquer dos factos nesta fase mencionados pelas recorrentes.
Se está em causa uma obrigação do gerente (qualidade não questionada do requerido, que não põe em causa os poderes de facto associados por princípio a essa qualidade), se foi excluída a apreciação da realização de inquérito judicial com base na não apresentação de relatório de gestão ou correta elaboração das contas (art.º 67º do CSC) e se, em nenhum momento, alegaram as requerentes que haja sido solicitada e lhes terá sido recusada a prestação de informações associadas aos rendimentos de exploração dos imóveis da sociedade requerida, aos fluxos de caixa e/ou destino dos depósitos bancários, não tendo igualmente a ação por finalidade direta a avaliação do cumprimento das deveres legais que impendem sobre o gerente, sendo qualquer consequência a extrair do eventual incumprimento desses deveres matéria que, a ocorrer, terá que ser apreciada em ação própria e que, nestes autos, dependia do concreto âmbito do inquérito judicial, não poderemos senão concluir que, ainda que a matéria indicada pudesse ser considerada provada, a mesma nenhuma influência teria na decisão da causa, por não suportar o concreto e específico efeito jurídico pretendido, situado no contexto do direito de acesso “amplo” à informação que assiste aos sócios e específico de recusa de acesso a elementos documentais relevantes.
O inquérito judicial autorizado pela previsão do art. 216º do CSC, que corresponde ao fundamento jurídico da causa, terá que assentar na concreta invocação da recusa de informação, sendo que, para que o inquérito pudesse ser requerido tendo por objeto pontos de facto em relação aos quais não houve um precedente pedido de informação à sociedade, seria necessário alegar e provar (factos essenciais) um conjunto de circunstâncias que permitissem fundar a presunção de que a informação não seria prestada caso houvesse sido solicitada (art. 292º, n.º6 ex vi do art. 216ºn.º2, ambos do CSC).
Os factos relevantes para apreciação da causa serão, assim, aqueles que sustentam as pretensões informativas ou documentos que as requerentes pretendiam consultar e que foram recusadas e, eventualmente, um conjunto de factos passíveis de firmar a base da presunção de que, ainda que algumas informações não hajam sido expressamente solicitadas, seria legítimo inferir, em face das circunstâncias, que não teriam sido prestadas ou seria recusada a resposta. Contudo, essa matéria, é alegada apenas nesta fase, na conclusão 15 das alegações de recurso.
Do conjunto de factos alegados na petição inicial verificamos que, por um lado, identificam as requerentes, contextualizando, aquilo que formalmente foi solicitado aos requeridos, sem obtenção de qualquer resposta, sendo os demais factos (ponto 1.3) um conjunto de dúvidas concretas que as requerentes têm por efeito da ausência de resposta do requerido ao pedido de consulta de documentação. Ora, essas dúvidas ou informações pretendidas, bem como a factualidade alegada em suporte do pedido para cuja apreciação a ação não prosseguiu termos, não são relevantes enquanto fundamento que possa vir a redundar na determinação da realização de inquérito.
Como refere Armando Triunfante [O inquérito judicial: direito à informação dos sócios/acionistas nas sociedades comerciais, e-book CEJ 2019, Processos Especiais dos Juízos de Comércio, p. 123, disponível nesta ligação] “(…) O fundamento do pedido de inquérito, acrescendo à identificação da sociedade e à legitimidade do requerente, no que diz respeito ao direito à informação terá de passar por uma de três hipóteses: recusa do direito por parte da sociedade; prestação de informação falsa, incompleta ou não elucidativa (arts. 181.º, n.º 6 59, 216.º, n.º 1, 292.º, n.º 1, 480.º); circunstâncias que permitam a presunção de que a informação não será prestada, mesmo que seja pedida”.
No caso concreto, o fundamento traduziu-se na recusa do direito exercido pelas requerentes a consultar documentação na sede da sociedade, pelo que serão os factos que suportam esse específico fundamento os relevantes para a decisão da causa.
Nesta medida, uma vez que a globalidade dos factos cujo aditamento é pretendido pelas recorrentes é indiferente para o desfecho da causa à luz do específico fundamento que legitimou a instauração e prosseguimento da ação, improcedem as conclusões 3 a 9 da apelação, correspondentes à impugnação dirigida à matéria de facto.
*
ii. Da verificação dos pressupostos de realização de inquérito judicial.
O inquérito judicial é um processo especial, de jurisdição voluntária, inserido no Capítulo “Exercício de direitos sociais”, regulado nos artigos 1048.º a 1052.º do CPC, ao que são aplicáveis as disposições dos artigos 292.º a 295.º, por força do disposto no artigo 986.º, n.º 1, dividindo-se o processo em duas fases. Numa primeira fase, o juiz aprecia os fundamentos invocados pelas requerentes e, haja ou não resposta dos requeridos, decide se há motivos para proceder ao inquérito (artigo 1049º, nº 1); numa segunda fase, se for ordenada a realização do inquérito, o juiz fixará os pontos que a diligência deve abranger, nomeando perito ou peritos que deverão realizar a investigação, aplicando-se o disposto quanto à prova pericial e, depois de concluído, fixa a matéria de facto e decide sobre as providências requeridas (artigos 1049.º, n.º 2, e 1051.º, n.º 1).
Decorre da previsão do art. 21º, n.º1, al. c) do CSC que todo o sócio tem direito a obter informações sobre a vida da sociedade, nos termos da lei e do contrato.
O inquérito apenas pode ter lugar nos casos concretos em que a lei o permita, correspondendo um desses casos à situação prevista nos artigos 214º e 216º do CSC.
Da conjugação dos artigos 214º, n.º1 e 216º, n.º1 e n.º2 do CSC, decorrre que os gerentes devem prestar a qualquer sócio que o requeira informação verdadeira, completa e elucidativa sobre a gestão da sociedade, e bem assim facultar-lhe na sede social a consulta da respectiva escrituração, livros e documentos, podendo o sócio a quem tenha sido recusada a informação ou que tenha recebido informação presumivelmente falsa, incompleta ou não elucidativa requerer ao tribunal inquérito à sociedade, que é regulado pelos disposto nos n.º2 e seguintes do artigo 292º.
O direito à informação do sócio inclui as seguintes faculdades jurídicas: o direito de obter informações verdadeiras, completas e elucidativas; o direito de consulta de livros e documentos em poder da sociedade; o direito de inspeção de bens sociais e o direito de requerer inquérito judicial, sendo esta última uma faculdade jurídica processual válida, “não apenas para o não fornecimento de informações, como também para a recusa do direito de consulta ou do direito de inspecção. Isto porque ela é uma faculdade jurídica instrumental, enquanto faculdade processual, do direito à informação em sentido geral (…)” [J. P. Remédio Marques, Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Almedina, Vol. 3, p. 312 e 313].
A faculdade de requerer a realização de inquérito tem, como pressuposto, a violação do direito do sócio, sendo precisamente a concreta incidência dessa violação que permite aferir se a situação se subsume a um dos casos em que a lei autoriza que o inquérito tenha lugar.
No caso em apreço, o direito violado que serviu de fundamento à propositura da ação foi o direito de consulta de elementos documentais referentes à atividade da sociedade, sendo essa consulta, em princípio, a base de obtenção de um conjunto de informações a que as sócias pretendem aceder e que poderá originar, em função das dúvidas que subsistam, pedidos de informação mais concretizados.
Tal é, aliás, afirmado pelas próprias requerentes quando, no artigo 40º do requerimento inicial aperfeiçoado, referem que “Estes são alguns dos pontos de factos que as Requerentes pretendem averiguar e têm direito de ver esclarecidos, mediante a consulta e análise dos elementos que solicitaram através da carta junta como DOC. 17” (sublinhado nosso).
A consulta e análise dos elementos corrrespondem a um meio de aceder à informação em relação à qual as recorrentes afirmam a existências de dúvidas.
Porém, é o específico direito identificado como ilicitamente afetado que define o âmbito do direito a requerer inquérito judicial.
Às requerentes cabia alegar e provar a titularidade do direito à informação e a recusa ilícita por parte da sociedade ou do seu gerente, ou, se fosse o caso, a específica informação que lhes teria sido prestada de forma falsa, incompeta ou não elucidativa, cabendo, por seu turno, aos requeridos, o ónus de alegar e provar a legitimidade da recusa ou a inexistência de qualquer ilicitude na sua atuação omisssiva.
Como refere Margarida Costa Andrade [Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Almedina, p. 360], “o direito à informação sobre a vida da sociedade manifesta-se em três diferentes vertentes: como direito à informação stricto sensu, que permite ao sócio formular questões sobre a vida da sociedade e desta exigir resposta verdadeira, completa e elucidativa; como direito de consulta, por cujo exercício o sócio pode solicitar que a sociedade exiba, para exame, os livros de escrituração e outros documentos descritivos da actividade social; como direito de inspecção, assim podendo o sócio vistoriar os bens da sociedade”.
As recorrentes manifestaram pretender exercer o seu legítimo direito à informação na vertente de direito de consulta, que alegaram ter-lhes sido negada pelos recorridos, sendo essa a base legal que legitimou as recorrentes a instaurarem processo com vista à realização de inquérito judicial à sociedade, suportado pela previsão do art. 216º do CSC, tendo o tribunal a quo reconhecido na decisão recorrida que esse direito merecia tutela.
Contudo, todas as dúvidas suscitadas em torno da atuação do gerente, do destino dado aos lucros ou das concretas medidas de gestão desenvolvidas no exercício da atividade da sociedade recorrida, correspondem a factualidade que não pode ser invocada como base de inquérito judicial, já que não existe alegação originária de uma violação do direito à informação “stricto sensu”, isto é, que hajam sido solicitadas informações concretas sobre a vida da sociedade e que estas não tenham sido prestadas, ou o tenham sido de forma falsa ou incompleta, antes correspondendo tal matéria a ilações que as recorrentes extraíram sem prévia consulta dos documentos a que pretendem aceder – e a partir dos quais poderão, eventualmente, obter elucidação bastante ou, alternativamente, base para qualquer outra iniciativa processual.
O inquérito não pode ser fundado em suspeitas de irregularidades de gestão, nem o processo de inquérito judicial é meio adequado à formalização de um pedido de informações que, até ao momento de propositura da ação, não foram solicitadas à sociedade ou ao gerente, o que impõe que se afirme que a prestação de tais informações não foi recusada.
Importará ainda, por último, ter em conta que, mesmo nos casos em que a lei expressamente preveja a possibilidade de o sócio requerer inquérito à sociedade e de o tribunal considerar verificada a violação do direito social que deu causa à ação, não se impõe sobre o juiz a obrigação de determinar a realização de inquérito, podendo optar apenas por determinar que seja cumprido o dever violado, quer pela via da prestação da informação negada, quer pela via da imposição da obrigação de conceder acesso aos elementos documentais negada aos sócios. O art. 1049º, n.º1 do Código de Processo Civil prevê essa possibilidade ao estatuir que “o juiz decide se há motivos para proceder ao inquérito, podendo determinar logo que a informação pretendida pelo requerente seja prestada”.
Nestes casos, o processo finda com a decisão de prestação de informação.
Citando o Ac. do TRL de 12-10-2017 (processo n.º 969/09.0TYLSB.L1-6, rel. António Santos, disponível nesta ligação) «(…) Concluindo o Juiz que existem motivos para proceder ao inquérito judicial, pode ele ordenar, imediatamente, a prestação das informações pretendidas pelo requerente ou determinar a efectiva realização do inquérito, para o que designará o perito ou peritos. É que, como é entendimento de António Menezes Cordeiro (n Direito das Sociedades I, Parte Geral, 3ª Edição, Almedina, 2011. págs. 734 e 736), “o inquérito judicial surge como um procedimento complicado e pesado, a usar, somente quando necessário, sendo um esquema destinado a enfrentar problemas bem mais graves do que a não prestação de informação ou a informação inexacta.“».
Na decisão recorrida, considerou-se que “(…) A solicitação de consulta documental que as requerentes dirigiram aos requeridos insere-se globalmente no direito à informação previsto no artigo 214.º, n.º1, do Código das Sociedades Comerciais. O mesmo se diga das informações que pretendem obter com a resposta às questões que enunciam no ponto 1.3 do requerimento inicial. No entanto, quanto a estas, não pode afirmar-se verificar-se por parte dos requeridos qualquer violação do direito à informação previsto no artigo 214º, n.º1, do Código das Sociedades Comerciais, já que, nas cartas que dirigiram à requerida, endereçadas ao requerido, as requerentes não formularam tais questões. Assim sendo, só no que concerne à consulta documental solicitada estão verificados os pressupostos de que depende o inquérito judicial”.
Teremos que concordar com tal conclusão.
Ainda que na sua petição inicial, no ponto I.3, tenham as requerentes assinalado um conjunto de pontos de facto relativos à requerida que importava averiguar, esses pontos não foram objeto de qualquer pedido de informação dirigido à requerida ou ao seu gerente que se possa ter por recusado, pelo que, inexistindo o pressuposto que legalmente justificaria a realização de inquérito, não poderia o mesmo ser determinado.
Ao optar o tribunal recorrido por determinar que sejam exibidos às requerentes para consulta na sede da requerida, no prazo máximo de 30 dias, em data e hora a ajustar com as mesmas, através dos seus mandatários, os elementos cuja consulta havia sido solicitada pelas recorrentes e não facultada pelos recorridos, atuou com inteiro respeito pelas faculdades conferidas por lei – respeitando, aliás, o que foi expressamente peticionado pelas requerentes (ponto I do petiório) -, do mesmo modo que, ao negar a realização de inquérito tendo por objeto a resposta a questões jamais dirigidas aos recorridos e, consequentemente, não abarcadas pela violação do direito à informação, atuou de forma que não merece censura.
Improcede, assim, a pretensão das recorrentes.
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iii. Admissibilidade da ampliação do objeto do inquérito e existência de fundamento para destituição/suspensão do gerente da recorrida
A decisão justificada de não ordenar a realização de inquérito, confirmada nesta sede, prejudica, efetivamente, todas as demais pretensões deduzidas pelas recorrentes, traduzidas na visada ampliação do objeto do inquérito ou na aplicação de medidas cautelares que pressuporiam a realização do mesmo.
Realça-se, mais uma vez, que o inquérito judicial, a ser determinado, sempre teria por objetivo obter a informação negada anteriormente e que é seu pressuposto e objetivo primordial.
A possibilidade de ampliação do objeto do inquérito ou de aplicação de medidas cautelares reclama a prévia existência de fundamento para realização daquele, pelo que, não havendo fundamento que justifique ou imponha a sua realização, terá que ser negada a pretensão das recorrentes.
Conclui-se, assim, pela integral improcedência do recurso interposto.
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V.
Nos termos e fundamentos expostos, acordam os juízes que integram esta secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso de apelação e, em consequência, em confirmar a decisão recorrida.
Custas a cargos das apelantes (art. 527º, n.º1 do Código de Processo Civil).
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Lisboa, 13-05-2025
Ana Rute Costa Pereira
Isabel Brás Fonseca
Nuno Teixeira