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EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
PERÍODO DE CESSÃO
DEVER DE INFORMAÇÃO
CESSAÇÃO
Sumário
Sumário da responsabilidade da relatora, cfr. art. 663º, nº 7 do CPC.: 1. A exoneração do passivo restante corresponde a benefício cujo pedido a lei coloca na exclusiva disponibilidade/vontade do devedor mas, requerendo-o e nele mantendo interesse, onera-o com um conjunto de obrigações erigidas a condições ou requisitos legais para a sua concessão. 2. A ausência de prestação nos autos e/ou ao fiduciário das informações solicitadas ao devedor constitui omissão que, no mínimo, manifesta falta de interesse do devedor em relação ao procedimento destinado à exoneração do passivo restante que requereu, e de falta de lisura e de compromisso compatível com a reeducação subjacente ao princípio do fresh start que informa o dito benefício, o que é sobejamente apto a preencher a negligência grave pressuposta pela gravidade da cessação antecipada do procedimento, tal como seria para a recusa da concessão da exoneração, e consequente definitiva preclusão do perdão do passivo que corporizou a sua situação de insolvência.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
I – Relatório
1. A., casado, nascido em 1969, apresentou-se à insolvência em 07.02.2023, que foi declarada por sentença proferida em 27.02.2023, e deduziu incidente de exoneração do passivo restante, que foi deferido por despacho inicial (de autorização do período de cessão) proferido em 07.07.2023, notificado ao insolvente na sua própria pessoa e através do respetivo mandatário em 10.07.2023, e confirmado por decisão sumária de 10.11.2023 no âmbito do recurso de apelação que dele foi interposto pelo recorrente, tendo por objeto o segmento que fixou o rendimento disponível no montante equivalente a 1 RMMG, acrescido de ¼ e de 70% dos subsídios de férias e de natal auferidos pelo insolvente.
2. Em 03.07.2024 a Sr.ª fiduciária dirigiu comunicação ao insolvente para o endereço eletrónico jlisboaleal@gmail.com solicitando-lhe informação sobre os rendimentos auferidos entre julho de 2023 e junho de 2024, o respetivo NISS, e a senha atualizada de acesso à SS Direta com vista à elaboração do relatório anual, advertindo-o que a falta de envio dos elementos necessários à elaboração desse relatório pode cominar “em multa processual ou mesmo na anulação da sentença de exoneração do passivo restante pelo tribunal.”, com insistência pela mesma via em 08.07.2024.
3. Em 15.07.2024 a Srª. fiduciária apresentou relatório anual sobre o período de cessão informando que em outubro de 2023 remeteu carta ao insolvente, que este não apresentou comprovativo de rendimentos nem respondeu aos pedidos para envio de documentação, que em contacto telefónico conseguido com o insolvente em abril de 2024 este declarou desconhecer o resultado do recurso que interpôs do despacho inicial e que, tendo-o informado, manifestou vontade em reunir com a Srª fiduciária mas não quis agendar data e até ao presente não foi realizada reunião.
4. Em 18 e 23.07.2024 o mandatário do insolvente foi notificado dos requerimentos de 17 e 23.07.2024 dos credores Eos Credit Funding DAC e SD DEBT Portfólios 2, SA requerendo a notificação do insolvente para junção dos comprovativos dos rendimentos sob pena de ser requerida a cessação antecipada do procedimento de exoneração, nada tendo dito ou requerido.
5. Em 22.10.2024 o credor Eos Credit requereu a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante nos termos do art. 243º, nº 1, al. a) alegando violação do art. 239º, nº 4, al. a) e d) do CIRE por falta de junção das informações relevantes, do que o mandatário do insolvente foi notificado em 23.10.2024.
6. Por despacho de 20.11.2024 foi ordenada a notificação do insolvente, com cópia do relatório apresentado, para se pronunciar “relativamente à falta de entrega das quantias determinadas no despacho inicial que deu início ao período de cessão do rendimento disponível, bem como, para prestar(em) as informações relativas à sua situação pessoal e económica, incluindo a morada atualizada, devendo juntar os respetivos comprovativos, sob pena de cessação antecipada do procedimento de exoneração.”, notificação que foi cumprida na pessoa do insolvente e na do respetivo mandatário.
7. Nada tendo sido dito ou requerido, por despacho de 16.01.2025 foi ordenada a notificação do insolvente, fiduciário e credores para se pronunciaram sobre a cessação antecipada do procedimento de exoneração (art. 243º, nº 3 do CIRE), com cópia do relatório apresentado pelo fiduciário.
8. Responderam à notificação a Sr.ª fiduciária e os credores Scalabis-Stc, SA e Eos Credit Funding, Dac pronunciando-se pela cessação antecipada da exoneração. Mais respondeu o insolvente, declarando opor-se ao pretendido por considerar “não ter cometido qualquer irregularidade que leve a tomada da medida proposta.” e que “inexiste motivos para que seja proferido qualquer despacho que não seja da manutenção da exoneração do passivo”.
9. Em 20.02.2025 foi proferida decisão de cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante requerido nos autos pelo insolvente, com os seguintes fundamentos: Tendo em atenção os fundamentos do requerimento de cessação antecipada, encontra-se verificado o requisito enunciado na alínea a) do n.º 1 do art.º 243º do CIRE por violação do disposto no art.º 239º, n.º 4, al. c), que estabelece que durante o período da cessão o devedor fica ainda obrigado a nãoocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira por qualquer título, e a informar o Tribunal e o Fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado. Com efeito, pese embora interpelado pelo fiduciário, bem como pelo Tribunal a prestar informações atualizadas quanto à sua situação socioeconómica e profissional, incluindo o fornecimento de morada atualizada, o devedor nada informou, nem cedeu os rendimentos a que estava obrigado. Além disso, o incidente sempre procederia, em conformidade com o n.º 3 do art.º 243º do CIRE, segundo o qual a exoneração do passivo restante é sempre recusada se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer no prazo que lhe for fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações, o que se verificou no caso em apreço, conforme resulta das notificações que lhe foram dirigidas pelo tribunal.
10. Inconformado, o insolvente apresentou o presente recurso requerendo a revogação daquela decisão. Formulou as seguintes conclusões:
1. A sentença recorrida viola o artº 238º n° 1 alínea d) do CIRE
2. Pois tem de existir cumulativamente três requisitos para que fosse possível proferir tal decisão
3. O prejuízo para os credores consiste na desvantagem económica diversa do simples vencimento de juros, que não são a consequência normal do incumprimento
4. O prejuízo a que se refere 0 art° 238° n° 1 alínea d) deverá corresponder a um prejuízo concreto que, nas concretas circunstâncias do caso, tenha sido efectivamente sofrido pelos credores em consequência do atraso à apresentação a insolvência
5. Cabia aos credores, o dever de virem reclamar tais prejuízos o que não aconteceu
6. Nem fizeram efectiva prova desse prejuízo
7. Quanto ao terceiro requisito, existe omissão pois o credor tentou por todas as formas melhorar a sua vida, o que infelizmente não conseguiu
8. Qualquer dos três requisitos não foram devidamente valorados e se o fossem a decisão seria certamente diferente
9. Alem de que a insolvência já foi decretada a mais de 6 anos”tr -
10. O insolvente não pode com 0 que não tem
II – Objeto do recurso
Nos termos dos arts. 635º, nº 5 e 639º, nº 1 e 3, do Código de Processo Civil, o objeto do recurso, que incide sobre o mérito da crítica que vem dirigida à decisão recorrida, é balizado pelo objeto do processo, tal qual como o mesmo surge configurado nos autos pelas partes ou é legalmente tipificado e as concretas questões nele suscitadas, e destina-se a reapreciar e, se for o caso, a revogar ou a modificar decisões proferidas, e não a analisar e a criar soluções sobre questões que não foram sujeitas à apreciação do tribunal a quo e que, por isso, se apresentam como novas, ficando vedado, em sede de recurso, a apreciação de novos fundamentos de sustentação do pedido ou da defesa. Acresce que o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas das questões de facto ou de direito suscitadas que, contidas nos elementos da causa, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, sendo livre na aplicação do direito (cfr. art. 5º, nº 2 do CPC).
Nesta senda assinala-se a manifesta desconexão lógico-jurídica entre as alegações de recurso e o objeto da decisão recorrida posto que apenas o (parco) teor da conclusão 10, em conexão lógica tão só com os arts. 28 e 29 da motivação[1], aparenta respeitar ao objeto da mesma – cessação antecipada do incidente de exoneração – e às questões que a fundamentam – falta de prestação de informação e de cedência de rendimentos pelo insolvente. As demais conclusões apontam para questões jurídicas atinentes com os pressupostos de rejeição (inicial) do incidente de exoneração do passivo restante nos termos previstos no art. 238º, nº 1, al. d)[2] do CIRE citado nas alegações – oportunidade da temporal da apresentação à insolvência face à data em que a mesma se verificou e prejuízo para os credores decorrente da apresentação tardia -, que não correspondem ao objeto nem aos fundamentos de facto e de direito da decisão recorrida, razão pela qual não são passíveis de ser consideradas na apreciação da pretensão recursiva por corresponderem a questões estranhas ao objeto da decisão recorrida e que, por isso, não têm a virtualidade de contrariar os respetivos fundamentos e suportar a sua modificação, anulação ou revogação.
Em conformidade, considerando o teor da decisão recorrida e a referida parte prestável das alegações e conclusões de recurso, cumpre apreciar se, como considerou a decisão recorrida, existe fundamento legal para a cessação antecipada do incidente de exoneração do passivo restante, isto é, antes do termo do período legal de cessão do rendimento disponível autorizado pelo despacho inicial proferido em 10.07.2023.
III – Fundamentação
A) De facto
O tribunal recorrido elencou e considerou os seguintes factos, que sintetizam as incidências processuais acima relatadas:
- Por requerimento apresentado em 15.07.2024, a fiduciária apresentou o relatório referente ao primeiro ano do período de cessão e comunicou que o devedor não apresentou qualquer comprovativo de rendimentos, nem obteve resposta aos pedidos para envio de documentação;
- No mesmo requerimento a fiduciária fez constar que: “Contudo da conversa telefónica conseguida pela fiduciária no final do mês de Abril de 2024, o insolvente foi informado da decisão de recurso pois estava convicto que não havia ainda a resposta ao recurso; manifestou vontade em reunir no escritório da Fiduciaria porém não quis agendar data pelo que até ao presente não se realizou tal reunião, mas informou que se encontrava em graves dificuldades económicas porque a cônjuge estava insolvente noutro processo e tinham de fazer depósitos mensais elevados para a conta da massa insolvente da mulher”
- Na sequência de despacho proferido a 20.11.2024, o devedor foi notificado para pronunciar(em)-se relativamente à falta de entrega das quantias determinadas no despacho inicial que deu início ao período de cessão do rendimento disponível, bem como, para prestar(em) as informações relativas à sua situação pessoal e económica, incluindo a morada atualizada, devendo juntar os respetivos comprovativos, sob pena de cessação antecipada do procedimento de exoneração;
- O devedor não respondeu à notificação realizada;
Procedeu-se à audição dos interessados quanto à cessação antecipada do benefício requerido, tendo os credores Scalabis, EOS proposto a cessação antecipada do procedimento.
O devedor alegou tabelarmente não existirem motivos para cessação.
Não requereu nem juntou quaisquer documentos que impusessem alteração da obrigação de cessão fixada.
B) De Direito
Numa breve incursão pelo instituto da exoneração do passivo restante, cumpre anotar que constitui este o facto determinante da iniciativa da apresentação à insolvência pelo devedor singular (senão em todos pelo menos na grande maioria dos casos): alcançar a exoneração do passivo restante, libertando-se através deste benefício legal de um passivo que com toda a probabilidade o acompanharia ao longo de grande parte, senão de toda a sua vida, com os consequentes e recorrentes constrangimentos, no imediato logo ao nível das disponibilidades financeiras e, no mediato ao nível da sua paz pessoal, familiar, profissional, com o consequente reflexo no coletivo social ao nível da integração sócio-económico-profissional do indivíduo e respetivo agregado familiar. Deste concreto instituto decorre que a especificidade do processo de insolvência singular - para além da natureza da pessoa jurídica que dele é sujeito passivo (que, contrariamente ao que sucede com as pessoas coletivas, não se ‘extingue’ com o encerramento do processo) -, reside no referido benefício legal que através da insolvência o devedor pode ver legalmente reconhecido, traduzido na extinção ou perdão legal do seu serviço de dívida através da concessão da exoneração do passivo que restar em dívida depois de esgotado o produto da liquidação e decorrido que seja o período de cessão do rendimento disponível (também designado período de ‘provação’), durante o qual o devedor fica adstrito ao cumprimento de determinadas obrigações, previstas pelo art. 239º nº4 do CIE, sendo as mais relevantes a cessão/entrega, durante o período de três anos, dos rendimentos disponíveis, e a obrigação de prestar as informações, desde logo, as necessárias ao apuramento dos rendimentos disponíveis, que são em cada momento determinados por contraposição entre os rendimentos auferidos e o montante inicialmente fixado nos autos como o necessário à subsistência minimamente condigna do devedor e do respetivo agregado familiar. A par com a referida finalidade probatória do período de cessão e das obrigações a que na sua vigência o devedor fica adstrito, no art 241º a lei mais prevê a afetação dos rendimentos que venham a ser objeto de cessão: à cabeça, o pagamento das custas em dívida da insolvência, os reembolsos devidos pelo adiantamento de pagamentos pelos cofres, e a remuneração do Fiduciário; o remanescente é destinado à distribuição pelos credores da insolvência, caso subsista para o efeito.
O propósito de reabilitação do devedor como elemento teleológico informador da interpretação de todo o regime legal do instituto da exoneração do passivo restante não prescinde e, por isso, não desonera o devedor de demonstrar que é merecedor da oportunidade que a exoneração do passivo restante lhe concede, através do perdão de dívidas e do consequente sacrifício dos interesses dos seus credores. Assumindo o evidente conflito de interesses entre o devedor e os seus credores, não obstante o propósito protetor do devedor numa lógica de segunda oportunidade – o fresh start - como elemento teleológico informador da interpretação de todo o regime legal deste instituto, o nosso legislador assumiu que o devedor não deve ser exonerado em qualquer circunstância e, por isso, e também para acautelar o recurso abusivo a esse instituto, não prescindiu da imposição de um período probatório (atualmente e desde 11 de abril de 2022 com a duração de três anos[3]) durante o qual, e por referência às obrigações[4] previstas no art. 239º, nº 4, o devedor deve revelar ser merecedor da oportunidade que a exoneração do passivo restante lhe concede, através do perdão de dívidas e do consequente sacrifício dos interesses dos seus credores – o earned start – o que traduz uma solução de compromisso na gestão do conflito dos interesses em evidente antítese no instituto da exoneração do passivo restante: por um lado, o interesse do devedor em libertar-se das suas dívidas, por outro lado o interesse dos credores na satisfação dos correspetivos créditos. Nesta dicotomia, em bom rigor as obrigações previstas pelo art. 239º, nº 4 só o são no restrito contexto do período de cessão porque, por referência à exoneração do passivo restante requerida pelo devedor, mais se enquadram na figura do ónus associado ou emergente de um direito, enquanto requisito ou exigência a cumprir (pelo devedor) com vista à obtenção de um resultado em seu benefício e sob pena de o mesmo não lhe ser concedido. Benefício/sacrifício que, nas palavras de Cláudia Oliveira Martins[5], justifica afirmar que o processo de insolvência, como primeiro pressuposto para o pedido de exoneração do passivo restante, deixou de ser o processo dos credores para passar a ser o processo dos devedores.
Em síntese, a exoneração do passivo restante corresponde a benefício cujo pedido a lei coloca na exclusiva disponibilidade/vontade do devedor mas, requerendo-o e nele mantendo interesse, onera-o com um conjunto de obrigações erigidas a condições ou requisitos legais para a sua concessão. Com o acento tónico na finalidade que justifica a exoneração do passivo restante – reabilitação do devedor em benefício de uma visão sistémica da economia, no ciclo e de acordo com os papéis dos que nela intervêm -, é na ponderação da iniciativa e interesses do devedor, por um lado, e dos direitos dos credores, por outro, que devem ser interpretadas as normas reguladoras do incidente e a natureza ou âmbito das prorrogativas e obrigações que dele decorrem para os devedores, e resolver os litígios que surjam no seu âmbito.
No contexto do período probatório do incidente de exoneração do passivo restante, dispõe o art. 239º, nº 4 que Durante o período da cessão, o devedor fica ainda obrigado a: a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado; b) Exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto; c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão; d) Informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respectiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego; e) Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores.
A par com a obrigação de entrega do rendimento disponível, durante o período de cessão o devedor beneficia de proteção perante os credores da insolvência na medida em que, tal qual como ocorre até ao encerramento da insolvência, estes não podem executar bens do devedor para satisfazerem créditos sobre a insolvência (art. 242º, n.º 1 do CIRE). Justifica-se por isso que, pelo menos no termo de cada ano do período de cessão, seja verificado o (in)cumprimento, pelo insolvente, dos ónus que sobre si recaem no período já decorrido para, se for o caso, determinar a sua cessação antes do termo legal previsto para extinguir as limitações que da sua pendência decorrem para o exercício dos direitos dos credores sobre o insolvente, destacando-se no caso a obrigação de informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado, cuja violação, conforme se extrai do confronto do art. 243º, nº 3, segunda parte do CIRE, constitui fundamento bastante para a cessação antecipada ou recusa da exoneração do passivo restante, atenta a evidente e direta instrumentalidade do ónus de informação na sindicância do cumprimento do ónus de entrega dos rendimentos disponíveis durante o período de cessão.
Assim, em correlação com aqueles deveres, do art. 243º, nº 1 do CIRE constam previstos os fundamentos da cessação antecipada do procedimento de exoneração. A saber, quando: a) O devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência; b) Se apure a existência de alguma das circunstâncias referidas nas alíneas b), e) e f) do n.º 1 do artigo 238.º, se apenas tiver sido conhecida pelo requerente após o despacho inicial ou for de verificação superveniente; c) A decisão do incidente de qualificação da insolvência tiver concluído pela existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência.
Acrescenta o nº 3 daquele artigo que Quando o requerimento se baseie nas alíneas a) e b) do n.º 1, o juiz deve ouvir o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência antes de decidir a questão; a exoneração é sempre recusada se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer no prazo que lhe seja fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações, ou, devidamente convocado, faltar injustificadamente à audiência em que deveria prestá-las.[6]
Sintetizando, uma vez autorizado o período de cessão, nos termos do art. 243º, nº 1 são requisitos da sua cessação antecipada (e, cfr. art. 244º, nº 2, da recusa da concessão da exoneração do passivo restante), i) a violação das obrigações previstas no art. 239º do CIRE[7], ii) com dolo ou culpa grave, iii) o prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência, iv) e o nexo de causalidade entre a conduta dolosa ou gravemente negligente do devedor e o dano para a satisfação dos credores da insolvência.
Resulta da decisão recorrida que a cessação antecipada do período de cessão por ela decretado vem factualmente suportada no facto de o devedor não ter prestado as informações que lhe foram solicitadas pela Sr.ª fiduciária e pelo tribunal quanto à sua situação sócio-económica, e legalmente fundamentada na al. a) do nº 1 do art. 243º por referência à obrigação de “[n]ão ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado”. Da conjugação deste último segmento com a inicial transcrição da al. a) do nº 4 do art. 239º é possível extrair que a decisão recorrida cessou o incidente de exoneração por ter julgado verificada a violação do dever de informação durante o período de cessão, correspondente ao teor da al. a) do nº 4 do art. 239º, pelo que só por lapso de simpatia, que manifestamente decorre do contexto da decisão, nela foi indicada a al. c) em vez da referida al. a) do nº 4 do art. 239º.
Julgamento que se confirma.
Em causa nos presentes autos está o fundamento previsto pelo art. 243º, nº 1, al. a) por referência à obrigação de informação imposta pelo art. 239º, nº 4, al. a), assentando a decisão recorrida na violação dessa obrigação por ausência de resposta do devedor às notificações que lhe foram dirigidas pelo tribunal e pelo fiduciário para, junto deste, comprovar a respetiva situação laboral e os rendimentos por si auferidos. Efetivamente, os fundamentos de facto supra relatados e considerados pela decisão recorrida desembocam objetiva e manifestamente na violação do dever de informação por ela considerado e previsto pelo art. 239º, nº 1, al a), e já não na violação do dever de entrega dos rendimentos disponíveis, que pressupõe sejam conhecidos, o que não é o caso, votando à irrelevância a alegação, contida na conclusão 10 das alegações de recurso, de a falta de entrega de rendimentos se ter devido ao facto de o insolvente os não ter.
A decisão recorrida mais considerou o facto de o insolvente não ter alegado um qualquer motivo razoável para a falta de prestação dos elementos que lhe foram solicitados (para verificação dos rendimentos por si auferidos e apuramento, se fosse o caso, dos que fossem objeto de cessão) e o facto de, nos termos do art. 243º, nº 3, tal conduta determinar sempre a recusa da exoneração do passivo. O que bem se compreende na medida em que a ausência de prestação das informações que lhe foram solicitadas e das que, de mote próprio, deveria ter prestado (atinentes com os rendimentos auferidos em cada um dos três anos do período de cessão decorridos)[8], representam um desvalor de ação concretizador, no mínimo, de negligência grave, pois que manifestam a total desconsideração a que o recorrente votou o procedimento que em seu benefício tomou a iniciativa de requerer e os ónus que dele para si emergiram, em manifesta desconformidade com o dever de cuidado a que estava obrigado, sendo certo que não coloca em causa que tinha conhecimento do dever de informação e de colaboração que sobre si recaíam, nem em momento algum – sequer quando no cumprimento do art. 244º foi notificado para se pronunciar previamente à prolação da decisão recorrida -, alegou qualquer impedimento suscetível de justificar o incumprimento desse ónus, mais concretamente, de prestar as informações que lhe foram solicitadas, atinentes com a sua situação profissional ou perante a segurança social e o centro de emprego, e com os rendimentos que auferiu durante os dois últimos anos do período de cessão, quer na eventual situação de desempregado, quer na situação oposta de exercício de atividade profissional. Omissão que, no mínimo, manifesta falta de interesse do devedor em relação ao procedimento destinado à exoneração do passivo restante que requereu, e de falta de lisura e de compromisso compatível com a reeducação subjacente ao princípio do fresh start que informa o instituto da exoneração do passivo restante, o que é sobejamente apto a preencher a negligência grave pressuposta pela gravidade da consequência recusa da concessão da exoneração e consequente definitiva preclusão, do perdão do passivo que corporizou a sua situação de insolvência.
Ainda que por referência ao art. 238º, nº 1, al. d) do CIRE, alega o recorrente que não causou qualquer prejuízo aos credores, conclusão que assenta na alegada – mas, conforme já referido, não comprovada - ausência de rendimentos disponíveis e suscetíveis de objeto da obrigação de cessão.
Conforme já acima anotado e consta realçado por acórdão de 14.07.2020 desta Relação e secção[9], “o dever de informação sobre os rendimentos é absolutamente crucial por ser instrumental à determinação do rendimento a ceder e à medida da satisfação dos credores”. Daí que, conforme defendem Luis Carvalho Fernandes e João Labareda[10], haja “casos em que o juiz deve sempre recusar a exoneração. Assim o impõe a segunda parte do nº 3 [do art. 243º], segundo qual deve haver recusa quando, sem invocar motivo razoável: a) o devedor não forneça, no prazo que lhe for fixado, informações que comprovem que cumpriu as suas obrigações[11];b) o devedor, tendo sido para o efeito devidamente convocado, falte à audiência em que devia prestar essas informações.[12]No mesmo sentido, acórdão desta Relação e secção de 23.02.2021[13]: I. Para o preenchimento da previsão do art.º 243º, n.º 1, a) do CIRE é necessário, para além da violação dos deveres aí previstos por parte do insolvente, que se verifique em concreto um prejuízo para os credores da insolvência e da omissão de informações resulta que não se pode avaliar da existência desse prejuízo.//II - Mas já o mesmo não se pode dizer quanto à previsão do art.º 243º, n.º 3, parte final do CIRE, que se julga consistir na previsão pelo julgador das consequências aplicáveis a casos como o dos autos, em que há omissão de informação, sem que seja possível enquadrar a mesma nas previsões anteriores, precisamente por não ser possível apurar do concreto prejuízo para os credores.//III - A não ser assim, resultaria que a omissão de informações por parte dos insolventes redundaria num benefício para os mesmos – bastava nada dizer ou informar (sendo este um ónus que a Lei impõe a seu cargo, como contrapartida do benefício que supõe a exoneração do passivo restante) e, já agora, nenhum rendimento entregar, para que não se pudesse concluir pela verificação de todos os requisitos para a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante, uma vez que não seria possível averiguar do concreto prejuízo para os credores. E ainda acórdão de 22.06.2021[14], sumariado nos seguintes termos: 1.Tendo o devedor sido notificado várias vezes para prestar as informações previstas no artigo 239.º, n.º 4, alínea a), do CIRE, por remissão do artigo 243.º, n.º 1, alínea a), do mesmo diploma legal, e nada tendo dito ou justificado, tal comportamento revela um elevado grau de imprudência e total desinteresse pelo cumprimento das obrigações a que estava adstrito, pelo que, mesmo que não seja uma conduta dolosa, é violadora de forma gravemente negligente das referidas obrigações.//2. Trata-se de comportamento ilícito que tem como última consequência a impossibilidade de apuramento da sua situação económica, em prejuízo do interesse dos credores da insolvência, preenchendo, desse modo, a previsão do n.º 3, parte final, do artigo 243.º do CIRE, justificando-se, consequentemente, a recusa da exoneração do passivo restante.
Termos em que se conclui pelo acerto da decisão recorrida, e consequente improcedência da apelação.
IV – Decisão
Em conformidade com o exposto, julga-se a apelação improcedente, com consequente confirmação e manutenção da decisão recorrida.
Tendo decaído na pretensão recursiva, as custas da apelação são a cargo do recorrente (cfr. art. 527º, nº 1 e 2 do CPC).
Em 13.05.2025
Amélia Sofia Rebelo
Nuno Teixeira
Paula Cardoso
_______________________________________________________ [1] Com o seguinte teor:
“28. E não pode ser recusado a exoneração por não ter entregue valores a massa ou não ter entregue as declarações anuais de rendimentos 29. Acontece que o insolvente não tendo rendimentos não entregou nada porque o não tinha”. [2] Prevê que O pedido de exoneração é liminarmente indeferido se: (…) d) O devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica; [3] Alteração introduzida pela Lei nº 9/2022 de 11.01 ao art. 239º, nº 2 do CIRE. [4] No rigor jurídico correspondem a ónus posto que a sua inobservância não implica qualquer sanção ou perda para o devedor, mas ‘apenas’ a ausência de ‘ganho’, no caso, a não obtenção de um benefício, consubstanciado no referido excecional perdão de dívidas. [5] In Revista de Direito da Insolvência nº 0, Almedina 2016, p. 215. [6] Sobre este específico fundamento de recusa da exoneração, entre outros, acórdão desta Relação de 24.01.2023. [7] Do art. 243º, nº 2 decorre que como fundamento de recusa estão excluídos os factos isolados (não reiterados ou continuados) sobre os quais tenha decorrido mais de seis meses à data em que são invocados pelo interessado que a requeira (prazo introduzido pela Lei nº9/2022 de 11.01 em substituição do prazo de um ano da redação original do preceito). [8] Anota-se que o despacho inicial de autorização do período de cessão foi notificado ao recorrente também na sua pessoa, e dele constava expressamente que durante o período de cessão estava obrigado a Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado; e a Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão; [9] Proc. 2049/14.7TBSXL.L2, relatado por Fátima Reis Silva e subscrito pela ora relatora na qualidade de 2ª adjunta, disponível na página da dgsi, como todos os demais citados. [10] Estudos sobre a Insolvência, Quid Iuris, 2009, p. 290. [11] Nas quais se integra o dever de informação sobre a sua situação profissional e rendimentos que aufere, pois só mediante tais informações é possível aferir, e comprovar, se o devedor dispõe de rendimentos objeto de cessão e, em ultima análise, se cumpre ou não a obrigação de entrega dos rendimentos disponíveis. [12] No mesmo sentido, Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, 2015, p. 557, Pedro Pidwell, Revista de Direito da insolvência, nº0, p. 207, e Leticia Marques, tese de doutoramento, disponível em https://revistas.ulusofona.pt/index.php/rfdulp/article/view/6308. Na jurisprudência, acórdãos da RP de 24.09.2020, processos nº 2160/15.78STS.P1 e nº 755/18.6T8AMT-B.P1 (aduzindo-se neste que na situação prevista no art. 243º, nº 3 do CIRE não se exige que a omissão de prestação de informações determine prejuízo para a satisfação dos direitos dos credores, constituindo a recusa de exoneração uma sanção para o devedor inadimplente.), de 12.10.2020, proc. nº 192/17.0T8VNG-A.P1, e acórdão da RC de 08.05.2018, proc. nº 110/14.7TBSPS.C1. [13] Proc. 911/15.9T8BRR.L1, relatado por Vera Antunes e subscrito pela ora relatora na qualidade de 1ª adjunta. [14] Proc. 12104/18.9T8SNT.L1, relatado por Adelaide Domingues e subscrito pela ora relatora na qualidade de 2ª adjunta.