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DIREITO DE REGRESSO
ESTADO PORTUGUÊS
COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
Sumário
(elaborado pela Relatora, nos termos do artigo 663, n.º 7, do Código de Processo Civil) I - Alicerçando-se o exercício do direito de regresso por parte do Estado Português no disposto no art.º 2º, n.º 2, do DL 48051, de 21.11.1967, vigente à data da prática dos factos, são materialmente competentes para conhecer da causa os Tribunais Administrativos e não os Tribunais Comuns, por força do disposto no art.º 4º, n.º 1, g), do ETAF.
Texto Integral
Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. Relatório:
O Estado Português (Ministério da Defesa Nacional), representado pelo Ministério Público, nos termos dos artigos 4.º, n.º 1, al. b), e 9.º, n.º 1, al. a), da Lei 68/2019 de 27/8 e art.º 24.º, n.º 1, do CPC, veio intentar a presente ação declarativa de processo comum contra AA (…), peticionando que o Réu seja condenado a pagar-lhe a quantia de € 369.634,65, acrescida de juros vencidos e vincendos, desde a data do pagamento efetuado pelo Autor até integral pagamento.
Para tanto e em síntese, alega que no âmbito do processo comum (Tribunal Singular) n.º (…) do Juízo Local Criminal de Almada – J1, no qual foi deduzido pedido de indemnização cível, foi proferida sentença em 01.09.2016, já transitada em julgado, que condenou o aqui Réu:
- Como autor material de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo art.º 148º , n.º 1 e 3, do Cód. Penal, com referência ao art.º 144º, al. a) e b), do mesmo diploma legal, na pena de 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por um período de 1 ano, subordinada ao cumprimento do pagamento, dentro desse prazo, de € 2.500,00 ao demandante BB (…), por conta de parte da indemnização que lhe foi atribuída, por ter condições económicas para, nessa proporção, o fazer dentro daquele prazo de 1 ano, devendo fazer prova nos autos, logo que decorrido esse prazo, de que cumpriu o dever a que ficou condicionada a suspensão da pena de prisão (arts. 50.º, n.ºs 1, 2, 5 e 51.º, n.º 1, al. a), ambos do Cód. Penal);
- A pagar ao demandante BB (…) a quantia de € 100.000,00 a título de danos não patrimoniais;
- A pagar ao demandante BB (…) a indemnização no montante de € 51,09 por mês, contados desde 01.10.2004 e até que o demandante necessite de fazer tal despesa com a aquisição do medicamento Testogel;
- A pagar ao demandante BB (…) a indemnização no montante de € 250.000,00, correspondente à perda de rendimentos e perda de aptidão para os auferir, a que serão deduzidas todas aquelas quantias que o demandante já recebeu ou venha a receber a título de pensão por invalidez, a concretizar mediante simples cálculo aritmético, ficando o demandado obrigado a pagar apenas a diferença entre esses valores, os quais serão a liquidar em execução de sentença, nos termos do art.º 609º, n.º 2, do mesmo diploma legal;
- Condenar o demandado AA (…) a pagar ao demandante BB (…) os juros de mora que incidirem sobre aquelas quantias, às taxas legais em vigor e que resultam da lei, contados desde a data da notificação para contestar o pedido cível até integral pagamento (art.ºs 559º, 805º, n.º 3, do CC e 78º do Código de Processo Penal).
Na sequência do recurso intentado, o Tribunal da Relação de Lisboa, por Acórdão de 07.02.2018, condenou o Estado, solidariamente com o Réu, a ressarcir os danos sofridos pelo assistente BB, nos exatos termos fixados pela 1ª instância.
E, na sequência do recurso intentado para o Supremo Tribunal de Justiça, por Acórdão de 05.09.2018 foi mantida a condenação solidária do Estado, sem prejuízo de eventual direito de regresso.
Em consequência direta e necessária dos factos ilícitos na origem da condenação do Réu, o Estado pagou, por transferência bancária de 05.04.2019, a quantia de € 369.634,65 a BB (…).
O Réu apesar de notificado para pagar tal quantia ao Estado, nada pagou até à data.
As despesas indicadas e suportadas pelo Estado Português ficaram unicamente a dever-se à atuação ilícita do réu, que lhes deu origem e que foram, direta e necessariamente, causa do prejuízo do Estado Português, pelo que lhe assiste direito de regresso sobre o mesmo.
Alicerça esse seu direito de regresso no disposto no art.º 2º, n.º 2, do DL 48051, de 21.11.1967, vigente à data da prática dos factos.
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Citado, o Réu deduziu contestação.
Invocou a exceção dilatória de incompetência em razão da matéria, considerando que a jurisdição competente para conhecer do presente litígio não é a cível, mas sim a administrativa.
No mais, refere que a ação terá de improceder, porquanto não assiste ao Estado o direito de regresso que invoca. Caso assim não se entenda, haverá sempre responsabilidade solidária pelo ressarcimento dos danos, presumindo-se as respetivas culpas iguais, conforme resulta do n.º 2 do art.º 497º do Código Civil, ex vi do n.º 2, do art.º 4º do DL n.º 48.051.
Deduziu ainda pedido reconvencional, no pressuposto de o Estado ser responsável pelo ressarcimento dos danos, nos termos do qual peticiona que se condene o Autor a pagar-lhe a quantia de € 2.500,00, acrescida dos juros de mora que se vencerem desde a data em que o mesmo for notificado da reconvenção, com as legais consequências.
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O Autor apresentou réplica, arguindo a exceção de caso julgado material e pugnando pela improcedência o pedido reconvencional.
Respondeu também à exceção de incompetência material deduzida pelo Réu, defendendo a competência da jurisdição cível para julgar a presente ação.
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Por seu lado, o Réu/Reconvinte respondeu à exceção de caso julgado material deduzida pelo Autor/Reconvindo, referindo que a mesma não se verifica.
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Foi proferido despacho que determinou a notificação das partes, informando-as sobre a intenção do Tribunal a quo de conhecer do mérito da ação, concedendo-lhes para o efeito a possibilidade de apresentarem alegações por escrito, o que fizeram.
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Com a anuência das partes foi dispensada a realização de audiência prévia.
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Foi proferido saneador – sentença, no âmbito do qual o Tribunal a quo:
- conheceu da exceção de incompetência material invocada pelo Réu, decidindo:
“Pelo exposto, julgo improcedente a exceção de incompetência material em apreço”.
- conheceu do mérito da causa, considerando prejudicada a apreciação do pedido reconvencional e decidindo:
“Pelo exposto, julga-se a presente ação parcialmente procedente, por parcialmente provada, e, consequentemente, condeno o Réu, AA (…), a pagar ao Autor, Estado Português, a quantia de € 261.203,14 (duzentos e sessenta e um mil duzentos e três euros e catorze cêntimos), a título de capital, e € 108.431,51 (cento e oito mil quatrocentos e trinta e um euros e cinquenta e um cêntimos), a título de juros, acrescida de juros moratórios vencidos, contados desde a citação, e vincendos, até integral pagamento, sobre aquele montante”.
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Não se conformando com essas duas decisões, o Réu delas veio recorrer, formulando as seguintes conclusões:
“1. A jurisdição materialmente competente para conhecer do presente litígio é a administrativa, e não a cível; 2. O exercício do direito de regresso por parte do Estado relativamente a um seu servidor é uma questão de natureza administrativa, da competência direta dos tribunais administrativos e, por consequência, excluída da jurisdição dos tribunais comuns; 3. O Juízo Central Cível de Almada da Comarca de Lisboa carece de competência em razão da matéria para apreciar e conhecer do mérito da presente ação de regresso, sendo competente para esse efeito a jurisdição administrativa, nomeadamente o Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada; 4. Verifica-se a exceção dilatória de incompetência absoluta, em razão da matéria, pelo que o R. deveria ter sido absolvido da instância, atento o disposto nos arts. 96º, al. a), 97º, 99º, nº 1, 278º, nº 1, al. a), 576º, nº 2, e 577º, al. a), todos do CPC; 5. Ao ter decidido em contrário, não absolvendo o R. da instância, e ao ter declarado a competência dos Tribunais Comuns para apreciar e julgar a presente ação de regresso, o Tribunal a quo incorreu num erro de julgamento em matéria de direito, por errada interpretação e aplicação das sobreditas normas e, bem assim, dos arts. 4º, nº 1, al. g), do ETAF, e 37º, nº 1, al. k), do CPTA.; 6. Não se mostram verificados os pressupostos de que depende a imputação da responsabilidade exclusiva do R. pelo pagamento / reembolso do valor total da indemnização satisfeita pelo Estado ao Demandante Cível; 7. A circunstância de o R. ter sido criminal, civil e disciplinarmente condenado com base nos factos apurados no processo nº (…) não só não exclui por si só a responsabilidade do A. no que à vertente civil diz respeito, como não consagra inapelavelmente a existência do direito de regresso dele face ao R.; 8. O Acórdão do STJ de 5.SET.2018, que decidiu a causa em definitivo, que não foi corretamente interpretado pelo Tribunal a quo, porquanto não dá o direito de regresso do A. como um dado adquirido, admitindo-o apenas como eventual, e nunca numa perspetiva de responsabilização exclusiva do R.; 9. O Acórdão afirmou expressamente a responsabilidade do Estado, ao abrigo do nº 1 do art.º 2º do Dec.-Lei nº 48.051, de 21.NOV.1967, em vigor à data dos factos, tendo firmado que o facto ilícito danoso revestiu um cariz funcional, e não pessoal, e se verificou em circunstâncias de ambiência funcional militar, porque ocorreu no exercício de funções militares, em instalações militares, com observância da hierarquia militar e no decurso do cumprimento de uma ordem de serviço, que considerou ter efetivamente existido; 10. Face ao decidido nesse Acórdão, o Estado Português jamais poderia ser completamente subtraído de qualquer responsabilidade e o direito de regresso abranger a totalidade da indemnização que foi paga ao lesado, como erradamente fez o Tribunal a quo, sob pena de violar os efeitos do caso julgado material por ele formado; 11. Ao absolver e exonerar o Estado por via indireta de um encargo que o Acórdão do STJ expressamente lhe cometeu, e, bem assim, ao concretizar também por via indireta a responsabilidade não funcional, pessoal e exclusiva do servidor público, o Tribunal a quo violou os efeitos do caso julgado material formado pelo referido aresto, derrogou o enquadramento da situação feito por este Tribunal Superior na previsão do nº 1 do art.º 2º do Dec.-Lei nº 48.051, com a consequente violação dessa disposição legal, incorrendo assim num erro de julgamento em matéria de Direito; 12. O nº 2 do art.º 2º do Dec.-Lei nº 48.051 determina que apenas existe direito de regresso do Estado sobre os seus servidores por actos ilícitos culposamente praticados por eles relacionados com o exercício de funções e que causem danos a terceiros “se estes houverem procedido com diligência ou zelo manifestamente inferiores àqueles a que se achavam obrigados em razão do cargo”; 13. Nos casos em que a falta de diligência ou zelo do agente culpado pela ocorrência dos danos não seja – ou não possa ser – considerada como tendo sido manifestamente inferior àquilo a que estava obrigado face ao cargo e/ou às funções por si exercidas, a responsabilidade pelo ressarcimento desses danos deverá ser assumida em exclusivo pelo Estado, sem haver lugar a direito de regresso por parte deste; 14. A existência ou não de direito de regresso não depende da gravidade dos danos, mas sim da gravidade da culpa da conduta do agente, sendo que uma conduta gravemente culposa pode causar ao lesado apenas um dano leve ou pouco relevante, havendo ainda assim lugar a direito de regresso, enquanto uma conduta levemente culposa levemente negligente pode ser causa da ocorrência de danos graves, sem que isso dê lugar à existência de direito de regresso por parte do Estado; 15. Não obstante as consequências e os danos causados pelo ato do R. terem sido de grande gravidade, tal não implica que a culpa / negligência inerente a esse ato tenha forçosamente de ser qualificada como grave, in casu para efeitos de direito de regresso; 16. A negligência da conduta do R. não pode ser qualificada como consciente, já que isso implicaria que o mesmo tivesse previsto e representado a possibilidade de vir efetivamente a disparar o revólver e atingir o lesado, mas acreditando que tal não sucederia, pelo que terá necessariamente de ser qualificada como inconsciente, por o R. nem sequer ter tido a perceção de que aquele desfecho, ainda que conjeturável, pudesse vir a ocorrer, e chegado a representar minimamente a possibilidade de causar quaisquer danos, nomeadamente no infeliz lesado; 17. Perante a distinção entre culpa grave, culpa leve e culpa levíssima, a culpa atinente à atuação do R. não poderá deixar de ser qualificada como leve; 18. A apreciação da “culpa”, por recurso ao critério da diligência de um bom pai de família em função das circunstâncias do caso, estabelecido no nº 2 do art.º 487º do Código Civil, ex vi nº 1 do art.º 4º do Dec.-Lei nº 48.051, adaptada à responsabilidade civil administrativa por factos ilícitos, significa “que não se pede ao agente administrativo um comportamento muito exigente em termos de zelo e diligência no desempenho das suas funções, mas tão-somente pautado pelo de um homem médio (…)”, e se reconduz à “diligência exigível a um funcionário ou agente típico, isto é, respeitador da lei e dos regulamentos e das leges artis aplicáveis aos atos ou operações materiais que tem o dever de praticar”; 19. Para que o R. pudesse vir a ser responsabilizado em sede de direito de regresso, teria o A. de demonstrar que a atuação ilícita daquele revelou uma diligência e um zelo manifestamente inferiores àqueles a que estava obrigado, de forma que a culpa inerente a essa atuação pudesse vir a ser qualificada como grave, o que não foi o caso; 20. A conduta concreta relativamente à qual a falta de diligência e zelo terá de ser particularmente aferida, conforme sublinha o Acórdão de STJ de 5.SET.2018, é a que decorreu entre o momento em que o R. se encontrava a manusear a sua arma pessoal, a falar com a testemunha CC (…), e o momento em que solicitou ajuda médica para o lesado, imediatamente após este ter sido inadvertidamente atingido pelo disparo da arma; 21. O entendimento sufragado pelo Tribunal a quo, de que o R. atuou com uma diligência e zelo manifestamente inferiores aos que lhe eram exigidos em razão da sua condição e funções militares carece de fundamento, pois a culpa do R. não deve ser qualificada como grave face às considerações supra expostas; 22. O caso sub judice não se enquadra nas situações em que, face ao disposto no nº 2 do art.º 2º do Dec.-Lei nº 48.051, assiste ao Estado direito de regresso, caber-lhe-á a responsabilidade exclusiva pelo ressarcimento dos danos sofridos pelo lesado, com a consequente inexistência de responsabilidade indemnizatória da parte do R.; 23. O R. detinha a formação necessária e estava perfeitamente habilitado para o manuseamento de armas de fogo em condições de segurança, tendo o disparo sido inadvertido e acidental; 24. As medidas concretas das penas que lhe foram aplicadas no processo-crime – 6 (seis) de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 (um) ano – e no processo disciplinar – 5 (cinco) dias de suspensão de serviço – corresponderam aos limites mínimos legalmente estabelecidos para o crime de ofensa à integridade física por negligência e para a pena disciplinar de suspensão de serviço, refletindo o reconhecimento da relativa gravidade e intensidade culposa alocadas à conduta do R.; 25. Se é evidente e indiscutível que a atuação do R. que levou ao infeliz desfecho não revelou o zelo e a diligência que lhe eram exigíveis, não se pode contudo considerar que a sua conduta tenha sido temerária, no sentido de que fez uso de um meio perigoso bem sabendo que não tinha os conhecimentos, formação e capacidade técnica para tal, que o R. efetivamente detinha; 26. A detenção e introdução da arma pessoal nas instalações militares da Base de Fuzileiros, sem autorização do comandante ou sem a depositar na respetiva escudaria (entrada), que não foi a causa imediata do facto gerador da eventual responsabilidade indemnizatória do R., não releva para a graduação da sua culpa e, por consequência, para a determinação da existência de direito de regresso, tendo tido em relação a ele apenas relevância disciplinar; 27. Ao ter decidido nos termos em que decidiu, o Tribunal a quo incorreu num erro de julgamento, por erro nos pressupostos de direito e má interpretação e aplicação do regime estatuído no nº 2 do art.º 2º do Dec.-Lei nº 48.051, em vigor à data dos factos; 28. Milita ainda contra o Estado, em abono da sua responsabilidade exclusiva, o facto de existir uma presunção legal de culpa, por incumprimento do dever de vigilância (culpa in vigilando), dever este que impendia sobre si e que indiretamente veio a ser causa dos danos; 29. O nº 2 do art.º 493º do Código Civil preceitua que “Quem causar danos a outrem no exercício de uma atividade, perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, exceto se (…)”, sendo pacífico que a atividade e a formação militares no âmbito das quais se deu o infeliz desfecho são perigosas pela sua própria natureza e pela natureza dos meios utilizados. 30. O Estado não proporcionou, devendo tê-lo feito, as condições necessárias de vigilância, informação, fiscalização e estabelecimento de mecanismos de prevenção para que as mesmas pudessem ter decorrido em segurança, obviando dessa forma a que as armas pessoais dos militares em serviço não fossem introduzidas no interior das instalações militares e assim reduzir o perigo da ocorrência de acidentes; 31. A terem sido proporcionadas tais condições, certamente que o R., como militar aplicado, zeloso, diligente e cumpridor que sempre foi e é, não teria levado a sua arma pessoal para o interior da Base dos Fuzileiros onde então estava colocado, sem prévia autorização do seu comandante, ou tê-la-ia deixado na escudaria (entrada), não sendo sequer conjeturável que o R. desobedecesse às regras do Regulamento Geral de Serviço Naval em Terra e às instruções em vigor nessa base militar, caso tivesse conhecimento delas; 32. A sentença recorrida estatuiu, sem qualquer tipo de prova que o suportasse, que o R. violou o Regulamento Geral do Serviço Naval em Terra, sem cuidar de apurar antes que esse regulamento era do conhecimento de todo o efetivo e, em particular, do R., sendo que só desse modo seria sustentável a ideia de desobediência ou, no mínimo, desinteresse pelo seu cumprimento subjacente ao entendimento do Tribunal a quo; 33. De igual modo, o Tribunal a quo não identifica, sendo essa identificação absolutamente fundamental à formação do juízo de censura, as normas da Marinha alegadamente violadas pelo R. que lhe impunham que depositasse a sua arma particular na escudaria; 34. O incumprimento do dever de vigilância por parte do Estado determina a presunção de culpa leve do servidor público, o ora R., sendo que, em caso de culpa leve, como é o seu caso, não há lugar a direito de regresso; 35. Inexistindo responsabilidade indemnizatória da parte do R., não assiste ao Estado Português, ora A., direito de regresso sobre aquele, cabendo-lhe, por isso, a responsabilidade exclusiva pelo ressarcimento dos danos sofridos pelo lesado; 36. Ao decidir em contrário, o Tribunal a quo incorreu, nesta parte, num erro de julgamento em matéria de Direito, por errada interpretação e não aplicação à situação dos autos das disposições legais contidas nos arts. 4º, nº 1, do Dec.-Lei nº 48.051, 487º, nº 1, e 493º, nº 2, do Código Civil; 37. Subsidiariamente, a não se considerar o Estado como exclusivamente responsável pelo ressarcimento dos danos sofridos pelo lesado e que goza de direito de regresso contra o R., por a culpa deste vir a ser qualificada como grave, de modo a subsumir a situação no nº 2, in fine, do art.º 2º do Dec.-Lei nº 48.051, nem por isso o R. deverá responder pela totalidade da indemnização paga ao lesado; 38. A responsabilidade solidária pelo ressarcimento dos danos assenta na existência de uma pluralidade de responsáveis, existindo direito de regresso entre eles em função das respetivas culpas, que se presumem iguais, conforme resulta do nº 2 do art.º 497º do Código Civil, ex vi nº 2 do art.º 4º do Dec.-Lei nº 48.051; 39. Neste contexto, a indemnização, mesmo em caso de culpa grave, terá de ser repartida entre o Estado e o R. no quadro de concretização de uma ideia de equidade, tendo em conta as circunstâncias concretas da situação e o grau de culpa de cada um deles, de modo a concretizar uma solução que satisfaça, nomeadamente, os princípios da justiça, proporcionalidade e solidariedade, por via da ponderação de todos os fatores e circunstâncias direta e indiretamente relacionados com a situação geradora do dano, de modo a obter uma solução final equitativa, justa, proporcional e solidária; 40. Serão de ponderar designadamente a existência ou não de intencionalidade e o grau de censurabilidade da atuação ilícita e danosa do servidor público, o conteúdo funcional do cargo por ele desempenhado, a eventual contribuição de outras pessoas para a atuação danosa, a conduta profissional do servidor causador do dano, o valor do dano causado à sua situação económica do agente responsável; 41. Os factos demonstram inequivocamente (i) que não existiu da parte do R. a menor intenção de infligir no lesado qualquer lesão e/ou de lhe causar qualquer prejuízo, (ii) que a sua atuação não foi dolosa e a sua culpa, dentro de um contexto de gravidade, terá de ser substancialmente mitigada em função do facto de ele ser detentor da formação e habilitação necessárias para o manuseamento de armas de fogo em condições de segurança, não podendo o disparo deixar de ser considerado inadvertido e acidental, e não consequência de uma atitude temerária, (iii) que o R., sendo indiscutível que a atividade militar é perigosa e comporta riscos pela sua própria natureza, sabia manusear e conhecia o modo de funcionamento de armas de fogo, aptidões que faziam parte das suas funções, (iv) que as circunstâncias do chamamento do seu camarada CC (…) foi encarado pelo lesado como uma ordem, visto advir de um seu superior hierárquico, e foi decisivo para a aproximação deste e para a criação de uma situação de risco, ainda que ninguém a tivesse conjeturado minimamente, (v) que a posse e manuseamento da arma pessoal pelo R. no interior das instalações militares se deveu ao seu desconhecimento da existência do Regulamento Geral de Serviço Naval em Terra e de instruções em vigor na Base dos Fuzileiros, devido à falta de publicitação e divulgação pelo contingente, sendo esse desconhecimento generalizado a todos os militares que pertenciam à mesma unidade militar e exclusivamente imputável à organização, (vi) a ausência de controlo e vigilância da introdução, posse e utilização de armas pessoais nas instalações das unidades militares da Armada, constituindo esta omissão uma violação do dever de vigilância, atendendo ao facto de estar em causa uma atividade perigosa, quer pela sua própria natureza, quer pela natureza dos meios utilizados, (vii) a boa e inatacável conduta profissional e pessoal do R. anterior e posterior ao infeliz acidente, e, por fim, (viii) que, a concretizar-se a responsabilização solidária do R. pelo montante pago ao lesado, tal equivalerá à sua “morte” financeira e insolvência pessoal; 42. Estes fatores terão de ser considerados na fixação da repartição da indemnização entre o Estado e o R. no contexto de uma – não admitida – responsabilidade solidária; 43. A quota-parte do R., por razões de equidade, justiça, proporcionalidade e solidariedade, terá de ser fixada em valor simbólico ou, na pior das hipóteses, em valor substancialmente inferior ao da quota-parte do Estado; 44. O Tribunal a quo demitiu-se ab initio de ponderar todos estes fatores que fundamentam a co-responsabilização, que foram absolutamente ignorados, e que não poderão deixar de concorrer para a fixação da repartição da indemnização entre o Estado e o R. no contexto de responsabilidade solidária, e da quota-parte de cada um deles, por razões de equidade, justiça, proporcionalidade e solidariedade; 45. Neste contexto, a quota do ora Apelante terá de ser fixada em valor simbólico ou, na pior das hipóteses, em valor substancialmente inferior ao da quota-parte do Estado; 46. Ao não ponderar os fatores que fundamentam a co-responsabilização e ao não definir as quotas-partes do Estado e do R. no âmbito da concretização da responsabilidade solidária, o Tribunal a quo incorreu num erro de julgamento, por erro nos pressupostos de Direito e por errada interpretação e não aplicação à situação dos autos das disposições legais contidas no art.º 497º, nº 2, ex vi art.º 4º, nº 2, do Dec.-Lei nº 48.051. 47. O pedido reconvencional deduzido pelo R. contra o A. Estado Português, no valor de € 2.500,00, mais juros de mora, deverá ser reavaliado à luz da decisão do recurso ora interposto, e em função de o Estado, face ao regime legal vigente à data dos factos, vir a ser considerado responsável exclusivo pelo pagamento da totalidade da indemnização devida pelo lesado, ou, diferentemente, vir a ser considerado responsável solidário conjuntamente com o R. pelo pagamento da indemnização, caso em que a quantia por este paga em 8.ABR.2018 não poderá deixar de ser levada em consideração na fixação das quotas-partes da responsabilidade de cada um dos responsáveis”.
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O Autor contra-alegou, formulando as seguintes conclusões:
“1. A competência material do tribunal constitui um pressuposto processual e afere-se pela forma como o autor configura o pedido e a respetiva causa de pedir, ou seja, determina-se pelos termos em que a ação é proposta e pela forma como o autor estrutura o pedido e os respetivos fundamentos. 2. A causa de pedir na presente ação assenta no direito de regresso do que o Estado pagou por virtude da regra da solidariedade. 3. O direito de regresso em causa entronca numa responsabilidade extracontratual com origem em processo crime com pedido de indemnização civil, cuja indemnização por perdas e danos é regulada pela lei civil (art.º 129º do C. Penal) e não em ação administrativa (art.º 37º, nº 1, al. k) do CPTA). 4. Não estamos perante uma ação em que tenhamos que discutir uma questão emergente de relações jurídico administrativas e fiscais, o pedido de pagamento desta quantia, com fundamento na sobredita causa de pedir, apresenta natureza essencialmente civilística, motivo pelo qual deve considerar-se integrado na competência residual, em matéria cível, deste Juízo Central Cível. 5. Nos termos do art.º 129º do C. Penal «A indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil». 6. De acordo com o art.º 216º do C. Civil, «Nas relações entre si, presume-se que os devedores ou credores solidários comparticipam em partes iguais na dívida ou no crédito, sempre que da relação jurídica entre eles existente não resulte que são diferentes as suas partes, ou que um só deles deve suportar o encargo da dívida ou obter o benefício do crédito». 7. Foi o réu o responsável pelos factos ilícitos, logo, o Estado não é responsável pelo ressarcimento integral dos danos sofridos pelo lesado. 8. O recorrente está impedido de discutir novamente a(s) responsabilidade(s) sob pena de abrir caminho à violação do efeito de caso julgado da sentença penal (art.º 84º do C. P. Penal). 9. No que respeita ao requerido efeito suspensivo, nada tem o M. Público a opor desde que seja prestada caução (art.º 647.º, nº 4 do CPC). 10. Decidindo como decidiu, a Mª Juiz a quo fez uma adequada e correta aplicação do Direito. 11. Pelo exposto, deverá ser mantida a douta decisão recorrida, julgando-se o presente recurso improcedente”.
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O recurso foi corretamente admitido, com o efeito e modo de subida adequados.
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II. Questões a Decidir:
Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do Recorrente – art.ºs 635º, n.º 4 e 639º, n.ºs 1 e 2 do CPC –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, conclui-se que as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal consistem em saber:
- Se são os Tribunais Comuns ou os Tribunais Administrativos os competentes, em razão da matéria, para o conhecimento da presente ação;
Caso se conclua que são os Tribunais Comuns os materialmente competentes para esse efeito,
- Se assiste ou não ao Autor o direito de regresso que invoca nos presentes autos e, na afirmativa, em que medida;
Caso se conclua que não assiste ao Autor o invocado direito de regresso ou que esse direito apenas lhe assiste relativamente a parte do valor da indemnização cujo pagamento efetuou,
- Se deve o Autor reembolsar o Réu do valor por este pago por conta da referida indemnização.
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III. Fundamentação de Facto:
Na sentença objeto de recurso foram considerados como provados os seguintes factos:
“1. O Réu e BB (…) eram, à data dos factos, Militares da Marinha Portuguesa, adstritos ao 2º Pelotão da ...ª Companhia de Fuzileiros, na Base Naval do ..., sendo o primeiro 1º Marinheiro e o segundo 2º Grumete. 2. No dia 7 de Maio de 2004, cerca das 12 horas, no interior do cote (caserna) adstrito ao Pelotão em apreço, no local acima referido, o ora arguido encontrava-se sentado na cama a falar com CC (…), manuseando o seu revólver marca "Rossi", calibre 357 "MAGNUM", com o nº WG 137286, que tinha acabado de carregar com munições, quando constou em conversa que o ora assistente não gostava de armas. 3. Nesse momento, CC (…) chamou BB (…) para perto de si e do Réu, o que este fez. 4. CC (…) perguntou então ao BB (…), “Então a escola vem para a tropa e não gosta de armas?” 5. Nessa altura, o Réu que continuava a manusear a arma de fogo, fez a seguinte pergunta ao BB (…), "O que é que acontecia se eu agora puxasse o cão?” 6. (…) Ato contínuo, puxou o cão do revólver à retaguarda e inadvertidamente, deixou-o bater no percursor, assim fazendo deflagrar a arma de fogo, verificando-se o disparo de uma munição de calibre 357, que foi alojar-se no corpo do assistente, atingindo-o nos testículos e na perna esquerda. 7. Como consequência direta e necessária do comportamento do arguido resultaram para o assistente fratura exposta do fémur esquerdo e lesão do escroto direito e esquerdo, lesões que foram direta e necessariamente determinantes de doença por 700 (setecentos) dias, com igual tempo de incapacidade para o trabalho (atividade profissional específica). 8. Sofreu, ainda, como sequela orquidectomi bilateral, encurtamento do fémur, compensado com cunha externa, sendo necessária terapêutica hormonal de substituição diária, devido à lesão testicular sofrida, com a finalidade de poder procriar. 9. Como consequência direta e necessária do comportamento do réu, BB (…) perdeu os dois testículos, sofreu fratura exposta do fémur esquerdo e lesão do escroto direito esquerdo, que determinaram um período de doença, com incapacidade para o trabalho, tendo em 12 de Dezembro de 2011 sido declarado incapaz para todo o serviço, pela Junta de Saúde Naval, tendo-lhe sido atribuída a desvalorização global de 65,39%. 10. O Demandado tinha adquirido a arma há cerca de dois meses e, antes dos acontecimentos, tinha-a testado uma única vez, no interior da base do ..., tendo nessa ocasião pedido autorização verbal a um oficial, tendo disparado dessa vez cerca de 8 a 10 munições. 11. As normas da Marinha impunham que o arguido depositasse a sua arma particular na escudaria (entrada) da Base Naval do .... 12. Ao agir da forma descrita ao manusear o sobredito revólver, que sabia estar carregado e cujo mecanismo de utilização conhecia por completo, como fuzileiro detentor de arma de defesa pessoal, sabendo que bastava o libertar do cão puxado à retaguarda contra o percursor para deflagrar a arma, o réu violou o dever de cuidado adstrito ao manuseamento de tal arma de fogo, não procedendo com o cuidado a que estava obrigado e era capaz. 13. O arguido sabia que a conduta por si empreendida era proibida e punida pela lei penal. 14. Por virtude dos factos correu termos o processo comum (Tribunal singular) nº (…) do Juízo Local Criminal de Almada – J1, em que foi deduzido pedido de indemnização cível, que por sentença de 1/9/2016, transitada em julgado condenou o réu: - AA (…) como autor material de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo art.º 148º, nº 1 e 3 do Cód. Penal, com referência ao art.º 144º, als. a) e b), do mesmo diploma legal, na pena de 6 ( seis) meses de prisão, suspensa na sua execução por um período de 1 ( um ) ano, subordinada ao cumprimento de pagar dentro deste prazo € 2.500,00 ao demandante BB (…), por conta de parte da indemnização que lhe foi atribuída, por se nos afigurar que tem condições económicas para o fazer nesta proporção dentro daquele prazo de 1 ( um ) ano, devendo fazer prova nos autos, logo que decorrido este prazo, de que cumpriu o dever a que ficou condicionada a suspensão da pena de prisão ( arts. 50º, n''s 1, 2, 5 e 51º, n" 1, al. a), ambos do Cód. Penal); - A pagar ao demandante BB (…) a quantia de € 100.000,00 a título de danos não patrimoniais; - A pagar ao demandante BB (…) a indemnização no montante de € 51,09 por mês, contados desde 1/10/2004 e até que o demandante necessite de fazer tal despesa com a aquisição do medicamento Testogel; - A pagar ao demandante BB (…) a indemnização no montante de € 250.000,00 correspondente à perda de rendimentos e perda de aptidão para os auferir, a que serão deduzidas todas aquelas quantias que o demandante já recebeu ou venha a receber a título de pensão por invalidez, a concretizar mediante simples cálculo aritmético, ficando o demandado obrigado a pagar apenas a diferença entre esses valores, os quais serão a liquidar em execução de sentença, nos termos do art.º 609º, nº 2, do mesmo diploma legal; - Condenar o demandado AA (…) a pagar ao demandante BB (…) os juros de mora que incidirem sobre aquelas quantias, às taxas legais em vigor e que resultam da lei, contados desde a data da notificação para contestar o pedido cível até integral pagamento (arts. 559º, 805º, n.º 3, do CC e 78.º do Código de Processo Penal). 15. Na sequência do recurso intentado, o Tribunal da Relação de Lisboa por Ac. de 7/2/2018, condenou o Estado solidariamente com o Réu a ressarcir os danos sofridos pelo assistente BB (…), nos exatos termos fixados pela 1ª instância. 16. O recurso intentado para o STJ, por Ac. de 5/9/2018, manteve a condenação solidária do Estado, sem prejuízo de eventual direito de regresso. 17. Em consequência da condenação do Réu, o Estado pagou a BB (…), por transferência bancária de 5/4/2019, a quantia de € 261.203,14 a título de capital e € 108.431,51 a título de juros moratórios, contados desde de 24.NOV.2008 a 9.ABR.2019. 18. O Autor enviou carta, registada com aviso de receção, datada de 26.01.2021, solicitando ao Réu o pagamento dos valores referidos em 17”.
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Na sentença objeto de recurso foi considerado como não provado o seguinte facto:
“1. O Réu recebeu a carta referida em 18. da Matéria de Facto Provada”.
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IV. Mérito do Recurso:
- Se são os Tribunais Comuns ou os Tribunais Administrativos os competentes, em razão da matéria, para o conhecimento da presente ação;
Defende o Apelante que a jurisdição materialmente competente para conhecer do presente litígio é a administrativa e não a cível.
Vejamos.
De acordo com o art.º 211º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (doravante apenas CRP), “os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”.
Por contraponto, o art.º 212º, n.º 3, do mesmo diploma, determina que “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
Na determinação do conceito de relação jurídico administrativa ou fiscal, Gomes Canotilho e Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, vol. II, págs. 566 e 567, referem que deve ter-se presente que “esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: (1) as ações e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente da administração); (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza “privada” ou “jurídico-civil”. Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal”.
Comentando o art.º 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (doravante apenas ETAF), o qual concretiza a competência dos tribunais administrativos e fiscais, Mário Aroso de Almeida, in “Manual de Processo Administrativo”, 2013, Almedina, pág. 157, afirma que “pertence ao âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de todos os litígios que versem sobre matéria jurídica administrativa e fiscal e cuja apreciação não seja expressamente atribuída, por norma especial, à competência dos tribunais judiciais, assim como aqueles que, embora não versem sobre matéria jurídica administrativa e fiscal, são expressamente atribuídos, por norma especial, à competência desta jurisdição – sendo que encontramos no artigo 4.º do ETAF algumas disposições especiais com este alcance”.
A competência material do tribunal constitui um pressuposto processual e afere-se pela forma como o autor configura o pedido e a respetiva causa de pedir, ou seja, determina-se pelos termos em que a ação é proposta e pela forma como o autor estrutura o pedido e os respetivos fundamentos. Daí que, para se determinar a competência material do tribunal, haja apenas que atender aos factos articulados pelo autor na petição inicial e à pretensão jurídica por ele apresentada, ou seja, à causa de pedir invocada e aos pedidos formulados.
Na situação dos autos, conforme resulta da petição inicial, pretende-se a condenação do Réu, em sede de direito de regresso, no pagamento ao Estado Português dos valores por este desembolsados com o pagamento da indemnização devida pelos danos sofridos por terceiro em consequência da prática pelo Réu de um crime de ofensa à integridade física por negligência.
Para o efeito é alegado e documentado que no âmbito do processo comum com intervenção de tribunal singular que sob o n.º (…) correu termos no Juízo Local Criminal de Almada – J1, foi proferida sentença em 01.09.2016, transitada em julgado, nos termos da qual foi o aqui Réu, à data dos factos militar da Marinha Portuguesa, condenado:
- como autor material de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo art.º 148º, n.ºs 1 e 3 do Cód. Penal, com referência ao art.º 144º, als. a) e b), do mesmo diploma legal, na pena de 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por um período de 1 ano, subordinada ao cumprimento de pagar dentro desse prazo € 2.500,00 ao demandante BB (…), por conta de parte da indemnização que lhe foi atribuída, por se afigurar que o mesmo tem condições económicas para o fazer nessa proporção e dentro daquele prazo de 1 ano, devendo fazer prova nos autos, logo que decorrido esse prazo, de que cumpriu o dever a que ficou condicionada a suspensão da pena de prisão (art.ºs 50º, n.ºs 1, 2, 5 e 51º, n.º 1, al. a), ambos do Cód. Penal);
- no pagamento ao demandante BB (…) da quantia de € 100.000,00 a título de danos não patrimoniais;
- no pagamento ao demandante BB (…) de indemnização no montante de € 51,09 por mês, contados desde 01.10.2004 e até que o demandante necessite de fazer tal despesa com a aquisição do medicamento Testogel;
- no pagamento ao demandante BB (…) de indemnização no montante de € 250.000,00, correspondente à perda de rendimentos e perda de aptidão para os auferir, a que serão deduzidas todas aquelas quantias que o demandante já recebeu ou venha a receber a título de pensão por invalidez, a concretizar mediante simples cálculo aritmético, ficando o demandado obrigado a pagar apenas a diferença entre esses valores, os quais serão a liquidar em execução de sentença, nos termos do art.º 609º, n.º 2, do mesmo diploma legal;
- no pagamento ao demandante BB (…) dos juros de mora que incidirem sobre aquelas quantias, às taxas legais em vigor e que resultam da lei, contados desde a data da notificação para contestar o pedido cível até integral pagamento (art.ºs 559º, 805º, n.º 3, do CC e 78º do Código de Processo Penal).
É alegado e documentado que dessa sentença foi interposto recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, no âmbito do qual, por acórdão proferido em 07.02.2018, foi decidido condenar o Estado Português, solidariamente com o Réu, a ressarcir os danos sofridos pelo assistente BB (…), nos exatos termos fixados pela 1ª instância.
É alegado e documentado que do referido acórdão foi depois interposto recurso para o Supremo Tribunal de Justiça que por acórdão de 05.09.2018 decidiu, com fundamento distinto, confirmar a decisão recorrida no que concerne à condenação solidária do Estado com o arguido/demandado no ressarcimento dos danos sofridos pelo assistente nos montantes fixados pela 1ª instância, sem prejuízo de eventual direito de regresso.
É igualmente alegado que o Estado Português pagou a quantia de € 369.634,65 ao referido BB (…) e que, nessas circunstâncias, lhe assiste direito de regresso contra o Réu, nos termos do art.º 2º, n.º 2, do DL 48051, de 21.11.1967, vigente à data da prática dos factos.
Lemos o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça invocado pelo Autor e junto com a petição inicial. No mesmo, depois de analisada a responsabilidade civil do Estado prevista nos art.ºs 22º da CRP e 2º, n.º 1, do DL n.º 48.051 de 21 de novembro de 1967 (aplicável à data dos factos) e de ponderada, à luz desses normativos, a factualidade provada, é afirmado o seguinte:
“No caso concreto, e para além da disponibilidade permanente que caracteriza a atividade militar, o certo é que naquele momento arguido e vítima se encontravam ao serviço, no exercício de funções militares numa unidade militar, embora num momento de descanso; o arguido e o militar que chamou a vítima eram superiores hierárquicos desta e tal chamamento poderia ser considerado objetivamente como uma ordem de serviço. A obediência da vítima ao chamamento para comparência não surge numa sequência duma “amena cavaqueira entre amigos”, mas, para um cidadão dotado de um mínimo de bom senso, aparece como uma determinação de um militar para um seu subordinado e quando no exercício de funções. As intenções praxísticas, ou lúdicas, do arguido e do seu colega são absolutamente irrelevantes e, em nosso entender, apenas poderão fundamentar a inerente atividade disciplinar, e não como termo para aferir uma relação funcional que deverá ser avaliada em função das aparências e objetivamente. Significa o exposto que em abstrato o chamamento da vítima feito pelo seu superior hierárquico se inscreve num ato suscetível de ser considerado como do exercício de funções. É evidente que não cabe no exercício de tais funções dar tiros nos subordinados, estigmatizando-os fisicamente para o resto da vida. Porém, o manuseio de armas está intimamente ligado ao exercício da função militar sendo irrelevante se tal manuseio, que efetivamente constitui uma atividade perigosa, se circunscreve, ou não, a uma arma de serviço. (…) É, pois, com base num juízo de aparência de existência de um vínculo funcional, afirmado em função das concretas circunstâncias objetivas que entendemos dever ser afirmada no caso concreto a responsabilidade do Estado com fundamento no art.º 2º, n.º 1, do DL 48.051”.
Ora, nos termos do citado art.º 2º, n.º 1, do DL 48.051, “O Estado e demais pessoas coletivas públicas respondem civilmente perante terceiros pelas ofensas dos direitos destes ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, resultantes de atos ilícitos culposamente praticados pelos respetivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das suas funções e por causa desse exercício”.
Respondendo o Estado Português, como vimos, nos termos do citado normativo, o direito de regresso que pretende fazer valer na presente ação, conforme se refere na petição inicial, tem fundamento no n.º 2 desse mesmo normativo, de acordo com o qual, “Quando satisfizerem qualquer indemnização nos termos do número anterior, o Estado e demais pessoas coletivas públicas gozam de direito de regresso contra os titulares do órgão ou agentes culpados, se estes houverem procedido com diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles a que se achavam obrigados em razão do cargo”.
Aqui chegados, importa ter presente que, de acordo com o art.º 4º, n.º 1, al. g), do ETAF, “Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a: (…) g) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes, trabalhadores e demais servidores públicos, incluindo ações de regresso”.
A presente situação enquadra-se nesse normativo, porquanto, tendo o Estado Português, com fundamento na responsabilidade civil do Estado, satisfeito a indemnização devida ao lesado, pretende agora exercer o respetivo direito de regresso contra o agente culpado que praticou o ato lesivo no exercício das suas funções e por causa desse exercício.
Perante o exposto, procedendo o recurso no segmento relativo à decisão que julgou improcedente a exceção de incompetência material da jurisdição cível, conclui-se pela procedência da invocada exceção de incompetência material, julgando-se o Juízo Central Cível de Almada materialmente incompetente para conhecer da presente ação, por essa competência assistir aos Tribunais Administrativos e, em consequência, absolve-se o Réu da instância, em conformidade com o disposto nos art.ºs 576º, n.ºs 1 e 2 e 577º, a), do CPC.
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Em consequência da antecedente decisão, fica prejudicado o conhecimento do recurso relativo ao mérito da causa.
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V. Decisão:
Pelo exposto, acordam os Juízes que compõem o coletivo desta 2.ª Secção Cível abaixo identificados:
- Em julgar procedente o recurso da decisão que considerou improcedente a exceção de incompetência material, a qual se revoga e se substitui por uma outra que, concluindo pela procedência da invocada exceção de incompetência material, julga o Juízo Central Cível de Almada materialmente incompetente para conhecer da presente ação, por essa competência assistir aos Tribunais Administrativos e, em consequência, absolve-se o Réu da instância; e
- Em julgar prejudicado o conhecimento do recurso relativo ao mérito da causa.
Custas pelo Apelado.
Registe.
Notifique.
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Lisboa, 22/05/2025,
Susana Mesquita Gonçalves
António Moreira
Laurinda Gemas