PERSI
CONHECIMENTO OFICIOSO
RESOLUÇÃO
CONTRADITÓRIO
DECISÃO SURPRESA
Sumário

(elaborado nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, CPC):
I – Recai sobre a instituição de crédito exequente o ónus da prova do cumprimento das obrigações que para si decorrem do DL 227/2012, de 25-10, demonstrando, designadamente, as comunicações de integração e de extinção de PERSI, que constituem condições objetivas de procedibilidade da execução, consubstanciando a sua ausência exceção dilatória inominada, de conhecimento oficioso, geradora da extinção da instância executiva.
II – Contudo, relativamente a contrato de crédito que foi objeto de resolução anteriormente à entrada em vigor do Dl 272/2012, de 25/10 não opera a exigência de integração no processo de regularização ali previsto (PERSI) como condição de admissibilidade da ação declarativa ou executiva, porquanto do artigo 39º daquele diploma resulta que tal procedimento é exigível “relativamente ao cumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito que permaneçam em vigor”.
III – Por estar em causa pressuposto processual específico da ação executiva, nada obsta a que o juiz conheça oficiosamente da exceção da falta de integração em PERSI até ao primeiro ato de transmissão dos bens penhorados, nos termos do disposto no artigo 734º, CPC.
IV – Porém, tal intervenção jurisdicional deve observar o princípio do contraditório, não sendo lícito, salvo em caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
V – Apesar de a exequente ter debatido a inaplicabilidade do regime de PERSI por estarem resolvidos os contratos de mútuo em causa à data do início da sua vigência, verificadas discrepâncias relevantes para a decisão a proferir, entre a morada a que foram dirigidas as comunicações de resolução contratual e o domicílio dos executados constante dos contratos de mútuo em causa, sob pena de violação do princípio do contraditório, deve-lhe ser conferida a oportunidade de alegar (e demonstrar) que foi a solicitação dos executados que o respetivo domicílio foi alterado.

Texto Integral

Acordam os juízes da 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Lisboa que compõem este coletivo:

I - RELATÓRIO
A exequente, Lx Investment Partners II, SARL identificada nos autos, instaurou em 16-11-2021, no Juízo de Execução de Lisboa, a presente execução para pagamento de quantia certa, sob a forma de processo ordinário, contra os executados A e B, também identificados nos autos, alegando, no essencial:
- Em 22-12-2018, celebrou com o “Novo Banco, SA” um contrato de cessão de créditos, mediante o qual esta instituição bancária lhe cedeu diversos créditos, incluindo os que detinha sobre os executados;
- O “Novo Banco, SA” sucedeu ex lege ao Banco Espírito Santo, SA, ficando investido na posição de credor de cada um dos seus créditos;
- O exequente é portador de duas livranças, nos montantes de € 4.327,76 e de € 33.428,37, ambas vencidas em 01-11-2021, assinadas pelos executados na qualidade de “subscritores”, de cujo preenchimento e data de vencimento lhes foi dado conhecimento, através de cartas de interpelação de 15-10-2021;
- Porém, os executados não liquidaram o montante inscrito em ambas as livranças, no valor global de € 33.428,37, a que acrescem juros de mora à taxa de 4% contabilizados desde a data de apresentação a pagamento das livranças, e juros legais vincendos até efetivo e integral pagamento.
Resultando das pesquisas efetuadas pelo agente de execução nas bases de dados oficiais que, contrariamente ao indicado no requerimento executivo, a residência de ambos os executados se situava no Estoril e não em Lisboa, tendo por base o critério consagrado no artigo 89º, nº 1, 1ª parte CPC, foi declarada a incompetência territorial do Juízo de Execução de Lisboa e ordenada a remessa dos autos ao Juízo de Execução de Oeiras (despacho de 08-03-2023).
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O executado B, em 20-06-2023, deduziu oposição à execução mediante embargos, que constituem o apenso A dos presentes autos principais, nos termos dos artigos 728º, nº 1 e 731º, CPC, na qual, no essencial:
- Confirmou a celebração dos contratos de crédito nºs AA60008493333 no valor de € 9.868,75, e AA60006843770, no valor de € 4.327,76, garantidos pelas livranças dadas à execução;
- Arguiu a prescrição quer do capital quer dos juros pedidos pela exequente, ao abrigo das alíneas d) e e) do artigo 310º, CC.
Liminarmente admitidos tais embargos, deduziu-lhes contestação exequente/embargada, considerando, essencialmente:
- A dívida exequenda (capital e juros) não prescreveu, dado que a resolução dos contratos ocorreu, respetivamente, em 03-04-2011 e 04-05-2011, inexistindo quotas em dívida que possam justificar a aplicação da prescrição de curto prazo, prevista no artigo 310º, alínea e), CC, sendo aplicável ao crédito em causa o prazo de prescrição ordinária de 20 anos (cfr. artigo 309º, CC).
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Também a executada A, em 29-06-2023, deduziu oposição à execução mediante embargos, que constituem o apenso B dos presentes autos, invocando os seguintes fundamentos:
- Ilegitimidade da exequente (dado que à oponente nunca foi comunicada a cessão de créditos de 22-12-2018);
- A exequente não lhe deu conhecimento do preenchimento e da data de vencimento dos títulos dados à execução, solicitando a sua notificação para juntar aos autos o comprovativo da comunicação que alega ter-lhe remetido, bem como do cumprimento da obrigação de integração no Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI), prevista no DL n.º 227/2012, de 25 de Outubro;
- A oponente não beneficiou de quaisquer valores alegadamente mutuados ao executado (à data seu marido) no âmbito dos dois contratos de mútuo bancário (Crédito ao Consumo), celebrados em 2008 e em 2009, entre o Banco Espírito Santo e o executado nestes autos, que teve de assinar por imposição do Banco e do executado;
- O incumprimento desses contratos de crédito (cuja cópia juntou com o articulado, com os nºs 1 e 2) ocorreu em 2013 pelo que o crédito encontra-se prescrito por decurso do prazo previsto no artigo 310º, alínea e), CC, quer no que se reporta ao capital, quer aos juros;
- Foi abusivo o preenchimento das livranças, dado que a entidade credora as deveria ter preenchido na sequência do incumprimento, após o envio de carta admonitória e de ter dado cumprimento à obrigação de integração da Executada em PERSI. Ao invés, das livranças consta uma data de vencimento que nada tem a ver com a efetiva data em que ocorreu o incumprimento, o que traduz um abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium;
- Prescrição da obrigação cambiária por decurso do prazo de 3 anos previsto nos artigos 70º e 77º LULL, à data da instauração da execução.
Liminarmente admitidos tais embargos, a exequente embargada deduziu contestação, na qual, alegou:
- Ser parte legítima na execução, dado que a executada/embargante foi notificada da cessão de créditos;
- O regime de PERSI não foi cumprido por não estar em vigor à data da resolução do contrato, tendo sido esta objeto das comunicações que constituem os documentos 4 e 5 que juntou com a contestação;
- O preenchimento das livranças respeitou as cláusulas contratuais acordadas, pelo que não é abusivo;
- Não se verifica a prescrição por não terem decorrido três anos desde a data de vencimento dos títulos, de acordo com o disposto no artigo 70º LULL (ex vi artigo 77º, LULL);
- É inaplicável o prazo prescricional de 5 anos previsto no artigo 310º, alínea e), CC, sendo, ao invés, aplicável o prazo de prescrição ordinário de 20 anos (cfr. artigo 309º, CC).
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Em ambos os apensos de embargos, em 28-11-2023, foi proferido despacho com o seguinte teor:
Uma vez que a decisão a proferir no processo executivo, respeitante à possível verificação da exceção inominada de preterição da obrigação de sujeição dos devedores/executados ao PERSI, poderá determinar a extinção destes autos por inutilidade superveniente, aguardem os autos pela decisão a proferir no processo principal”.
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Em 09-07-2023, nesta execução, foi proferido despacho no qual, com interesse para apreciação do presente recurso, se exarou:
“(…) Sem embargo, tendo em conta a natureza do crédito trazido à execução, a exequente em igual prazo comprovará nos autos a sujeição dos devedores ao PERSI nos termos previstos no DL nº227/2012, de 25/10, podendo qualquer das partes, no referido prazo e para efeito do disposto no art.3º, nº3 do CPC, pronunciar-se sobre a eventual preterição desse pressuposto processual, questão de conhecimento oficioso [que se constata ter sido invocada pela executada no apenso B].
Até ser tomada posição sobre tal questão, o Sr. AE não efetuará quaisquer diligências de penhora ou que afetem o património dos executados.”
A executada, pronunciando-se sobre tal requerimento em 24-07-2023, veio alegar que a exequente não deu cumprimento às obrigações para si decorrentes do Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI), previstas no DL n.º 227/2012, de 25 de outubro, considerando que tal omissão determina a extinção da execução (requerimento com a referência 46200628).
Também o executado se pronunciou, considerando que a exequente não fez prova de ter dado cumprimento ao estatuído no Decreto-Lei nº 227/2012 de 25 de outubro, o que constitui preterição de um pressuposto processual da presente execução, de conhecimento oficioso, gerador da absolvição do pedido (requerimento de 08-09-2023/referência 46453788).
A exequente, por intermédio de requerimento de 11-09-2023, considerou “(…) não haver lugar às comunicações ao abrigo do PERSI, uma vez que o incumprimento definitivo e resolução quanto a cada um dos contratos que constituem as relações subjacentes às livranças aqui executadas, ocorreu, em 03 de Abril de 2011, relativamente ao crédito titulado pela livrança junta ao requerimento executivo como DOC. 3 e 04 de Maio de 2011, relativamente ao credito titulado pela livrança junta ao requerimento executivo como DOC. 2 e, portanto, antes da entrada em vigor do regime invocado” (referência 46467539).
Pronunciou-se, de seguida, a executada, alegando, além do mais, nunca ter recebido nenhuma notificação de resolução dos contratos de crédito que estão na origem do preenchimento das livranças juntas com o Requerimento Executivo, “pelo que tais contratos encontravam-se em execução à data da entrada em vigor do DL n.º 227/2012, de 25 de outubro, no dia 1 de janeiro de 2013, sendo aplicável ao caso sub judice por força do disposto no artigo 39º do citado diploma” (requerimento de 12-09-2023/referência 46483334).
Em 16-10-2023, a exequente negou que o contrato não tivesse sido resolvido antes da entrada em vigor do Dl 227/2012 de 25-10, dado que todas as comunicações datam de 2011, requerendo: “(…) notificação de CTT - Correios de Portugal, S.A., ao abrigo do disposto no art.º 417.º, n.º 1 do C.P.C., uma vez que tal se revela essencial para a boa decisão da causa, para que venham aos autos esclarecer quanto ao envio das comunicações datadas de 08 de Junho de 2011, bem como todas as demais informações que resultem da leitura dos códigos CBC” referência 46812500).
Notificados para o efeito, os serviços dos CTT esclareceram que:
Qualquer informação sobre objetos registados (datas de aceitação, datas de entrega), quem procedeu à respetiva entrega e respetivas identificações de colaboradores, apenas estão disponíveis durante 12 meses após data de aceitação dos objetos.
Findo este prazo a informação referida é apagada do sistema informático e o arquivo físico é destruído.
Face ao exposto é materialmente impossível fornecer elementos sobre o solicitado, uma vez que o tempo de arquivo da informação sobre o mesmo no sistema já foi excedido. (…)”.
Veio então a exequente solicitar:
“(…) por mera cautela do patrocínio, caso seja julgado necessário, requer novo ofício dirigido aos CTT solicitando informações sobre se existe a possibilidade de saber ou comprovar se certo objeto foi, pelo menos, expedido, com cópia deste novo requerimento, do requerimento anterior e, bem assim, das comunicações em questão” (requerimento de 02-01-2024/referência 47530955).
A executada reiterou a pretensão de extinção da instância por falta de cumprimento das obrigações emergentes do regime de PERSI (requerimento de 08-01-2024/referência 47581507).
Oficiado novamente aos CTT, em conformidade com o requerido pelos CTT, veio aquele organismo, em 11-03-2024, informar:
Face ao solicitado, informamos que só nos é possível proceder a averiguações e dar respetiva informação, se nos for indicado respetivo número de registo (constituído por 2 letras + 9 algarismos + 2 letras).”
Em 09-05-2024 foi proferido despacho com o seguinte conteúdo:
Melhor compulsados os autos verifico que as cartas juntas pelo exequente, por requerimento datado de 06-10-2023, consubstanciam, claramente, interpelação para o cumprimento e não declaração de resolução do contrato.
Assim, concedo ao exequente o prazo de 10 dias para indicar em que data se operou a resolução dos contratos, juntando os respetivos comprovativos.”
Respondendo a tal solicitação, a exequente apresentou requerimento em 24-05-2024, considerando, além do mais que:
“(…) as cartas enviadas em maio e junho de 2011, consubstanciam claramente uma resolução implícita.
3. No prazo concedido nas cartas remetidas aos Executados em março de 2011, os mesmos não deram qualquer resposta.
4. Pelo que, da factualidade provada, resulta de forma assaz manifesta e ostensiva, a conclusão pela vontade inequívoca, categórica e definitiva dos Executados, no sentido de não cumprirem a obrigação para com a Exequente no cumprimento da obrigação que lhes incumbia” (referência 49013067).
Foi então proferido despacho com o seguinte teor:
As partes foram notificadas para se pronunciarem “quanto ao conhecimento oficioso da preterição de sujeição do devedor ao PERSI, nos termos previstos no DL nº227/2012, de 25/10, atenta a natureza do crédito que se visa executar.”.
Nessa sequência, a exequente veio juntar aos autos duas cartas, datadas de 03-04-2011 e 04-05-2011, alegando que se trata de carta que visavam a resolução contratual e que, sendo anterior à entrada em vigor do PERSI, este regime não lhe é aplicável.
Por se ter considerado que as cartas juntas aos autos consubstanciam interpelação para o cumprimento, não contendo qualquer declaração de resolução dos contratos, a exequente foi notificada para juntar as cartas com a declaração de resolução, o que não fez. Alegou a exequente que as cartas em causa se destinavam à resolução dos contratos.
Ora, a fim de se apurar se e quando se terá operado a resolução dos contratos em causa nestes autos, notifique a exequente para esclarecer se depois das cartas datadas de 03-04-2011 e 04-05-2011 enviou quaisquer outras e, em caso afirmativo, juntar as respetivas cópias”(despacho de 23-07-2024/referência 151921290).
Respondeu a exequente, nos seguintes termos:
“(…) notificada para o efeito, vem reiterar todo o conteúdo do requerimento datado de 24.05.2024, uma vez que o contrato foi resolvido, conforme explanado na Contestação, datada de 12 de outubro de 2023, conforme, também, comunicações aí juntas (vide DOC. 4 e 5), não estão os contratos em causa sujeitos a tal procedimento (PERSI), que apenas entrou em vigor muito após essa data, em janeiro de 2013.
Daí, inexistem quaisquer comunicações efetuadas nesse âmbito, por não terem que existir, não estando preenchido o âmbito temporal de que depende a aplicação daquele diploma.
Mais informa, conforme Doc. 4 e 5 juntos com a Contestação e já supra citados, foram enviadas missivas em 08 de Junho de 2011.
E.D.” (requerimento de 31-7-2024/referência 49592821).
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- Em 24-10-2024 foi proferida decisão que julgou verificada a exceção de falta de integração em PERSI, absolvendo os executados da instância executiva.
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- Não se conformando com tal decisão, a exequente, da mesma interpôs recurso, autuado neste Tribunal da Relação de Lisboa em 08-04-2025, pugnando pela sua revogação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem:
A. Vem a aqui Recorrente interpor o presente recurso da Sentença que julga procedente a exceção dilatória de falta de procedibilidade, e em consequência, absolve os executados da instância executiva, por não se conformar com a mesma.
B. Veio o Digníssimo Tribunal “a quo” considerar provados os seguintes factos:
- Por documento denominado “Acordo de compra e venda”, datado de 22 de dezembro, junto com o requerimento executivo, o Novo Banco, SA e o BES declarou vender ao exequente, entre outros, uma carteira de créditos, entre os quais se encontra o crédito exequendo.
- Em 20.11.2021, o exequente intentou a presente execução contra os executados, dando à execução duas livranças.
- O BES, SA enviou aos executados para a morada sita na Rua A, Lisboa, uma missiva datada de 11 de março de 2011.
- O BES, SA enviou aos executados para a morada sita na Rua A, Lisboa, uma missiva datada de 5 de fevereiro de 2011.
- O BES, SA enviou aos executados para a morada sita na Rua A, Lisboa, uma missiva datada de 10 de março de 2011.
- O BES, SA enviou aos executados para a morada sita na Rua A, Lisboa, uma missiva datada de 9 de maio de 2011.
- O BES, SA enviou aos executados para a morada sita na Rua A, Lisboa, uma missiva datada de 8 de junho de 2011.
C. Considerou o Tribunal “a quo” que a Exequente “não logrou demonstrar que as declarações de resolução enviadas aos executados foram por estes recebidas, ou sequer que, não o tendo sido, tal se deveu a sua culpa exclusiva.
D. Porquanto, considera o Tribunal “a quo” que do “teor do contrato de mútuo juntos com a oposição à execução, dos mesmos consta morada diversa (...Praceta..., lote 148 A ...Parede) daquela para onde foram remetidas as comunicações supra identificadas, não se retirando de quaisquer outros elementos dos autos que as mesmas tenham sido recebidas pelos executados.”
E. Assim, considerou o Tribunal a quo, que “não se mostra validamente efetuada a resolução dos contratos em causa à data da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º em análise, pelo que, persistindo os executados no incumprimento – em mora, já que a exequente não logrou demonstrar a conversão da mora em incumprimento definitivo àquela data – os mesmos deviam ter sido integrados no procedimento PERSI.”
F. Tendo vindo ainda o Digníssimo Tribunal “a quo” considerar verificada a exceção dilatória de falta de condição de procedibilidade (por não integração no PERSI), e em consequência absolveu os Executados da instância.
G. No entanto, com o devido respeito, que é muito, a Recorrente discorda da decisão proferida pelo Tribunal a quo, que, salvo melhor opinião, não valorou os factos e prova carreada aos autos, no Requerimento Executivo, nomeadamente, no que respeita à fatualidade e prova da alegada exceção dilatória de incumprimento de PERSI.
II- Da alegada falta de prova de receção pelos Executados das cartas de interpelação e resolução.
H. Na sentença recorrida entendeu-se que não estava demonstrada a resolução do contrato porque entende o Tribunal “a quo” que não ficou demonstrado que as missivas enviadas aos Executados foram por estes recebidas, ou sequer que, não o tendo sido, tal se deveu a sua culpa.
I. Primeiramente, a declaração de resolução é uma declaração receptícia.
J. De acordo com o princípio geral estabelecido no art.º 224.º, n.º 1, do Código Civil, que acolheu a chamada teoria da receção, apenas produz efeitos a partir do momento em que chega ao poder do destinatário ou é dele conhecida.
K. O n.º 2 do art.º 224.º do Código Civil atribui também eficácia à declaração apenas remetida nos casos em que a sua não receção se deve a culpa exclusiva do destinatário, dispondo para o efeito que “É também considerada eficaz a declaração que só por culpa do destinatário não foi por ele oportunamente recebida”.
Ora,
L. No caso dos autos, as cartas para interpelação e posteriormente a declarar a resolução, juntas como documentos nº 4 e 5 da contestação, foram remetidas para a morada, Rua A, Lisboa, indicada pelos Executados, ao mutuante, como sendo a sua morada, já após a celebração do contrato.
M. Tendo os Executados, dado a conhecer a alteração de morada ao Banco Espírito Santo, SA, esta entidade bancária, enviou as missivas referentes à interpelação e resolução do contrato, para a morada indicada pelos Executados.
N. O regime estabelecido pelo art.º 224º, nº 2 do CC, visa, designadamente, como se entendeu no Ac. do STJ de 14.11.2006, CJSTJ, Ano XIV, tomo 3, págs. 109 e segs., “contrariar práticas como as dos que se esquivam a receber declarações, de que constituirão a maior parte das cartas registadas, que são devolvidas aos respetivos remetentes. Por isso se compreende que a não receção se fique a dever exclusivamente ou apenas a culpa do destinatário a declaração seja havida como eficaz. Havendo culpa do declarante ou de terceiro, caso fortuito ou de força maior, afastada fica a aplicabilidade desta norma.
Consequentemente, haverá que demonstrar, em cada caso, que sem ação ou abstenção culposas do destinatário, a declaração teria sido recebida, não dispensando a concretização do regime um juízo cuidadoso sobre a culpa, por parte do declaratário, no atraso ou na não receção da declaração”.
O. No mais, a verdade, é que a Recorrida, não poderia desconhecer que se encontrava em incumprimento, e deveria prever que a Recorrente lhe iria dirigir comunicações, para a morada que tinha facultado ao banco.
Todavia,
P. Acresce que, a Recorrida, em momento algum, dos seus Embargos de Executado, alega não ter rececionado, as missivas enviadas pelo Banco Espírito Santo, SA, destinadas à interpelação ou resolução contratual.
Q. Assim, há que considerar as declarações foram eficazes e foram recebidas pela Recorrida. Aliás, apenas alega, a Recorrida no artigo 11 da sua contestação, que não rececionou a missiva, relativa à comunicação de preenchimento da livrança, enviada, mediante carta registada com aviso de receção, para a morada contratual e não para a morada facultada pela Recorrida após o contrato, conforme aviso de receção junto como documento nº 3 da contestação aos Embargos e missivas juntas como documento nº 4 e 5 do Requerimento executivo
R. Pelo que, quanto às cartas de interpelação e resolução, foi o Tribunal “a quo” por sua iniciativa decidiu considerar que as mesmas não foram rececionadas, sem que tal tenha sido alegado pela parte.
S. Assim, sem que dos articulados produzidos no presente processo ou de quaisquer elementos a eles advindos resultasse qualquer referência à não receção por parte da ora Recorrida, das missivas de interpelação e resolução do contrato, vem o Tribunal recorrido julgar, na sua decisão, que não ficou provado o envio de tais missivas.
T. Basta repetir que no requerimento de oposição à execução a Recorrida não alegou que a mutuante não tenha procedido ao envio da missiva relativa à resolução do contrato, para forçosamente ter de se concluir a inoficiosidade do conhecimento sobre a questão pretendida.
U. Como bem se explicou no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07.02.2017, Proc. 1758/10 (Rel. Pinto de Almeida): Admitir-se que o juiz possa, sem mais (isto é, apenas com a exigência de audiência contraditória na produção do meio de prova), considerar o facto novo, essencial (complementar ou concretizador), corresponderia a exigir ao mandatário da parte interessada um grau de atenção e diligência incomum, dirigida não só à produção e valoração da prova que fosse sendo realizada, mas também, antecipando o juízo valorativo do tribunal, à possibilidade de vir a ser retirado desse meio de prova e considerado provado um novo facto nele mencionado
V. Assim, a disciplina prevista no art.º 5º, nº 2, al. b), do CPC exige que o tribunal se pronuncie expressamente sobre a possibilidade de ampliar a matéria de facto com os factos referidos, disso dando conhecimento às partes antes do encerramento da discussão. Só depois poderá considerar esses factos.
W. Consultando os autos, constata-se que essa sinalização nunca foi efetuada na 1.ª instância, pelo que não foi garantido o exercício do contraditório nem o direito à prova.
X. É assim inequívoco que este facto indevidamente aditado serviu de fundamento à decisão do tribunal a quo, pelo que, se justifica a anulação do mesmo
III- Da alegada não integração em PERSI
Y. Na sentença recorrida entendeu-se que não estava demonstrada a integração dos Executados em PERSI, porque entende o Tribunal “a quo” “que, não se mostra validamente efetuada a resolução dos contratos em causa à data da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 227/2012 em análise, pelo que, os mesmos deviam ter sido integrados no procedimento PERSI.”
Z. Ora quanto à resolução contratual mantem o Recorrente o supra exposto.
AA. Quanto à obrigatoriedade de integração em PERSI, todavia, sempre se diga que, resulta inequívoco das missivas juntas como documento nº 4 e 5 da contestação, que as resoluções dos Contratos que se encontram na base das livranças que constituem os títulos executivos que fundam o presente processo executivo, foram efetuadas em 09 de Maio de 2011.
BB. Sucede que, conforme resulta da missiva os efeitos da resolução produziram-se a partir de 20 de maio de 2011.
CC. Ato contínuo, em 8 de junho de 2011, já após a resolução do contrato, foram enviadas aos Executados cartas a interpelar para o pagamento dos valores em divida, conforme missivas juntas como documento nº 3 e 5 da contestação.
DD. Ora sucede que, à data da entrada em vigor do Decreto – Lei nº 227/2012, em 1/1/2013, o referido contrato já tinha sido resolvido.
EE. No que respeita, à aplicação do diploma no tempo, dispõe o art.º 39º do referido DL o seguinte: 1 - São automaticamente integrados no PERSI e sujeitos às disposições do presente diploma os clientes bancários que, à data de entrada em vigor do presente diploma, se encontrem em mora relativamente ao cumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito que permaneçam em vigor, desde que o vencimento das obrigações em causa tenha ocorrido há mais de 30 dias.
2 - Nas situações referidas no número anterior, a instituição de crédito deve, nos 15 dias subsequentes à entrada em vigor do presente diploma, informar os clientes bancários da sua integração no PERSI, nos termos previstos no n.º 4 do artigo 14.º
3 - Os clientes bancários que, à data de entrada em vigor do presente diploma, se encontrem em mora quanto ao cumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito há menos de 31 dias são integrados no PERSI nos termos previstos no n.º 1 do artigo 14.ºFF. Assim, resulta deste artigo, para a implementação do PERSI, são necessários dois requisitos cumulativos:
• O Devedor ser cliente bancário
• E o contrato estar em vigor (artigo 12º do referido Decreto-Lei) em 1 de março de 2013, data da entrada em vigor do Decreto-Lei 227/2012.
GG. Ora, no presente caso, o efeito da resolução do contrato já se tinha produzido em 20 de maio de 2011, pelo que, não era legalmente exigida a implementação do PERSI, ao contrato em apreço nos autos.
HH. Assim, é forçoso concluir que andou mal o Tribunal “a quo” ao concluir que os Executados deveriam ter sido integrados em PERSI.
II. Assim, provado está, que não se verifica a exceção dilatória de falta de condição de improcedibilidade, que resulta do incumprimento das regras relativas ao PERSI, e que em consequência, absolve os executados da instância executiva
JJ. E assim sendo tem de concluir-se que a sentença proferida pelo Tribunal “a quo” enferma de nulidade.
NESTES TERMOS E NOS DEMAIS DE DIREITO, SEMPRE COM O DOUTO SUPRIMENTO DE V. EXA., DEVE O PRESENTE RECURSO SER JULGADO TOTALMENTE PROCEDENTE, POR PROVADO E, EM CONSEQUÊNCIA, SER REVOGADA A DECISÃO RECORRIDA, PROSSEGUINDO A AÇÃO OS SEUS TRÂMITES NORMAIS, FAZENDO-SE A TÃO ACOSTUMADA JUSTIÇA!”
- O executado apresentou contra-alegações, nas quais não incluiu conclusões, pugnando pela manutenção do decidido.
- Também a executada apresentou contra-alegações, que concluiu nos seguintes termos:
1ª A Recorrente recorre da D. Sentença proferida pelo Tribunal a quo que julgou procedente a exceção dilatória de falta de procedibilidade da ação executiva, por não integração no PERSI, e que, em consequência, absolve a Recorrida da instância executiva e determina o levantamento das penhoras realizadas e a restituição dos respetivos valores.
2ª A decisão proferida pelo Tribunal a quo está fundamentada no facto de a Recorrente não ter resolvido os Contratos de Crédito e de não ter lançado mão do PERSI, como deveria, antes da Execução movida contra os Executados.
3ª A Recorrente (que só adquiriu os créditos que reclama nos autos, no ano de 2018), não comprovou nos autos, sequer, que os documentos que, alegadamente, continham a aludida declaração de resolução do Banco Espírito Santo, S.A, juntos sob os números 4 e 5 com a Contestação aos Embargos, existiram à data, que foram enviados à Recorrida, quanto mais que foram recebidos por esta.
4ª A mera junção aos autos de supostas comunicações do Banco Espírito Santo, S.A. dirigidas à Recorrida, não permite à Recorrente comprovar que alguma vez tenham existido, que tenham sido expedidas/enviadas aos Executados, para a morada contratual, como resulta confirmado das informações prestadas nos autos pelos CTT.
5ª A Recorrida não recebeu nenhuma comunicação de resolução dos Contratos de Crédito titulados pelas Livranças juntas com o Requerimento Executivo, razão pela qual impugnou, expressamente e para todos os efeitos legais, por várias vezes, tanto nos autos principais, como no Apenso (Embargos), o envio e a receção desses alegados documentos.
6ª Andou bem, assim, o Tribunal a quo, ao decidir que não foi efetuada a resolução contratual em data anterior à entrada em vigor do regime PERSI, sendo este regime aplicável ao caso sub judice, por essa razão, ao abrigo do disposto no artigo 39º do diploma legal que o regula.
7ª A confessada falta de integração da Recorrida em PERSI (pela Recorrente) - preterição de obrigação que é condição objetiva obrigatória de procedibilidade desta ação -, consubstancia a exceção dilatória inominada, insuprível, de conhecimento oficioso que foi verificada pelo Tribunal a quo, ainda que invocada pela Recorrida, que conduz à extinção da instância executiva que foi determinada, e bem, pelo Tribunal a quo, com o consequente levantamento das penhoras realizadas e restituição dos respetivos valores.
8ª É falsa a alegação da Recorrente de que, nos Embargos de Executado, a Recorrida, tenha invocado nunca não ter rececionado as (pretensas) missivas enviadas pelo Banco Espírito Santo, S.A., em 2011, supostamente destinadas à interpelação ou à resolução contratual, visando a Recorrente, com a sua alegação, confundir este Venerando Tribunal da Relação, porquanto:
- Nos Embargos que deduziu, a Recorrida impugnou as cartas alegadamente remetidas pela Algebra Capital aos Executados, datadas de 15 de outubro de 2021 (de aviso de preenchimento de livrança), juntas com o Requerimento Executivo como Documentos números 4 e 5 – vide artigo 4º dos Embargos, e requereu que a aqui Recorrente fosse notificada para juntar aos autos o comprovativo do envio da carta que alegadamente tinha sido remetida à aqui Recorrida - vide artigo 15º dos Embargos, o que a Recorrente nunca fez.
- Essas missivas da Algebra Capital, datadas de 15 de outubro de 2021, não são as missivas alegadamente enviadas pelo Banco Espírito Santo, S.A., em 2011, destinadas à interpelação e à resolução contratual, que a aqui Recorrente alega que a Recorrida não refutou nos Embargos de Executado que deduziu e que juntou com a Contestação aos Embargos, como Documentos números 4 e 5!
9ª A Recorrida não impugnou esses documentos nos Embargos porque não podia impugnar (não conhecia esses documentos que não foram juntos com o Requerimento Executivo), já que, só muito posteriormente à dedução dos Embargos, em 11 de Setembro de 2023, e em resposta a Despacho proferido pelo Tribunal a quo, para comprovar nos autos o cumprimento do PERSI – exceção que foi invocada pela Recorrida nos Embargos que deduziu - é que a Recorrente veio alegar que essas comunicações de interpelação e resolução contratual existiam, embora não as tenha logo junto aos autos.
10ª E, curiosamente, só posteriormente, no Requerimento que juntou aos autos em 06.10.2023 com a refª citius 46715774 (24185067), é que aparecem tais “pretensos e supostos documentos” que a Recorrente juntou aos autos principais de execução (sob os números 1 e 2), e novamente, com a Contestação aos Embargos, que deduziu em 12.10.2023, sob os números 4 e 5 - Vide artigo 23º da Contestação.
11ª Assim e ao contrário do que pretende fazer crer a Recorrente, a existência desses documentos não foi alegada no Requerimento Executivo, apresentado em 16.11.2021, nem esses documentos foram juntos com esse Requerimento, e quando foram juntos aos (06.10.2023 e novamente em 12.10.2023), foram sempre impugnados pela Recorrida (nestes autos e nos de Embargos), porque nunca foram enviados à Recorrida e, consequentemente, esta não os recebeu.
12ª É por demais evidente a intenção da Recorrente de gerar confusão com a junção aos autos dos documentos alegadamente emitidos pelo Banco Espírito Santo, S.A., em 2011, com vista a tentar fazer crer que os Contratos foram resolvidos por esse Banco, em 2011, através de missivas que os Executados nunca receberam.
13ª Acresce que, é falsa a alegação da Recorrente de que a Recorrida não impugnou tal facto, nem esses documentos, assim como é falso que a Recorrida não tenha invocado não ter recebido as cartas. Aliás, tais pretensas cartas nem sequer se encontram dirigidas para a morada contratual da Recorrida.
14ª Improcede, assim, o argumento da Recorrente de que a Recorrida não tinha que ser integrada no Procedimento PERSI.
15ª É indubitável concluir, que, à data da entrada em vigor do Decreto – Lei nº 227/2012 de 25 de outubro, os Contratos de Crédito não tinham sido resolvidos, verificando-se, assim, o incumprimento da obrigação que impendia sobre a Exequente de acionar o PERSI, pelo que, a decisão proferida pelo Tribunal a quo não merece censura, devendo ser mantida.
16ª Em face do que acima ficou exposto, e em sua consequência, a Recorrida vê-se obrigada a impugnar a decisão proferida pelo Tribunal a quo, relativamente à matéria de facto que, no seu entender, foi indevidamente dada como provada em 4 a 10 da D. Sentença proferida, impondo-se a sua revogação quanto a essa matéria, ao abrigo do artigo 636º, número 2 do Código de Processo Civil.
17ª Assim, subsidiariamente, a decisão proferida pelo Tribunal a quo não merece censura, contudo, não deveria ter dado como provado que o Banco Espírito Santo, S.A., enviou aos Executados para a morada sita na Rua A, Lisboa, as missivas juntas aos autos com o requerimento a referência Citius n.º 24185067, datadas de:
- 11 de março de 2021 (Facto 4); 5 de fevereiro de 2011 (Facto 5); 10 de março de 2011 (Facto 6); 9 de maio de 2011 (Facto 7); 9 de maio de 2011 (Facto 8); 8 de junho de 2011 (Facto 9) e, - 8 de junho de 2011 (Facto 10).
18ª Apesar de ter junto aos autos esses documentos, a convite do Tribunal, a Recorrente não fez prova, sequer, e como lhe competia, da data da emissão desses documentos, da data da expedição dessas pretensas comunicações, i.e., de que foram enviadas à Recorrida, e claro está, que esta as recebeu, sendo certo que tais pretensas cartas nem sequer se encontram dirigidas para a morada contratual da Recorrida.
19ª Como a Recorrente não fez prova, como lhe competia, de que tais missivas existiram à data e de que foram enviadas à Recorrida, bem como, esta impugnou, expressamente, por diversas vezes, o envio dessas missivas e, consequentemente, a sua recepção, e bem assim, dos elementos dos autos não se retira que tenham sido enviadas, então, o Tribunal a quo não podia ter concluído que o Banco Espírito Santo, S.A., enviou aos Executados para a morada sita na Rua A, Lisboa, as missivas juntas aos autos com o requerimento a referência Citius n.º 24185067 (Factos 4 a 10 da Matéria de Facto provada).
20ª Pelo exposto, impugna-se a decisão proferida relativamente aos pontos acima elencados da Matéria de Facto (4 a 10), e a respetiva motivação do Tribunal a quo, o que a Recorrida faz, ao abrigo do artigo 636º, número 2 do Código de Processo Civil.
21ª Deve esse Venerando Tribunal da Relação alterar a decisão proferida, passando os factos 4 a 10 da Matéria de Facto, indevidamente considerados provados, a constar do elenco dos factos não provados, mantendo-se, no mais, inalterada.
Nestes termos, e nos mais de direito, com o D. suprimento de Vossas Excelências, deve ser negado provimento ao recurso e a decisão recorrida ser confirmada, com as legais consequências, sendo que, ao abrigo do artigo 636º, número 2 do Código de Processo Civil, impugna-se subsidiariamente a decisão proferida relativamente aos pontos acima elencados da Matéria de Facto (4 a 10), e a respetiva motivação do Tribunal a quo, devendo ser alterada, nesta parte, passando os factos 4 a 10 da Matéria de Facto, indevidamente considerados provados, a constar do elenco dos factos não provados, mantendo-se a Sentença proferida, no mais, inalterada, tudo com as legais consequências”
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Foi admitido o recurso como apelação, com subida imediata, nos próprios autos de execução e efeito meramente devolutivo.
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Remetidos os autos a este tribunal, inscrito o recurso em tabela, foram colhidos os vistos legais, cumprindo apreciar e decidir.
II – QUESTÕES A DECIDIR
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação, ressalvadas as matérias de conhecimento oficioso pelo tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido, nos termos do disposto nos artigos 608, nº 2, parte final, ex vi artigo 663º, nº 2, 635º, nº 4, 636º e 639º, nº 1, CPC.
Consequentemente, nos presentes autos, inexistindo questões de conhecimento oficioso a apreciar, as questões a decidir são as seguintes:
- Falta de contraditório quanto à matéria de facto relativa ao envio das cartas de interpelação e de resolução dos contratos de mútuo, subjacentes às livranças que constituem os títulos executivos;
- Resolução dos contratos em causa, data em que ocorreu e subsequente decisão sobre a aplicação do regime criado pelo DL 227/2012, de 25 de outubro (PERSI);
- Subsidiariamente, para o caso de procedência do recurso interposto pela exequente, alteração da matéria de facto quanto aos factos provados nºs 4 a 10, em face da impugnação das comunicações aí mencionadas (cfr. artigo 636º, nº 2, CPC).
III – FUNDAMENTAÇÃO
Tendo por base os factos que se extraem da tramitação processual supra enunciada, verifica-se que constitui questão nuclear na presente apelação aferir da exigibilidade de observância do Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI). Tal procedimento foi criado pelo DL nº 227/2012, de 25-10, que pretendeu estabelecer medidas preventivas do incumprimento e promover a regularização de situações de incumprimento, numa ótica de proteção dos consumidores incapazes de cumprir os compromissos financeiros assumidos perante instituições de crédito - cfr. artigos 2º, alíneas c) e d), 3º alíneas a), c) e f), do Dl 227/2012, de 25/10. Ali se consagram fundamentalmente dois procedimentos, um dos quais, relativo à “Gestão do Risco de Incumprimento”, que se desenvolve em momento prévio ao do incumprimento do mutuário, (artigos 9º a 11º), e outro relativo ao “Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI)”, previsto nos artigos 12º a 21º, aplicável a clientes bancários que se encontrem em mora no cumprimento de obrigações decorrentes de crédito bancário. Sendo este último o que se discute nos autos, salienta-se que comporta uma fase inicial, seguida da fase de avaliação/proposta/negociação e, por fim, a da extinção – cfr. artigos 14º, 15º, 16 e 17º do DL 227/2012, de 25 de outubro. Certo é que obriga as instituições bancárias a promoverem as diligências necessárias à implementação do PERSI relativamente a clientes bancários que se encontrem em mora no cumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito. – cfr. artigo 12º.
Por outro lado, e como decorre do artigo 18º, nº 1, alínea b) do citado diploma:
“No período compreendido entre a data de integração do cliente bancário no PERSI e a extinção deste procedimento, a instituição de crédito está impedida de:
(…) b) intentar ações judiciais tendo em vista a satisfação do seu crédito”.
O PERSI constitui, assim, uma fase pré judicial destinada à composição do litígio, impondo ao credor (instituição bancária/financeira), em razão da maior vulnerabilidade do consumidor, especiais deveres de informação, esclarecimento e proteção. Mais concretamente, a comunicação da integração do cliente no PERSI e a sua extinção, constituem condição da admissibilidade, da ação declarativa ou executiva, gerando a sua falta uma exceção dilatória insuprível, de conhecimento oficioso, que determina a extinção da instância – cfr. artigo 576º, nº 2, CPC.
Porém, decorre do artigo 40º do Dl 227/2012 que aquele diploma entrou em vigor no dia 1 de janeiro de 2013. Já o artigo 39º, nº 1, que regula a sua aplicação no tempo, estabelece que: “São automaticamente integrados no PERSI e sujeitos às disposições do presente diploma os clientes bancários que, à data da entrada em vigor do presente diploma, se encontrem em mora relativamente ao cumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito que permaneçam em vigor, desde que o vencimento das obrigações em causa tenha ocorrido há mais de 30 dias”.
Interessa, pois, definir se à data da entrada em vigor daquele diploma os contratos de mútuo bancário que estão na origem do preenchimento das livranças oferecidas como títulos executivos, já tinham sido resolvidos, por incumprimento, caso em que a exequente não estava obrigada a cumprir o referido regime, ou, ao invés, se ainda não tinham sido objeto de resolução, hipótese essa que exigiria a tramitação de PERSI previamente à instauração de execução.
Da leitura da decisão recorrida extrai-se que foi considerado apurado o envio das várias comunicações mencionadas nos factos provados, dirigidas pelo mutuante aos mutuários, visando a resolução dos contratos de mútuo em causa. Porém, ali se consignou como facto não apurado que os executados tenham recebido tais missivas, facto que foi motivado nos seguintes termos:
Por seu turno, os factos não provados resultaram da ausência de atividade probatória no sentido da sua verosimilhança.
Com efeito, perscrutado o teor dos contrato de mútuo juntos com a oposição à execução, dos mesmos consta morada diversa (...Praceta..., lote 148 A ...Parede) daquela para onde foram remetidas as comunicações supra identificadas, não se retirando de quaisquer outros elementos dos autos que as mesmas tenham sido recebidas pelos executados”.
Considerou, pois, o tribunal recorrido que os contratos de mútuo não se encontravam validamente resolvidos à data da entrada em vigor do diploma que criou o regime de PERSI, consignando-se na decisão recorrida:
Ora, no presente caso, não logrou a exequente demonstrar que as declarações de resolução enviadas aos executados foram por estes recebidas, ou sequer que, não o tendo sido, tal se deveu a sua culpa exclusiva.
Como tal, não se mostra validamente efetuada a resolução dos contratos em causa à data da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º em análise, pelo que, persistindo os executados no incumprimento – em mora, já que a exequente não logrou demonstrar a conversão da mora em incumprimento definitivo àquela data – os mesmos deviam ter sido integrados no procedimento PERSI”.
Na perspetiva do tribunal recorrido, a exequente não demonstrou que as declarações de resolução dos contratos de mútuo tenham sido recebidas pelos executados.
Ora, abstraindo da impugnação, pela executada, do próprio envio das ditas comunicações, interessa consignar que o facto que confere eficácia à declaração negocial de resolução (recetícia, como devidamente caraterizada na decisão recorrida), é a sua chegada à esfera de disponibilidade material do destinatário. Efetivamente, a declaração negocial não deixa de ser eficaz se apenas por culpa do destinatário não foi por ele conhecida, nos termos do nº 2 do artigo 224º, CC que estabelece que: “É também considerada eficaz a declaração que só por culpa do destinatário não foi por ele oportunamente recebida”. Consequentemente, contrariamente ao que parece resultar da decisão recorrida, o facto determinante para operar a resolução contratual é, não propriamente o efetivo recebimento da declaração de resolução, mas sim o seu envio para o local adequado para que o destinatário da mesma possa tomar conhecimento. Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-12-2021 (proferido no processo nº 4679/19.1T8CBR-C.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt): “A chegada à esfera de disponibilidade material ou de ação integra a cognoscibilidade (possibilidade ou suscetibilidade de conhecimento) da declaração pelo destinatário, independentemente do conhecimento efetivo, esfera essa aferida de acordo com as circunstâncias normais que envolvem o destinatário e correndo contra si os riscos que, de forma previsível e antecipada, impossibilitam (sibi imputet) que a cognoscibilidade se converta em conhecimento efetivo, desde que essa esfera esteja sob o controlo do destinatário”.
Certo é que, com a precisão que antecede, a circunstância de ter ou não operado a resolução dos contratos de mútuo, constituía questão relevante para aferir, nos termos expostos, da aplicabilidade do regime de PERSI.
Verifica-se ainda que, decerto por estar em causa exceção de conhecimento oficioso, o tribunal a quo optou por proceder ao seu conhecimento no processo executivo (apesar de ter sido expressamente suscitada em embargos de executado, no apenso B). Tal opção estará na origem do despacho de 28-11-2023, proferido em ambas as oposições, no sentido de que tais autos – declarativos – aguardassem a decisão a proferir (na execução) relativamente ao cumprimento do regime de PERSI.
Tal apreciação, por iniciativa oficiosa do juiz, deverá ser enquadrada processualmente no regime do artigo 734º, CPC, que, sob a epígrafe: “Rejeição e aperfeiçoamento”, estipula:
1 - O juiz pode conhecer oficiosamente, até ao primeiro ato de transmissão dos bens penhorados, das questões que poderiam ter determinado, se apreciadas nos termos do artigo 726.º, o indeferimento liminar ou o aperfeiçoamento do requerimento executivo.
2 - Rejeitada a execução ou não sendo o vício suprido ou a falta corrigida, a execução extingue-se, no todo ou em parte.”
A propósito do ali estabelecido, referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Volume II, páginas 97 e 98): “No processo de execução, podendo existir uma intervenção liminar do juiz, não está prevista propriamente uma fase de saneamento. Assim se compreende que as questões que porventura poderiam e deveriam ter determinado o indeferimento liminar total ou parcial, assim como aquelas que, de menor gravidade, careceriam de regularização suscitada através de despacho de aperfeiçoamento devam ser objeto de uma intervenção atípica. A mesma pode ocorrer até a um certo momento mais concretamente até à venda, adjudicação, entrega de dinheiro ou consignação de rendimentos, e não depois, tendo em vista os direitos adquiridos no processo por terceiros de boa fé (…) Efetuados pagamentos na execução, fica precludida a possibilidade de indeferimento do requerimento executivo (…) No que concerne aos motivos determinantes desta atuação do juiz, existe uma relação de causa e efeito facilmente identificada. Os mesmos motivos que deveriam ter determinado o indeferimento liminar do requerimento executivo (art.º 726º) servem para provocar a rejeição da execução, com efeitos na sua extinção total ou parcial (…) Se o juiz pode rejeitar a execução, apesar de ter admitido liminarmente a execução, não faria sentido que o não pudesse fazer quando não houve sequer despacho liminar (RL 15-02-18, 2825/17)”.
Em síntese, o regime do artigo 734º, CPC, apenas pode reportar-se a questão que seja de conhecimento oficioso, cuja apreciação liminar poderia ter determinado, nos termos do artigo 726º CPC, o indeferimento do requerimento executivo ou um convite ao seu aperfeiçoamento. Trata-se, pois de intervenção que não deve servir para suprir os ónus do executado no exercício do seu “direito de defesa”, e que não poderá deixar de ser reservada para o elenco de situações previstas no artigo 726º CPC, que, de forma manifesta, revelem encontrar-se inviabilizada a exigência do cumprimento coercivo da obrigação exequenda. Neste sentido, tem vindo ainda a reconhecer-se que o vício apreciar nos termos do artigo 734º CPC deve ser manifesto pelo que “(…) o indeferimento liminar do requerimento executivo, tem necessariamente de apresentar as caraterísticas de evidente, incontroversa, insuprível, definitiva, excecional, sendo esse o significado de manifesta” [expressão do artigo 726º nº 2, alínea a) relativa à apreciação liminar da falta de título executivo] – Acórdão da Relação de Lisboa de 24-09-2019 (proferido no processo nº 35949/11.6TYYLSB-L1-7, disponível em www.dgsi,pt). No mesmo sentido, afirmou o Tribunal da Relação de Guimarães em acórdão de 28-01-2021 (proferido no processo nº 7911/19.8T8VNF.G1, disponível em www.dgsi.pt) que: “A rejeição oficiosa nos termos do artigo 734º e 726º, nº 2, alínea a), CPC pressupõe que a falta de título seja evidente e incontroversa, e não uma situação que implique prévias diligências por parte do tribunal”.
A propósito de norma similar (820º) do anterior Código de Processo Civil, pronunciou-se o Tribunal da Relação de Lisboa por acórdão de 02-02-2010 (proferido no processo 2621/08.4TBALM.L1-7, disponível em www.dgsi.pt) que a rejeição da execução aí prevista: “tem de ser necessariamente encarada com parcimónia por parte do juiz, ponderando sempre o facto de ao executado ter sido dada a oportunidade de deduzir oposição e reservando a atuação de natureza complementar para situações-limite em que a irregularidade da ação executiva não deixe margem para dúvidas. O uso do mecanismo do art.º 820º do CPC tem que ser necessariamente reservado para situações excecionais em que a ocorrência de alguma das situações abstratamente previstas decorar da mera análise dos elementos fornecidos pelos autos, sem necessidade de intervenção judicial, de pendor inquisitório.
Dito de outro modo, a intervenção judicial para efeitos de rejeição da execução deve ser guardada para os casos em que uma eventual intervenção liminar o juiz permitisse determinar por si o indeferimento do requerimento executivo.
Não se inscreve na ratio e nos objetivos do preceituado no art.º 820º do CPC uma postura do juiz que se traduza na substituição dos ónus que incumbiam ao executado e que este não cumpriu ou não cumpriu dentro dos prazos que a lei prescreve.”
Ora, expostas as condicionantes que poderão determinar a intervenção oficiosa do juiz no âmbito do regime consagrado no artigo 734º, CPC, desde já se adianta que tal oficiosidade não poderá postergar o princípio do contraditório.
E o certo é que, apesar de não qualificar expressamente tal vício, resulta da alegação da recorrente que, na sua perspetiva, a sentença incorreu em preterição do princípio do contraditório, constituindo uma “decisão-surpresa”.
Na verdade, a recorrente insurge-se relativamente ao não apuramento de que os executados tenham recebido as cartas mencionadas nos factos provados números 4 a 9, considerando que nunca a executada/recorrida invocou não ter rececionado tais missivas. Assim, a consideração de tal factualidade, que a recorrente considera complementar (da resolução dos contratos) nos termos do disposto na alínea b) do nº 2, do artigo 5º, CPC, implicaria a concessão de contraditório, bem como a faculdade de sobre a mesma ser produzida prova. Conclui a recorrente que “este facto indevidamente aditado serviu de fundamento à decisão do tribunal a quo, pelo que se justifica a anulação do mesmo” (conclusão X das alegações).
Ora, contrariamente ao que refere a recorrente, não pode confirmar-se que a executada não invoca o não recebimento das cartas (tanto mais que impugna o seu próprio envio). De todo o modo, resulta da decisão recorrida que a exequente “não logrou demonstrar que as declarações de resolução enviadas aos executados foram por estes recebidas, ou sequer que, não o tendo sido, tal se deveu a sua culpa exclusiva.” O assim decidido teve por base, como se extrai da motivação da decisão, a desconformidade entre a morada para a qual foram remetidas as comunicações de resolução contratual e a que consta dos contratos de mútuo (sendo esta a ...Praceta..., lote 148 A ...Parede e aquela a Rua A, Lisboa).
Certo é que ao não apuramento do recebimento das comunicações de resolução que a recorrente reage, considerando que se trata de facto complementar, cuja consideração exigiria que lhe tivesse sido concedido contraditório. Considera, pois, a recorrente que a consideração deste facto constituiu “decisão surpresa”.
Sob a epígrafe “Necessidade do pedido e da contradição”, dispõe o nº 1 do artigo 3º, CPC que: “O tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição”. Já o nº 3 daquela mesma norma dispõe: “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.
Esta última norma foi introduzida no atual Código de Processo Civil pelo DL n.º 329-A/95, de 12-12, tendo sofrido, desde então, ligeiras alterações. E, a seu propósito, consta do preâmbulo daquele diploma: “Significativo realce foi dado à tutela efetiva do direito de defesa, prevendo-se que nenhuma pretensão possa ser apreciada sem que ao legítimo contraditor, regularmente chamado a juízo, seja facultada oportunidade de deduzir oposição. (…). Assim, prescreve-se, como dimensão do princípio do contraditório, que ele envolve a proibição da prolação de decisões surpresa, não sendo lícito aos tribunais decidir questões de facto ou de direito, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que previamente haja sido facultada às partes a possibilidade de sobre elas se pronunciarem (…).”.
Uma das vertentes mais decisivas do princípio do contraditório é a da proibição das decisões surpresa, que atualmente se afirma numa conceção moderna, “(…) mais ampla do que a do direito anterior (…) Não se trata já, apenas de, formulado um pedido ou tomada uma posição por uma parte, ser dada à contraparte a oportunidade de se pronunciar antes de qualquer decisão (…) Este direito à fiscalização recíproca das partes ao longo do processo é hoje entendido como corolário de uma conceção mais geral da contraditoriedade, como garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação, direta ou indireta, com o objeto da causa e em qualquer fase do processo apareça, como potencialmente relevantes para a decisão” – Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anotado, 3ª edição, página 7.
Relativamente ao enquadramento da decisão proferida com violação do princípio do contraditório, têm vindo a afirmar-se entendimentos diversos, seja como nulidade processual, nulidade da própria decisão ou mesmo violação de um direito processual fundamental.
Assim, o Supremo Tribunal de Justiça no acórdão 29-02-2024, proferido no processo nº 19406/19.5T8LSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt, considerou que a violação do princípio do contraditório ocorre em momento anterior à decisão que foi proferida sem a sua observância pelo que: “ (…)Quando decide sem cumprimento do princípio do contraditório, o que o tribunal está a fazer é a omitir, no processo de decisão, uma formalidade que a lei prescreve. Socorrendo-nos das palavras de Manual de Andrade, estamos perante um desvio do formalismo processual seguido, em relação ao formalismo processual prescrito na lei (Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora Limitada, 176). Visto que não há norma especial que sancione a omissão desta formalidade, aplica-se-lhe a regra geral do n.º 1 do artigo 195.º do CPC, na parte em que dispõe que a omissão de uma formalidade que a lei prescreve produz nulidade quando a irregularidade cometida possa influir na decisão da questão”. Certo é que, em face dos reflexos que tal vício produz na decisão recorrida, embora ocorrendo em momento anterior à sua prolação, nada obsta à sua arguição por meio de recurso. Aliás, a recorribilidade de decisões que violem o princípio do contraditório mostra-se expressamente estabelecida no artigo 630º, nº 2, CPC.
Para os defensores da nulidade ao nível da própria decisão, dado ter sido proferida sem concessão de contraditório, o fundamento da sua nulidade radica em excesso de pronúncia nos termos do disposto no artigo 615º, nº 1, alínea d), CPC (conhecimento de questões de que o juiz não podia tomar conhecimento). A este propósito, Miguel Teixeira de Sousa, “O que é uma nulidade processual?” (disponível em https://blogippc.blogspot.com/search?q=nulidade+processual), distingue nos seguintes termos a nulidade da sentença da nulidade processual: “Todo o processo comporta um procedimento, ou seja, um conjunto de atos do tribunal e das partes. Cada um destes atos pode ser visto por duas óticas distintas: -- Como trâmite (…); -- Como ato do tribunal ou da parte (…). Em suma: a nulidade processual tem a ver com o ato como trâmite de uma tramitação processual, não com o conteúdo do ato praticado pelo tribunal ou pela parte (...)-- As nulidades da sentença e dos acórdãos decorrem do conteúdo destes atos do tribunal, dado que estas decisões não têm o conteúdo que deviam ter ou têm um conteúdo que não podem ter (cf. art.º 615.º, 666.º, n.º 1, e 685.º CPC); também não é por acaso que estas nulidades não são reconduzidas às nulidades processuais reguladas nos art.ºs 186.º a 202.º CPC”.
Refere ainda este autor que a nulidade prevista na al. d), do nº1, do art.º 615º, no segmento relativo ao conhecimento pelo juiz de questões de que não podia tomar conhecimento, tanto abarca a não possibilidade absoluta de conhecimento de uma questão, como a inviabilidade de a conhecer em certas circunstâncias, designadamente antes de conceder contraditório por lhe estar vedada a prolação de decisões surpresa, nos termos do artigo 3º, nº 3, CPC. Consequentemente, defende que a decisão-surpresa respeita à decisão como ato, e é nula por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615º, nº1, al. d), CPC, dado que se pronuncia sobre uma questão sobre a qual, sem audição prévia das partes, não se poderia pronunciar, sendo a prolação desta que constitui ato ferido de nulidade. – “Nulidades do processo e nulidades da sentença: em busca da clareza necessária”, comentário de 22/09/2020 ao acórdão do STJ de 02/06/2020, proferido no processo 496/13.0TVLSB.L1.S1, Blog do IPPC, em https://blogippc.blogspot.com. Neste sentido, pronunciou-se o Supremo Tribunal de Justiça no acórdão de 13-10-2020 (proferido no processo nº 392/14.4T8CHV-A.G1.S1) e o Tribunal da Relação de Lisboa no acórdão de 26-09-2023 (proferido no processo 7165/22.9T8LSB.L1-7, disponível em www.dgsi.pt).
Por fim, defende-se ainda que a decisão proferida sem exercício de contraditório corresponde à violação de um direito processual fundamental. Sufragando tal entendimento, afirmou-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-03-2024 (proferido no processo 86/22.7T8PTL.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt,) que o contraditório é “um princípio estruturante do processo civil, mas é mais do que isso: é um direito processual fundamental”, decorrendo esta sua natureza “da consagração constitucional nos artigos 20.º, 1 e 202.º, 2 CRP, enquanto direito de defesa, e no artigo 32.º, 5, mas ainda do artigo 6.º da Convenção europeia de salvaguarda dos direitos do homem e das liberdades fundamentais e do artigo 47.º da Carta dos direitos fundamentais da união europeia (…) a decisão final proferida nestas condições pode, por isso, considerar-se ferida de nulidade extra formal geneticamente derivada das garantias constitucionais”. Assim, tratando-se de vício da decisão final, “este deve ser feito valer em sede de recurso (…)”.
Reconhecendo que a questão nem sempre se apresenta de enquadramento evidente, o certo é que, no caso presente, considera-se adequado o enquadramento da nulidade invocada na própria decisão recorrida, dado que a omissão de ato que a lei prescreve, na tese da recorrente, projetou-se em tal decisão, sendo por via da sua sindicância (em recurso) que poderá ser apreciada. Neste sentido, Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, pág. 26): “(…) quando o juiz aprecie uma determinada questão que traduza uma decisão surpresa, sem respeito pelo princípio do contraditório previsto no artigo 3º, nº 3, a parte prejudicada nem sequer dispôs da possibilidade de arguir a nulidade emergente da omissão do ato, não podendo deixar de integrar essa impugnação, de forma imediata no recurso que seja interposto de tal decisão”.
De todo o modo, as três apontadas orientações convergem no sentido da admissibilidade de recurso tendo por fundamento a prolação de decisão-surpresa, reconduzindo-se a divergência essencialmente à qualificação do vício gerado pela omissão de contraditório.
Interessa, pois, indagar se a decisão recorrida constituiu uma “decisão surpresa”, tendo sido proferida com violação do princípio do contraditório.
Desde já se adianta que se afigura que a resposta a tal questão não pode deixar de ser positiva.
Enunciando os aspetos mais relevantes da tramitação processual seguida até à decisão que julgou extinta a execução por falta de cumprimento do regime de PERSI extraem-se as seguintes vicissitudes nucleares:
- Nos embargos de executado deduzidos pela recorrida em 30-06-2023, foi expressamente alegado não ter sido dado cumprimento às obrigações decorrentes do Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI) previsto no Dl 227/2012, de 25-10, e solicitada a notificação da exequente para que comprovasse ter cumprido tal obrigação.
- Em 09-07-2023, nos autos executivos, foi oficiosamente suscitada a questão da integração em PERSI, tendo sido proferido despacho convidando a exequente a comprovar que ao mesmo deu cumprimento, ali se dirigindo, ainda, convite expresso a ambas as partes para, ao abrigo do disposto no artigo 3º, nº 3, CPC se pronunciarem sobre a “eventual preterição de tal pressuposto processual”.
- Pronunciando-se sobre a questão, a exequente defendeu não haver lugar ao cumprimento de tal regime (PERSI) porque à data em que o mesmo passou a vigorar no nosso ordenamento jurídico, na sua perspetiva, os mútuos bancários que estão na origem da obrigação exequenda haviam sido objeto de resolução (cfr. requerimentos de 11-09-2023 e de 16-10-2023).
- Acresce que, na sequência do despacho de 09-05-2024 em que se considerou que as cartas juntas pela exequente consubstanciavam interpelações para o cumprimento e não declaração de resolução dos contratos e lhe foi dirigido convite para comprovar tal resolução, a exequente veio alegar em 24-05-2024 que “as cartas enviadas em maio e junho de 2011, consubstanciam claramente uma resolução implícita”. E, na sequência do despacho de 23-07-2024 veio reiterar que os contratos foram resolvidos conforme comunicações corporizadas nos documentos nºs 4 e 5, correspondendo esta numeração à ordem dos documentos apresentados na contestação dos embargos de executado no apenso B (requerimento de 31-07-2024).
Ou seja, manifestamente foi debatida a questão da inaplicabilidade do regime de PERSI, por estarem resolvidos os contratos de mútuo em causa à data do início da sua vigência.
Porém, nunca foi objeto de debate a específica questão da divergência entre a morada usada para as comunicações de resolução e o domicílio dos executados constante dos contratos de mútuo em causa. Consequentemente, à exequente foi vedada a oportunidade de alegar (e demonstrar) que foi a solicitação dos executados que o respetivo domicílio foi alterado perante a entidade bancária mutuante, alteração essa que apenas em sede de recurso veio alegar.
O certo é que a exequente foi interpelada para demonstrar que resolvera os contratos, não tendo tido a oportunidade de alegar e provar que dirigiu as comunicações de resolução para domicílio alterado a requerimento dos executados. Ou seja, no específico contexto processual apurado, em que a exequente foi sucessivamente convidada a juntar comprovativos de comunicações que corporizassem verdadeiras interpelações admonitórias, acabou por ocorrer uma inflexão no sentido da decisão previsível. Efetivamente, não foi dado seguimento à anunciada desadequação das cartas para operarem a resolução do contrato, tendo passado a constituir tema central e decisivo da decisão recorrida, o domicílio para onde foram enviadas, que nunca antes fora debatido.
Consequentemente, impõe-se a anulação da decisão recorrida, por forma a garantir o conhecimento, com observância do princípio do contraditório, da alegada resolução dos contratos de mútuo mediante o envio de comunicações para o domicílio adequado e, concomitantemente, da falta de integração em PERSI.
O tribunal recorrido decidirá da necessidade de realizar diligências instrutórias que venham a ser requeridas, com vista ao apuramento da referida exceção, nada obstando, aliás, a que tal conhecimento possa verificar-se nos incidentes declarativos de embargos de executado (tanto mais que no apenso B a questão foi expressamente suscitada), atento o caráter perfunctório da intervenção do juiz no âmbito do regime do artigo 734º, CPC.
Salienta-se ainda que por estar em causa uma violação do princípio do contraditório, não se equaciona a substituição do Tribunal da Relação ao Tribunal a quo, nos termos do disposto no artigo 665º, CPC, dado que se impõe a pronúncia das partes sobre a questão suscitada, com a sua eventual instrução, após o que deverá ser proferida nova decisão.
Fica prejudicado o recurso relativamente às demais questões suscitadas.
Revogando-se a decisão recorrida, as custas serão suportadas pelos executados, sem prejuízo do apoio judiciário com que litigam – cfr. artigo 527º, CPC.
– cfr. artigo 527º, CPC.
III – DECISÃO
Acorda-se em conceder parcial provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida, a qual deverá ser substituída por outra precedida de contraditório e de eventual instrução, com vista ao cabal conhecimento da resolução dos contratos de mútuo que determinaram o preenchimento das livranças oferecidas como títulos executivos e, concomitantemente, da exceção de falta de integração em PERSI, que poderá ocorrer na execução ou nos incidentes de oposição mediante embargos.
Custas pelos executados, sem prejuízo do apoio judiciário com que litigam – cfr. artigo 527º, CPC.

Lisboa, 22 de maio de 2025
Rute Sobral
Laurinda Gemas
Susana Mesquita Gonçalves