CONTRATO DE DEPÓSITO
SANÇÃO PECUNIÁRIA COMPULSÓRIA
Sumário

I – A satisfação do interesse da exequente/apelada não é obtida com a mera remoção da documentação para qualquer lugar, pois, por força do contrato de depósito a coisa tem de ser entregue à apelante; por isso, não está em causa uma obrigação de prestação de facto fungível.
II- Visto que a apelante recusa receber a documentação, insistindo que está deteriorada devido a incúria da depositária e nem a apelada nem terceiro a podem forçar materialmente a recebê-la, justifica-se a aplicação da sanção pecuniária compulsória para vencer a sua resistência a obedecer à decisão judicial transitada em julgado, como se impõe num Estado de direito.

Texto Integral

Acordam na 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I – Relatório
1. R.F.S. Telecomunicações, Lda instaurou execução de sentença para pagamento de quantia certa em 06/04/2021 contra Fundação DA, expondo:
«Factos:
A Ré/reconvinte e aqui exequente, RFS - Telecomunicações, Lda., vem propor acção executiva contra a A./reconvinda, aqui executada, Fundação DA nos termos do n.º 1, do arts. 85.º, n.º 1 do art.º 89.º, n.º 2 do art.º 550.º, alínea a), do n.º 1, do art.º 703.º, n. 1 (in fine) do art.º 704.º e art.º 724.º, todos do CPC., nos termos e com os fundamentos seguintes:
1. Por sentença de 09-02-2021, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste - Cascais - Juízo Central Cível, Juiz 3, Proc.º 3946/18.6T8CSC, foi a aqui executada, FUNDAÇÃO DA, condenada a pagar à Ré, aqui exequente RFS, TELECOMUNICAÇÕES, LDA:
a) A quantia de €49.800 € (quarenta e nove mil e oitocentos euros), correspondente à retribuição pelo depósito vencida desde Março de 2014, até Fevereiro de 2021, ao valor mensal de 600€ (seiscentos euros), acrescida do montante de 11.454 € (onze mil quatrocentos e cinquenta e quatro euros) a título de IVA à taxa de 23 %, no total de 61.254 € (sessenta e um mil duzentos e cinquenta e quatro euros), a que acrescem juros, à taxa dos juros comerciais, vencidos e vincendos calculados: i) sobre os valores das retribuições vencidas entre Fevereiro de 2014 e Abril de 2018, inclusive, desde 14.05.2018, ii) sobre os valores das retribuições vencidas de Maio de 2018 até Janeiro de 2019, inclusive, desde 08.02.2019 e, iii) sobre as retribuições vencidas e vincendas a partir de Fevereiro de 2019, inclusive, desde o dia 1 do mês seguinte, tudo, até efectivo e integral pagamento;
b) Condenar a executada, FUNDAÇÃO DA, a pagar à exequente, RFS, TELECOMUNICAÇÕES, LDA. as retribuições pelo depósito, vincendas desde Março de 2021 (inclusive), até à remoção integral de toda a documentação objeto do depósito, ao valor mensal de 600€ (seiscentos
euros), acrescida de IVA à taxa legal em vigor e de juros, à taxa dos juros comerciais, vencidos e vincendos, a contar do dia 1 do mês seguinte, até efectivo e integral pagamento, valor que em 01-02-2021, totaliza €73.613,20.
c) Condenar da executada, FUNDAÇÃO DA, a proceder à retirada, imediata, de toda a documentação que lhe pertence e que está depositada no armazém da exequente, RFS, TELECOMUNICAÇÕES, Lda.
d) Condena a autora/executada, FUNDAÇÃO DA, e a ré/exequente, RFS, TELECOMUNICAÇÕES, LDA., no pagamento das custas do processo, na proporção do respectivo decaimento, de 99% e 1 %, nos termos do art.º 527.º n.ºs 1 e 2, do CP Civil. Incluindo honorários e despesas do Agente de Execução.
(…)
A executada Fundação DA, foi condenada por sentença judicial (título executivo), a pagar à exequente, RFS - Telecomunicações, Lda., as quantias seguintes:
1 - Depósito da documentação: €49.800,00
2 - IVA à taxa de 23% ............: €11.454,00
3. Valor dependente de simples cálculo aritmético, é referente aos juros comerciais vencidos até 01-02-2021, calculados sobre o valor mensal de depósito dos documentos. no montante de €12.359,20, conforme folha de calculo junta.
- Montante total da quantia exequente em 01-02-2021: €73.613,20
- A que acresce o valor de retribuição mensal de €600,00, a título de depósito dos documentos e respetivos juros comerciais, desde 01-02-2021, até levantamento de toda a documentação da executada e efetivo e integral pagamento.»
*
2. Em 15/11/2021 a exequente apresentou requerimento em que se lê, designadamente:
«(…)
Finalidade: Cumular a Processo Existente
(…)
Factos:
Por sentença proferida no processo N.º 3946/18.6T8CSC, que correu termos no JC Civil de Cascais - Juiz 3, a executada Fundação DA, foi condenada a: "Condena a autora/reconvinda, FUNDAÇÃO DA, a proceder à retirada, imediata, de toda a documentação que lhe pertence e que está depositada no armazém da ré, reconvinte, RFS, TELECOMUNICAÇÕES, LDA."..
A autora, aqui executada, não se conformando com a douta decisão recorreu para o TRL, o qual, por acórdão proferido em 06-07-2021, pela 7.ª secção deste Tribunal, veio a decidir, "julgar improcedente a apelação, mantendo-se, em consequência, a sentença recorrida", a qual já transitou em julgado.
A autora, aqui executada, foi interpelada por carta registada enviada pela aqui exequente, para cumprimento da referida decisão judicial, de retirar, imediatamente toda a documentação que lhe pertence e que está depositada no armazém da RFS, TELECOMUNICAÇÕES, LDA., estabelecendo como prazo máximo de cumprimento. até 09-08-2021.
A executada até à presente data nada disse, nem retirou qualquer documentação.
A exequente não tem condições para continuar a ter a referida documentação nas suas instalações, o que acontece há já 17 anos e que lhe está a causar graves prejuízos, pelo que requer a sua retirada imediatamente, conforme decisão judicial.
(…)»
*
3. Sobre esse requerimento incidiu o despacho de 24/11/2021 em que se lê, além do mais:
«A cumulação requerida tem por finalidade a “prestação de facto”.
Sucede que a execução originária e a cumulação ora requerida assentam no mesmo título executivo – sentença proferida no processo N.º 3946/18.6T8CSC, que correu termos no JC Civil de Cascais - Juiz 3, a qual, no que respeita à obrigação de prestação de facto, terá transitado em data posterior.
Ora, de acordo com o disposto no artigo 626.º, sob a epígrafe “execução de decisão judicial condenatória”, é possível executar sentença com finalidades/fins diferentes.
Nesta conformidade nada obsta à cumulação requerida, a qual admito liminarmente.
Notifique, sendo a executada nos termos do disposto no artigo 868.º, nº2, do CPC.»
*
4. Em 27/01/2023 a exequente requereu:
«a) Fixação de prazo, que nunca poderá ser superior a 15 dias, para a executada retirar ou indicar o local para onde deverá ser retirada toda a documentação em poder da exequente.
b) Condenar a executada em sanção pecuniária compulsória ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 868.º do CPC, ex vi do artigo 874.º do CPC, em valor a fixar segundo o prudente arbítrio de V. Exa.
Em alternativa ou caso não se verifique o supra requerido na alínea a):
c) Declarar a documentação abandonada pela executada e sem qualquer interesse para esta, dado o estado de decomposição da mesma, permitindo que após ultrapassado o referido prazo, seja retirada pela
exequente e entregue a empresa de reciclagem de papel, para sua completa destruição.»
*
5. A executada pronunciou-se em 28/03/2023 e em 26/09/2023 foi proferido o seguinte despacho:
«Requerimento da exequente de 27-01-2021:
A exequente veio requerer, para além do mais, a fixação de prazo para a executada retirar ou indicar o local para onde deverá ser retirada toda a documentação em seu poder.
Sucede que tal pedido foi efectuado no âmbito da primitiva execução, para pagamento de quantia certa, sendo que só posteriormente, em 24-11-2021, foi admitida a requerida cumulação de execuções, esta última para prestação de facto.
Assim, antes de mais, notifique a exequente para, no prazo de 10 dias, esclarecer se reitera o pedido que formulou por requerimento apresentado em 27-01-2021.
Caso a exequente reitere o seu pedido, deverá a executada esclarecer, no prazo de 10 dias, se mantém a
resposta que apresentou.»
*
6. Após as respostas das partes foram proferidos estes despachos em 04/01/2024:
«O exequente veio pedir a “fixação de um prazo, que nunca poderá ser superior a 15 dias, para a executada retirar ou indicar o local para onde deverá ser retirada toda a documentação em poder da exequente.”.
Sucede que a executada foi já condenada, por sentença transitada em julgado, a “proceder à retirada, imediata, de toda a documentação que lhe pertence e que está depositada no armazém da ré, reconvinte, RFS, TELECOMUNICAÇÕES, LDA.”.
Verifica-se, pois, que o prazo para a retirada da documentação foi já fixado – de imediato – pelo que não há que conceder novo prazo à executada para o efeito, estando esta em mora desde a data do transito em julgado da sentença dada à execução.
Pelo exposto, indefiro o requerido pelo exequente.
Notifique.
*
Pretendendo o executado obter, ao abrigo do disposto no art.º 686º, 1, última parte, do Cód. Proc. Civil, o pagamento de quantia a título de sanção pecuniária compulsória e sendo fluídos os critérios de equidade e razoabilidade a que a lei manda atender, notifique as partes para se pronunciarem sobre o montante a fixar para a dita sanção, indicando os respectivos fundamentos que sustentam tal pronúncia.»
*
7. Após as respostas das partes foi proferido o seguinte despacho em 06/03/2024:
«Notificadas as partes nos termos do despacho antecedente, ou seja, para se pronunciarem sobre o montante a fixar para a requerida sanção pecuniária compulsória, veio a exequente requerer, em alternativa à condenação da executada em sanção pecuniária compulsória cujo valor indicou, que se declare a documentação abandonada pela executada e sem qualquer interesse para esta, dado o estado de decomposição da mesma, permitindo que seja retirada pela exequente e entregue a empresa de reciclagem de papel, para sua completa destruição, pagando a executada os custos da respetiva remoção.
Por seu turno, na sequência do mesmo despacho, a executada veio consignar que «(…) não tem nem deve ser condenada a pagar qualquer sanção pecuniária, uma vez que não pode levantar o que a exequente, sem sua culpa e responsabilidade, aparentemente, transformou em “res nulliis”, não tendo sido aquilo que foi levado das suas instalações».
Temos, pois, que existe acordo das partes quanto ao facto de se tratar de documentação sem qualquer interesse para a executada.
Nesta medida, declaro abandonada pela executada a documentação em causa nestes autos e que foi objecto da sentença dada à execução e, em consequência, autorizo que a mesma seja retirada pela exequente e entregue a empresa de reciclagem de papel, para sua completa destruição, o que será efectuado à custa da executada, isto é, pagando esta os respectivos custos.»
*
8. A executada interpôs recurso dessa decisão em 21/03/2024.
*
9. Em 27/05/2024 foi proferido o seguinte despacho:
«Recurso interposto pela executada em 21-03-2024:
Antes de mais, a fim de que me possa pronunciar sobre a nulidade invocada, em conformidade com o disposto no art.º 617º, 1, do Cód. Proc. Civil, e porque a decisão constante do despacho proferido em 06-03-2023 assentou naquilo que o tribunal interpretou como sendo um acordo das partes no sentido de se considerar que a documentação dos autos não tem qualquer interesse para a executada, impõe-se que a executada esclareça se, afinal, a documentação tem interesse para si e, nessa medida, pretende proceder ao seu levantamento no prazo que lhe vier a ser definido ou se, pelo contrário, não tem interesse em tal levantamento e, nesse caso, o tribunal interpretou bem a alegação contida no seu requerimento de 18-01-2024.
Assim, notifique a executada para prestar os referidos esclarecimentos.»
*
10. A executada respondeu em 13/06/2024 dizendo:
«1º A documentação tem interesse, aliás muito interesse, sendo um dos seus escopos, ainda pendentes. Se a executada não tivesse interesse
2º não teriam suscitado os préstimos da exequente que, para além de não ter cumprido o que se obrigou, pelo que vem alegado, não cuidou como devia, do que lhe foi confiado
3º reclamando e pretendendo ser remunerado, para mais, pela sua guarda e pelo que não fez,
4º pretendendo a executada proceder ao levantamento da mesma, desde que a exequente cumpra o que se comprometeu a cumprir, ou seja,
5º já não falando na digitalização, que entregue o que lhe foi entregue e como recebeu, naturalmente a seu ónus e expensas devidamente recuperada
6º podendo este tribunal agendar dia e hora para que alguém da sua responsabilidade possa averiguar do estado em que se encontra toda a documento e se a mesma está conservada pela exequente em termos que o possa fazer, e se não tiver
7º que a exequente faça e desenvolva as diligências necessárias para que a executada possa levantar à exequente o que lhe confiou, no estado em que estava ou recuperado»
*
11. Em 09/08/2024 foi proferido o despacho em que se lê, além do mais:
«Recurso apresentado pela executada em 21-03-2024:
A fim de me poder pronunciar sobre a nulidade invocada, proferi o despacho de 27-05-2024, (…)
(…)
Nessa sequência, a executada declarou que tem muito interesse na documentação em causa, pretendendo proceder ao seu levantamento, desde que a que a exequente “lhe entregue o que lhe foi entregue e como recebeu, naturalmente a seu ónus e expensas e devidamente recuperada”.
Parece, pois, que terei interpretado mal a alegação contida no requerimento da executada de 18-01-2024, donde me pareceu decorrer que não pretende levantar a documentação.
Assim, prestados os esclarecimentos, ao abrigo do disposto no art.º 617º, 2, do Cód. Proc. Civil, suprindo a nulidade invocada, quer decorrente da falta de fundamentação, quer da falta de compreensão da posição assumida pela executada, procedo à reforma da decisão proferida, nos termos que se seguem.
*
Para a decisão da causa importa considerar os seguintes factos:
- O título dado à execução é uma sentença, proferida em 04-03-2021, já transitada em julgado, na qual se decidiu o seguinte:
(…)
«(…)
ii) Condena a autora/ reconvinda, FUNDAÇÃO DA, a pagar à ré/ reconvinte, RFS, TELECOMUNICAÇÕES, LDA. às retribuições pelo depósito, vincendas desde Março de 2021 (inclusive), até à remoção integral de toda a documentação objeto do depósito, ao valor mensal de 600€ (seiscentos
euros), acrescida de IVA à taxa legal em vigor e de juros, à taxa dos juros comerciais, vencidos e vincendos, a contar do dia 1 do mês seguinte, até efectivo e integral pagamento;
iii) Condena a autora/ reconvinda, FUNDAÇÃO DA, a proceder à retirada, imediata, de toda a documentação que lhe pertence e que está depositada no armazém da ré, reconvinte, RFS, TELECOMUNICAÇÕES, LDA.;
(…)
- Constam da fundamentação de facto da referida sentença, para além de outros, os seguintes factos: «(…) A Autora em Dezembro de 2003 procedeu à recolha da referida documentação, transportando-a e armazenando-a quer nas suas instalações quer em armazém que arrendou para o efeito. (…) 5. Desde Fevereiro de 2014 até à presente data, a autora não procedeu ao levantamento dos documentos que lhe pertencem e se mantêm à guarda da ré, contra a vontade desta e sem que, por tal depósito, a autora tenha, durante estes anos, pago qualquer quantia;».
- No decurso da presente execução para pagamento de quantia certa a exequente requereu, em 15-11-2021, a cumulação de execução para prestação de facto, para cumprimento do decidido na seguinte parte decisória: «iii) Condena a autora/ reconvinda, FUNDAÇÃO DA, a proceder à retirada, imediata, de toda a documentação que lhe pertence e que está depositada no armazém da ré, reconvinte, RFS,
TELECOMUNICAÇÕES, LDA.;».
- Por despacho proferido nos autos foi admitida a cumulação sucessiva de execuções.
- Até ao momento, a executada não deu cumprimento ao decidido na transcrita alínea iii) da sentença dada à execução.
- A executada declarou que pretende que a exequente “lhe entregue o que lhe foi entregue e como recebeu, naturalmente a seu ónus e expensas e devidamente recuperada”.
- A executada declarou que pretende que “a exequente faça e desenvolva as diligências necessárias para que a executada possa levantar à exequente o que lhe confiou, no estado em que estava ou recuperado.”.
- Estas questões foram debatidas e objecto da sentença dada à execução, como resulta da sua fundamentação, de facto e de direito.
*
A exequente veio requerer que se fixe que se condene a executada no pagamento de sanção pecuniária compulsória, cujo valor indicou, ou, em alternativa, se declare a documentação abandonada pela executada e sem qualquer interesse para esta, dado o estado de decomposição da mesma, permitindo que seja retirada pela exequente e entregue a empresa de reciclagem de papel, para sua completa destruição, pagando a executada os custos da respetiva remoção.
A executada veio consignar que «(…) não tem nem deve ser condenada a pagar qualquer sanção pecuniária, uma vez que não pode levantar o que a exequente, sem sua culpa e responsabilidade, aparentemente, transformou em “res nulliis”, não tendo sido aquilo que foi levado das suas instalações».
Como acima referi, notificada para tanto, a executada esclareceu que tem muito interesse na documentação em causa, pretendendo proceder ao seu levantamento, desde que a que a exequente “lhe entregue o que lhe foi entregue e como recebeu, naturalmente a seu ónus e expensas e devidamente recuperada”.
Ora, resulta dos factos acima transcritos que por sentença, transitada em julgado, foi a executada condenada a “proceder à retirada, imediata, de toda a documentação que lhe pertence e que está depositada no armazém da ré, reconvinte, RFS, TELECOMUNICAÇÕES, LDA.”, o que esta não fez até ao
momento.
Resulta igualmente das acima transcritas declarações da executada, plasmadas nos seus requerimentos, que pretende que seja a exequente a entregar-lhe os documentos em causa, ao arrepio do decidido por sentença judicial, que determina e ordena o levantamento por parte da executada.
Note-se que a remoção dessa documentação não é isenta de custos, como resulta da sentença dada à execução e dos presentes autos.
Mais, a executada pretende impor condições à exequente para que proceda ao recebimento dessa documentação, pretendendo ainda que lhe seja entregue no estado em que se encontrava quando a entregou em Dezembro de 2003, também ao arrepio do decidido na sentença dada à execução.
Ora, das declarações da executada concluo que esta faz “tábua rasa” do decidido, não pretendendo cumprir, sem mais, o que foi judicialmente determinado.
Ademais, estando a documentação na posse da exequente desde Dezembro de 2003, tudo leva a crer que a executada não tem qualquer interesse nessa documentação (ao contrário do que afirma) ou estará a pretender que seja a exequente a guardar--lhe a documentação que lhe pertence, suportando a exequente os respectivos custos
Impõe-se, por isso, pôr cobro a esta situação de incumprimento da sentença dada à execução.
Ora, a lei prevê apenas a possibilidade de conversão da execução para prestação de facto nos termos do art.º 869º e 870º do Cód. proc. Civil, ou seja, a indemnização do dano sofrido e a prestação do facto por outrem.
A meu ver, a lei não previu expressamente situações como a presente, já que qualquer uma das opções legais poderá não resolve a questão de fundo.
Com efeito, ainda que a exequente seja indemnizada pelo dano decorrente do não levantamento da documentação e do consequente armazenamento forçado, continua a ter que manter armazenada a documentação, o que conduziria à manutenção do dano.
No caso da prestação do facto por terceiro, através da remoção da documentação das instalações da exequente, haveria ainda que garantir a recepção da mesma pela executada, a qual já declarou que só pretende receber a documentação nas condições em que se encontrava há 20 anos atrás, na altura em que a entregou à exequente, e devidamente recuperada.
Assim, não existindo acordo quanto à declaração de abandono da documentação, ao contrário do que inicialmente entendi, considero que só com a fixação de uma sanção pecuniária compulsória, ao abrigo do disposto no art.º 868º, 1, última parte, do Cód. Proc. Civil, se poderá tentar obter o cumprimento da sentença dada à execução.
As partes foram já notificadas para se pronunciarem sobre o montante da sanção pecuniária compulsória.
A exequente pronunciou-se no sentido de se fixar um valor nunca inferior a €20,00 (vinte euros), por cada dia de atraso em que a executada não retire a referida documentação.
A executada optou por não se pronunciar, declarando que não tem que ser condenada a pagar qualquer sanção «(…) uma vez que não pode levantar aquilo que a exequente, sem sua culpa e responsabilidade, aparentemente, transformou em “res nulliis”, não tendo sido aquilo que foi levado das suas instalações.».
Nos termos do disposto no art.º 829ºA, 2, do Código Civil, a sanção pecuniária compulsória deverá ser fixada segundo critérios de razoabilidade.
No caso dos autos, como acima ficou explanado, o incumprimento é reiterado, sendo que a executada, fazendo “tábua rasa” do judicialmente decidido, não mostra quaisquer sinais, ainda que ténues, de que pretende cumprir.
Efectivamente, a executada apresenta todo o tipo de argumentos para não cumprir, ora dizendo que tem interesse na documentação desde que lhe seja entregue no estado em que se encontrava há 20 anos atrás e devidamente recuperada, ora dizendo que não pode levantar por se tratar de “res nullius”.
Nestes termos e sendo fluídos os critérios de equidade e razoabilidade a que a lei manda atender, ao abrigo do disposto no art.º 868º, 1, ultima parte, do Cód. Proc. Civil, considero ser de condenar a executada a pagar uma sanção pecuniária compulsória, que fixo em €20 por dia, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 829ºA do Código Civil.
Notifique, sendo a recorrente/executada também nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 617º, nº 3, do Cód. Proc. Civil»
*
12. Esse despacho foi notificado às partes conforme certificação citius de 13/08/2024.
*
13. Em 12/09/2024 veio a executada dizer que interpõe recurso desse despacho, tendo apresentado a sua alegação.
Ora, o art.º 617º do CPC (Código de Processo Civil) estabelece:
«1 - Se a questão da nulidade da sentença ou da sua reforma for suscitada no âmbito de recurso dela interposto, compete ao juiz apreciá-la no próprio despacho em que se pronuncia sobre a admissibilidade do recurso, não cabendo recurso da decisão de indeferimento.
2 - Se o juiz suprir a nulidade ou reformar a sentença, considera-se o despacho proferido como complemento e parte integrante desta, ficando o recurso interposto a ter como objeto a nova decisão.
3 - No caso previsto no número anterior, pode o recorrente, no prazo de 10 dias, desistir do recurso interposto, alargar ou restringir o respetivo âmbito, em conformidade com a alteração sofrida pela sentença, podendo o recorrido responder a tal alteração, no mesmo prazo.
(…)»
*
14. Neste Tribunal da Relação foi proferido o seguinte despacho pela relatora em 01/05/2025:
«No despacho proferido em 09/08/2024 foi ordenada a notificação da recorrente/executada nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 617º, nº 3 do CPC, que estabelece: «No caso previsto no número anterior,
pode o recorrente, no prazo de 10 dias, desistir do recurso interposto, alargar ou restringir o respetivo âmbito, em conformidade com a alteração sofrida pela sentença, podendo o recorrido responder a tal alteração no mesmo prazo»
Atenta a certificação citius de 13/08/2024, presume-se que a executada foi notificada em 16/08/2024 (art.º 248ºnº 1 do CPC).
Assim, o referido prazo de 10 dias terminou em 10/09/2024.
Em 12/09/2024 veio a executada dizer que interpõe recurso daquela decisão.
Porém, no prazo de 10 dias não desistiu do recurso anterior.
Portanto, a peça processual deverá ser considerada como alargamento do âmbito do recurso.
Sucede que esse acto foi praticado no 2º dia útil seguinte ao final do prazo, pelo que a executada deveria ter procedido ao pagamento da multa nos termos do art.º 139º nº 5 al. b) do CPC.
Pelo exposto, ordeno a notificação da executada para pagar a multa como previsto o nº 6 do art.º 139º do CPC.».
*
15. A multa foi paga pela apelante.
*
16. Na peça processual apresentada pela apelante em 12/09/2024 constam as seguintes conclusões:
«A. A douta decisão recorrida não só não fez a adequada e justa ponderação dos factos de acordo com os elementos fornecidos pelo processo como não fez a boa aplicação do direito competente, que imporia decisão diferente;
B. A douta decisão está ferida de nulidade uma vez que, em violação dos imperativos estatuídos no nº 1 do art.º 615º do CPC não cumpre integralmente o previsto e estatuído no nº 1 do art.º 154º e nº 4 do art.º 607º do CPC não estando fundamentada, em termos absolutos, de facto e de direito;
C. A questão que se coloca, das duas consideradas, é a alegada posição incumpridora da recorrente em não ir levantar o que não foi entregue, porque, alegadamente, pese embora cobrado o depósito não foi devidamente conservado e mantido, já não falando o cumprimento do escopo que determinou os contactos e as relações estabelecidas entre as partes;
D. A recorrente, como pessoa de bem e valores que tem, especialmente nas pessoas dos seus responsáveis, não se recusa ao cumprimento de nenhuma decisão judicial, mas sim quer e deseja que seja cumprido o que legal e legitimamente seja devido;
E. Apenas pode ser sancionada e é a finalidade da sanção pecuniária compulsória o incitar o devedor ao cumprimento do decidido, que se esgota na sua motivação;
F. Esta sanção encontra-se reserva-se às obrigações de facto, de facto positivo ou negativo, de natureza infungível, o que não é o caso dos autos;
G. Mal vai a douta decisão recorrida quando decidiu como decidiu, extrapolando para o que foi decidido, interpretando incorrectamente o previsto e estatuído no art.º 868º do CPC.
Termos em que, nos mais de direito que V. Exas muito doutamente proverão, deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a decisão recorrida, assim se fazendo a costumada justiça»
*
Não há resposta da apelada ao alargamento do âmbito do recurso.
*
Colhidos os vistos, cumpre decidir
II – Questões a decidir
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da apelante, sem prejuízo de questões de conhecimento oficioso, pelo que as questões a decidir são:
- se a decisão recorrida é nula por falta de fundamentação
- se a aplicação de sanção pecuniária compulsória viola o disposto no art.º 868º do CPC
*
III – Fundamentação
A) Da alegada nulidade da decisão
Sobre o dever de fundamentação das decisões judiciais, prevê o CPC nos artigos invocados pela apelante:
Art.º 154º
«1 - As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas.
2 - A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade.»
Art.º 607º (aplicável aos despachos ex vi do art.º 613º nº 3)
«(…)
4 - Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.
5 - O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.
(…)»
Art.º 615º (aplicável aos despachos ex vi do art.º 613º nº 3)
«1 - É nula a sentença quando:
(…)
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
(…)
4 - As nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) do n.º 1 só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades.»
No caso concreto é manifesto que a decisão recorrida está fundamentada com proficiência em cumprimento do disposto nos referidos normativos e como imposto pelo art.º 205º nº 1 da Constituição da República Portuguesa, pelo que a arguição de nulidade improcede.
*
B) Se a aplicação de sanção pecuniária compulsória viola o disposto no art.º 868º do CPC
1. Insiste a apelante que não se recusa ao cumprimento de nenhuma decisão judicial. Porém, não é isso que os autos demonstram.
Como se expõe na sentença recorrida, o título executivo é a sentença proferida em 04/03/2021, transitada em julgado, pela qual foi a ora apelante condenada a proceder à retirada imediata de toda a documentação que lhe pertence e que está depositada no armazém da apelada e a pagar-lhe todas as retribuições pelo depósito, vencidas e vincendas até à remoção.
A execução foi instaurada em 06/04/2021 e até ao presente a apelante não retirou a documentação do armazém da apelada, dizendo que os documentos não foram devidamente conservados.
Decorre do art.º 728º do CPC que a executada podia opor-se à execução por embargos, sendo certo que o art.º 729º do CPC estatui:
«Fundando-se a execução em sentença, a oposição só pode ter algum dos fundamentos seguintes:
a) Inexistência ou inexequibilidade do título;
b) Falsidade do processo ou do traslado ou infidelidade deste, quando uma ou outra influa nos termos da execução;
c) Falta de qualquer pressuposto processual de que dependa a regularidade da instância executiva, sem prejuízo do seu suprimento;
d) Falta de intervenção do réu no processo de declaração, verificando-se alguma das situações previstas na alínea e) do artigo 696.º;
e) Incerteza, inexigibilidade ou iliquidez da obrigação exequenda, não supridas na fase introdutória da execução;
f) Caso julgado anterior à sentença que se executa;
g) Qualquer facto extintivo ou modificativo da obrigação, desde que seja posterior ao encerramento da discussão no processo de declaração e se prove por documento; a prescrição do direito ou da obrigação pode ser provada por qualquer meio;
h) Contracrédito sobre o exequente, com vista a obter a compensação de créditos;
i) Tratando-se de sentença homologatória de confissão ou transação, qualquer causa de nulidade ou anulabilidade desses atos.»
A apelante deduziu embargos de executado (apenso B) em que, além do mais, alegava que não é exigível que levante a documentação pois está muito deteriorada devido a má conservação imputável à apelada.
Mas em 08/10/2023 foi proferido despacho com este dispositivo:
«Pelo exposto, determino o desentranhamento da petição inicial (deixando cópia no seu lugar) e, nestas
circunstâncias, de harmonia com o estatuído pelo art.º 277º, al. e), do Cód. Proc. Civil, julgo extinta a instância, por impossibilidade superveniente da lide.»
Essa decisão foi confirmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa por decisão sumária proferida em 15/04/2024 e transitada em julgado.
Portanto, a apelante não tem fundamento legal para recusar cumprir a decisão judicial que lhe ordenou a remoção dos documentos.
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2. Segundo a apelante não está em causa uma obrigação de prestação de facto infungível e por isso, não pode ser aplicada sanção pecuniária compulsória.
O art.º 868º do CPC dispõe:
«1 - Se alguém estiver obrigado a prestar um facto em prazo certo e não cumprir, o credor pode requerer a prestação por outrem, se o facto for fungível, bem como a indemnização moratória a que tenha direito, ou a indemnização do dano sofrido com a não realização da prestação; pode também o credor requerer o pagamento da quantia devida a título de sanção pecuniária compulsória, em que o devedor tenha sido já condenado ou cuja fixação o credor pretenda obter no processo executivo.
2 - O devedor é citado para, no prazo de 20 dias, deduzir oposição à execução, mediante embargos, podendo o fundamento da oposição consistir, ainda que a execução se funde em sentença, no cumprimento posterior da obrigação, provado por qualquer meio.
3 - O recebimento da oposição tem os efeitos indicados no artigo 733.º, devidamente adaptado.»
O art.º 829º-A do Código Civil estabelece:
«1 - Nas obrigações de prestação de facto infungível, positivo ou negativo, salvo nas que exigem especiais qualidades científicas ou artísticas do obrigado, o tribunal deve, a requerimento do credor, condenar o devedor ao pagamento de uma quantia pecuniária por cada dia de atraso no cumprimento ou por cada infracção, conforme for mais conveniente às circunstâncias do caso.
2 - A sanção pecuniária compulsória prevista no número anterior será fixada segundo critérios de razoabilidade, sem prejuízo da indemnização a que houver lugar.
3 - O montante da sanção pecuniária compulsória destina-se, em partes iguais, ao credor e ao Estado.
4 - Quando for estipulado ou judicialmente determinado qualquer pagamento em dinheiro corrente, são automaticamente devidos juros à taxa de 5% ao ano, desde a data em que a sentença de condenação transitar em julgado, os quais acrescerão aos juros de mora, se estes forem também devidos, ou à indemnização a que houver lugar.»
Não está em causa uma obrigação de prestação de facto fungível, porquanto a satisfação do interesse da exequente/apelada não é obtida com a mera remoção da documentação para qualquer lugar, pois por força do contrato de depósito tem de a entregar à apelante, mas esta recusa-se recebê-la, insistindo que está deteriorada devido a incúria da depositária.
Portanto, como a apelante está obrigada a receber a documentação e nem a apelada nem terceiro a podem forçar materialmente a recebê-la, justifica-se a aplicação da sanção pecuniária compulsória para vencer a sua resistência a obedecer à decisão judicial transitada em julgado, como se impõe num Estado de direito (cfr art.º 205º da Constituição da República Portuguesa).
Por quanto se disse, decidiu bem a 1ª instância.
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IV – Decisão
Pelo exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela apelante, sem prejuízo da protecção jurídica de que beneficie.

Lisboa, 22 de Maio de 2025
Anabela Calafate
Elsa Melo
Maria Teresa Pardal