CULPA IN VIGILANDO
ANIMAL
DANO CAUSALIDADE ADEQUADA
Sumário

(Sumário elaborado pelo Relator):
- Relativamente à responsabilidade por danos causados por animais, o art.º 493º, n.º 1, do C. Civil, estabelece uma presunção legal de culpa por parte de quem tiver assumido a vigilância de animais;
- Trata-se de uma situação típica de culpa in vigilando, em que o dano resulta da omissão do dever de guarda dos animais, cuja presunção de culpa radica na perigosidade inerente a estes, decorrente da imprevisibilidade dos respectivos comportamentos, a justificar especiais cuidados por parte da pessoa que os tem à sua guarda;
- O artigo 563.º do Código Civil consagrou a doutrina da causalidade adequada, na formulação negativa nos termos da qual a inadequação de uma dada causa para um resultado deriva da sua total indiferença para a produção dele, que, por isso mesmo, só ocorreu por circunstâncias excepcionais ou extraordinárias;
- De acordo com essa doutrina, o facto gerador do dano só pode deixar de ser considerado sua causa adequada se se mostrar inidóneo para o provocar ou se apenas o tiver provocado por intercessão de circunstâncias anormais, anómalas ou imprevisíveis;
- Por outro lado, não é necessária a exclusividade do facto relativamente ao dano para que aquele possa ser considerado como causa adequada deste, sendo possível que se dêem outros factores, concomitantes ou posteriores;
- O nexo causal não tem de ser imediato nem directo, bastando que um efeito mediato ou indirecto, contanto que a segunda condição (originada directamente por aquele facto e que deu azo ao dano) se mostre condição adequada do facto que lhe deu origem;
- Em face das características intimidantes de um canídeo, não esquecendo que estamos a falar de um ser irracional incapaz de frenar os seus instintos mais agressivos, perante cenário de perigo real - a correr e a latir de forma enérgica, na via pública e em direcção à vítima-, a queda da ofendida e lesões sofridas por esta, na sequência de uma fuga que a levou a trepar a um muro, não constituiu uma involução extraordinária, imprevisível, improvável e anormal, face ao perigo que para si significava o movimento hostil do animal, sendo aptos em abstracto a provocar os danos na autora.

Texto Integral

Acordam os Juízes da 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa

I. O relatório
AA
interpôs a presente acção comum, contra
BB
E
CC,
Peticionando a condenação solidária dos réus no pagamento da quantia de € 6.791,06.
Como fundamento do peticionado alega, em suma, que, no dia 28 de Julho de 2021, quando se encontrava a realizar uma caminhada matinal junto à residência do Réu, foi surpreendida por um cão, propriedade do mesmo, e que estava a ser vigiado pela Ré, que correu na sua direcção, de forma descontrolada e enraivecida. Nesta situação de pânico e aflição, ao se tentar proteger, acabou por subir a um muro, do qual veio a cair, numa queda de mais de três metros de altura.
Mais indica que, devido a esta queda, sofreu várias lesões que determinaram um conjunto de danos patrimoniais e não patrimoniais, cujo ressarcimento exige nesta sede.
Os réus contestaram, impugnando parte da factualidade vertida na petição inicial e propugnando pela improcedência da demanda.
Foi proferido despacho saneador tabelar, fixado o objecto do litígio e selecionados os temas da prova.
Entretanto, a Autora, apresentou articulado superveniente, no qual, em suma, veio indicar que, no decorrer da acção, sofreu acrescidos danos patrimoniais, peticionando a condenação dos Réus no pagamento de € 3.021,94.
Os Réus responderam ao articulado, mantendo a posição já apresentada na contestação de que não podem ser responsabilizados.
Após, foi novamente apresentado pela Autora um articulado superveniente no qual invoca a produção de danos adicionais e peticiona a condenação dos Réus no pagamento de € 3.791,01.
Os Réus responderam, mantendo a posição já assumida ao longo do processo.
Por despacho de 15 de Março de 2024, foram os articulados supervenientes admitidos e acrescentados temas da prova.
Realizada audiência final, foi proferida sentença, em 20/12/2024, com o seguinte dispositivo:
Nestes termos, e com os fundamentos supra indicados, julga-se a presente acção declarativa comum, proposta por AA contra CC e BB, parcialmente procedente e, em consequência:
a) Condena-se a Ré a pagar à Autora a quantia de € 11.180,76 (onze mil, cento e oitenta euros e setenta e seis cêntimos), referentes aos danos patrimoniais e não patrimoniais causados;
b) Condena-se a Ré a pagar à Autora, a quantia por esta perdida a nível salarial com a baixa médica, nos períodos entre Fevereiro de 2022 e Junho de 2022, a apurar em sede de execução de sentença;
c) Absolve-se a Ré do demais peticionado;
d) Absolve-se o Réu de todo o peticionado.
*
Inconformada, a ré interpôs recurso de apelação para esta Relação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:
A. Com os presentes autos pretendeu-se aferir a responsabilidade dos Réus na produção de prejuízos patrimoniais e não patrimoniais, decorrentes da circunstância de a Ré, numa das suas deslocações a caso do seu filho, ali co-Réu, ter deixado o portão encostado e o animal ter alegadamente saído da moradia onde se encontrava, enquanto que a Autora se terá assustado, subido um muro que se encontrava a ladear a estrada imediatamente a seguir à moradia do Réu, tendo dali caído e sofrido as lesões melhor descritas na sentença ora posta em crise.
B. A questão que se colocou em todo o processo foi a da reunião de todos os pressupostos técnico jurídicos previstos legalmente para que a Ré pudesse ser responsabilizada civilmente pelos prejuízos sofridos pela Autora o que entendemos não se verificar nos presentes autos.
C. Na realidade, e tanto quanto resulta da prova produzida, o cão não mordeu, e nem saiu da rampa situada entre a moradia e o arruamento, nem sequer ladrou (conforme referido pela testemunha DD e pela 2.- Ré) encontrando-se apenas na zona envolvente à moradia do Primeiro Réu (rampa).
D. Pese embora o facto dado com provado em .9 e .11, a sentença recorrida não deu como dado por provado que a A. tem fobia de cães, mas tal resulta inequívoca da dinâmica do incidente, das regras de experiência comum, das declarações da testemunha DD, que também foi arrolada pela própria Autora, que prestou o seu depoimento de forma imparcial e isenta, que a A. lhe confidenciou que tinha efetivamente medo de cães, sendo que esse aspecto foi decisivo para a produção do evento, bem como dos factos dados por provados, pelo que este facto, dado por não provado em IV. deve ser dado como provado.
E. Resulta, assim, amplamente demonstrado que o animal nunca esteve perto da A. ou do seu companheiro, o que é absolutamente compatível com a versão dos factos trazidos a juízo pela testemunha DD que afirmou que da zona onde se encontrava (janela) não viu o animal perto da Autora nem do seu companheiro, quer no momento em que viu a A. cair quer quando chegou junto à A., depois da queda.
F. De resto, é o próprio companheiro da Autora que esclarece que o animal nunca esteve mais perto da AA do que a testemunha estava do Meritíssimo Juiz do tribunal "a quo", o que foi entendido como uma distância de cerca de 5 metros, atendendo à disposição da sala de audiências.
G. Daqui decorre que a desconsideração feita pela sentença recorrida no que concerne às declarações prestadas pela testemunha DD, que também foi arrolada pela Autora, é merecedora de reparo porquanto esta testemunha como a testemunha EE disseram na essência o mesmo: o cão, saindo efetivamente para o exterior da moradia, nunca esteve perto da Autora e, por conseguinte, nunca representou um verdadeiro perigo para esta e para o seu companheiro, sendo que a testemunha DD via efetivamente, do local onde se encontrava, parte do piso exterior da moradia para onde o cão terá saído, não vendo o animal nessa porção de terreno (rampa), no momento em que veio à janela.
H. Daqui decorre, que a sentença recorrida nunca poderia ter irrelevado este aspecto, o qual se revela absolutamente imprescindível para a boa decisão da causa.
I. Deverá ser dado por provado, por se assumir relevante para a boa decisão da causa, encontrando-se a coberto dos temas da prova, e substanciado pelas declarações das testemunhas DD e EE, que o cão, saindo da moradia nunca esteve perto da Autora, o que poderá ser feito mediante alteração do facto provado n.º 10, que deverá passar a ter a seguinte redação: No momento indicado em 6, a cadela "FF", aquando da passagem da Autora e do seu companheiro, desceu uma rampa no interior do imóvel, abriu o portão que havia sido deixado encostado pela Ré e saiu para a via pública, sem se aproximar da Autora a uma distância de menos de 5 metros.
J. Das declarações da testemunha DD, que foi quem viu a Autora a cair do muro, resulta que no momento em que a Autora caiu não existia qualquer cão em redor da Autora, o que é coincidente com as declarações prestadas por EE, sendo decisivo para a boa decisão da causa.
K. Tanto a testemunha EE como a testemunha DD atestaram que não existia qualquer circunstância que impedisse a Autora de fugir daquele local, subindo ou descendo a rua, ou subindo ao carro da testemunha DD que ali se encontrava, ou ainda subindo a um poste que se encontra ladeado por um muro com gradeamento, naturalmente mais seguro.
L. Ora, entende a Ré que este facto, sendo imprescindível para boa decisão da causa, e substanciado nos temas da prova, deverá ser dado por provado, nos seguintes termos:
M. “Assustada com o cão, a A. teve a opção de fugir por ambos os sentidos da estrada, ou subir a viatura da testemunha DD que ali se encontrava estacionado, mas tomou decisão de subir um muro ali existente entre a estrada e o terreno vizinho com desnível de cerca de 4 metros, com as características evidenciadas nas fotos que suportam os factos provados 13. e 14, acabando por cair da referida altura de cerca de 4 metros."
N. Tudo isto, porém, sem que o animal se encontrasse perto da Autora, e ante o medo, talvez pânico, que a A. sentiu no momento, e que está inclusivamente dado como provado no facto 11. (dado por provado).
O. Também por aqui, a sentença recorrida merece reparo, pois ajuizou erradamente os factos colocados à sua apreciação.
P. Tudo aponta para que a Autora tenha entrado em pânico, pela fobia que tem de cães, situação inclusivamente admitida pela A. na sua PI (artigo 6.º), e atestado pela testemunha DD a quem a Autora confidenciou no momento do acidente que tina fobia de cães.
Q. Exemplo disso foi a atitude mais sensata do seu companheiro que ainda assim permaneceu junto ao poste, nada lhe acontecendo, sem que o animal sequer se tivesse aproximado de ambos a menos de 5 metros.
R. Regressando ao caso dos autos, haveria responsabilidade civil por facto ilícito do lesante caso estivessem reunidos os legais pressupostos: i) o facto; ii) a ilicitude; iii) a imputação do facto ao agente; iv) o dano; v) o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
S. Ficou aqui demonstrado que nenhuma relação de causa efeito juridicamente válida subsiste entre a atuação da Ré, e a produção do evento.
T. Efetivamente, a produção do evento ocorreu exclusivamente pela fobia que a Autora tem de animais que, injustificadamente e perante a presença do animal na via pública a cerca de 5 metros da Autora, tomou a decisão imponderada de subir a um muro que se encontrava a ladear a estrada, em vez de tomar outra atitude, como a de correr pela estrada acima, ou abaixo, diga-se mais prudente e avisada.
U. A atitude a adoptar por um homem médio, colocado na posição da Autora, jamais envolveria colocar-se numa situação de risco, em cima de um muro em risco de cair de uma altura de 4 metros em face de uma ameaça que não existiu verdadeiramente, dado que o animal nunca esteve próximo da autora.
V. Quanto ao nexo de causalidade entre o facto e o dano que, salvaguardado o respeito devido, na sentença é tratado de modo sintético e errado, em função da matéria probatória e do direito a aplicar, resulta inexistente qualquer relação causal entre o facto de o portão ter sido deixado entreaberto (e o animal saído e eventualmente ladrado para a Autora), e o facto de esta ter subido inadvertidamente um muro, e dali ter caído (ou dali se ter jogado como parece resultar das declarações da testemunha DD).
W. Com efeito, a testemunha DD, sem nenhum interesse nesta causa, bem como a testemunha EE que é o companheiro da Autora, expressamente referiram que quando a AA caiu do muro, o cão não estava nas imediações, tendo aquele referido que o animal estava a uma distância de cerca de 5 metros (reportada ao seu posicionamento na sala de audiências relativamente à posição onde se encontrava o Mmo. Juíz do Tribunal "a quo").
X. Acresce a tudo isto que, uma vez que se assustou com animal na via pública (que nunca esteve próximo de si) a Autora poderia ter fugido, descendo a rua, ou subindo a rua, ou nada fazendo, como sucedeu com o seu companheiro, que ficou agarrado ao mencionado poste, sem que nada lhe tivesse e sem que o cão estivesse sequer próximo da A.
Y. Por este motivo, improcede a alegação constante da sentença em sede de nexo causal (v) Nexo de causalidade entre facto ilícito e culposo e o dano), uma vez que procede a uma apreciação errada dos factos e, por conseguinte, do direito a aplicar.
Nestes termos e nos mais de Direito se requer, com os fundamentos constantes das conclusões formuladas, seja determinada a total procedência do presente recurso, com a consequente substituição da sentença recorrida por outra que, consideradas as razões de facto e direito aduzidas, absolva a Ré de todos os pedidos formulados pela Autora, fazendo-se sã, serena e objectiva JUSTIÇA.
*
A autora respondeu, propugnando pela improcedência do recurso.
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O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida de imediato, nos autos e efeito meramente devolutivo.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. O objecto e a delimitação do recurso
Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.
De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.
Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a incorrecta fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito aplicável). Daí que não baste ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir a reapreciação do litígio (limitando-se a repetir o que já alegara na 1ª instância), mas se lhe imponha o ónus de alegar, de indicar as razões porque entende que a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece, sob pena de indeferimento do recurso.
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, são as seguintes as questões a resolver por este Tribunal:
A impugnação da matéria de facto.
A responsabilidade da ré pelo ressarcimento dos danos sofridos pela autora.
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III. Os factos
Receberam-se da 1ª instância os seguintes factos provados:
1 - O Réu, desde data não concretamente apurada, mas certamente em 28 de Julho de 2021, reside na Rua......, na …, Venda do Pinheiro.
2 - Nessa data, e nesse local, eram propriedade e residiam com o Réu, duas cadelas, uma de raça pastor alemão, com cerca de 43 kg e de nome “FF”, e outra resultante do cruzamento de duas raças não especificadas, com cerca de 28 kg, e de nome “GG”.
3 - No dia 28 de Julho de 2021, em hora não concretamente apurada, mas anterior às 08h10, a Ré, mãe do Réu, deslocou-se ao imóvel indicado em 1 para, entre o mais, tratar e dar comida às cadelas.
4 - Neste momento, o Réu não estava na residência, tendo saído para trabalhar.
5 - A Ré, sem disso se aperceber, ao entrar no imóvel, deixou um dos portões encostado.
6 - Nesse mesmo dia, pelas 08h10, a Autora, juntamente com o seu companheiro, estava a realizar uma caminhada matinal que passava pela casa do Réu.
7 - A Autora residia perto da casa do Réu, sendo comum passar pelo local.
8 - Por isso, já conhecia a residência e as duas cadelas.
9 - Sempre que ali passava, encostava-se ao lado da estrada contrário à casa, por ter receio de ser atacada pelos canídeos, pois eles ladravam à sua passagem e colocavam o focinho do lado de fora das grades.
10 – No momento indicado em 6, a cadela “FF”, aquando da passagem da Autora e do seu companheiro, desceu uma rampa no interior do imóvel, abriu o portão que havia sido deixado encostado pela Ré e, a correr e a latir de forma enérgica, foi para a via pública, em direcção à Autora.
11 – A Autora, assustada e em pânico com a postura da cadela, tendo medo de ser atacada, tentou fugir.
12 - Nesse seguimento, correu para o seu lado esquerdo e tentou esconder-se atrás de um poste de electricidade.
13 - Vendo que a cadela a continuava a perseguir, a Autora, agarrando-se ao poste de electricidade, subiu e colocou o seu pé direito em cima de um muro ali existente:



14 - Acontece que, ao fazer esse movimento, desequilibrou-se e caiu para um terreno que fica no outro lado do muro:

15 - A Autora caiu paralela ao muro sendo que, para o solo, o mesmo tem uma altura não concretamente apurada, mas de aproximadamente três metros.
16 - Após a queda, a Autora rebolou pelo solo até o seu corpo ficar imóvel.
17 - Tentou levantar-se, mas sucesso, conseguindo apenas ficar meia-sentada e vendo que tinha o seu pé esquerdo fracturado.
18 - Perante os seus pedidos de auxílio, vieram várias pessoas ao local, incluindo a Ré.
19 - Chegada, a Ré, nervosa e preocupada com a situação, dizia o seguinte: “Como é que eu vou dizer ao meu filho BB”, “Ai quando ele souber o que eu fiz!”, “Ai AA, vai ver que isso não vai ser nada de grave, tenha calma!”, “Somos pessoas de bem vamos ajudar no que for preciso.”.
20 - Devido à situação da Autora, foi contactado o 112, tendo sido enviados ao local os Bombeiros Voluntários da Malveira.
21 - Face à gravidade dos ferimentos, a Autora foi transportada, de urgência, pelos Bombeiros para o Hospital Beatriz Ângelo.
22 - Aí chegada, foi observada e submetida a vários exames.
23 - Em virtude do descrito em 14 e 15, sofreu um traumatismo da região tibiotársica, assim como escoriações diversas pelo corpo.
24 - À observação, apresentava-se consciente, lúcida e orientada, movimentava todos os membros com excepção do pé esquerdo, que estava imobilizado.
25 - Após a observação e os exames, constatou-se que a Autora tinha uma fratura desalinhada do pilão da tíbia esquerda, tendo sido transferida para ortopedia.
26 - Devido à situação, foi decidido avançar com a cirurgia.
27 - No dia 05 de Agosto de 2021, a Autora fez uma cirurgia ao pé esquerdo, tendo tido alta no dia 06 de Agosto de 2021.
28 - A Autora ficou internada no Hospital entre os dias 28 de Julho e 06 de Agosto de 2021.
29 - Foi necessário colocar tala e gesso na perna esquerda, tendo a mesma de se deslocar em canadianas, que apenas deixou em absoluto em Janeiro de 2024.
30 - Após a operação, era este o estado da perna e pé esquerdos da Autora:



31 - A Autora, em virtude do descrito, ficou com cicatrizes na perna esquerda.
32 - Devido ao indicado em 3 a 15, a Autora precisou de realizar tratamentos de fisioterapia, na JustFisio, na Malveira, que se iniciaram em 30 de Agosto de 2021 e que continuam até aos dias de hoje.
33 - Necessitou também de efectuar várias deslocações, utilizando veículo particular, ao Hospital Beatriz Ângelo, a Cascais, ao Centro de Saúde, a Torres Vedras, à Malveira, à Venda do Pinheiro, a Almada, a Lisboa e a Sintra para tratamentos, cirurgias, exames e consultas médicas, fisioterapia, hidroginástica, hidrobike, hidrofitness, pilates, para tratar dos documentos necessários para a baixa médica e para acompanhar a filha a consultas de psicologia.
34 - Também com o objectivo de tratar as lesões sofridas, decidiu recorrer a um naturopata, localizado em Cascais.
35 - Em tal consulta, despendeu a quantia de € 125,00.
36 - Pela assistência prestada pelos Bombeiros da Malveira, indicada em 20 e 21, a Autora realizou um donativo no valor de € 11,00.
37 - Em medicamentos e material ortopédico, a Autora despendeu o total de € 416,06.
38 - Já com as sessões de fisioterapia, indicadas em 32, fisiatria e tratamentos a Autora despendeu de € 2.417,50.
39 - Em Março de 2022, a sua situação piorou, não conseguindo colocar o pé no chão.
40 - Por isso, foi necessário solicitar ao Hospital Beatriz Ângelo uma consulta de urgência.
41 - Uma vez que não havia médico especialista disponível, teve de recorrer a um médico do sector privado e ser sujeita a uma infiltração.
42 - Foi-lhe também prescrita a frequência de hidroginástica para optimizar a recuperação funcional do pé.
43- Nesse seguimento, inscreveu-se em aulas de hidroginástica a realizar no Pavilhão Municipal da Venda do Pinheiro.
44 - Por tal inscrição e pela frequência das aulas, no mês de Fevereiro de 2022, a Autora despendeu a quantia de € 32,50.
45 - Entre o mês de Fevereiro de 2022 e Setembro de 2023, a Autora pagou, mensalmente, a quantia de € 25,00.
46 - Em Setembro de 2023, para manter as aulas de hidroginástica, renovou a inscrição, tendo, pago, nessa altura a quantia de € 35,00.
47 - Desde então, tem pago, mensalmente, € 30,00.
48 - Devido ao descrito em 3 a 15, em consultas, exames médicos e outras intervenções na CUF despendeu € 1.028,70.
49 - Em 03 de Julho de 2023, foi sujeita a uma nova intervenção cirúrgica ao pé esquerdo, mais precisamente uma artroscopia do tornozelo e remoção de material de osteossíntese.
50 - Esta cirurgia teve carácter paliativo, não tendo como fim a cura definitiva.
51 - Em 12 de Janeiro de 2024, a Autora foi a consulta médica para analisar o seu estado clínico.
52 - Pela mesma, a Autora despendeu a quantia de € 300,00.
53 - A Autora continua até aos dias de hoje, a ter consultas e a ser submetida a exames para tratamento do pé.
54 - Devido às dificuldades para utilizar o pé esquerdo, adquiriu um veículo automóvel com mudanças automáticas.
55 - Por ainda sentir dores e incómodos no pé esquerdo, a Autora necessitou de adquirir um par de ténis, equipados com uma palmilha específica, tendo despendido o valor de € 77,00.
56 - Devido ao indicado em 3 a 15 a Autora passou a ter medo e desconfiança de qualquer cão que se aproxime.
57 - Também nunca mais passou perto do local onde o Réu reside, com receio de voltar a encontrar as cadelas.
58 - Encontra-se psicologicamente debilitada, triste e envergonhada com a situação e as consequências que dela advieram.
59 - Nos meses que se seguiram ao dia indicado em 3, e até pelo menos ao momento em que deu entrada com a presente acção, tinha constantes pesadelos nos quais era atacada por vários cães.
60 - Durante esses meses apenas saía de casa para as sessões de fisioterapia, consultas e exames médicos.
61 - E, quando saía, tinha de ser sempre acompanhada, pois tinha dificuldades para conduzir e não se queria sentir desamparada e sozinha.
62 - Até aos dias de hoje, a Autora sente dores, dormências e formigueiros quando faz algum esforço com a perna esquerda.
63 - Desde o dia referido em 3, nunca mais fez exercício regular, nem mesmo uma simples caminhada, actividade que, até então, fazia com regularidade.
64 - Devido às cicatrizes com que ficou, evita andar com a perna esquerda descoberta, tendo deixado de usar saias ou calções ou de calçar saltos altos, chinelos ou havaianas.
65 - Em virtude do indicado em 3 a 15, a Autora deixou de acompanhar as filhas a parques, jardins, viagens ou passeios, como antes fazia.
66 - A sua filha mais velha, devido ao descrito em 3 a 15, passou a ter medo de cães.
67 - Por isso, a Autora e o companheiro decidiram que ela deveria frequentar consultas de psicologia.
68 - Pela frequência de tais consultas, a Autora despendeu o montante de € 115,00.
69 - Devido ao indicado em 3 a 15, a Autora apresenta grau elevado (grau III/IV) de alteração degenerativa articular pós-traumática, marcada impotência funcional, artrose com rigidez dolorosa inaugural que não desaparece totalmente.
70 - Ademais, apresenta marcada rigidez articular, agravada pela dor que condiciona a sua independência em larga medida, marcada limitação na marcha, agravada em rampas ou terrenos inclinados e não consegue fazer marcha rápida ou corrida.
71 - Tem episódios de bloqueio dos dedos na extensão e múltiplas queixas de cãibras.
72 - Consegue fazer marcha sem auxiliar, mas com evidente claudicação.
73 - Não pode usar calçado raso, por não ter qualquer flexão, nem meias apertadas.
74 - Não consegue pegar nas filhas ao colo, pois não suporta pesos e fica com dores no pé esquerdo.
75 - Apresenta edema da TT, cicatriz bilateral interna e maior externa, atrofia dos músculos da perna, dor a palpação local.
76 - Se permanecer muito tempo em pé ou a andar sente dores
77 - Não consegue dançar ou pular.
78 - Tem dificuldades para brincar com as filhas, não as conseguindo acompanhar.
79 - Devido ao indicado em 3 a 15, a Autora esteve de baixa entre o dia 28 de Julho de 2021 e 13 de Março de 2024, não tendo exercido qualquer actividade profissional.
80 - Até ao dia 13 de Março de 2024, desempenhava as funções de directora técnica do ....
81 - Devido às limitações motoras, à necessidade de realizar vários tratamentos e pelo impacto psicológico que sofreu, pediu a exoneração das suas funções e decidiu levantar a baixa médica.
82 - Devido à situação de baixa a Autora teve uma redução, em quantia não concretamente apurada, nos rendimentos auferidos.
83 - Entre 28 de Julho de 2021 e 26 de Agosto de 2021, a Autora recebeu, a título de subsídio de doença, o valor diário de € 20,28.
84 - Entre 27 de Agosto de 2021 e 25 de Outubro de 2021, a Autora recebeu, a título de subsídio de doença, o valor diário de € 22,13.
85 - Entre 26 de Outubro de 2021 e 02 de Fevereiro de 2022, a Autora recebeu, a título de subsídio de doença, o valor diário de € 25,82.
86 - A Autora e o companheiro tiveram de recorrer a poupanças, tendo gasto, até ao momento, mais de € 40.000,00 em tratamentos, exames, consultas e medicação.
87 - A Ré, em datas não concretamente apuradas, mas em duas ocasiões, deslocou-se ao lar onde trabalhava a Autora, para saber como a mesma estava e demonstrando-se disponível para ajudar no que fosse necessário.
88 - Em 24 de Setembro de 2021, a Autora remeteu ao Réu, que a recebeu em 29 de Setembro de 2021, uma carta registada com aviso de recepção, com assunto “Responsabilidade - Ocorrência dia 28/07”, cujo teor se dá por integralmente reproduzida, e da qual consta, entre o mais, o seguinte:
“(…)
Conforme é do seu conhecimento, relativamente à situação ocorrida no dia 28/07/2021, venho por este meio solicitar-lhe o reembolso dos tratamentos e despesas incorridas directamente relacionadas pelo seu canídeo, no referido dia, e que conforme é do seu conhecimento, me afectaram bastante, quer física, quer psicologicamente, encontrando-se ainda de baixa e a receber tratamentos médicos (...)
Tudo no valor global de: 1.625,03 € (...)
Estes são os montantes, à data, a título de danos patrimoniais (...)
No entanto, irão ainda ser suportadas mais despesas, uma vez que a recuperação não está consolidada (...)”.
89 - A esta carta, o Réu respondeu, enviando outra missiva, com assunto “Resposta”, cujo teor se dá por integralmente reproduzida, e da qual consta, entre o mais, o seguinte:
“(•••)
Em resposta à sua carta, não me considero culpado, nem a minha cadela, pois de acordo com as testemunhas do ocorrido, o animal, não provocou o seu acidente (...)
O seu acidente foi provocado pela reacção que a D. CC teve quando se assustou ao deparar se com ela (...)”.
*
Foram ainda considerados não provados, os seguintes factos:
1 - As cadelas indicadas em 2 foram sujeitas a treino específico para se relacionarem com as pessoas.
II - No momento indicado em 3 a 15, a cadela tinha coleira, peitoral, trela ou açaime.
III - Sempre que alguém passa pela moradia do Réu, o comportamento das cadelas é o de quererem, de imediato, sair para o exterior.
IV - A Autora, no dia indicado em 3, tinha fobia a cães.
V - Em virtude do indicado em 3 a 15, a Autora necessitou de fazer um teste à COVID-19.
*
A impugnação da matéria de facto.
Dispõe o art.º 662º n.º 1 do Código de Processo Civil que A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Nos termos do art.º 640º n.º 1 do mesmo Código, quando seja impugnada a matéria de facto deve o recorrente especificar, sob pena de rejeição, os concretos factos que considera incorretamente julgados; os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. O n.º 2 do mesmo preceito concretiza que, quanto aos meios probatórios invocados incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o recurso. Para o efeito poderá transcrever os excertos relevantes.
Em contrapartida, cabe ao recorrido o ónus de apontar os meios de prova que infirmem essas conclusões do recorrente, indicar as passagens da gravação em que se funda a sua defesa, e caso assim o entenda, transcrever os excertos que considere importantes, tudo isto sem prejuízo dos poderes de investigação oficiosa do tribunal.
A lei impõe assim ao apelante específicos ónus de impugnação da decisão de facto, sendo o primeiro o ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida, o qual implica a análise crítica da valoração da prova feita em primeira instância, tendo como ponto de partida a totalidade da prova produzida em primeira instância.
No que respeita à observância dos requisitos constantes do citado artigo 640º, o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a pronunciar-se no sentido de que «(…) enquanto a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória.» (Ac. STJ de 01/10/2015 (Ana Luísa Geraldes); Ac. STJ de 14/01/2016 (Mário Belo Morgado); Ac. STJ, de 19/2/2015 (Tomé Gomes); Ac. STJ de 22/09/2015 (Pinto de Almeida); Ac. STJ, de 29/09/2015 (Lopes do Rego) e Acórdão de 31/5/2016 (Garcia Calejo), todos disponíveis na citada base de dados.
A recorrente cumpriu adequadamente os requisitos do art.º 640º do CPC.
No caso que ora cumpre apreciar, analisando as já reproduzidas conclusões recursórias apresentadas pelo recorrente, quanto à impugnação da matéria de facto, acentuamos (no que para aqui interessa):
Pretende a recorrente que se considere provada a seguinte factualidade:
I. alteração do facto provado n.º 10, que deverá passar a ter a seguinte redação: No momento indicado em 6, a cadela "FF", aquando da passagem da Autora e do seu companheiro, desceu uma rampa no interior do imóvel, abriu o portão que havia sido deixado encostado pela Ré e saiu para a via pública, sem se aproximar da Autora a uma distância de menos de 5 metros.
M. “Assustada com o cão, a A. teve a opção de fugir por ambos os sentidos da estrada, ou subir a viatura da testemunha DD que ali se encontrava estacionado, mas tomou decisão de subir um muro ali existente entre a estrada e o terreno vizinho com desnível de cerca de 4 metros, com as características evidenciadas nas fotos que suportam os factos provados 13. e 14, acabando por cair da referida altura de cerca de 4 metros."
P. Tudo aponta para que a Autora tenha entrado em pânico, pela fobia que tem de cães, situação inclusivamente admitida pela A. na sua PI (artigo 6.º), e atestado pela testemunha DD a quem a Autora confidenciou no momento do acidente que tina fobia de cães.
A pretensão da recorrente de alteração da factualidade provada assenta basicamente em dois depoimentos: - depoimento de DD (aos costumes disse conhecer a A. desta situação e ser vizinha dos RR) e de EE (companheiro da A., AA), à partida duas testemunhas que presenciais do acidente: a primeira, residente no local e que declarou ter assistido à queda da autora da sua janela; e o segundo, que a acompanhava no passeio junto ao local.
Antes de analisarmos e valorarmos tais depoimentos, convém enunciar três ideias básicas neste domínio da impugnação da matéria de facto:
1- Importa ter presente que a prova produzida deve ser conjugada, harmonizada e ponderada no seu conjunto enquanto base da convicção formulada pelo Tribunal, não sendo legítimo valorizar meios probatórios isolados em relação a outros, sopesando os critérios de valoração, numa perspectiva racional, de harmonia com as regras de normalidade e verosimilhança, mas sempre com referência às pessoas em concreto e à especificidade dos factos em apreciação.
2- Quanto à ponderação dos meios probatórios produzido em audiência final, mormente a prova por confissão ou a prova testemunhal, a actividade dos juízes, como julgadores, não pode ser a de meros espectadores, receptores de depoimentos. A sua actividade judicatória há-de ter, necessariamente, um sentido crítico. Para se considerarem provados factos não basta que as partes ou as testemunhas chamadas a depor se pronunciem sobre as questões num determinado sentido, para que o juiz necessariamente aceite esse sentido ou versão.
3-Por fim, a percepção dos depoimentos só é perfeitamente conseguida com a imediação das provas, sendo certo que, não raras vezes, o julgamento da matéria de facto não tem correspondência directa nos depoimentos concretos, resultando antes da conjugação lógica de outros elementos probatórios, que tenham merecido a confiança do tribunal.
Ouvidos os depoimentos das aludidas testemunhas, aceitamos que possa ser alterado o teor do facto 10 no sentido pretendido pela recorrente, com efeito EE afirmou em Juízo que o animal nunca esteve mais perto da AA do que a testemunha estava do Juiz do tribunal “a quo”, entendendo-se como uma distância de cerca de 5 metros, atendendo à disposição da sala de audiências daquele tribunal.
Procederá, assim, quanto a esta parte a pretensão da recorrente, passando o ponto 10. Provado a ter a seguinte redacção:
10- No momento indicado em 6, a cadela “FF”, aquando da passagem da Autora e do seu companheiro, desceu uma rampa no interior do imóvel, abriu o portão que havia sido deixado encostado pela Ré e, a correr e a latir de forma enérgica, foi para a via pública, em direcção à Autora, nunca se aproximando da mesma a uma distância inferior a 5 metros.
Quanto à pretensão da recorrente vertida na conclusão M. das alegações de recurso, sufragando largamente as reservas que na sentença recorrida se exprimem quanto à isenção do depoimento da testemunha DD, o seu depoimento não pode ser questionado quanto ao facto de ter a sua viatura estacionada na rua, tanto mais que ninguém contesta que esteve junto à vítima após a queda desta. No mais e, quanto às eventuais opções de fuga da ofendida, entendemos que a verificação das mesmas encerra carácter conclusivo a retirar de factos assentes, ainda assim, deverá ser aditado um facto 11-A com o seguinte teor:
Facto 10-A- Na ocasião, encontrava-se estacionada na via pública a viatura da testemunha DD.
Quanto à conclusão P., respeitante à alegada fobia da autora relativamente a cães, invoca a recorrente o seguinte:
Pese embora o facto dado com provado em .9 e .11, a sentença recorrida não deu como dado por provado que a A. tem fobia de cães, mas tal resulta inequívoca da dinâmica do incidente, das regras de experiência comum, das declarações da testemunha DD, que também foi arrolada pela própria Autora, que prestou o seu depoimento de forma imparcial e isenta, que a A. lhe confidenciou que tinha efetivamente medo de cães, sendo que esse aspecto foi decisivo para a produção do evento, bem como dos factos dados por provados, pelo que este facto, dado por não provado em IV. deve ser dado como provado.
Não acompanhamos esta impugnação, pois, nem da dinâmica dos factos provados, nem das regras de experiência comum e nem do depoimento da testemunha DD – que reproduzimos na íntegra – se pode concluir, com a certeza necessária, que a autora tenha ou tivesse à data, fobia a cães.
Pelo exposto, e na parcial procedência da impugnação, determina-se:
- a reformulação do ponto 10 da factualidade assente, nos seguintes termos:
Facto 10- No momento indicado em 6, a cadela “FF”, aquando da passagem da Autora e do seu companheiro, desceu uma rampa no interior do imóvel, abriu o portão que havia sido deixado encostado pela Ré e, a correr e a latir de forma enérgica, foi para a via pública, em direcção à Autora, nunca se aproximando da mesma a uma distância inferior a 5 metros.
- e o aditamento 10-A à factualidade provada:
Facto 10-A- Na ocasião, encontrava-se estacionada na via pública a viatura da testemunha DD.
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IV. O Direito
Estabelece o art.º 483º, nº 1 do Cód. Civil que Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.
De tal norma resulta que a obrigação de indemnização resultante de responsabilidade por factos ilícitos, também chamada de responsabilidade civil extracontratual subjectiva, delitual ou aquiliana, depende da verificação de vários pressupostos: o facto, a ilicitude, a imputação do facto ao lesante, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano, como referem Almeida e Costa, in «Direito das Obrigações», pg. 364, Antunes Varela, in «Das Obrigações em Geral», vol.I, pg. 516 e Vaz Serra, in «Requisitos da Responsabilidade Civil», nº2.
Como refere Antunes Varela, o elemento básico da responsabilidade é o facto do agente, consistindo este num facto dominável ou controlável pela vontade, um comportamento ou uma forma de conduta humana - cfr. ob.cit., pg. 520. Só quanto a este tem cabimento a ideia de ilicitude e os requisitos de culpa.
Relativamente à responsabilidade por danos causados por animais, o art.º 493º, n.º 1, do C. Civil, estabelece uma presunção legal de culpa por parte de quem tiver assumido a vigilância de animais, estatuindo que quem tiver assumido este encargo, responde pelos danos que a coisa ou os animais causarem, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua.
Trata-se de uma situação típica de culpa in vigilando, em que o dano resulta da omissão do dever de guarda dos animais, cuja presunção de culpa radica na perigosidade inerente a estes, decorrente da imprevisibilidade dos respectivos comportamentos, a justificar especiais cuidados por parte da pessoa que os tem à sua guarda.
Além de que, o art.º 502.º, do C. Civil dispõe que quem no seu próprio interesse utilizar quaisquer animais responde pelos danos que eles causarem, desde que os danos resultem do perigo especial que envolve a sua utilização.
Aqui já estamos perante uma responsabilidade que prescinde de um juízo de culpa, residindo apenas no risco que comporta a utilização de animais no seu interesse.
Quem utiliza em seu proveito animais que, como seres irracionais, são uma fonte de perigos, deve suportar as consequências do risco especial que comporta a sua utilização.
Esta responsabilidade atinge o proprietário do animal, ressalvadas as situações em que se demonstre que este, por qualquer circunstância não retirava qualquer proveito, patrimonial ou não, da sua utilização (v.g. situações de furto do animal).
No mesmo sentido, veja-se Pires de Lima e Antunes Varela, Cód. Civil Anotado, vol. I, 512, Almeida e Costa, Direito das Obrigações, 626 e Menezes Leitão, Direito das Obrigações, 328, bem como os Acs. Do STJ de 19/6/2007 e da Relação de Coimbra, de 7/7/2009, disponíveis na base de dados www.dgsi.pt.
Esclarece Antunes Varela/Pires de Lima no Código Civil Anotado I Vol, pág. 511 que «Na subsecção relativa à responsabilidade por factos ilícitos, a propósito dos casos dos casos de presunção de culpa, impõe-se a obrigação de indemnizar certos danos causados por animais (art.º 490). Este artigo 502.º refere-se também aos danos causados por animais. Mas estabelecendo para eles um princípio de responsabilidade objectiva — regime que se depreende do texto do preceito (que não ressalva a culpa, como se faz no art.º 493.º) e ainda da sua inserção na subsecção que trata da responsabilidade pelo risco».
Assim, o art.º 493º refere-se às pessoas que assumiram o encargo da vigilância dos animais e o artigo 502º é aplicável aos que utilizam os animais no seu próprio interesse.
No caso e quanto à ré, apenas pode estar em causa a violação do dever de vigilância, na medida em que, não sendo proprietária do animal em questão, demonstrou-se que:
3 - No dia 28 de Julho de 2021, em hora não concretamente apurada, mas anterior às 08h10, a Ré, mãe do Réu, deslocou-se ao imóvel indicado em 1 para, entre o mais, tratar e dar comida às cadelas.
4 - Neste momento, o Réu não estava na residência, tendo saído para trabalhar.
5 - A Ré, sem disso se aperceber, ao entrar no imóvel, deixou um dos portões encostado.
Como supra consignámos, De acordo com o disposto no art.º 493º, nº. 1 do Código Civil, o detentor ou proprietário de um animal tem o encargo de o vigiar sob pena de responder pelos danos que ele causar, salvo se provar que não houve culpa da sua parte.
Este normativo estabelece uma presunção de culpa para aqueles que têm a seu cargo a vigilância de animais. Tal presunção legal de culpa implica uma inversão do ónus da prova, de harmonia com o preceituado nos art.ºs 487º, nº. 1 e 350º, nº. 1 do Código Civil, podendo ser ilidível mediante prova em contrário (nº. 2 do mencionado art.º 350º) pelo lesante de que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua.
Desse modo, a responsabilidade da ré não prescinde da verificação dos respectivos pressupostos, presumindo-se apenas a sua culpa na verificação do evento danoso.
Estabelece o art.º 562º do Cód.Civil que Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação, adoptando o legislador no art.º 566º, nº 2 do mesmo diploma a tese da diferença de Mommsen: a indemnização em dinheiro - subsidiária, nos termos do nº 1 do mesmo preceito - tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e a que teria nessa data se não existissem danos, como refere Antunes Varela, in ob.cit., pg.906.
Segundo a recorrente, o busílis do problema reside na apreciação que o Tribunal a quo fez quanto ao pressuposto do nexo de causalidade: improcede a alegação constante da sentença em sede de nexo causal (v) Nexo de causalidade entre facto ilícito e culposo e o dano), uma vez que procede a uma apreciação errada dos factos e, por conseguinte, do direito a aplicar.
Ora e com relevo, resultou provada, a este respeito, a seguinte factualidade:
6 - Nesse mesmo dia, pelas 08h10, a Autora, juntamente com o seu companheiro, estava a realizar uma caminhada matinal que passava pela casa do Réu.
7 - A Autora residia perto da casa do Réu, sendo comum passar pelo local.
8 - Por isso, já conhecia a residência e as duas cadelas.
9 - Sempre que ali passava, encostava-se ao lado da estrada contrário à casa, por ter receio de ser atacada pelos canídeos, pois eles ladravam à sua passagem e colocavam o focinho do lado de fora das grades.
10 - No momento indicado em 6, a cadela “FF”, aquando da passagem da Autora e do seu companheiro, desceu uma rampa no interior do imóvel, abriu o portão que havia sido deixado encostado pela Ré e, a correr e a latir de forma enérgica, foi para a via pública, em direcção à Autora, nunca se aproximando da mesma a uma distância inferior a 5 metros.
11 – A Autora, assustada e em pânico com a postura da cadela, tendo medo de ser atacada, tentou fugir.
11-A - Na ocasião referida no ponto anterior, encontrava-se estacionada na via pública a viatura da testemunha DD.
12 - Nesse seguimento, correu para o seu lado esquerdo e tentou esconder-se atrás de um poste de electricidade.
13 - Vendo que a cadela a continuava a perseguir, a Autora, agarrando-se ao poste de electricidade, subiu e colocou o seu pé direito em cima de um muro ali existente:
14 - Acontece que, ao fazer esse movimento, desequilibrou-se e caiu para um terreno que fica no outro lado do muro:
15 - A Autora caiu paralela ao muro sendo que, para o solo, o mesmo tem uma altura não concretamente apurada, mas de aproximadamente três metros.
16 - Após a queda, a Autora rebolou pelo solo até o seu corpo ficar imóvel.
Só quando o dano constitui um resultado extraordinário, fortuito ou excepcional do facto danoso, deve ser excluído da obrigação, de acordo com a teoria da causalidade adequada, adoptada pelo art.º 563º do Cód. Civil.
Define este preceito que A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão; partindo da teoria da conditio sine qua non, o legislador introduziu o elemento da probabilidade, elemento característico daquela teoria.
Dogmaticamente, a causalidade é de apreciar em duas perspectivas:
1ª A naturalística, ou seja, no averiguar se o processo sequencial foi, ou não, factor desencadeador, ou gerador do dano. Trata-se de apurar uma mera relação de causa-efeito, ou seja, no percurso do “iter” causal-naturalistico verificar se a conduta do lesante foi desencadeadora do resultado lesivo;
2º A (causalidade) legal, resultando da pura aplicação dos princípios do artigo 563.º do CC.
A este respeito escreve-se no Ac. do STJ de 02-11-2010:
“Como já se insinuou, o artigo 563.º do Código Civil consagra o princípio da causalidade adequada na sua formulação negativa.
E este Supremo Tribunal vem entendendo que ‘o facto que actuou como condição do dano só deixará de ser considerado como causa adequada se, dada a sua natureza geral, se mostrar de todo indiferente (gleichgultig) para a verificação do dano, tendo-o provocado só por virtude das circunstâncias excepcionais, anormais, extraordinárias ou anómalas que intercedam no caso concreto.’ (cf. ainda os Acórdãos de 4 de Novembro de 2004 — P.º 2855/04-2.ª, de 13 de Janeiro de 2005 — P.º 4063/04-7º; Prof. A. Varela, in ‘Das Obrigações em Geral’, 10.ª ed, 1, 893, 899, 890/1 — ‘... do conceito de causalidade adequada pode extrair-se, desde logo, como corolário, que para que haja causa adequada, não é de modo nenhum necessário que o facto, só por si, sem a colaboração de outros, tenha produzido o dano. Essencial é que o facto seja condição do dano, mas nada obsta a que como frequentemente sucede, ele seja apenas uma das condições desse dano.’).
É a consagração do ensinado por Enneccerus-Lehman, que para o Dr. Ribeiro de Faria, conduz a que ‘a inadequação de uma dada causa para um resultado deriva da sua total indiferença para a produção dele, que, por isso mesmo, só ocorreu ‘pelas referidas circunstâncias excepcionais ou extraordinárias’. (apud ‘Direito das Obrigações’, 1, 502) e que o Prof. Almeida Costa diz dever interpretar-se no sentido de que ‘o facto que actua como condição só deixará de ser causa do dano desde que se mostre por sua natureza de todo inadequado e o haja produzido apenas em consequência de circunstâncias anómalas ou excepcionais sendo que a citada doutrina da causalidade adequada ‘não pressupõe a exclusividade da condição, no sentido de que esta tenha só por si determinado o dano.’ (in ‘Direito das Obrigações’, 632).
Parte-se, pois, de uma situação real, posterior ao facto, e até ao dano, e afirma-se que o segundo decorreria daquele perante um desenvolvimento normal, ou seja, o dever de indemnizar existe em relação aos danos que terão provavelmente resultado da lesão.
Ou como julgou este Supremo Tribunal ‘a inadequação de uma dada causa para um resultado deriva da sua total indiferença para a produção dele, que, por isso mesmo, só ocorreu por circunstâncias excepcionais ou extraordinárias’ (Acórdão de 20 de Outubro de 2005 — 05B2286).
O facto terá de ser, em concreto, ‘conditio sine qua non’ do dano mas também ser, em abstracto, causa normal, ou adequada da sua verificação.
E o que a doutrina que o direito Norte-Americano chama de “substantial factor formula.”
Também aí, dano só não se considera causado pelo facto se este apenas o produziu por circunstâncias anómalas e imprevisíveis.
Mas é-o ainda que causado indirecta, ou mediatamente, pelo facto.
Este entendimento resulta da conjugação dos artigos 562.º (‘...a situação que existiria...’) e 563.º (‘...danos que o lesado provavelmente não teria sofrido...’) do Código Civil. (cf Prof. Pessoa Jorge, ‘Ensaio sobre os pressupostos da responsabilidade civil’, 410-nota 373; Prof. Galvão Telles, ‘Direito das Obrigações’, 409 ss).”
(Ac. proferido no proc. 2290/04-0TBBCL.G1.SI, versão integral em www.dgsi.pt).
Ainda neste domínio, porque nos parece relevante, permitimo-nos fazer a citação de duas outras posições doutrinais:
Inês Almeida Costa, O nexo de causalidade e o problema da causa virtual à luz do actual Código Civil português in Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra, 2011, Vol. LXXXVII, págs. 839 a 895, aborda o nexo de causalidade sobretudo na perspectiva de pressuposto da responsabilidade civilDestaca, a págs. 858/860, como aspectos importantes para a caracterização da doutrina:
i) O juízo que esta doutrina postula não se refere ao facto e ao dano isoladamente considerados, mas sim ao processo factual que, em concreto, conduziu ao dano. Será, portanto, esse processo que há-de caber na aptidão geral ou abstracta do facto para produzir o dano.
ii) Por outro lado, não é necessária a exclusividade do facto relativamente ao dano para que aquele possa ser considerado como causa adequada deste, sendo possível que se dêem outros factores, concomitantes ou posteriores.
iii) O nexo causal não tem de ser imediato nem directo, bastando que um efeito mediato ou indirecto, contanto que a segunda condição (originada directamente por aquele facto e que deu azo ao dano) se mostre condição adequada do facto que lhe deu origem, por se considerar especialmente favorecida pela sua conduta ou apenas provável segundo o curso normal das coisas.
iv) Por fim, realce para o facto de a doutrina não reservar lugar para a “previsibilidade” dos danos. Tal juízo não tem cabimento nesta sede. Aqui, apenas é essencial que o facto seja causa objectiva ou típica dos danos. (Sublinhados nossos)
Ana Mafalda Castanheira Neves de Miranda Barbosa, inResponsabilidade Civil Extracontratual – Novas perspectivas em matéria do nexo de causalidade”, Principia, 2014, pág. 98, defende que: “(…) a assunção de uma esfera de riscos, para o que se convoca a ideia de probabilidade, traça os contornos externos dele. Será dentro dessa circunferência que procuraremos preencher o círculo, até encontrar o epicentro imputacional. Dito de outro modo, o que aqui se traça não é mais do que um ponto de partida heurístico. O que se define é, funcionalmente, se a lesão se inscreve ou não no círculo de danos que o lesante encabeça. A possibilidade avulta sempre que se denota a pertinência funcional (…)”, e “(…) pode-se afirmar que se exclui a imputação quando o risco não foi criado (não criação do risco), quando haja diminuição do risco e quando ocorra um facto fortuito ou de força maior (…)”.
Resumindo: o art.º 563.º do CC consagrou a doutrina da causalidade adequada, na formulação negativa nos termos da qual a inadequação de uma dada causa para um resultado deriva da sua total indiferença para a produção dele, que, por isso mesmo, só ocorreu por circunstâncias excepcionais ou extraordinárias.
Desta forma, o facto gerador do dano só pode deixar de ser considerado sua causa adequada se se mostrar inidóneo para o provocar ou se apenas o tiver provocado por intercessão de circunstâncias anormais, anómalas ou imprevisíveis.
Volvendo ao caso concreto.
Neste caso, sabemos que a cadela do Réu tinha cerca de 43kg e é de raça pastor alemão. Os pastores alemães são conhecidos por serem animais de “guarda”, sendo utilizados por várias forças de segurança e até por exércitos. Segundo o site Arca de Noé: é uma das raças mais populares no mundo. Extremamente versátil, é um animal utilizado nas mais variadas profissões, desde guarda a cão polícia. Chega aos 20/27 km/h.
O cão do Réu veio para a via pública, sozinho, e sem a condução de ninguém, tendo, devido a isso, investido em direcção à autora, atemorizando-a e fazendo com a mesma tivesse, na tentativa de fugir, caído e sofrido os danos supra descritos.
Em face das características intimidantes do animal, não esquecendo que estamos a falar de um ser irracional incapaz de frenar os seus instintos mais agressivos, não nos oferece dúvidas que o perigo para a autora era concreto e real, pois esta confrontou-se com o animal a correr e a latir de forma enérgica, na via pública e em direcção a si.
Perante tal perigo, a autora/recorrida assustada, em pânico com a postura da cadela, com medo de ser atacada e tendo de decidir numa fracção de segundos, fugiu, correndo para o lado esquerdo, e tentou proteger-se atrás de um poste de electricidade. Como a cadela continuava a persegui-la, agarrando-se ao poste de electricidade, subiu e colocou o seu pé direito em cima de um muro ali existente, ao fazer esse movimento, desequilibrou-se e caiu para um terreno que fica no outro lado do muro, tendo dessa queda resultado as lesões sofridas.
Face à reacção instintiva da autora e que consideramos natural em face das circunstâncias, não consideramos aceitável admitir, como pretende a recorrente, que aquela tinha outras opções para se subtrair ao perigo, mas ainda que assim não se entendesse:
- Em primeiro lugar fugir para um lado ou outro da rua não era opção, seria uma questão de segundos até ser alcançada pelo canídeo;
- Segundo: subir ao carro da testemunha era uma hipótese, mas subir a um muro também era...além de que, na perspectiva do escalamento, não sabemos se o carro estava mais próximo que o muro.
Da factualidade assente, devemos concluir que a queda da autora não constituiu uma involução extraordinária, imprevisível, improvável e anormal, face ao perigo que para si significava o movimento hostil do animal, pelo contrário, tal movimento desencadeou uma sucessão de factos, todos eles relacionados com atitudes defensivas da recorrida, os quais, de acordo com a ordem natural das coisas, são aptos em abstracto a provocar os danos na autora, tal como foi concluído na sentença recorrida.
E nem se diga que a recorrida culposamente concorreu para sofrer as lesões descritas- De acordo com o artigo 570.º, n.º 1 do C.P.C, quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.
Tal como se refere lapidarmente na sentença posta em crise: Será de censurar que a Autora, nessa situação, tenha-se sentido assutada e em pânico e tenha fugido? É evidente que não. E não lhe é censurável que fizesse, pois até já conhecia a cadela e a experiência que tinha era a de ser “recebida” de tal forma que a fazia mudar de passeio. Qualquer pessoa, na sua situação, agiria da mesma forma.
Desse modo, improcede a apelação.
*
V. A decisão
Pelo exposto, os Juízes da 6.ª Secção da Relação de Lisboa acordam:
- na procedência parcial da impugnação da matéria de facto, nos termos supra referidos:
- na improcedência total da apelação e, consequentemente, decidem manter a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Registe e notifique.

Lisboa, 22-05-2025
João Manuel P. Cordeiro Brasão
Maria Teresa F. Mascarenhas Garcia
Nuno Lopes Ribeiro (com declaração de voto de vencido)

Declaração de voto de vencido do Exmº Juiz Desembargador Nuno Lopes Ribeiro:
Voto de vencido
Votei vencido, como relator inicial, na medida em que discordo da solução adoptada pela maioria do colectivo, no que tange à impugnação da matéria de facto e à aplicação do Direito, com relevância fundamental no sentido da decisão final.
Em primeiro lugar, entendo que o ponto 11. da matéria de facto provada mereceria a seguinte redacção:
11 - A Autora, assustada e em pânico com a postura da cadela, tendo medo de ser atacada, tentou fugir, tendo a opção de o fazer por ambos os sentidos da estrada ou subir a viatura da testemunha DD que ali se encontrava estacionada.
Efectivamente, a opção que se abriu à autora de fugir por ambos os sentidos da estrada ou subir a uma viatura não resulta evidente da restante matéria de facto provada, pelo que o seu carácter parcialmente conclusivo mostra-se justificado. A autora tinha, efectivamente, essas opções e não as seguiu.
Mas, principalmente, discordo da análise jurídica que obteve vencimento, no que se refere à análise da adequação causal do facto relativamente ao dano.
Antes do mais, uma explicitação: o facto ilícito em causa consiste na violação do dever de vigilância relativamente ao cão do réu, por parte da ré.
Haverá, pois, que ponderar se esse facto omissivo constituiu causa adequada dos danos sofridos pela autora.
Da factualidade provada, devemos concluir que a infeliz queda da autora constituiu uma involução extraordinária, imprevisível, improvável e anormal, face à ameaça que para si significava a aproximação do animal.
Admitindo que o perigo seria concreto e real, pois o animal a correr e a latir de forma enérgica, foi para a via pública, em direcção à Autora, não se concede que a reacção adequada da autora a tal ameaça, se consubstanciasse em subir a um muro, com o apoio de um pé apenas, com uma altura do lado oposto de aproximadamente 3 metros.
Resultando da factualidade provada que a autora dispunha de amplo espaço para se afastar, por ambos os lados ou subir a uma viatura que se encontrava estacionada – procedendo o aditamento factual pretendido e que a posição maioritária desconsiderou.
Optando, ao invés, por se elevar para um poste de electricidade e para um muro, opção que causou a infeliz queda.
Imagine-se que o muro tinha uma altura muito superior e que, em virtude dessa altura, a autora teria falecido, em consequência da queda. Ou que a autora, no decurso da fuga, teria optado por correr em direcção a uma estrada com excessivo trânsito, sendo atropelada.
Também nessa situação se consideraria que a morte da autora teria sido causada pelo animal ou pela ameaça que o mesmo representava?
Parece-nos que não.
Face à ameaça representada pela aproximação de um cão, a correr e a latir de forma enérgica, em direcção à autora, a mesma poderia ter adoptado vários comportamentos defensivos adequados, como fugir em qualquer uma das direcções possíveis, subir para cima de um carro que ali se encontrava ou, mesmo, reagir contra o animal, ameaçando-o e até ferindo-o com uma qualquer objecto à mão.
Subir a um muro, assim como subir a uma árvore, a um poste, atirar-se para uma corrente de água ou para um poço (por absurdo), constituem comportamentos desadequados à ameaça ou perigos concretos que representava a aproximação do animal, naquelas circunstâncias apuradas.
Acrescendo a que o animal nunca se aproximou a uma distância inferior a 5 metros, o que sempre permitiria à autora tomar a opção mais adequada e racional, com vista a evitar um perigo sem que criasse outro mais grave (como aconteceu).
Não resultando da factualidade provada que a autora dispusesse de apenas «uma fracção de segundos» para tomas a decisão mais adequada.
Não se tendo provado que o acto de subir para cima do muro fosse o único possível e adequado a evitar a concretização da ameaça.
Recorde-se que os danos invocados (e provados) de que padeceu a infeliz autora foram exclusivamente causados pela sua queda do muro, não directamente pelo ataque do animal.
Não se tratam de ferimentos causados pelos dentes ou pelas patas do animal.
Tratam-se, ao invés, de ferimentos causados pela reação da autora face ao perigo que pressentiu pela aproximação do animal, sendo que essa reação não se mostra adequada ao perigo concreto em questão.
Por todos e em situação paralela – queda durante a fuga perante uma perseguição encetada por outro homem, munido de um pau – veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/1/2016 (Raul Borges), disponível em www.dgsi.pt:
«VI - A perseguição encetada por um indivíduo a outro, com um pau, com o intuito de o molestar fisicamente, é adequada a colocar o visado em fuga, a correr, mas o facto de perseguir não é adequado, em termos de normalidade, a tolher a capacidade de decisão no sentido da fuga, que nessa fuga o perseguido venha a encontrar um muro, antecedido de terreno com relva, escorregadia ou não, que o perseguido dê um salto, que com o salto ocorra um desequilíbrio e haja uma queda, e com a queda se produza uma lesão no joelho esquerdo. Ou seja, a perseguição com um pau não constitui causa adequada, indirecta, da queda sofrida em resultado do salto e consequentes lesões.»
Não se verificando, pois, o requisito legal de responsabilização da ré, por inexistir causalidade adequada entre o comportamento desta (deixar aberto o portão da propriedade do co-réu, o que permitiu a saída do animal da propriedade) e os danos infelizmente sofridos pela autora.
Sendo que, recorde-se, cabia à autora, lesada, o ónus de prova dos factos demonstrativos desse requisito, nomeadamente que o seu comportamento, infelizmente precipitado e injustificado, seria o adequado, face ao facto ilícito em causa.
Desse modo, entendi e mantenho o entendimento, que se justifica a improcedência da demanda contra a recorrente, procedendo totalmente a apelação.
Nuno Lopes Ribeiro