I. A relação de comodato corresponde estruturalmente a um quadro de duração limitada. Esse limite pode resultar do acordo das partes ou pode resultar indirectamente, da circunstância de a coisa ter sido emprestada para um uso determinado.
II. O comodato “precário” - comodato que ao não ter prazo fixado ab initio, nem um uso determinado da coisa comodatada pelo beneficiário - pode cessar a todo o tempo, por vontade unilateral do comodante.
III. O efeito do “comodato precário “- ilegitimidade da recusa da restituição pelo beneficiário perante a vontade do comodante - vem sendo preconizado de forma reiterada pela Jurisprudência do STJ, que assenta na ideia chave, de que a ordem jurídica não tolera um comodato que deva subsistir indefinidamente, seja por falta de prazo, seja por ele ter sido associado a um uso genérico.
IV. O comodato “para uso determinado” contém a delimitação da necessidade temporal que visa satisfazer, denotando que o uso convencionado da coisa tem de se encontrar adstrito a um tempo determinado de utilização, ou pelo menos, determinável.
V. Dos factos apurados resulta que a vontade transmitida pela Ré comodante não foi a de que a Autora habitasse a casa para sempre, mas até que retomasse a sua situação de vida normalizada, ultrapassadas as dificuldades no período subsequente ao divórcio e as quais motivaram o empréstimo da casa.
VI. A relação de família entre o comodante e o comodatário, que usa a casa para sua habitação, sem o apuramento do convénio nesse sentido, revela-se insuficiente para sustentar a presunção judicial de que o comodato foi celebrado sem limite de tempo, por se destinar ao estabelecimento da morada familiar.
VII. A Autora postergou o dever moral e legal de assistência para com a Ré, sua mãe, seja recebendo-a para com ela residir ou restituir-lhe a casa comodatada; conduta, que à luz dos princípios e valores éticos que prevalecem na nossa sociedade, se reconduz a “ justa causa” para a restituição, em aplicação do disposto no artigo 1140º do Código Civil.
VIII. A comprovada necessidade, objectiva e urgente, da Ré encontrar um local para residir, atendendo à sua idade e situação de carência a que chegou, integra também “justa causa” para o pedido de restituição da casa comodatada.
IX. A circunstância de o imóvel comodatado constituir a morada de família do comodatário não implica que seja exigível aos particulares que se substituam ao Estado nas obrigações que sobre este impendem em matéria de proteção do direito à habitação.
1. Da acção
AA intentou contra BB, entretanto falecida, tendo sido habilitado no seu lugar o filho, CC) acção de usucapião, pedindo que:
- Fosse a ação considerada procedente por provada, declarando-se o imóvel sito na Rua Maria ..., ... ..., como propriedade da autora, adquirida por usucapião.
Para o efeito, alegou em suma que reside e faz do seu centro de vida no imóvel acima indicado, seu domicílio, em ..., embora a titularidade formal do mesmo se encontre a favor de sua mãe, aqui Ré.
A Autora, em 1996, após o seu divórcio, foi autorizada por sua mãe, aqui R., a habitar e a fruir a casa o que se verifica ininterruptamente até hoje, atuando e dela cuidando como se fosse sua propriedade, tem ali o domicílio fiscal desde 1996 e pagou os condomínios desde 2004.
A mãe nunca habitou a casa, nunca quis lá habitar, nem nisso alguma vez mostrou vontade, tendo, até ingressar no lar, onde tem vivido, sito em ..., vivido na Rua ..., ..., ..., em imóvel arrendado.
É uma posse pública, pois em função da documentação junta, foi e é mais que apta a ser conhecida por qualquer interessado.
A posse da A. confere-lhe a aquisição do direito de propriedade do imóvel identificado – artigo 1287º do Código Civil; não havendo, no entanto, nem título, nem registo, nos termos do artigo 1296º do Código Civil, estando presentes os outros caracteres – boa-fé, pública e pacífica – a aquisição prescritiva dá-se ao fim de 15 anos;
Como a Autora é possuidora desde 1996, já desde 2011 que adquiriu a propriedade do prédio por usucapião.
A Ré contestou, por exceção e por impugnação, e em reconvenção, pediu que a Autora seja condenada a restituir-lhe o imóvel sobre o qual não detém o direito de que se arroga.
Prosseguiu a instância e realizada a audiência final, seguiu-se sentença cujo dispositivo postula:
«Pelo exposto o Tribunal decide:
a) julgar a presente acção proposta por AA improcedente e, em consequência absolver a R. BB do pedido.
b) julgar procedente por provado o pedido reconvencional formulado por BB contra AA e consequentemente condeno a reconvinda/autora a restituir à Reconvinte/Ré o imóvel sito na Rua Maria ..., ... ... descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Oeiras com o n.º .26 proprietária do imóvel».
2. Da apelação
Inconformada a Autora interpôs recurso da sentença, vindo o Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 14-12-2023, a julgar improcedente a sua apelação e confirmou o julgado de primeira instância de improcedência da acção e procedência da reconvenção.
3. Da revista
Mantendo o seu inconformismo, a Autora interpôs recurso de revista excecional concluindo no final das alegações:
«1. A anterior recorrida BB faleceu no dia ... de ... de 2023, conforme certidão de óbito junta aos autos.
2. Conforme referido e demonstrado pelo irmão da aqui Recorrente, CC, sucederam-lhe como seus únicos e universais herdeiros os seus dois filhos, a aqui Recorrente e o referido irmão, aqui Recorrido.
3. O Acórdão recorrido entendeu que, no caso em apreço, deveria prevalecer sobre o direito à protecção da casa de morada de família da Recorrente e o direito à habitação da então recorrida, este último.
4. Por esse mesmo facto, a Relação de Lisboa invocou o acórdão do STJ que decidiu “Não pode admitir-se que o comodante não possa exigir a restituição da coisa no comodato de imóvel para satisfação de uma necessidade permanente do comodatário: a da habitação”1.
5. Tal situação mudou radicalmente com a morte da então recorrida, deixando de existir a necessidade do direito à habitação do comodante, mantendo-se, apesar de tudo, a urgência de manter o direito à casa de morada de família da aqui Recorrente.
6. Resulta da matéria assente que a Recorrente, desde 1996, vive, reside e faz o seu centro de vida no imóvel em causa nos autos.
7. A utilização do referido imóvel como casa de morada de família não teve qualquer oposição de 1996 a 2020.
8. A casa de morada de família consubstancia a sede da vida familiar em condições de habitabilidade e de continuidade, o centro da organização doméstica e social da comunidade familiar, constituindo a residência principal do agregado familiar.
9. A casa de morada de família consubstancia um facto ou fenómeno empiricamente apreendido e social e leigamente entendido com que é juridicamente entendido – ou seja, como o espaço físico onde os elementos de um agregado familiar residem de forma habitual e com carácter de permanência, aí detendo o centro da sua organização pessoal, doméstica, familiar e social, em condições de continuidade e de preservação de intimidade e privacidade familiar.
10. Em face da matéria dada por assente (pontos 9, 10, 18, 20 e 21) não subsistem dúvidas de que a casa em causa nos autos é a casa demorada de família da Recorrente, devendo gozar de protecção especial que lhe foi recusada pela sentença recorrida.
11. A decisão recorrida deveria ter contemplado o facto de a referida casa ser casa de morada de família, bem como a situação de especial fragilidade da Recorrente, com 62 anos, que tem 80% de incapacidade, estando impedida de trabalhar.
12. A Recorrente foi viver para a casa de ... a coberto de um contrato de comodato (cfr. pág. 23 da sentença).
13. O contrato de comodato celebrado entre Recorrente e Recorrida não tem prazo, mas é para uso determinado – a habitação da Recorrente.
14. A duração do contrato de comodato prevalece, no caso em apreço, enquanto durar a necessidade de habitação da Recorrente.
15. Assim, ao contrário do disposto no acórdão recorrido, entende-se que, destinando-se a cedência do imóvel para habitação, a sua restituição apenas pode ter lugar quando tal uso se finde, sem necessidade de qualquer interpelação, como decorre do artigo 1137.º, n.º 1, do CC. Mas mais!
16. Com base na protecção legal da família, veio entender o STJ – no acórdão de 5 de julho de 2018 e de 4 de fevereiro de 2021 – que, vigorando um contrato de comodato sem prazo para uso de habitação familiar, não há obrigação de restituição do imóvel, enquanto continuar a ter esse uso.
17. É este, manifestamente, o caso!
18. Para qualificação dessa residência familiar, bastava a prova dos autos configurando o conteúdo do uso como residência familiar/morada de família, o que no caso em apreço não levanta dúvidas.
19. No contrato de comodato sem prazo, mas que tenha por fim o uso de habitação familiar, não há obrigação de restituir o andar, enquanto continuar a ter esse uso, porque a necessidade de protecção familiar se estende à casa objecto de um contrato de comodato para habitação familiar.
20. Os três argumentos da Relação de Lisboa para considerar a improcedência do pedido da Recorrente de manutenção do contrato de comodato não vingam.
21. Os dois primeiros por razões supra apresentadas, o terceiro – relativo ao acordado entre as partes – porque se mantém, até aos dias de hoje, os pressupostos daquele empréstimo, ou seja, a debilidade financeira causada pela incapacidade da Recorrente de trabalhar (relembre-se que tem uma incapacidade de 80%).
22.O contrato de comodato é oponível aos herdeiros do comodante, pelo que o contrato em causa nestes autos mantém-se válido e eficaz.
23. Deve, pois, e em consequência a sentença recorrida ser alterada, atribuindo-se protecção ao contrato de comodato existente entre a Recorrente e a Recorrida, não procedendo o pedido reconvencional.
II. Admissibilidade e objecto do recurso
Verificados os pressupostos gerais de admissibilidade da revista e a dupla conformidade dos julgados que obsta à interposição de revista dita normal, apreciado o fundamento de excepção invocado pela recorrente, a Formação admitiu o pedido de revista, por se considerar que a questão em discussão assume particular relevância social, conforme à al. b) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC.
Analisadas as conclusões da recorrente, em interface com o acórdão recorrido, importa decidir se a Autora não está obrigada a restituir a casa onde reside.
Para tal desiderato apreciaremos os seguintes tópicos recursivos:
• o contrato de comodato - caracterização; • comodato precário; uso e finalidade;
• justa causa de “resolução”;
• a tutela da habitação-morada de família.
III. Fundamentação
A. Os Factos
Vem provado das instâncias:
1. Em ...-...-77 a “Obra Social do ex-Ministério da Cooperação” e DD assinaram o “Contrato de compra e venda de casa económica” junto a fls. 49 a 53 do apenso A. mediante o qual se estipulou, designadamente, o seguinte:
“Que, por deliberação da citada Direcção, tomada em sua sessão de cinco de julho de 1973, foi atribuído ao segundo outorgante, ao abrigo da alínea a) do artigo nono do Regulamento de Casas Económicas, em regime de propriedade resolúvel, o fogo do tipo C-4, situado no Lote número C, primeiro andar direito.
Que, em cumprimento da citada deliberação e em conformidade com o disposto no artigo décimo primeiro do Regulamento de casas Económicas da Obra Social do ex-Ministério da Cooperação aprovado pela Portaria número vinte e três mil setecentos e oitenta e cinco, de dezoito de Dezembro de e sessenta e oito, com a redacção dada pela Portaria número quinhentos e sessenta e quatro traço setenta, de cinco de Novembro de mil novecentos e setenta e disposições do Decreto-Lei número duzentos e setenta e três traço setenta e três de trinta de Maio, pelo presente instrumento se estabelece o contrato de compra e venda do citado fogo entre a Obra Social do ex-Ministério da Cooperação Cláusula Primeira - A Obra social do ex-Ministério Cooperação adiante designada apenas por Obra Social, atribuiu e vende ao segundo outorgante, para nela estabelecer a sua habitação e do seu agregado familiar, uma casa económica constituída pela fracção autónoma individualizada por casa do lado direito do primeiro andar e correspondentes direitos sobre as partes comuns, com todos os direitos de acção e fruição, bem como todas as pertenças, servidões e acessões do prédio sob regime de propriedade horizontal edificado no lote C do Bairro Social de ..., sito na freguesia de ..., concelho de ... e descrito na Conservatória do Registo predial deste concelho sob o número ...10, do Livro B- 45 (…)”
DD faleceu em ...-...93, deixando como única herdeira, a filha, ora R. 2(cfr. habilitação de herdeiros de fls. 58-59 do apenso A).
2. Em ...-...2009 a ora Ré outorgou, a favor de seu filho CC, a “PROCURAÇÃO”, junta a fls. 55 e 56 do apenso A, conferindo-lhe, entre outros, poderes para ceder qualquer participação social que a mandante possua em qualquer sociedade, dar quitação de quantias recebidas, deliberar em assembleia de sócios de qualquer sociedade, comprar e vender quaisquer bens imóveis ou suas partes indivisas pelo preço e demais condições que tiver por convenientes, requerer registos junto de quaisquer Conservatórias do Registo Predial, pagar contribuições, impostos ou taxas, negociar e contratar empréstimos ou quaisquer outros contratos para obtenção de financiamento junto de instituições de crédito ou outras entidades financeiras, pelos montantes, prazos, taxas de juros e com as garantias e demais termos e condições que tiver por convenientes, podendo o mandatário no uso da procuração celebrar negócio consigo próprio. 3
3. Em ...-...-2014 os Serviços Sociais da Administração Pública emitiram a “DECLARAÇÃO” junta a fls. 72 (doc. 11 com a contestação que eles, primeiros outorgantes, representam, e o segundo outorgante como beneficiário-adquirente, nos termos e segundo as cláusulas seguintes: contestação), onde consta, a propósito do contrato referido em 1., o seguinte: “[…]UM
Em ... de ... de 1977 foi celebrado contrato de compra e venda em regime de propriedade resolúvel, número 355, de uma casa económica (primeiro andar direito) a que corresponde a fracção autónoma designada pela letra “C” do prédio urbano em regime de propriedade horizontal designado bloco C4, sito no Bairro Social da ..., Rua Maria ...… inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..36 e descrito no Conservatória do Registo Predial deste concelho sob o número ...10 a fls. 151 do Livro B45.
Dois Como primeiro outorgante e vendedor da fração autónoma assinaram o contrato, em representação da Obra Social do Ministério da Cooperação … o respectivo presidente e um vogal e como segundo outorgante e compradora a Sra. DD, viúva do subscritor EE…
TRÊS
… a segunda outorgante faleceu no dia ... de ... de 1993, sucedendo-lhe como herdeira, a sua filha BB…. Por procuração assinada aos .../.../2009 constitui seu procurador bastante o seu filho CC…
CINCO
A casa económica objecto do contrato foi transmitida mediante o preço de 384 000$00 (trezentos e oitenta e quatro mil escudos), mais juros de 4% (quatro por cento) ao ano sobre o capital em dívida.
SEIS
O segundo outorgante pagou ao 1º outorgante a quantia de 14,97€ referente à última prestação do preço definitivo do fogo, esta quantia adicionada às efectuadas a título de inscrição, quotas e mensalidades, totalizam 3 104,76€ (três mil cento e quatro euros e setenta e seis cêntimos). Cessa a partir da data do registo a que se refere o n.º 2 do art. 4º do Decreto-Lei 273/73, de 30 de maio, o carácter resolúvel da propriedade transmitida, adquirindo o beneficiário a propriedade plena do andar, sem prejuízo do direito de preferência, com eficácia real, que assiste aos SSAP, nos termos do art.º 4º do referido Decreto-Lei.”
5. Encontra-se registada a favor da Ré, desde ...-...-2019 a aquisição da fracção “C” (1º andar direito com arrecadação na cave) do prédio descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de ... com o n.º .26, por sucessão hereditária e tendo como sujeito passivo DD (cfr. certidão de registo predial junta como doc.1 com a PI).
6. Em ...-...-2019 a Ré outorgou, a favor de seu filho CC, a “PROCURAÇÃO”, junta aos autos como doc. 15 com a contestação, conferindo-lhe, entre outros, poderes para ceder qualquer participação social que a mandante possua em qualquer sociedade, dar quitação de quantias recebidas, deliberar em assembleia de sócios de qualquer sociedade, comprar e vender quaisquer bens imóveis ou suas partes indivisas pelo preço e demais condições que tiver por convenientes, requerer registos junto de quaisquer Conservatórias do Registo Predial, pagar contribuições, impostos ou taxas, negociar e contratar empréstimos ou quaisquer outros contratos para obtenção de financiamento junto de instituições de crédito ou outras entidades financeiras, pelos montantes, prazos, taxas de juros e com as garantias e demais termos e condições que tiver por convenientes, constituir usufruto, hipoteca, penhor ou ónus de qualquer outra natureza sobre bens móveis ou imóveis, nos termos e condições que entender, prestar fiança e a constituir principal pagadora com renúncia ao benefício da excussão prévia de qualquer empréstimo, dar e tomar de arrendamento prédios rústicos ou urbanos ou suas fracções autónomas, abrir, movimentar e encerrar contas, fazer e aceitar confissões de dívida, celebrar, alterar e fazer cessar, por qualquer forma, contratos de seguro, de quaisquer ramos, pagar e receber, passando recibo e dando quitação, rendas, preços ou quaisquer outras quantias, assinar, alterar e rescindir, com as respectivas entidades, contratos referentes ao fornecimento de energia eléctrica, água, gás, telefone ou qualquer outro serviço, representá-la em assembleias de condóminos e perante todo e qualquer organismo ou repartição do Estado ou Instituto Público, receber quaisquer notificações e citações, representar a outorgante junto de qualquer tribunal, intentando e fazendo seguir quaisquer acções judiciais, recursos em tribunais administrativos e fiscais ou quaisquer outros, bem como deduzindo contestação, reconvenção, oposição, embargos ou qualquer outra forma de intervenção processual, substabelecer, no todo ou em parte em quem, em seu critério, entender os poderes outorgados pela presente procuração, devendo os poderes forenses ser obrigatoriamente substabelecidos em Advogado ou Solicitador, podendo o mandatário no uso da procuração celebrar negócio consigo próprio.
7. Pela Ap. ..41 de 2019/10/04 mostra-se inscrita a hipoteca voluntária sobre o imóvel referido em 5. pelo capital de €27.675,00 tendo como sujeito activo B..., S.A. e como sujeito passivo BB (cfr. certidão de registo predial junta como doc.1 com a PI).
8. A A., vive, reside, e faz o seu centro de vida no imóvel referido em 5. com o seguinte endereço Rua Maria ...º, ... ...;
9. A A., em 1996, após o divórcio do seu primeiro marido, foi autorizada pela sua mãe, R. nos autos, a habitar e a fruir a casa de forma gratuita, o que se verifica ininterruptamente até hoje;
10. A Ré não estabeleceu qualquer prazo para que a A. desocupasse o imóvel, por ser sua filha, mas também por saber que esta não dispunha de condições financeiras para adquirir um imóvel no imediato.
11. A Ré não negou ajuda à sua filha, a A., porque estava a começar a organizar a sua vida e num momento em que passava por algumas necessidades após o divórcio.
12. A Ré entre 1996 e 2007 chegou a habitar alguns períodos no imóvel referido em 5. conjuntamente com a A.
13. Nos períodos em que coabitaram, a A. trabalhava por turnos, e a Ré assumia a responsabilidade de cuidar do seu neto na ausência da mãe.
14. O imóvel referido em 5. foi habitado pelo filho da R. e irmão da A. CC, que também ali residiu, de forma gratuita e com a obrigação de o restituir desde 1975 até 1994.
15. No ano de 2007, a Ré optou por ficar definitivamente a morar numa casa que tinha arrendada e permitir que a A. ali continuasse a habitar no imóvel referido em 5. a título gratuito.
16. A R. permaneceu no imóvel arrendado sito na Av. ..., ... ....
17. Nessa altura a A. mantinha um relacionamento com o senhor FF, de nacionalidade ..., com quem acabou por casar e que a partir do casamento este também passou a habitar no imóvel da R., e esta sentiu a necessidade de ter a sua privacidade.
18. A seguinte documentação da A. contém a morada no imóvel referido em 5. a) Certificado das finanças declarando domicílio fiscal desde 1996 (doc. 2);
b) carta de advogada de 16.05.1997 (doc. 3); c) peça judicial de 1997 (doc. 4);
d) anexo a essa peça judicial de 1997 (doc. 5);
e) fatura/recibo de compra no Continente 1997 (doc. 6);
f) atestado médico de incapacidade de 1998 (doc. 7);
g) cartão de eleitor desde 1998 e posterior (doc. 8), com o verso indicando as datas no doc. 9;
h) recibo relativo a compra de colchão de 1998 (doc. 10),
i) certificado de utente do Centro de Saúde da área da residência desde 1999 (doc. 11);
j) certificado do filho de utente do Centro de Saúde da área da residência de 1999 a 2013 (doc. 12); k) Aviso II da TV Cabo para a mesma morada relativa a dívidas (doc. 13)
l) notificação dos Serviços Sociais do Ministério da Saúde de 14 de março de 2000 (doc. 14); m) contrato de trabalho de 2000 (doc. 15);
n) domicílio constante de extracto bancário do banco Santander 2001 (doc. 16);
o) conta condomínio do prédio referido em 5. revelando que o paga desde 2004 (doc. 18);
p) execução fiscal de 2004, relativa a contribuição autárquica do ano de 1996 (doc. 19) emitida pelo serviço de finanças “... 3 (...)”, que corresponde ao serviço de finanças da localização do imóvel sito no ... onde a A. viveu com o primeiro marido, pai do seu filho;
q) o talão de compra KM System 2004 junto como doc. 20 menciona a morada da A. em ...; r) A compra Carrefour 2005 (doc. 21) menciona a morada da A. em ...;
s) notificação de tribunal de 2008 (doc. 22); t) notificação de tribunal de 2014 (doc. 23);
u) atestado médico de incapacidade multiusos de 12/12/ 2018 (doc. 24); v) fatura de serviço de televisão de julho de 2020 (doc. 25);
19. A A. tem pagado o condomínio desde, pelo menos, 2004.
20. A morada do imóvel referido em 5., desde 1996 até à presente data, passou a ser a residência da A., quer no Sistema Nacional de Saúde, quer na autoridade tributária, quer no recenseamento eleitoral, quer na entidade patronal antes de se reformar, quer nos processos em tribunal, quer nos prestadores de serviços de televisão, sendo o imóvel para onde a A. leva as compras de bens de consumo que fazia.
21. A A. tem o seu centro de vida no imóvel referido em 5. sem qualquer oposição de terceiro ou da R., esta até ao ano de 2020, em que passou a pedir que aquela lho restituísse.
22. A A. nunca efetuou o pagamento de qualquer tipo de contribuição autárquica ou IMI relativamente ao imóvel referido em 5.
23. A Ré, que conta com 90 anos de idade, permaneceu a residir sozinha, no imóvel que tinha arrendado como arrendatária sito na Av. ..., ... Lisboa.
24. Até ao ano de 2018, altura em que por motivos de saúde acabou por se mudar para um lar, sito no ..., onde lhe eram assegurados todos os cuidados necessários inerentes à sua idade e o seu acompanhamento constante.
25. A Ré, sempre efetuou o pagamento dos impostos do imóvel referido em 5., o qual vem sendo por si liquidado até à presente data, cfr. Docs. 1, 2, 3, 4, 5, 6 e 7, juntos com a contestação.
26. A Ré liquidou ainda as tarifas de conservação dos esgotos do imóvel, cfr. Doc. 8 e 9 juntos com a contestação.
27. A A. e a Ré não têm qualquer tipo de contacto há mais de doze anos.
28. A A. e a R. afastaram-se não prestando a A. qualquer tipo de cuidados à Ré, sua mãe, sendo estes assumidos pelo seu irmão.
29. Os rendimentos da Ré não permitiam fazer face às mensalidades do lar e aos demais encargos.
30. A mensalidade do lar ronda os 1.200€ mensais, valor ao qual acrescem as despesas relacionadas com medicação, cfr. Doc. 13 junto com a contestação.
31. Aquando do surgimento da pandemia provada pela Covid-19, o irmão da A., GG, manifestou junto da A. a sua preocupação com o facto de não conseguir continuar a ajudar sozinho a sua mãe nas despesas do lar e as demais inerentes aos cuidados de saúde da Ré.
32. A Ré acabou por ficar com várias mensalidades em atraso no lar, no montante aproximado de 9.100,00€, conforme Doc. 14 junto com a contestação.
33. Por isso a Ré foi interpelada pelo lar para sair, caso não procedesse ao pagamento dos montantes em dívida.
34. Nesse momento a Ré informou a Autora da necessidade de voltar a residir no imóvel e interpelou-a verbalmente para que lhe entregasse a fração.
35. A A. recusou entregar a fração à Ré ou a permitir que a R. nela passasse a morar conjuntamente consigo, por estarem afastadas.
36. Tendo em conta que a Ré necessitava de cuidados diários e de acompanhamento permanente, o seu filho procurou ainda outras soluções e que apresentou à A.
37. Sugeriu que a A. saísse do imóvel para que o mesmo fosse arrendado ou vendido e com tal rendimento poderiam liquidar a divida ao lar e assegurar o pagamento de todas as despesas da Ré daí para a frente.
38. Ou ainda, que a fração fosse entregue ao lar onde a Ré se encontrava a residir como dação em cumprimento, ou vendido ao mesmo para liquidar a dívida e as despesas futuras da Ré. 39.Tudo conforme e-mail de 7 e 12 de maio de 2020, cujas cópias estão juntas como Docs. 22 e 23 com a contestação.
40. A Autora afirmou que não iria abandonar a casa.
41. Nessa sequência, o irmão da A. munido de procuração (cfr. Doc. 15 junto com a contestação) e a pedido da Ré, voltou a insistir para que aquela entregasse a casa.
42. A A.4 tem uma incapacidade permanente global igual/superior a 60% - segundo reavaliação-atestado médico de incapacidade multiuso, conforme relatório médico atestado médico de incapacidade multiuso-doc. junto com a petição.
43. A Ré foi forçada a abandonar o lar no início do mês de setembro de 2020.
44. Encontrando-se a Ré5 a residir sozinha no imóvel arrendado o ré-do-chão A do prédio sito na Av. ..., ... ....
45. Onde paga o montante de 155,30€ a título de renda, cfr. Doc. 17 junto.
46. O filho da Ré CC, informou a A. que esta solução seria temporária, porque o imóvel não tinha condições de habitabilidade e que estava a necessitar de obras.
47. A Ré necessita de cuidados de saúde diários e de acompanhamento permanente, estando-lhe assegurados alguns cuidados básicos de higiene e alimentação pela Associação de Beneficência ... mais bem identificados no contrato de acolhimento (doc.) 18 e pelos quais paga o montante mensal de 317,00€.
48. Aos valores supracitados acrescem ainda as despesas correntes de alimentação, farmácia e higiene.
49. A Ré aufere os rendimentos que resultam da sua pensão de velhice e pensão de sobrevivência no montante global de 818,08€, conforme Docs. 19, 20 e 21 juntos com a contestação.
50. A Ré está sozinha em casa, recebendo pequenas visitas do seu filho quando se pode ausentar momentaneamente do trabalho, mas que se revelam insuficientes para assegurar a sua segurança e o seu conforto.
51. A Ré enviou interpelação por carta registada com aviso de recepção à A. datada de 15 de setembro de 2020 e recebida por ela, onde concedendo-lhe um prazo de 15 dias para que procedesse à restituição do imóvel e entrega das chaves, o que a A. não fez.
52. A Autora continuou a recusar sair do imóvel.
B. A solução de Direito
1. Sinopse
A Autora interpôs a presente acção, pedindo o reconhecimento do direito de propriedade sobre o imóvel, onde reside desde 1996, por o ter adquirido por usucapião; a Ré, proprietária, alegou que apenas emprestou a casa à filha, e pretende a sua imediata restituição, conforme expressou na interpelação que lhe dirigiu.
As instâncias, sem oposição das partes, reconduziram a factualidade apurada à relação de comodato estabelecida entre a Autora e a Ré quanto ao imóvel6 e julgaram improcedente a acção e procedente a reconvenção.
A Autora aceita agora que o comodato do imóvel foi celebrado sem prazo, mas destinou-se à sua habitação permanente, pelo que, na sua perspetiva, em aplicação do disposto no artigo 1137º, nº1, do Código Civil, não lhe é exigível a restituição da casa, que constitui a morada de família e como tal justifica protecção legal , e por já não se verificar a sua necessidade pela Ré, entretanto falecida.
2.1. O comodato; caracterização
É correcta a qualificação do contrato ajuizado como de comodato, qualificação seguida pelas instâncias e que as partes aceitaram.
O tratamento teórico- doutrinário em torno do contrato de comodato empreendido na sentença e acolhido no acórdão recorrido, torna desnecessário outro desenvolvimento.
Limitamos, pois, a incursão a uma breve nota de enquadramento da figura contratual.
O comodato é por definição um contrato típico e nominado, cuja definição legal e respectiva disciplina constam dos artigos 1129º a 1141º do Código Civil.
Definido no artigo 1129º do Código Civil, o comodato exibe no seu tratamento teórico dogmático as seguintes características - trata-se de um contrato, gratuito, com entrega de móvel ou imóvel, para uso ou utilização comum, com a obrigação de restituir7.
A obrigação do beneficiário de restituir a coisa comodatada - e que nos autos apreciamos - revela-se primordial para que não se confunda com a figura da doação, em que a coisa passa definitivamente para a esfera jurídica do beneficiário.
Acresce que a natureza gratuita do comodato que molda a classificação de contrato não sinalagmático, não excluiu a assunção pelo beneficiário de certas obrigações, desde que na economia do contrato, e segundo a vontade das partes, não traduzam o correspetivo do uso da coisa8.
2.2. Temporalidade -o “comodato precário”
De particular incidência para a solução do caso, importa considerar a temporalidade como elemento definidor do contrato de comodato.
A relação de comodato corresponde estruturalmente a um quadro de duração limitada, como se infere da menção ao “dever de restituição” que integra a definição legal do comodato no artigo 1129º do Código Civil.
«É da essência do comodato que dele resulta para o comodatário um direito de uso temporalmente limitado. Esse limite pode resultar do acordo das partes – a casa emprestada por dois meses - ou pode resultar indirectamente, como decorre do nº 1 do artigo 1137º, da circunstância de a coisa ter sido emprestada para um uso determinado: o carro emprestado para a lua-de-mel ou para uma viagem de estudos.9»
Associada à temporalidade do comodato está a sua conformação tendencialmente precária. O comodato precário – comodato que ao não ter prazo fixado ab initio, nem um uso
determinado da coisa comodatada pelo beneficiário - pode cessar a todo o tempo, por vontade unilateral do comodante, i.e, pode ser denunciado ad nutum.
Na definição de RODRIGUES BASTOS, in Notas ao Código Civil, (artigo 1137º) o comodato precário, «[..] é o comodato sem determinação de data, expressa ou tácita, que no direito romano se não considerava verdadeiro comodato, conservando o concedente do uso o direito de cessação do contrato “ad nutum”.»
A doutrina mais actual continua a reconhecer o comodato precário enquanto sua modalidade10 .
O reconhecimento do efeito do “comodato precário “- ilegitimidade da recusa da restituição pelo beneficiário perante a vontade do comodante - vem sendo preconizado de forma reiterada na Jurisprudência dos tribunais superiores em sucessivos arestos 11.
Assinalam como ideia chave, que a ordem jurídica não tolera um comodato que deva subsistir indefinidamente, seja por falta de prazo, seja por ele ter sido associado a um uso genérico que, enquanto subsistir o comodatário, será sempre possível.
Em ilustração, destaca o sumário do Acórdão do STJ de 16.11.201012 :
«I - É da natureza do contrato de comodato, como seu elemento essencial, a obrigação de restituir a coisa, cuja entrega já é feita sob o signo da temporalidade.
II - Em razão dessa nota de temporalidade, a ordem jurídica não tolera um comodato que deva subsistir indefinidamente, seja por falta de prazo, seja por ele ter sido associado a um uso genérico.
III - O Código Civil acolhe no âmbito do contrato de comodato, a figura do denominado comodato precário, o que ocorre quando não tenha sido fixado prazo para a restituição nem determinado o uso da coisa, caso em que fica o comodatário obrigado a restituí-la quando o comodante o exija, denunciando o contrato (…)».
Essa é a linha decisória prosseguida de forma consistente e maioritária pelo Supremo Tribunal de Justiça e retratada, entre outros, no Acórdão de 06-11-201213:
«Com efeito, na apontada escalpelização da correspondente problemática jurídica, não pode entender-se que pelo facto de uma determinada habitação ter sido cedida em comodato para habitação (permanente) do comodatário, tal consubstancia um contrato de comodato para uso determinado. Este teria que ter delimitada, com subordinação ao mencionado signo da temporalidade que caracteriza o comodato (dada a respectiva natureza gratuita, alicerçada em posturas de gentileza e cortesia do comodante), a respectiva duração, por forma a que, em tese, a mesma não pudesse transmudar-se em ilimitada ou tendencialmente correspondente a toda a vida activa do comodatário. Na linha do expendido em II antecedente, a afectação a habitação do comodatário representaria, antes e com referência ao preceituado nos arts. 1131º e 1135º, al. c), ambos do CC, o fim ou finalidade do comodato.
Podendo, já e, no entanto, ser havida como para uso determinado se cedida, v. g., para habitação do comodatário para lhe propiciar veraneio, junto da barragem, durante o mês de agosto do ano em causa.».
No AC.STJ de 09-12-202114 : «(…) V. O contrato de comodato em que não se estipulou
prazo certo para a restituição da coisa, nem delimitou temporalmente o uso da coisa emprestada, considera-se como sendo um contrato de duração indeterminada, tendo o comodante direito a denunciar o contrato e a exigir, a todo o momento, a restituição da coisa, ao abrigo do disposto no nº 2 do artigo1137º, do Código Civil.»
No Acórdão do STJ de 26-11-2020 15:
«(…) Um contrato de comodato como o dos autos em que o tipo de uso da coisa não está temporalmente definido nem limitado, é de considerar como sendo um contrato de duração indeterminada, sujeito à regra da cessação ad nutum prevista n.º 2 do art. 1137.º do CC.»
2.3. O uso da coisa comodatada- finalidade
A doutrina e a jurisprudência admitem, em maioria, que, no que respeita ao comodato “para uso determinado”, a especificação do uso da coisa, contém, ela própria a delimitação da necessidade temporal que o comodato visa satisfazer.
Denotando que o uso convencionado da coisa comodatada tem de se encontrar adstrito a um tempo determinado de utilização, ou pelo menos, determinável (exemplos de escola- o quadro emprestado para ser exibido numa exposição, que deverá ser restituído quando a exposição encerrar; o apartamento emprestado para servir de residência ao estudante universitário, a restituir concluído o curso).
Do que decorre, que não é assim possível atender a um “determinado uso”, nos casos em que o uso não vise a prática de actos concretos de execução isolada, mas de actos genéricos de execução continuada, qual o tempo da sua duração, ou forneça critério para a sua determinação, caso em que se configurará o comodato com o uso da coisa por tempo indeterminado.
Deste modo, o uso só tem fim determinado se o for também temporalmente determinado ou, pelo menos, por tempo determinável.
Por outro lado, como enfatizou o recente Acórdão do STJ de 19.09.202416:
«(...) o simples facto de se ceder o uso de um imóvel para habitação do comodatário, com a finalidade de satisfazer as carências habitacionais deste, não é suficiente, só por si, para determinar quando ocorre o termo dessa cedência, uma vez que não nos dá uma indicação segura sobre a duração do período em que o comodatário poderá usar o imóvel do comodante. (...).»
Consequentemente, tem de concluir-se que não se estipulando prazo, nem se delimitando a necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, o comodante tenha direito a exigir, em qualquer momento, a restituição do local, denunciando o contrato, ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 1137º do Código Civil.
Pelas razões expostas, resguardado o devido respeito, não se acompanha o entendimento em sentido diverso, veiculado em três arestos do Supremo Tribunal de Justiça-os Acórdãos do STJ de 05.07.2018, Proc. 1281/13 (este invocado pela recorrente); de 09.04.2019, Proc. n.º 697/10.3TCFUN.L1.S1e, de 04.02.2021, Proc.5779/18 – que no contexto factual de comodato de imóvel destinado à habitação permanente do comodatário, identificam o fim determinado e assim subsumível ao regime de cessação previsto no nº1 do artigo 1137º do CC 17.
Ressalva-se, contudo, que as especificidades da matéria de facto em apreço, distanciada da que ora se aprecia, talharam a distinta solução jurídica a que chegaram as enunciadas decisões, conforme também sublinhou a propósito o Acórdão do STJ de 26-11-2020 18:
«No caso apreciado no acórdão de 05.06.2018 (proc. n.º 1281/13.5TBTMR.E1. S1), disponível em www.dgsi.pt, estava em causa um diferendo em que um dos autores, sucedendo na posição de um dos comodantes, entretanto falecido, pretendia que a ré, de quem se divorciara, restituísse a habitação na qual residia ao abrigo do acordo celebrado entre o autor e a ré quanto ao destino da casa de morada de família. Já no caso apreciado no acórdão de 09.04.2019 (proc. n.º 697/10.3TCFUN.L1. S1), in www.dgsi.pt, estava em causa um contrato de comodato celebrado entre as partes, na constância do matrimónio, para que a ré deixasse a casa de morada de família, na qual o autor continuou a viver, para ir habitar, juntamente com os filhos do casal, no imóvel objecto do comodato; tendo ademais o tribunal entendido resultar do acordo celebrado que o contrato duraria até à maioridade dos filhos comuns.
Deste modo, quer num quer noutro caso, a decisão de não obrigar à restituição da coisa assenta em factualidade e enquadramento jurídico específicos – no domínio das relações entre ex-cônjuges – não verificados no caso dos autos.»
Quadro fáctico que se repete no posterior Acórdão do STJ 04.02.2021.
3. A situação sub judice
3.1. Comecemos pelo conteúdo da vontade (negocial) das partes quando a Ré autorizou a Autora a residir na casa em apreço e que talha a finalidade pretendida.
A função principal da declaração negocial é a de exteriorizar a vontade psicológica do declarante, e permitir no domínio da autonomia privada, concretizar a intenção do interveniente na produção de um efeito jurídico19.
No caso, a vontade e propósito das partes na celebração do comodato observa-se, sobremaneira a partir dos factos provados sob os pontos:
“9. A A., em 1996, após o divórcio do seu primeiro marido, foi autorizada pela sua mãe, R. nos autos, a habitar e a fruir a casa de forma gratuita, o que se verifica ininterruptamente até hoje; e, 10.A Ré não estabeleceu qualquer prazo para que a A. desocupasse o imóvel, por ser sua filha, mas também por saber que esta não dispunha de condições financeiras para adquirir um imóvel no imediato. 11. A Ré não negou ajuda à sua filha, a A., porque estava a começar a organizar a sua vida e num momento em que passava por algumas necessidades após o divórcio.”
3.2. Apurado o quadro factual relativo à vontade contratual da Ré e a circunstância subjacente ao empréstimo da casa à Autora, temos como seguro de que se trata de um comodato sem prazo e fim indeterminado, para lá da função própria do imóvel de características habitacionais.
Do contexto de formação do contrato em juízo não resultaram provados sinais com toda a probabilidade reveladores de outro tipo de convenção20.
Resulta também evidenciado pelos factos apurados, como se ponderou no acórdão recorrido, que a vontade transmitida pela Ré comodante não foi a de que a Autora habitasse a casa para toda a vida, mas até que retomasse a situação de vida normalizada.
Perante a alteração das condições de vida da Autora, após o divórcio, a Ré, sua mãe, na lógica e natureza das coisas, amparou a filha e emprestou-lhe a casa para que ali residisse com o filho, auxiliando-a no seu cuidado, até estabilizar ou reorganizar a vida pessoal.
Esta situação já não permite, todavia, concluir que a Ré e a Autora hajam acordado (ainda que tacitamente) no sentido da sua permanência indefinida na casa para aí residir.
Tanto mais que à luz das regras da experiência, a Autora com larga probabilidade, ultrapassaria as dificuldades próprias do período subsequente ao divórcio e as quais motivaram a Ré no empréstimo da casa.
À semelhança do outro filho a Ré, que também ali residiu temporariamente21, é pouco crível que, sem outra razão apurada, a mãe decidisse em prejuízo do irmão, e benefício exclusivo da Autora, autorizar a sua permanência gratuita na casa, em definitivo.
Observe-se ainda, que a Ré continuou no efectivo exercício do seu direito de propriedade sobre a casa, como se depreende da constituição de hipoteca e do pagamento dos impostos e outros encargos22.
Note-se que, embora, não seja pacífica a validade do comodato vitalício 23 , a admitir-se a sua convenção, o mesmo passaria pela determinação temporal do uso da coisa por toda a vida do comodatário, porque o seu termo, embora incerto, é determinável, até à morte, de verificação inevitável24.
A não se entender desta forma, o comodato de coisa para habitação redundaria em regime de superlativa solidez, se comparado com o regime vinculístico da locação.
Doravante em caso de dúvida residual, dada a natureza gratuita do contrato de comodato, sempre seria de atender à regra estabelecida no artigo 237º do Código Civil- predominando a interpretação do conteúdo da vontade negocial segundo o regime mais favorável ao disponente25.
As dúvidas que ocorram na interpretação do conteúdo do comodato, deverão, pois, ser supridas em conformidade, mormente no que concerne aos prazos a considerar, que são os mais favoráveis ao comodante.
Em suma, tendo as partes conformado nesses moldes inalterados a relação do comodato, não podemos considerar como determinado o uso da casa pela Autora ao longo do tempo, cumprindo estritamente a função genérica e normal de qualquer imóvel destinado a habitação e para o qual não foi fixado tempo de duração, ou determinável.
Não tendo as partes convencionado um prazo para a restituição da casa, ou de determinação do uso, o comodatário, ora Autora, fica obrigado à sua restituição, logo que lhe seja exigida pelo comodante, em conformidade com o disposto no artigo 1137.º, n.º 2 do Código Civil, e, portanto, a situação sub judice não é subsumível ao regime do nº 1 do preceito.
De acordo com o que se vem de expor, a solução, passa por precisar o que se deve entender por “uso determinado”, expressão conceptualizada no nº 1 do artigo 1137º do Código Civil.
No caso a imprecisão dos contornos do uso para o qual a Ré cedido o gozo do imóvel à Autora não permite afirmar que estamos perante a contratualização de um uso que se possa qualificar como suficientemente determinado para se estabelecer o seu termo, pelo que estamos perante uma situação prevista no artigo 1137.º, n.º 2, do Código Civil, e não pelo n.º 1, do mesmo artigo.
Na esteira da jurisprudência e doutrina dominantes a que se adere, não se nos afigura sustentável, que contra a vontade manifestada de restituição por parte do comodante, o comodatário lograsse de forma aprazível e sem limites de tempo, manter indefinidamente o gozo da coisa 26.
A relação de família entre o comodante e o comodatário, que usa a casa para sua habitação, sem o apuramento do convénio nesse sentido, s.d.r., revela-se insuficiente para sustentar a presunção judicial de que foi celebrado para que persista sem limite, por se destinar ao estabelecimento da morada familiar, atenta a característica estrutural da temporalidade própria do tipo contratual.
De resto, a adopção de entendimento diferente enfrenta a dificuldade permanente sobre a determinação da duração da necessidade do uso do imóvel para morada de família do comodatário e da extensão da “proteção da família”, susceptível de várias alterações- v.g., o divórcio do casal, a celebração de outro matrimónio, a independência dos filhos, ou o casamento de um filho que também fixa a sua residência familiar no imóvel comodatado por familiar.
4. Justa causa de resolução – artigo 1140º do Código Civil
O comodato que tem na base uma relação pessoal, de conhecimento, confiança ou vínculo familiar, origina uma relação intuitu personae.
A natureza eminentemente pessoal do comodato justificou a consagração do direito de resolução do contrato (com ou sem prazo) pelo comodante “se para isso tiver justa causa” tal como estabelecido no artigo 1140º do Código Civil.
Justa causa que a doutrina classifica como “fraca”, própria do Direito Civil, por oposição à justa causa “forte “presente no Direito do Trabalho e no Direito das Sociedades 27.
Justa causa “fraca “que não sendo explicitada pela norma, a sua definição dependerá das valorações do sistema.
Na linha da interpretação do preceito e densificação do conceito de justa causa veiculados pelo Supremo Tribunal de Justiça, v.g., no Acórdão de 14.12.202128 :
«Tratando-se de um contrato a cuja celebração está subjacente uma certa ligação pessoal entre as partes – porquanto o ato de empréstimo surge, via de regra, por razões familiares, de amizade ou de cortesia - não é de estranhar que o art. 1140.º permita a sua resolução ocorrendo justa causa. O conceito de justa causa é um conceito indeterminado, carecido de preenchimento valorativo, traduzindo-se na verificação de qualquer circunstância, facto ou situação perante a qual, e segundo a boa-fé, não seja exigível a uma das partes a continuação da relação contratual. A aplicação desta ideia parece conferir ao comodante o direito atípico de resolução sempre que ocorra, por exemplo, uma deterioração das relações familiares, de amizade ou de cortesia que estiveram na base da celebração do contrato. [..]29.»
No caso em juízo, a factualidade provada permite em extensão – cfr. pontos 27 a 50 -
concluir que, pelo menos, desde 2007, a Autora deixou de manter qualquer contacto ou relacionamento com a Ré, sua mãe, alheando-se por inteiro da sua situação e dificuldades que enfrentava. Em 2020, interpelada para restituir a casa no cenário de dificuldades que a mãe atravessava, recusou a entrega da casa e interpôs a acção.
Apesar da necessidade crescente de cuidados, a Ré (90 anos) viveu sozinha nos últimos anos de vida, ora numa casa arrendada sem condições, ora no lar que não podia pagar, e teve de abandonar, e a Autora recusou com ela viver na casa emprestada30.
Vicissitudes que a Autora ignorou por inteiro, mau grado os alertas e os pedidos de ajuda do irmão perante a situação de grave carência da Ré e das interpelações que ambos lhe dirigiram31.
A Autora postergou o dever moral e legal de assistência para com a progenitora e ficou
longe do “problema”, obstaculizando qualquer solução, seja recebendo a Ré para com ela residir ou restituir a casa.
A conduta da Autora, à luz dos princípios e valores éticos que prevalecem na nossa sociedade, reconduzível ao conceito de justa causa, legitima de per se o pedido da Ré de restituição da casa, em aplicação do disposto no artigo 1140º do Código Civil.
A situação factual ajuizada comporta, a nosso ver, outra justa causa para a resolução do contrato e o pedido de restituição da casa, à luz do disposto no artigo 1140º do Código Civil.
A comprovada necessidade objectiva e urgente da Ré de um local para residir, atendendo ao momento da vida e à concreta situação de carência, designadamente habitacional a que chegou, conforme resulta dos factos provados sob os pontos 29, 32,33, 43 a 50.
Alega ainda a recorrente que, uma vez que a Ré veio, entretanto, a falecer, deixa de existir a situação de necessidade da casa para sua habitação, que foi atendida no acórdão recorrido.
Parece-nos, s. d.r, deslocado e extemporâneo o argumento da recorrente.
Com o falecimento do comodante, proprietário da coisa, o contrato celebrado é oponível aos herdeiros32, habilitados que sucedem nos direitos e deveres contratuais do comodante falecido, que nos autos são exercidos pelo filho habilitado da Ré; e por consequência, mantém-se válida a resolução do comodato por justa causa. No caso, a casa será, pois, restituída à herança da Ré.
6. A tutela da habitação-morada de família
A recorrente invoca em seu favor a merecida tutela e proteção legal da habitação e morada de família 33.
Esta argumentação surge pela primeira vez na apelação, e por isso mesmo, não foi objecto de apreciação na primeira instância.
Do artigo 629º, nº1º, do CPC se vê que os recursos se destinam ao reexame das questões submetidas ao julgamento do tribunal recorrido, com excepção das questões de conhecimento oficioso, das quais o Tribunal tem a obrigação de conhecer, mesmo perante o silêncio das partes.
É pacífico, entre a jurisprudência e a doutrina, que os recursos não se destinam a alcançar decisões novas, a menos que se imponha o conhecimento oficioso, pois que visam a modificação das decisões recorridas.
Contemplando, porém, diferente perspectiva, tomando a questão suscitada pela recorrente de conhecimento oficioso, analisemos.
O direito à habitação onde se desenvolve a família está reconhecido nos artigos 65º e 67º, nº1, da Constituição da República Portuguesa: «todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar»; 1. A família, como elemento fundamental da sociedade, tem direito à protecção da sociedade e do Estado e à efectivação de todas as condições que permitam a realização pessoal dos seus membros.»
O direito à habitação é um direito humano fundamental, consagrado na Constituição da República Portuguesa e na Declaração Universal dos Direitos Humanos.
No entanto, este direito pode entrar em conflito com o direito à propriedade privada, que também é protegido pela CRP e pela DUDH.
Reconhecemos que a busca do modo de ultrapassar o conflito entre os direitos à habitação e à propriedade privada é um tema complexo, que envolve questões fundamentais de justiça social e liberdade individual.
O problema que se coloca não é novo e a solução propugnada pela jurisprudência e a doutrina maioritárias, a que aderimos, assenta em parte na ideia de que a proteção da habitação, sendo uma incumbência do Estado, não deve realizar-se através do sacrifício de certa coisa ou direito individual34.
Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira o direito à habitação, direito individual é também um “direito das famílias” 35:
«Consiste, por um lado, no direito de não ser arbitrariamente privado da habitação ou de não ser impedido de conseguir uma; neste sentido, o direito à habitação reveste a forma de “direito negativo”, ou seja, de direito de defesa, determinando um dever de abstenção do Estado e de terceiros, apresentando-se, nessa medida, como um direito análogo aos “direitos, liberdades e garantias” (cfr. art. 17º). Por outro lado, o direito à habitação consiste no direito a obtê-la por via de propriedade ou arrendamento, traduzindo-se na exigência das medidas e prestações estaduais adequadas a realizar tal objetivo. Neste sentido, o direito à habitação apresenta-se como verdadeiro e próprio “direito social”.»
Assim entendido o problema, a nosso ver, não se identifica razão persuasiva para que, no caso concreto que se aprecia, justifique equacionar diferente solução, acrescendo que a reclamada protecção da habitação ficou por demonstrar pela Autora, através da alegação e prova de factos reveladores da impossibilidade de meios ou alternativa para fixar residência em outra casa, que não se basta com a situação da incapacidade física.
De qualquer modo, independe das incidências do caso concreto, situando-se a pretensão da Autora para lá da tutela constitucional do direito à habitação, não cabe a este tribunal interpretá-lo em sentido que não tenha o mínimo respaldo na letra e sentido da lei, em detrimento do direito de propriedade privada com igual protecção na Constituição da República Portuguesa.
Por claramente pertinente, reproduzimos o que se escreveu no Acórdão do STJ de 13.12.202236:
« … ocupando a Ré o imóvel pertencente ao A. Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana IP, sem deter qualquer título para o efeito e não pagando qualquer contrapartida por essa mesma ocupação, assiste à proprietária, nos termos gerais do artigo 1311º do Código Civil, o direito a reivindicar, obtendo para si, o seu imóvel; Merecendo a débil situação pessoal da Ré ocupante/utilizadora, mormente a sua fragilidade económica e o seu precário estado de saúde, o máximo respeito, devendo ser devidamente considerada, atendida e cuidada em sede e momento próprios pelas entidades públicas vocacionadas para a resolução destes problemas graves de emergência social, o certo é que a mesma não é susceptível, em termos estritamente jurídicos, de paralisar o direito de propriedade do A. que exige, legitimamente, a restituição de um bem que lhe pertence, cuja utilização não contratualizou com a Ré, e pela qual não recebe qualquer contrapartida, com directo prejuízo para as finalidades e programação (que lhe compete) das suas funções assistenciais, as quais devem cobrir globalmente toda a comunidade necessitada, em conformidade com os critérios e procedimentos legais previamente aprovados pelos órgãos competentes; No mesmo sentido, não é possível interpretar o regime constante da Lei nº 83/2019, de 3 de Setembro, que estabelece as bases do direito à habitação e as incumbências e tarefas fundamentais do Estado na efectiva garantia desse direito a todos os cidadãos, nos termos da Constituição da República Portuguesa, como legitimando, num dado caso concreto, as ocupações de imóveis ilegalmente consumadas e que perdurem no tempo, agindo os ocupantes sem título e usando-os gratuitamente contra a vontade do seu proprietário, ao completo arrepio das atribuições conferidas às entidades competentes neste domínio da atribuição de habitação social, sob pena de total descaracterização e subversão da concepção de Estado de Direito que preside a todo o nosso edifício legislativo.37»
Sobre o alcance do direito à habitação o Tribunal Constitucional vem preconizando, entre outros, no Acórdão n.º 612/201938 :
«(..)] Tal como outros direitos sociais, o conteúdo do direito à habitação desdobra-se numa dupla vertente: por um lado, uma vertente de natureza negativa, que se traduz no direito a exigir do Estado (ou de terceiros) que se abstenham de atos que prejudiquem tal direito; por outro lado, uma vertente de natureza positiva, correspondente ao direito a medidas e prestações estaduais visando a sua promoção e proteção.
(..)É esta vertente de direito social que implica um conjunto de obrigações positivas por parte do Estado, legitimando pretensões a determinadas prestações, que vem acentuada no artigo 65.º da CRP, particularmente nos seus n.ºs 2 a 4.
Significa isto que, sendo o direito à habitação configurado como um direito à proteção do Estado, as pretensões nele fundadas não têm como destinatários diretos os particulares, nas relações entre si, mas antes o Estado, as regiões autónomas e as autarquias, a quem são impostas um conjunto de incumbências no sentido criar as condições necessárias tendentes a assegurar tal direito. A garantia de tal direito envolve, deste modo, a adoção de medidas no sentido de possibilitar aos cidadãos o acesso a habitação própria (cf. o n.º 3 do artigo 65.º da CRP). Contudo, o mesmo direito não se esgota nem se identifica com o direito a ser proprietário de um imóvel onde se tenha a habitação, sendo realizável também por outras vias, designadamente através do arrendamento.
Neste mesmo sentido se pronunciou o Tribunal Constitucional no seu Acórdão n.º 649/99, salientando, por um lado, que « [..]o direito à habitação não se esgota ou, ao menos, não aponta, ainda que de modo primordial ou a título principal, para o “direito a ter uma habitação num imóvel da propriedade do cidadão”» e, por outro, «que o “mínimo de garantia” desse direito (ou seja, o de obter habitação própria ou de obter habitação por arrendamento “em condições compatíveis com os rendimentos das famílias”) é algo que se impõe como obrigação, não aos particulares, mas sim ao Estado».
[…].».
Assim, embora o direito à habitação possa justificar limitações à propriedade, tais limitações terão de obedecer sempre a um princípio de equidade e de proporcionalidade, sem que se perca de vista, no entanto, que o direito à habitação constitucionalmente garantido, na sua vertente positiva, tem como titulares passivos, em primeira linha, o Estado e os demais entes públicos territoriais, e não os particulares.
Nessa medida, a consagração do direito fundamental à habitação «pressupõe a mediação do legislador ordinário destinada a concretizar o respetivo conteúdo, a efetivar-se segundo a “reserva do possível”, não conferindo, por si mesmo, habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e de conforto, com preservação da intimidade pessoal e da privacidade familiar, na medida em que isso sempre dependerá da concretização da tarefa constitucionalmente atribuída ao Estado» (cf. Acórdão n.º 829/96 e, neste mesmo sentido, entre outros, os Acórdãos n.ºs 508/99 e 29/2000).
Por outro lado, e tendo em conta a aludida vertente defensiva, está vedado ao legislador ordinário adotar soluções que impliquem a privação arbitrária, sem fundamento razoável, do direito a ter uma habitação condigna (cf., a este respeito, os Acórdãos n.ºs 4/96 e 402/2001). Mas o Tribunal Constitucional tem igualmente reconhecido que, nesta matéria, o legislador goza de um amplo espaço de conformação (cf., a este respeito, entre outros, o Acórdão n.º 806/93), conformação essa que a propósito da tutela da habitação própria permanente do executado, tem a vindo a ser exercida em diversas ocasiões.
[..]
É certo que a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem afirmado, nalguns casos, que nesta ponderação o legislador deverá sacrificar o direito do credor, na medida do necessário, de forma que a realização desse direito não ponha em causa a sobrevivência ou subsistência do devedor, tendo em vista a tutela da dignidade da pessoa humana (cfr., entre outros, o Acórdão n.º 177/2002[..]
Com efeito, sendo certo que é merecedora de ponderação a circunstância de o imóvel ser a habitação da Autora , e não obstante a função social da propriedade, que poderá justificar a imposição de certas restrições aos direitos do proprietário privado (cf., entre outros, os Acórdãos n.ºs 311/93, 263/2000, 309/2001 e 543/2001), daí não decorre que seja exigível impor aos particulares que se substituam ao Estado nas obrigações que sobre este impendem em matéria de proteção do direito à habitação (cf. os Acórdãos n.ºs 101/92, 130/92, 633/95 e 570/2001). […]».
IV. Decisão
Pelo exposto, julga-se improcedente a revista, confirmando o acórdão do Tribunal da Relação.
As custas são a cargo da recorrente.
Lisboa,15 de maio de 2025
Isabel Salgado (relatora)
Emídio Francisco Santos
Ana Paula Lobo
_______
1. Cfr. Acórdão do STJ, 14.12.2021, citado na nota de rodapé n.º 6 da página 12 do Acórdão recorrido.
2. Substitui-se “ora A.”, atento o manifesto lapso de escrita.
3. Com alteração do sujeito, constava “A.”, por lapso de escrita manifesto, no acórdão e sentença. (cfr. ponto 6).
4. De novo, substitui-se “A”, onde constava “R”, por manifesto lapso de escrita; o documento em referência foi junto com a petição.
5. Substituindo “a A.” ,por evidente lapso de escrita.
6. A aquisição por usucapião ficou afastada desde logo na sentença, em aplicação do disposto do art.º 1290.º, do CC “os detentores ou possuidores precários não podem adquirir para si, por usucapião, o direito possuído, exceto achando-se invertido o título da posse; mas, neste caso, o tempo necessário para a usucapião só começa a correr desde a inversão do título de posse”.
7. Cfr. MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil, XII, Contratos em especial, 2ªparte, 2020, pp.113 a 177. Na jurisprudência, inter alia ACSTJ de 13.11.2007 (Pº 07A3580), acessível em www.dgsi.pt.
8. Cfr. JULIO MANUEL VIEIRA GOMES, Do contrato de Comodato, Cadernos de Direito Privado, Nº 17 (Janº-março 2007), p.14, admitindo inclusive o estabelecimento de cláusula modal-cf. MC, local citado.
9. JÚLIO MANUEL VIEIRA GOMES, ob. cit., p. 20,
10. Além de MENEZES CORDEIRO, que vimos seguindo, também MENEZES LEITÃO, “Direito Das Obrigações, III, 2ª, p. 379; e P. DE LIMA e A. VARELA, “C. Civil, Anotado, II, 4ª p.757.
11. No Supremo Tribunal de Justiça, desde o AC.STJ de 29.9.1993, BMJ 429, p.815, e in CJ/STJ, III, 47, Apud M. CORDEIRO, obra citada.
12. No proc. nº7232/04.0TCLRS.L1. S1, www.dgsi.pt 13 No proc. nº 629/06.3TBPRG.P1. S1, www.dgsi.pt.
14. No proc. n.º 8060/18.1T8ALM.L1. S1, www.dgsi.pt
15. No proc. nº 3233/18.0T8FAR.E1. S1(que tal como o anterior, tirados nesta 2ªsecção).
16. No proc. nº 7254/21.7T8VNG.P1. S2, tirado nesta 2ªsecção, sendo adjunto membro deste colectivo.
17. Acessíveis em www.dgsi.pt; com o suporte na posição defendida por RUI ATAÍDE, Direito dos Contratos, Gestlegal, 2022, p. 32/33, e Código Civil Comentado III – Dos Contratos em Especial, Almedina, 2024, p. 662/63.
18. No proc. nº3233/18.0T8FAR.E1. S1, atrás citado.
19. Cfr. MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª, p.416;
20. A celebração do contrato de comodato não exige forma especial (cfr. art. 219.º CC) e a declaração negocial pode dar-se por validamente produzida pela manifestação de um comportamento concludente (cfr. art. 217.º do mesmo Código).
21. Cfr. Ponto 14 dos factos provados.
22. Cfr. Pontos 7, 22,25 e 26 dos factos provados.
23. Neste âmbito cfr. MENEZES CORDEIRO, obra citada p.166; na jurisprudência inter alia o ACSTJ de 16.11.2010, já referenciado.
24. Cfr. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, Contratos em Especial, Vol. III, 5ª ed, p.380
25. Cfr. MENEZES CORDEIRO, obra citada, p. 150:”. Perante negócios gratuitos o Direito não pretende um equilíbrio a todo o custo o que, nesse domínio, seria contra naturam. Antes visa um apuramento justo da dimensão regulativa do negócio.” Na jurisprudência, v.g. o ACSTJ de 21.03.2019, no proc. nº 2/16.5T8MGL.C1. S1, em www.dgsi.pt.
26. Entre outros, os acórdãos do STJ de 13.5.2003, Proc. n.º 1323/03 ; de 27.5.2008, Proc. n.º 1071/08 ; de 31.3.2009, Proc. n.º 359/09; de 16.11.2010, Proc. n.º 7232/04 ; de 26.11.2020, Proc. n.º 3233/18 ; de 14.12.2021, Proc. 1580/14 ; de 09.07.2024, Proc. 3068/21 , alguns dos quais citámos ao longo do texto e disponíveis in www.dgsi.pt. Na doutrina, salienta-se com esta perspetiva JÚLIO GOMES, in Comentário ao Código Civil. Direito das Obrigações. Contratos em Especial, UCP Editora, 2023, p. 591/2, e ANA FILIPA MORAIS ANTUNES, A Causa do Negócio Jurídico no Direito Civil, Universidade Católica Editora, 2016, p. 79/82.
27. Cfr. MENEZES CORDEIRO, ob. citada, p.170
28 No proc. nº 1580/14.9TBVNGP1.S2, disponível em www.dgsi.pt; negrito e sublinhado nossos.
29.Acórdão do STJ de 14.12.2021, no proc.nº1580/143.9TBVNG.P1. S2, disponível em www.dgsi.pt.
30. Acto revelador de ingratidão face à ajuda prestada pela Ré quando a Autora precisou.
32. Cfr. MENEZES LEITÃO, obra citada, p.379, defende que na hipótese considerada, o contrato de comodato não caduca ope legis, embora admita divergência.
Já no caso de o direito propriedade com base no qual foi constituído o comodato ser transferido para terceiro por outro título, como a compra e venda, aquele não está vinculado a realizar o direito do comodatário e o contrato de comodato cessa, atenta a natureza de direito pessoal de gozo - cf. ANDRADE MESQUITA, Direitos Pessoais de Gozo, p. 163/65.
33. Questão que o acórdão da Formação elegeu como fundamento da revista excecional.
34. Como assinala M. TEIXEIRA DE SOUSA, Manual de Processo Civil, vol. II, 2022, pp. 701/702.
35. Cfr. CRP, anotada, volume I, 4ª, 2007, pp.834, 857.
36. No proc.º nº 11843/19.1T8LSB.L1. S1, estando em causa a ocupação sem título de casa do IHS por pessoa e agregado familiar de débil estatuto económico e social a www.dgsi.pt
37. Negrito nosso.
38. Decidiu não julgar inconstitucional a norma do artigo 751.º, n.º 3, alínea b), do CPC, em www.tc.jurisprudencia