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ROUBO
LEI Nº 38-A/23 DE 02.08
Sumário
I - O crime de roubo simples, independentemente da data do trânsito em julgado da sentença condenatória, está excluído do âmbito de aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, por aplicação do disposto no artigo 7.º, n.º 1, alínea g). II - O legislador, ao consagrar um regime de exceções no artigo 7.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, fê-lo consagrando um conjunto de previsões de caráter objetivo – atento o crime em apreço ou a verificação de determinada agravante geral – e outro de âmbito subjetivo - atenta a qualidade dos intervenientes, condenado e vítimas. II - O legislador, ao consagrar um regime de exceções no artigo 7.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, fê-lo consagrando um conjunto de previsões de caráter objetivo – atento o crime em apreço ou a verificação de determinada agravante geral – e outro de âmbito subjetivo - atenta a qualidade dos intervenientes, condenado e vítimas. III - Porque estamos perante âmbitos distintos, a leitura das mesmas terá de ser feita segundo um critério de complementaridade e nunca de exclusão. Dito de outro modo, a referência objetiva a determinados crimes não pode ser tida como um elemento de limite implícito à consagração das exceções de índole subjetiva, sob pena de estarmos a consagrar um regime de exceção à exceção que manifestamente não pode ser retirado da leitura do citado artigo 7.º. IV - O artigo 67.º-A do Código de Processo Penal tem de ser entendido, para os efeitos ora em apreciação, como sendo uma norma processual penal proprio sensu e, nessa medida, sujeita, ao princípio da aplicação imediata, imposta pelo artigo 5.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, uma vez que não está em causa, pelas razões já supra expostas, qualquer uma das situações excecionais previstas no n.º 2 que a isso obstem.
Texto Integral
Acordam os Juízes Desembargadores da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
RELATÓRIO
No Juízo Central Criminal Loures – J6 do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte foi proferido despacho, com o seguinte teor: «Atento o estatuído nessa mesma Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto – mormente nos artigos 1º, 2º nº 1 e 3º nºs 1, 3 e 4 da mesma -, a qual entrou em vigor no dia 01 de setembro de 2023, os arguidos condenados por factos ilícitos que tenham sido praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023 e se encontram abrangidos pelo referido diploma (condenado em pena de prisão não superior a 8 anos de prisão por crime que não se encontra excluído do catálogo taxativo do Art.º 7º da citada Lei), poderão ver perdoados 1 ano na pena única de prisão, sob a condição resolutiva de não praticarem infracção dolosa até 01.09.2024, conforme Art.º 8º do mencionado diploma. In casu o arguido foi condenado pela prática de dois crimes de roubo simples, p. e p. pelo Art.º 210º nº 1 do C. Penal, praticados em 14-05-2011, ocasião em que era menor de trinta anos, sendo então condenado na pena respectiva de 3 anos e 3 meses de prisão por cada um e em cúmulo jurídico, na pena única de 4 anos e 9 meses de prisão efectiva. No diploma legal acima enunciado, mais concretamente no seu Art.º 7º nº 1 al. g) é expressamente excluída a possibilidade de aplicação do aludido perdão e amnistia relativamente aos arguidos “…. Condenados por crimes praticados contra crianças, jovens e vítimas especialmente vulneráveis, nos termos do Art.º 67º-A do C. P. Penal …” – sublinhado nosso. Tendo presente o disposto no Art.º 1º al. f) e l) do C.P.Penal no que tange aos conceitos de criminalidade violenta e especialmente violenta, mais precisamente as condutas puníveis com penas de prisão iguais ou superiores a 5 e 8 anos de prisão, respectivamente, como é o caso do crime de roubo, e o disposto no Art.º 67º-A nº 1 al. b) e 3 do mesmo código, este último com a redacção introduzida pela Lei nº 130/2015 de 04-09, importa considerar que são vítimas especialmente vulneráveis aquelas que são alvo de criminalidade violenta ou especialmente violenta. Na verdade a lei adjectiva prevista no C.P.Penal é de aplicação imediata – v. Art.º 5º do mesmo Código. No caso sub judice os ilícitos pelos quais o arguido foi condenado são puníveis com pena de prisão de 1 a 8 anos, inserindo-se no âmbito da criminalidade especialmente violenta e por isso, excluída do respectivo regime legal do perdão, dado que as vítimas devem ser consideradas como vítimas especialmente vulneráveis. Com este entendimento a que aderimos e em já tomamos posição noutros autos, v. Pedro Brito, in Julgar Online, agosto 2023, p. 31 e os Acs. TRL datados de 23-01-2024 relatado por Ester Santos e com posição maioritária, 19-03-2024 relatado por João Ferreira e 28-11-2023 relatado por Luísa Alvoeiro, TRP datado de 10-01-2024 e relatado por Francisco Ribeiro, TRC de 21-10-2024 e relatado por Isabel Castro, todos in www.dgsi.pt, consagrando-se no último que “As vítimas de crime de roubo, na sua forma simples ou agravada, devem ser sempre consideradas como vítimas especialmente vulneráveis. O crime de roubo simples integra o conceito de criminalidade violenta. Apesar de não constar da alínea b), subalínea i), do n.º 1, do artigo 7.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, o crime de roubo simples está excluído do perdão e da amnistia previstos na lei em face do estatuído na alínea g).O legislador estabeleceu neste artigo 7.º um complexo quadro de excepções segundo diversos critérios de exclusão, nomeadamente certos tipos de crime por referência ao bem jurídico protegido e aos elementos constitutivos (cfr. artigo 7.º, n.º 1, alíneas a) a f)), ou, independentemente do concreto crime, por referência às respetivas vítimas (cfr. artigo 7.º, n.ºs 1, alínea g), e 2), em função de determinadas qualidades ou características do agente (cfr. artigo 7.º, n.º 1, alíneas h), k) e l), da pena concretamente aplicada (cf. artigo 7.º, n.º 1, alínea i)) e, ainda, da verificação de determinada agravante geral (cf. artigo 7.º, n.º 1, alínea j)), o que conduz à possibilidade de coexistência de diversas causas de exclusão, que funcionam independentemente umas das outras, são autónomas entre si, sem relação de subsidiariedade entre elas.” – sublinhado nosso. De salientar que não se olvida que o Art.º 67.ºA do Código Processo Penal foi aditado a este diploma legal com a entrada em vigor da Lei 130/2015 de 04.09, ou seja, em data posterior à prática da factualidade imputada ao arguido, no entanto, consideramos que tal circunstancialismo não altera a vontade do legislador da Lei 38-A/2023 de 02.08, quando previu como excepção de aplicabilidade do beneficio da amnistia e do perdão, entre outros, aos condenados pela prática de criminalidade violenta, de criminalidade especialmente violenta e de terrorismo, ou seja, em que as vítimas sejam consideradas especialmente vulneráveis, uma vez que aquele diploma, em momento algum, por um lado, alterou qualquer tipologia legal dos crimes previstos no ordenamento jurídico nacional, nomeadamente, o crime de roubo, agravou ou atenuou as penas daqueles, e por outro, modificou, abrangeu ou restringiu os conceitos de criminalidade violenta, de criminalidade especialmente violenta e de terrorismo, ou seja, única e exclusivamente criou, descreveu e definiu e qualificou as Processo Comum (Tribunal Coletivo) vítimas de determinada tipologia de crimes, anteriormente já previstas no Código Processo Penal, como sendo especialmente vulneráveis, fornecendo-lhes, determinados direitos. Assim, conclui-se que o legislador, ao excepcionar a aplicabilidade do beneficio da amnistia e do perdão de penas os condenados por crimes praticados contra crianças, jovens e vítimas especialmente vulneráveis, desejou englobar no âmbito desta excepção, entre o mais, todos os agentes de crimes cometidos contra vítimas especialmente vulneráveis, utilizando um conceito actual na legislação em vigor, e não restringindo o regime de excepção àqueles que cometeram tal factualidade posteriormente à entrada em vigor da Lei 130/2015 de 04.09. Cumpre, de igual forma, alertar que o Art.º 2.º, n.º 1 da Lei 28-A/2023 de 02.08 dispõe “…Estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º…”, ou seja, depende a aplicação da supramencionada Lei da Amnistia, entre o mais, que os autores dos ilícitos tenham entre 16 e os 30 anos de idade. No entanto, em momento algum do ordenamento jurídico nacional é referenciado ou sequer caracterizado como jovem o indivíduo de 30 (trinta) anos de idade. Pelo acima exposto, indefiro a aplicação do regime do perdão de penas à situação respeitante ao aqui arguido AA.»
- do recurso -
Inconformado, recorreu o Condenado formulando as seguintes conclusões: «1. O arguido ora requerente foi condenado nos presentes autos na pena de 4 (quatro) anos e 9 (nove) meses de prisão pela prática de um crime de roubo (simples) previsto e punido nos termos do disposto no nº 1 do artigo 210º do Código Penal; 2. Tal crime, de acordo com o disposto na alínea b) (i) do nº 1 doartigo7º da Lei 38/A/23 (vulgo amnistia Papal) ,interpretação a contrario, deverá ser objecto da aplicação de um perdão de 1(um) ano de prisão, devendo tal ser decretado, uma vez que o arguido não tinha ainda atingido os 30 (trinta) anos de idade; 3. A solução plasmada na Lei corresponde inteiramente à que constavada Lei nº 9/2020 de 9 de abril que adoptou o regime excepcional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença Covid 19. A alínea e) do nº 6 do artigo 2º desse diploma excluía a possibilidade de aplicação do perdão de penas mesmo na situação limite de Covid – aos condenados por crimes previstos na alínea a) do nº 2 do artigo 210º do Código Penal, ou previstos nessa alínea e nesse número em conjugação com o artigo 211º do mesmo Código. 4. O que, a contrario, quer dizer que os condenados pelos crimes de roubo do nº 1 do artigo 210º foram então, como agora, abrangidos pelo perdão. 5. Isto só corrobora que, neste caso, o legislador tem actuado comconsistência e valorado diferentemente o crime de roubo, conforme a pena e a tipicidade que corresponde a cada crime. 6. Porém, o douto despacho – de que ora se recorre – e que aqui se dápor integralmente reproduzido – ao indeferir a pretensão do arguido, violou por erro e má aplicação e interpretação do direito as disposições legais acima indicadas. 7. Importa ainda referir: O Tribunal da Relação de Lisboa já se pronunciou bastas vezes sobre esta matéria considerando que nos Acórdãos que de se seguida se enumeram, apenas se considera excluído do perdão o crime de roubo agravado e já não o crime de roubo simples: - Acordão do TRL de 6.12.2023 (proc. 2436/03.6PU LSB.D.L1-3; - Acordão do TRL de 23.01.2024 (proc. 179/04.2PBLSB-AL1-5 (com declaração de voto) - Acórdão do TRL de 11 .04.2024 (proc. 167/19.4POLSB-AL1-9; e muito recentemente o Acórdão de 11 de julho de 2024 (proc.224/22.0JDLSB-D.L1 relatado pelo Exmo. Senhor Juiz Desembargador José Castro da 9ª Secção) 8. Deve, pois, o presente recurso merecer provimento, devendo declarar-se perdoado 1 (um) ano de prisão à pena que foi imposta ao arguido.»
- da resposta -
Notificado para tanto, respondeu o Ministério Público concluindo nos seguintes termos: «1. O crime de roubo, previsto no n.º 1 do artigo 210.º do Código Penal mostra-se excluído do âmbito da Lei n.º 38-A/2023, pela alínea g) do n.º 1 do artigo 7.º, na qual se mostra plasmado que não beneficiam do perdão e da amnistia “Os condenados por crimes praticados contra crianças, jovens e vítimas especialmente vulneráveis, nos termos do artigo 67.º-A do Código de Processo Penal, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de fevereiro.” 2. Para efeitos do disposto no artigo 67.º-A do Código de Processo Penal, as vítimas de criminalidade violenta são sempre consideradas vítimas especialmente vulneráveis. 3. Sobre o conceito de criminalidade violenta dispõe o artigo 1.º, alínea j) do Código de Processo Penal que “Para efeitos do disposto no presente Código considera-se: Criminalidade violenta' as condutas que dolosamente se dirigirem contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a autoridade pública e forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos.”. 4. O crime de roubo previsto no artigo 210.º, n.º 1 do Código Penal, atenta a sua moldura penal, integra o conceito de criminalidade especialmente violenta e, como tal, as vítimas do mesmo terão que necessariamente ser consideradas como vítimas especialmente vulneráveis também para a Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto. 5. Não pode, aliás, e, salvo o devido respeito, ser outra a interpretação a dar à referida alínea g) do artigo 7.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, sendo de crer que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados no sentido de incluir na exclusão do perdão todos os crimes que tenham vítimas consideradas especialmente vulneráveis, neles se incluindo, naturalmente, o crime de roubo, previsto e punido pelo n.º 1 do artigo 210.º do Código Penal. Termos em que deve ser negado provimento ao recurso interposto, mantendo-se dessa forma a decisão recorrida»
Admitido o recurso, foi determinada a sua subida imediata, em separado e com efeito devolutivo.
Neste Tribunal da Relação de Lisboa foram os autos ao Ministério Público tendo sido emitido parecer no sentido da concordância com a resposta, defendendo a improcedência do recurso.
Cumprido o disposto no art.º 417.º/2 do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta ao parecer.
Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência.
Cumpre decidir.
OBJECTO DO RECURSO
Nos termos do art.º 412.º do Código de Processo Penal, e de acordo com a jurisprudência há muito assente, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação por si apresentada. Não obstante, «É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito» [Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 7/95, Supremo Tribunal de Justiça, in D.R., I-A, de 28.12.1995].
Desta forma, tendo presentes tais conclusões, a única questão a decidir é a de saber se o perdão da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto é aplicável no caso da prática de crimes de roubo simples.
FUNDAMENTAÇÃO
Considerando a questão a decidir, importa apurar se os crimes pelos quais foi o Recorrente condenado são susceptíveis de beneficiar do perdão da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto.
Ora, por acórdão de 19.12.2013, transitado em julgado, o Recorrente foi condenado na pena única de 4 anos e 9 meses de prisão pela prática de dois crimes de roubo (simples) previstos e punidos nos termos do disposto no artigo 210.º/1 do Código Penal.
Tal como consta do despacho recorrido, e se extrai do acórdão condenatório, esses crimes foram praticados em 14.05.2011, ocasião em que tinha 25 anos e, por isso, era menor de 30 anos.
Será de entender tal pena única parcialmente perdoada em um ano, nos termos do disposto nos artigos 3.º, n.º 1 e 4 e 7.º a contrário, ambos da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto?
A Lei 38-A/2023, de 2 de Agosto entrou em vigor no dia 1 de setembro de 2023. Nela se fixou um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude.
No seu artigo 2.º/1 fixa-se o âmbito de aplicação dos ditos perdão e amnistia - «Estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre os 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º».
Já no art.º 3.º/1 se fixa os termos do perdão, o qual corresponde, naquilo que agora nos importa, a «Sem prejuízo do disposto no artigo 4.º, é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos».
Quanto a estas questões objectivas, estão reunidos os presupostos de aplicação do perdão. Porém, a lei em causa tem um artigo no qual são previstas diversas excepções que impedem a aplicação desta medida abstracta de clemência.
Naquilo que nos importa, ficou consagrado em tal art.º 7.º: «1 - Não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei: (…) g) Os condenados por crimes praticados contra crianças, jovens e vítimas especialmente vulneráveis, nos termos do artigo 67.º-A do Código de Processo Penal, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de fevereiro; ».
Logo, não estando especificamente prevista a condenação por crime de roubo simples, do art.º 210.º/1 do Código Penal, será de questionar se a posição do Tribunal a quo é merecedora de acolhimento, uma vez que entendeu no despacho recorrido que a previsão da citada al. g) abrange o crime em causa e o exclui da aplicação do perdão.
Escreve-se no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19.03.2024, Desembargador João António Filipe Ferreira [ECLI:PT:TRL:2024:846.12.7GACSC.L1.5.6E] – (com voto de vencida), o seguinte: «A jurisprudência tem vindo a dividir-se em duas posições: a que entende que o roubo simples está abrangido pelo perdão [Neste sentido, vide Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24/01/2024 (Proc. n.º 614/15.4GBAGD-C.P1); Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 6/12/2023 (Proc.º 2436/03.6PULSB-D.L1), de 23/01/2024 (Proc.º 179/04.2PBLSB-A.L1-5), de 06/12/2023 (Proc.º 2436/03.6PULSB-D.L1-3); Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 23/01/2024 (Proc.º 1153/16.1PCBRG-B.G1) (disponíveis em www.dgsi.pt). ] e a que entende que está excluído [Neste sentido, vide Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 28/11/2023 (ECLI:PT:TRL:2023:7102.18.5P8LSB.A.L1.5.9A), de 14/12/2023 (Proc.º 27/22.1PJLRS-B.L1-5), de 23/01/2024 (Proc.º 2913/18.4PBLSB.L2 – não publicado), de 20/02/2024 (Proc.º 286/22.0SYLSB.L2-5); Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 17/01/2024 (Proc.º 379/19.0PAVFR.P2), de 10/01/2024 (Proc.º 485/20.9T8VCD.P2); Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 23/01/2024 (Proc.º 5310/19.0JAPRT-AI.G1); Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 20/02/2024 (Proc.º 22/19.8GBTMR-A.E1) (disponíveis em www.dgsi.pt). Sufraga este entendimento, Brito, Pedro José Esteves de (2023). “Notas práticas referentes à Lei n.º 38-A/20023, de 2 de agosto, que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude”, in JULGAR Online, pág. 31.]. Esta divisão jurisprudencial é o resultado de uma deficiente técnica legislativa que permite várias interpretações quanto a esta matéria.
Neste plano, para de nos debruçarmos, em concreto, sobre os méritos de cada posição, é necessário compreender qual o trajeto interpretativo que o julgador deve fazer para chegar à melhor solução interpretativa possível.
Para o efeito, devemos socorrer-nos do disposto no artigo 9.º do Código Civil, que refere “1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada. 2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. 3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”
Tendo presente este normativo, a solução encontrada terá sempre de ter apoio na letra da lei, uma vez que esta constitui sempre o limite inultrapassável a tal processo interpretativo. Cabe ao julgador analisar o texto da lei, os seus elementos semânticos e gramaticais. Se após este esforço de análise do texto da lei, o julgador chegar à conclusão que o sentido literal apenas admite apenas um sentido é possível, será sempre este o aplicado o caso concreto.
No caso em apreço, ambas as posições têm suporte legal, atenta a forma como a referida lei está redigida. Com efeito, a posição que entende que o roubo simples não está excluído do perdão assenta no facto de o artigo 7.º, alínea b), subalínea i) apenas excluir expressamente o crime de roubo qualificado, p. e p. pelo artigo 210.º, n.º 2 do Código Penal. Daqui resulta, para esta posição, a clara intenção do legislador de não incluir o roubo simples da exclusão. Para a posição oposta, a exclusão do roubo simples do regime de perdão resulta da previsão do artigo 7.º, n.º 1, alínea g), que exclui do perdão e da amnistia previstos na presente lei “os condenados por crimes praticados contra crianças, jovens e vítimas especialmente vulneráveis, nos termos do art.º 67º-A do Código de Processo Penal, aprovado em anexo ao Decreto-Lei nº 78/87, de 17 de fevereiro”. Para esta posição, o crime de roubo simples, dada a sua moldura abstrata aplicável, está abrangida nesta previsão uma vez que inclui-se na criminalidade especialmente violenta, por aplicação do disposto no artigo 1.º, alínea l) do Código de Processo Penal, e, nessa medida, as vítimas do mesmo são sempre consideradas especialmente vulneráveis, nos termos do disposto no artigo 67.º-A, n.º 3 do Código de Processo Penal.
Numa análise meramente literal de ambos os dispositivos legais – e sem entrar por ora na construção normativa dos mesmos – teremos de concluir que ambas as posições têm suporte legal.
Aqui chegados, chegando à conclusão que deste esforço interpretativo literal resulta a possibilidade de várias interpretações possíveis, cabe ao julgador ir além do texto da lei, analisando o processo legislativo que esteve na génese do texto legal, permitindo compreender o pensamento legislativo subjacente, alcançado a sua ratio legis. Deste modo, o julgador deverá optar pela solução que não só melhor respeita o processo legislativo subjacente, como é o mais coerente com o ordenamento jurídico envolvente, uma vez que nenhum diploma legal é criado e coexiste num vazio legal, antes o mesmo pressupõe uma normatividade pré-existente que impõe um determinado sentido jurídico.
Cotejado o processo legislativo subjacente à Lei da Amnistia e Perdão, ainda que o mesmo não seja imune a uma deficiente fixação dos termos de discussão relevantes, do mesmo podemos constatar que na primeira versão da Exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 97/XV/1.ª, refere-se expressamente que “Nestes termos, a presente lei estabelece um perdão de um ano de prisão a todas as penas de prisão até oito anos, excluindo a criminalidade muito grave do seu âmbito de aplicação” [Cfr. Proposta de Lei n.º 97/XV/1.ª ].
Nesta primeira versão, o crime de roubo, simples ou qualificado, estava, em parte, expressamente referido no ponto i) da alínea b) do artigo 5.º que consagrava as exceções ao referido perdão de penas, ao incluir o “roubo em residências ou na via pública cometido com arma de fogo ou arma branca, previsto no artigo 210.º do Código Penal“, sendo certo, que os mesmos estariam, na sua globalidade, abrangidos pelas situações previstas no artigo 5.º, n.º 1, alínea g) que referia “Os condenados por crimes praticados contra vítimas especialmente vulneráveis, incluindo as crianças e os jovens, as mulheres grávidas e as pessoas idosas, doentes, pessoas com deficiência e imigrantes;”
Tendo por base esta primeira versão, dúvidas não restavam que uma interpretação literal das citadas normas nunca levaria a excluir os crimes de roubo simples e qualificado, do perdão de penas. O facto de os mesmos terem merecido uma referência expressa naqueles termos no ponto i) da alínea b) do citado artigo 5.º a isso, manifestamente, não obstava, sendo de concluir que todas as dimensões do roubo simples e qualificado se encontravam contempladas no citado normativo.
Aliás, a aplicação do perdão a esses crimes estaria frontalmente contra os objetivos, prioridades e orientações de política criminal para o biénio 2020-2022, em cumprimento da Lei n.º 17/2006, de 23.05, que aprovou a Lei-Quadro da Política Criminal, designadamente os referidos no seu artigo 3.º, n.º 1, alíneas a) e b), onde se poder ler, “Constituem objetivos específicos da política criminal, no período de 2020-2022: a) Prevenir, reprimir e reduzir a criminalidade violenta, grave e altamente organizada, incluindo o homicídio, a ofensa à integridade física grave, a violência doméstica, familiar e no contexto das relações de proximidade, os crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual, o roubo, o incêndio rural, a corrupção, o tráfico de influência, a cibercriminalidade, a criminalidade rodoviária, o branqueamento, os crimes cometidos com armas, o terrorismo e o seu financiamento, as organizações terroristas e a associação criminosa dedicada ao tráfico de pessoas ou de armas ou ao auxílio à imigração ilegal e os crimes contra a autoridade pública cometidos em contexto de emergência sanitária ou de proteção civil; b) Promover a proteção das vítimas especialmente vulneráveis, incluindo as crianças e os jovens, as mulheres grávidas e as pessoas idosas, doentes, pessoas com deficiência e imigrantes;». [Cfr. Lei n.º 55/2020, de 27 de agosto ] (sublinhado da autoria do Relator). Por sua vez, nos crimes de prevenção prioritária, inclui-se a “criminalidade violenta (…)” (artigo 4.º, alínea b)).
Esta orientação de política criminal manteve-se em vigor até à aprovação da Lei n.º 51/2023, de 28.8, que entrou em vigor em 1.09.2023 [Cfr. Lei n.º 51/2023, de 28 de agosto ], sendo certo que nesta Lei se manteve como objetivo específico, “Promover a proteção das vítimas de crime, em particular as vítimas especialmente vulneráveis, incluindo crianças e jovens, mulheres grávidas e pessoas idosas, doentes, pessoas com deficiência e imigrantes” (artigo 3.º, alínea b)), sendo que nos crimes de prevenção prioritária, se inclui, “A criminalidade violenta, especialmente violenta (…)” (artigo 4.º, alínea g)).
A primeira versão deste diploma sofreu alterações durante o processo de discussão parlamentar, no qual não podemos deixar de ter em atenção os pareceres emitidos pelas diversas entidades no decurso do processo legislativo, designadamente o Conselho Superior do Ministério Público, Conselho Superior da Magistratura e Ordem dos Advogados. [Cfr. Actividades Parlamentares - Iniciativas - Proposta de Lei 97/XV/1 ]
Neste plano, há que fazer uma especial referência à posição assumida pelo Conselho Superior da Magistratura, que numa primeira leitura do texto legislativo, entendeu que “Em relação aos crimes contra o património [art.º 5, n.º 1, al. b)], para além de se registar o número restrito de crimes excecionados neste âmbito, afigura-se que deveriam constar todos os condenados por crimes de roubo previsto e punido pelo artigo 210º do Código Penal e roubo qualificado, face à enorme expressão e gravidade deste tipo de crimes, consabidamente causadores de grande alarme social”. [Cfr. Parecer do Conselho Superior da Magistratura relativamente à Proposta de Lei n.º 97/XV/1.ª, pág. 16.]
Tal posição foi analisada pelo legislador na fixação do texto final. Com efeito, dos pareceres entregues pelos grupos parlamentares, constatamos:
O grupo parlamentar do PSD, expressamente indica no ponto ii) da alínea b) do artigo 5.º a exclusão do crime de roubo – simples ou qualificado – do perdão de penas, mantendo a exclusão dos crimes praticados contra vítimas especialmente vulneráveis; [Cfr. Propostas de Alteração do Grupo Parlamentar do PSD ].
O grupo parlamentar do PS, altera o ponto i) da alínea b) do n.º 1 do artigo 7.º, incluindo a menção “ e por roubo, previsto no n.º 2 do artigo 210.º do Código Penal”., alterando expressamente a alínea g) do n.º 1 o artigo 7.º aditando o seguinte segmente: “contra crianças, jovens e vítimas especialmente vulneráveis, nos termos do artigo 67.º-A do Código Processo Penal;” [Cfr. Propostas de Alteração do Grupo Parlamentar do PS].
Se é certo que a proposta do Grupo Parlamentar do PSD foi rejeitada com os votos contra do PS, do Chega e do DURP do Livre, a verdade é que as alterações supra referidas apresentadas pelo Grupo Parlamentar do PS foram analisadas e votadas em conjunto, tendo merecido os votos a favor do PS, do PSD, da IL, do PCP e contra do Chega, na ausência do BE, da DURP do PAN e do DURP do Livre. [Cfr. Relatório da Discussão e Votação da Especialidade da Proposta de Lei n.º 97/XV/1.ª ].
Da análise deste processo legislativo, resulta claro que a proposta do Grupo Parlamentar do PSD foi rejeitada, sendo certo que a solução por si preconizada teve acolhimento no aditamento feito pelo Grupo Parlamentar do PS à alínea g) do n.º 1 do artigo 7.º, uma vez que sendo o crime de roubo simples considerado legalmente como criminalidade especialmente violenta, sempre estaria incluído na referência das vítimas especialmente vulneráveis, por conjugação dos artigos 1,º, alínea l e 67.º-A, n.º 3 ambos do Código de Processo Penal. Só este entendimento permite compreender a votação a favor do Grupo Parlamentar do PSD a tais propostas.
Aliás, se dúvidas houvesse sobre o sentido a dar a tais soluções, a intervenção da deputada do PS, Marta Temido, dissipa-as, ao referir “O texto final global que hoje votamos resultou da discussão e votação na especialidade de uma proposta de lei que estabelece um perdão de penas e amnistia de infrações, por ocasião da realização, em Portugal, da Jornada Mundial da Juventude, e resultou, sobretudo, do esforço realizado por várias forças políticas, no sentido de acolher, por um lado, os argumentos expostos neste Plenário, aquando do debate na generalidade, e, por outro lado, as recomendações constantes dos pareceres do Conselho Superior da Magistratura, do Ministério Público e da Ordem dos Advogados.” [Cfr. Votação em 2023-07-19 na Reunião Plenária n.º 152 ; Realçando o valor das posições assumidas pelos intervenientes no processo legislativo, vide o referido no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10.01.2024 (Proc.º 485/20.9T8CVD.P2) (disponível em www.dgsi.pt).]
Nestes termos, a conciliação destes dois normativos exige a compreensão do seu sentido intrínseco.
O legislador, ao consagrar um regime de exceções no artigo 7.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, fê-lo consagrando um conjunto de previsões de caráter objetivo – atento o crime em apreço ou a verificação de determinada agravante geral – e outro de âmbito subjetivo - atenta a qualidade dos intervenientes, condenado e vítimas. [Neste sentido vide, Brito, Pedro José Esteves de, ob cit., pág. 30]
Porque estamos perante âmbitos distintos, a leitura das mesmas terá de ser feita segundo um critério de complementaridade e nunca de exclusão. Dito de outro modo, a referência objetiva a determinados crimes não pode ser tida como um elemento de limite implícito à consagração das exceções de índole subjetiva, sob pena de estarmos a consagrar um regime de exceção à exceção que manifestamente não pode ser retirado da leitura do citado artigo 7.º.
Neste sentido, a posição que entende que o roubo simples não está excluído do perdão, uma vez que não está previsto em qualquer uma das alíneas do artigo 7.º, pressupõe que a previsão da alínea b), subalínea i) tem uma dupla natureza: prescritiva, na parte em que expressamente consagra que o roubo qualificado está excluído do perdão, e norma limite à exceção prevista na alínea g), limite esse que, todavia, não resulta do próprio texto, nem tem qualquer cabimento no normativo legal aplicável.
Deste modo, apenas a leitura do citado artigo 7.º que vê ambas as previsões como complementares e não entre si excludentes, garante a coerência do regime de perdão de penas consagrado pela Lei n.º 38-A/2023, de 2.8, bem como de todo o regime sancionatório consagrado no Código Penal.
Com efeito, se não fosse dado o sentido aqui proposto para a alínea g) do n.º 1 do artigo 7.º - que a mesma abrange toda a criminalidade violenta e especialmente violenta – incluindo aqui o roubo simples -, uma vez que as vítimas da mesma são sempre [A utilização da expressão “sempre” pelo legislador não pode deixar de ser entendida como uma opção clara de subtracção de qualquer discricionariedade do julgador na integração e correlação de ambos os conceitos, e, muito menos, no âmbito de uma Lei da amnistia e perdão conforme já referido. ] vulneráveis nos termos do disposto nos artigos 1.º, alínea j) e 67.º-A, n.º 3 ambos do Código de Processo Penal, far-se-ia uma redução do âmbito de aplicação da mesma que a sua interpretação literal não o permita, uma vez que em nenhum momento do texto do citado diploma legal, resulta que as demais alíneas do artigo 7.º são – ou sequer foram consideradas pelo legislador - como limites ao âmbito de aplicação da referida alínea g).
Neste plano, é preciso ter em atenção, conforme refere o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 20/02/2024, que “As medidas de clemência, atenta a sua natureza de providências excecionais, devem ser interpretadas nos precisos termos em que estão redigidas, sem ampliações nem restrições, não comportando aplicação analógica (cf. artigo 11º do Código Civil), embora sempre com a salvaguarda dos princípios constitucionais de igualdade e proporcionalidade.” (disponível em www.dgsi.pt). No mesmo sentido refere o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2023, de 1 de Fevereiro, “atendendo à excecionalidade que caracteriza as leis de amnistia e de perdão, a interpretação das mesmas deverá, pura e simplesmente, conter-se no texto da respetiva lei, adotando-se uma interpretação declarativa em que “não se faz mais do que declarar o sentido linguístico coincidente com o pensar legislativo.” [Cfr. https://files.diariodarepublica.pt/1s/2023/02/02300/0002200041.pdf ]
Aliás, esta redução do âmbito de aplicação da referida norma, colocaria graves problemas ao julgador para determinar em que situações a mesma permitiria tal exclusão e aquelas em que a mesma não permitiria. Estaríamos, assim, no campo da interpretação discricionária da norma, sem qualquer critério objetivo orientador que garantisse a previsibilidade na sua interpretação e, em consequência, a confiança do cidadão e dos destinatários das normas, na decisão judicial daí resultante.
Por outro lado, uma tal interpretação colocaria sérios problemas à necessária coerência do regime sancionatório penal, uma vez que como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10.01.2024 (Proc.º 485/20.9T8CVD.P2), “não seria compreensível que crimes muito menos graves do que o de roubo previsto no art.º 210º, nº 1, do CP, como o de coação e de perseguição, dos art.ºs 154º e 154º-A do CP, puníveis com pena de prisão de 1 mês a 3 anos ou com pena de multa, ficassem excluídos do perdão, e já não aquele, indubitavelmente mais grave e gerador de alarme social, onde a violência sobre uma determinada pessoa pontifica como elemento do tipo, seja na forma de coação, de ofensa à integridade física, ou de ameaça com perigo iminente para a vida ou para a integridade física da vítima, sendo ademais o mesmo punível com pena muito superior à prevista para aqueles crimes, ou seja, 1 a 8 anos de prisão.” (disponível em www.dgsi.pt). Aliás, daí resultariam situações incompreensíveis, mesmo para quem entendesse que o roubo simples não estava excluído do perdão, de considerar que outros crimes estariam abrangidos pela exceção da alínea g) do número 1, do artigo 7.º, como seja o crime p. e p. pelo artigo 311.º do Código Penal, o qual manifestamente tem especiais afinidades com o roubo simples. Deste modo, para aquela posição, o roubo simples estaria abrangido pelo perdão, mas o crime de violência depois da subtracção já estaria excluído, resultado interpretativo que manifestamente é contrário à necessária coerência do regime sancionatório penal (o mesmo ocorrendo com o crime de dano com violência, p. e p. pelo artigo 214.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal). Por fim, em que termos se iria incluir o artigo 210.º, n.º 3 do Código Penal, no regime do artigo 7.º? Por uma interpretação extensiva – por maioria de razão - do artigo 7.º, alínea b) subalínea i), ou pela remissão da alínea g) do citado normativo, contrariando a ideia que esta seria sempre excluída pela previsão da alínea b) subalínea i), uma vez que dúvidas não restam a qualquer jurista que o artigo 210, n.º 3 do Código Penal se encontra excluído do regime do perdão de penas. [Acentuando esta e outras perplexidades decorrentes de uma interpretação que admite a aplicação do perdão de penas para o crime de roubo simples, vide o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 23/01/2024 (Proc.º 5310/19.0JAPRT-AI.G1) (disponível em www.dgsi.pt)]
Contra esta posição poder-se-á argumentar que o crime de roubo simples não está abrangido na noção de criminalidade especialmente violenta, e, nessa medida, não pode ser aplicado a previsão do artigo 67.º-A, n.º 3 do Código Penal. [Este é um dos argumentos enunciados no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23.01.2024, relatado pela Juíza Desembargadora Maria José Machado onde se pode ler que “1. O crime de roubo, à luz das alíneas j) e l) do artigo 1.º do Código de Processo Penal, não deve ser considerado como integrando o conceito de criminalidade violenta ou especialmente violenta. Isto porque cada um destes conceitos, para além de exigir uma determinada medida abstracta da pena prevista no tipo incriminador (igual ou superior a 5 ou a 8 anos, respectivamente), exige que as condutas em causa se dirijam dolosamente «contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a autoridade pública», conceitos que o Código Penal utiliza para ordenar sistematicamente as condutas que incrimina. 2. No crime de roubo, para além de a violência, a subtracção ou a entrega da coisa ou animal alheios podem ser alcançadas por meio de ameaça com perigo para a vida ou para a integridade física ou pondo a vítima na impossibilidade de resistir (artigo 210.º, n.º 1 do Código Penal), não envolvendo necessariamente uma ofensa da integridade física da vítima. Por isso, não se pode sequer dizer que o crime de roubo também tutela a integridade física da vítima para efeitos de o integrar na alínea j) do artigo 1º do Código de Processo Penal. Tutelará apenas nos casos em que a violência se traduzir na prática de lesões da integridade física e naqueles em que a colocação na impossibilidade de resistir implicar uma ofensa desse bem jurídico. Não poderia, por isso, o legislador ter estabelecido na alínea g) da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, uma cláusula de exclusão de conteúdo incerto. 3. Não integrando o roubo o conceito de criminalidade violenta, não se lhe aplica o n.º 3 do artigo 67.º do Código de Processo Penal, razão pela qual as vítimas desse crime não são necessariamente especialmente vulneráveis, do que deriva que o roubo simples não seja excluído pela alínea g) do n.º 1 do artigo 7.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto.” (www.dgsi.pt).]
Esta posição não só não é acolhida na doutrina [Neste sentido vide, Gama, António (2019) “Comentário Judiciário do Código de Processo Penal”. Almedina, Tomo I, pág. 77] ou jurisprudência maioritária [Neste sentido, vide as referências jurisprudenciais citadas por Pedro José Esteves de Brito, ob. cit., na nota de rodapé n.º 48, pág. 31-32], como não tem qualquer acolhimento legal atenta o conteúdo literal do artigo 1.º, alínea l) do Código de Processo Penal. Com efeito, o conceito de criminalidade especialmente violenta assenta nos bens jurídicos protegidos (a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a autoridade pública) e na moldura abstrata aplicável aos crimes, designadamente, ao seu máximo legal igual ou superior a 8 anos. Atentos ambos os critérios, é manifesto que o crime de roubo simples, se inclui neste conceito.
Com efeito, o crime de roubo simples implica sempre um atentado a um dos bens jurídicos referidos, seja a vida, a integridade física ou a liberdade pessoal. Com efeito, havendo “violência contra uma pessoa, de ameaça com perigo iminente para a vida ou para a integridade física” os bens jurídicos atingidos podem ser, desde logo, a vida e a integridade física. Por sua vez, ocorrendo uma situação de “impossibilidade de resistir”, o bem jurídico afetado é a liberdade pessoal.
Nestes termos, não podemos deixar de concluir que o crime de roubo simples está incluído no conceito de criminalidade especialmente violenta, e, deste modo, é aplicável a previsão do artigo 67.º-A, n.º 3 do Código de Processo Penal.
Em conclusão, entendemos que o crime de roubo simples está excluído do regime de perdão instituído pela Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, por aplicação do disposto no artigo 7.º, n.º 1, alínea g).
Aqui chegados, é necessário discutir se tal conclusão é de manter quando, como ocorre no caso em apreço, a pena aplicada transitou em julgado em data anterior à entrada em vigor da Lei n.º 130/2015, de 04/09, que aditou ao Código de Processo Penal o artigo 67.º-A.
Como efeito, entendeu o Acórdão do Tribunal da Relação de 23.01.2024, relatado pela Juíza Desembargadora Maria José Machado, que “A não aplicação do perdão em virtude de as vítimas dos roubos simples cometidos pelo arguido poderem ser hoje consideradas vítimas especialmente vulneráveis, quando na data da condenação não tinham essa qualificação, traduz uma violação do princípio da não aplicação retroactiva da lei processual penal previsto no artigo 5.º, n.º 2, alínea b) do C.P.P., quando da sua aplicação imediata, que é a regra, puder resultar agravamento da situação processual da situação do arguido.” (disponível em www.dgsi.pt).
Não podemos acompanhar este entendimento, por várias razões.
Em primeiro lugar, as leis da amnistia e do perdão transcendem a lógica das normas penais, não lhe sendo aplicáveis o regime da sucessão temporal das leis penais.
Com efeito, as mesmas integram-se no denominado direito de graça, fixando, aquando da sua entrada em vigor, as concretas condições da sua aplicação. No caso do denominado perdão genérico, a sua aplicação não tem qualquer efeito retroativo, antes pressupõe a existência de uma pena transitada em julgado, sem qualquer avaliação retroativa do mesmo. O perdão vale para o futuro, uma vez preenchidos os requisitos legais existentes à data da sua aplicação.
Com efeito, o arguido quando é condenado numa pena de prisão não tem qualquer expetativa de, no futuro, vir a beneficiar de uma qualquer lei de perdão. Este facto futuro incerto não está abrangido em qualquer esfera de expetativa jurídica do condenado a que a lei deva dar acolhimento com a aplicação do regime previsto no artigo 29.º, n.ºs 1, 3 e 4 da Constituição da República Portuguesa, e muito menos no sentido de impor que a norma do artigo 67.º-A do Código de Processo Penal não devia ser tida em consideração para efeitos de aplicação da Lei do perdão em casos anteriores a 2015.
A aferição da verificação dos pressupostos para aplicação de uma Lei da amnistia ou perdão tem de se fazer à data da sua entrada em vigor, pressupondo o regime legal existente nessa data, não se colocando qualquer juízo de interpretação normativa dos mesmos em face do princípio da aplicação da lei penal mais favorável, uma vez que a mesma aplica-se a todos os casos, independentemente da data dos factos ou do trânsito em julgado do caso, desde que tais fatores não sejam, em si mesmo, requisitos para a sua concreta aplicação.
Em segundo lugar, ao ligar o artigo 67.º-A do Código de Processo Penal ao disposto no artigo 29.º, n.º 4 do Código Penal, aquele entendimento está a considerar que o referido normativo legal do Código de Processo Penal está abrangido por tal imposição constitucional, o que nos remete para a discussão das normas processuais penais próprio sensu ou formais e as normas processuais penais materiais.
Como referem Pedro Garcia Marques e Paulo Pinto de Albuquerque, “As normas processuais materiais estão sujeitas ao princípio da legalidade criminal. Essas normas são as normas processuais que representam, em termos materiais, uma verdadeira pré-conformação da penalidade a que o arguido poderá ficar sujeito (…) O artigo 29.º, n.º 4, da CRP não só proíbe que se aplique retroativamente normas processuais materiais menos favoráveis ao arguido, como impõe que se aplique retroativamente as normas processuais materiais mais favoráveis (ou menos desfavoráveis) ao arguido. Por outro lado, quando as normas processuais materiais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicável “o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente". Portanto, a comparação da lei nova e da lei velha deve ser feita em termos concretos (isto é, em face das características do caso concreto) e globais (ou seja, em face do conjunto das normas aplicáveis), analogamente ao disposto no artigo 2.º, n.º 4, do CP.” [Cfr. Albuquerque, Paulo Pinto (2023). “Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos”. Universidade Católica Editora, Volume I, pág. 66; Estes autores dão como exemplo de normas processuais materiais: normas relativas à natureza pública, semipública ou particular do ilícito criminal e, nomeadamente, normas que transformem um crime público em crime semipúblico; normas relativas ao exercício, caducidade e desistência do direito de queixa e de constituição como assistente; normas relativas à prescrição do procedimento criminal e, nomeadamente, aos prazos, causas de interrupção e suspensão e efeitos da prescrição; normas relativas à aplicação, substituição e revogação de medidas de coação, com a exceção do termo de identidade e residência; normas relativas ao ónus da prova; normas relativas à fundamentação das decisões; normas relativas à reformatio in pejus em recurso interposto apenas pelo arguido; normas relativas à liberdade condicional e liberdade para prova; normas relativas à fixação do limite da pena aplicável no âmbito dos procedimentos sumários (ob cit, pág. 67). (outros exemplos são referidos no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9/04/2008 - ECLI:PT:STJ:2008:08P113.48)]
No mesmo sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/01/2013 (ECLI:PT:STJ:2022:1085.14.8GAMTA.L1.S1.2C), refere, “Todavia, aceitar que tais princípios afectam a determinação do momento-critério da determinação da lei processual penal aplicável não significa que para todas possa, simplesmente, transpor-se o dispositivo constitucional da aplicação retroactiva da lei de conteúdo mais favorável ao arguido, pois, há tipos diversos de normas processuais materiais e a modulação de influência dos referidos princípios constitucionais reflecte-se na sua aplicação consoante a sua especificidade problemática.”
É esta ligação intrínseca aos direitos fundamentais do arguido, designadamente do seu direito de defesa, que deve nos servir de critério orientador na distinção das normas processuais penais. (neste sentido, vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, n.º 4/2009, de 19 de março, in DR., 1.ª série, n.º 55)
Se é certo que o artigo 67.ºA só foi aditado ao Código de Processo Penal em 2015, a verdade é que o conceito de vítima e vítima especialmente vulnerável já era um conceito com valor jurídico no ordenamento processual penal. Com efeito, o artigo 67.º-A do Código de Processo Penal visou a consagração no Código de Processo Penal de uma realidade já existente no ordenamento jurídico processual penal em sentido amplo desde a entrada em vigor da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro.
Com efeito, o artigo 2.º, alínea a) da citada Lei, considera vítima especialmente vulnerável, “a vítima cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua diminuta ou avançada idade, do seu estado de saúde ou do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social;”
O artigo 67.º-A do Código de Processo Penal teve como objetivo enquadrar este conceito no Código de Processo Penal, por forma a dar efetivo cumprimento ao imposto pela Diretiva 2012/29/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro de 2012 [Cfr. Diretiva 2012/29/UE do Parlamento Europeu e do Conselho ] (vide ainda a Decisão-Quadro 2001/220/JAI do Conselho de 15 de março de 2011, relativa ao estatuto da vítima em processo penal [Cfr. Decisão-Quadro 2001/220/JAI do Conselho de 15 de março de 2011, relativa ao estatuto da vítima em processo penal ]).
Nestes termos, o artigo 67.ºA do Código de Processo Penal não só não contende com os direitos de defesa do arguido ou o seu estatuto jurídico-processual de forma a colocar em causa os direitos constitucionais de defesa, como apenas visa enquadrar no Código de Processo Penal uma figura já existente no ordenamento processual penal em sentido amplo.
É também neste sentido que deve ser compreendido o disposto no artigo 67.ºA, n.º 3 do Código de Processo Penal que mais do que inovador, é uma norma de caráter interpretativo do conceito de vítima especialmente vulnerável, fomentando a estabilização deste conceito, uma vez que opera ope legis. [Neste sentido, vide Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 7/04/2021 (ECLI:PT:TRC:2021:86.20.1T90FR.A.C1.CC), Acórdãos do Tribunal da Relação de Évora de 28/02/2023 (ECLI:PT:TRE:2023:637.20.1PBFAR.E1.B2), 21/06/2022 (ECLI:PT:TRE:2022:2381.20.0T8PTM.E1.CB); Brito, Pedro, ob.cit., pág. 30.].
Com este normativo legal o legislador não quis corrigir ou reparar qualquer inércia punitiva anterior, intimamente ligada aos direitos processuais fundamentais do arguido, designadamente o seu direito de defesa ou alterar o seu estatuto jurídico-processual. Estamos antes perante a consagração da figura da vítima no Código de Processo Penal, como uma realidade normativa pré-existente e fundamental para permitir um processo mais justo, equilibrado e equitativo, não apenas baseado na figura do arguido, mas também na vítima.
Este recentrar da atuação do Estado neste domínio em nada altera o figurino de defesa do arguido e do seu estatuo jurídico-processual, uma vez que abarca uma realidade externa a ele, ainda que a final possa conflituar com a amplitude das consequências jurídico processuais resultantes dos direitos do arguido até aí existentes.
O que o legislador quis assumir com o aditamento do artigo 67.º-A do Código de Processo Penal é que o resultado final de um qualquer processo penal, não depende apenas dos direitos que assistem ao arguido, mas também dos direitos que assistem às vítimas. Deste modo, não podemos sufragar o entendimento que o artigo 67.º-A do Código de Processo Penal não se possa aplicar imediatamente após a entrada em vigor da Lei que procedeu ao seu aditamento ao Código de Processual Penal, mesmo a processos já existentes nessa data, uma vez que isso negava um direito das próprias vítimas de intervir num processo que lhe diz respeito, seja através da possibilidade de ser informada dos trâmites do processo, seja de intervir no próprio processo nos termos que a lei consagra.
Nestes ternos, o artigo 67.º-A do Código de Processo Penal tem de ser entendido, para os efeitos ora em apreciação, como sendo uma norma processual penal próprio sensu e, nessa medida, sujeita, ao princípio da aplicação imediata, imposta pelo artigo 5.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, uma vez que não está em causa, pelas razões já supra expostas, qualquer uma das situações excecionais previstas no n.º 2 que a isso obstem.
Por fim, ainda que se entendesse que a lei de perdão inclui uma norma processual material, a sua aplicação teria de ser ponderada atento o caso em concreto e não em termos abstratos.»
A abordagem da temática levada a cabo neste acórdão, que corresponde à questão que constitui objecto deste processo, merece novamente acolhimento por parte deste Tribunal, razão pela qual se assume a sua transcrição, sem necessidade de mais aditar.
Com efeito, no caso concreto, há muito que está estabilizada a contenda penal, com decisão proferida há mais de onze anos e devidamente transitada em julgado, pelo que, seguindo o entendimento acima exposto, «aplicação do disposto no artigo 7.º, n.º 1, alínea g) da Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto, não só não viola qualquer direito do arguido constitucionalmente garantido, como se impunha em respeito dos princípios constitucionais que regem um direito processual moderno» [Ac. citado].
Como tal, é de validar a decisão recorrida, mantendo-a inalterada, com a consequente improcedência do recurso.
DECISÃO
Nestes termos, e face ao exposto, decide o Tribunal da Relação de Lisboa julgar improcedente o recurso, mantendo inalterado o despacho recorrido.
Custas pelo Recorrente, fixando-se em 3 UC a respectiva taxa de justiça.
Lisboa, 20.Maio.2025
Rui Coelho
Sandra Oliveira Pinto
Paulo Barreto (vencido)
"Voto vencido, mantendo a posição que tive, como adjunto, no acórdão n.º 179/04.2PBLSB-A.L1-5, de 23.01.2024, relatado pela Juíza Desembargadora Maria José Machado, remetendo para os fundamentos aí expostos. Assim, entendo que o roubo simples não está excluído do perdão, salvo se a vítima tiver o estatuto de especialmente vulnerável à data da decisão."