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PROVA
FACTOS
RECURSO
IN DUBIO PRO REO
Sumário
I - A prova, em processo penal, tem como objecto, por definição elementar e primeira, factos que à luz da lei penal constituam crime, ou o excluam, daí que o objecto do processo penal seja constituído por factos essenciais à caracterização do crime e suas circunstâncias juridicamente relevantes, o que exclui os factos inócuos, irrelevantes para a qualificação do crime ou para a graduação da responsabilidade do arguido, mesmo que descritos na acusação ou na contestação. II - A prova não é objecto de prova, por isso é igualmente ilegal a prática de a acusação e subsequentemente pronúncia e sentença, em vez de se cingirem à enunciação daqueles factos essenciais, adoptarem postura próxima do floreado relato jornalístico, incluindo descrição de provas em vez de destas se extraírem aqueles, assim confundindo o que é inconfundível: meios de prova com factos. III - Apenas estes manda a lei manda enunciar, procedendo-se ao corte do que em contrário e com carácter supérfluo provenha da acusação de que a sentença não pode ser fiel serventuária. De resto, sempre ao juiz se impõe, sob pena de ilegalidade que se abstenha da prática de actos inúteis. IV - É legalmente vedado o segundo julgamento em recurso, pelo que a respectiva pretensão implica a correspondente sua rejeição. V - Por mais tradicional e habitual na prática forense, a violação do princípio “in dubio pro reo” não corresponde, por si mesmo e nos termos da lei processual vigente, a qualquer tipo de questão a tratar, posto que não é previsto como causa de nenhum vício. VI - A eventual violação em concreto de tal princípio conduzirá a decisão a entorse factual que se materializará em vício típico: erro notório na apreciação da prova, evidenciado pelo texto da mesma decisão, ou erro de julgamento revelado pelo apontar de prova concreta a impôr ambiguidade no que respeita a facto, por isso incorrectamente julgado.
Texto Integral
Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa.
AA foi condenado na pena única de 3 anos e 6 meses de prisão, suspensa na execução por idêntico período, com regime de prova, resultante de cúmulo das duas penas a que na ocasião foi condenado:
2 anos e 6 meses de prisão, pela prática de crime de violência doméstica p. e p. pelo art.º 152º, nº 1, alíneas a) e b), nº 2, alínea a) e números 4 e 5, do Código Penal; e
2 anos e 10 meses de prisão, também pela prática de crime de violência doméstica.
Foi ainda condenado no pagamento de 1.750 e 3.500 euros, respectivamente, às assistentes BB e CC, acrescidos de juros legais desde a notificação para contestar.
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Interpôs o arguido o presente recurso concluindo, em resumo:
“(...) contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (...) existe este vício nos factos dados como provados sob os números 9º, 13º a 18º, porque todos eles se baseiam em dois erros, a saber: A data em que a relação conjugal se começou a deteriorar; A relação existente entre o casal (...) o tribunal á quo dá como provado que a partir de 2016 se iniciaram os problemas, mas pelos depoimentos prestados, quer por parte das assistentes, quer por parte das testemunhas, quer ainda o que ficou consignado sobre os depoimentos dos vizinhos, todos colocam o princípio dos problemas entre o casal alguns anos depois dos mesmos estarem a residir em Portugal (...) entreosanosde2018e2019 (...) existe erro de julgamento, que deverá levar á modificação da matéria de facto, nos termos dos artigos 412º, nº 3 e 431º alinha b) do C.P.P., nos seguintes factos (...) 3 (...) 9 (...) 12 (...) Para prova do que está alegado, deverá ter-se em conta os depoimentos referidos no presente recurso, o documento de fls. 118, o conteúdo das mensagens trocadas entre o arguido e as assistentes, os vídeos e áudios, as fotografias, e, bem assim, as regras da experiência comum. 10. Finalmente, entendemos que existe erro notório na apreciação da prova relativamente aos factos dados como provados sob os números: 6º, porque: O tipo de comportamento ali descrito era mútuo; 7º, porque: Nenhuma prova foi feita nesse sentido; 8º, porque: As expressões ali descritas estão em Português, quando resulta dos autos que o arguido não fala a língua. 9º, porque: Conforme resultou das declarações da Assistente e das testemunhas (vizinhos), os problemas entre o casal começaram em 2018, e foram sempre mútuos. 10º, porque: Nenhuma prova foi feita nesse sentido; 11º: porque: Nenhuma prova foi feita nesse sentido; 13º e 14º, porque: Não foi feita qualquer prova no referido sentido. 15º, porque: Porque, e conforme resulta da prova agora indicada, sempre houve uma relação cordial e fraterna entre o pai e a filha. 16º, porque: Nenhuma prova foi feita nesse sentido. 31º, quando comparado com o facto dado como não provado sob a alinha j). 11. E face ao que vimos expandindo, dúvidas não restam que da prova produzida, quer testemunhal, quer documental, não poderiam ter sido dados como provados, como foram, os factos nºs 6, 7, 8, 9, 10, 11, 13, 14, 15 e 16, que não estão provados. 12. Os factos 17º e 18º acabam por ser instrumentais, pelo que, também a conclusão a tirar é que não devem ser considerados provados. 13. Quanto aos factos dados como não provados, resulta claramente, pelas declarações prestadas, e pelas provas produzidas, designadamente, os vídeos/áudios e fotografias, que o tribunal à quo andou mal ao dar como não provados os factos elencados sob as alinhas m) n) o) q) r) s) t) u) v) e w (...) 15. Toda a prova testemunhal que foi aqui indicada para ser reapreciada, deverá ser renovada, com a audição das passagens indicadas nas gravações efectuadas. 16. Bem como a prova que resultou dos vídeos e áudios e fotografias, que deverá ser renovada, com a análise por parte desse douto tribunal. 17. Resumindo, nos presentes autos temos, a partir de uma determinada altura do relacionamento entre o casal (que durou mais de 20 anos), mais concretamente, a partir de 2018, existiram agressões verbais mútuas entre o marido e a mulher, agressões físicas mútuas entre o marido e a mulher, sem que contudo tivessem qualquer tipo de relevância médica (já que a única visita ao hospital resultou da própria acção da assistente BB que se magoou quando perseguia o arguido – fls. 118), e um ror de mentiras por parte de mãe e filha para com o pai, no sentido de esconder a relação de namoro da filha, que contribuíram de forma decisiva para o termo da relação conjugal. 18. Uma análise criteriosa das provas produzidas, e tendo também em conta que foram acrescentados aos factos provados, os factos enumerados sob os artigos 32º a 39º, deveria resultar, no mínimo, numa dúvida séria e razoável, em benefício do arguido. 19. Não tendo havido essa ponderação, entendemos que o tribunal à quo violou o princípio do in dúbio pro réu nos termos do Art.º 32º nº 5 da CRP, que impunha necessariamente a absolvição do Arguido dos dois crimes de violência doméstica de que foi acusado (...)”
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O Ministério Público junto da primeira instância pugnou fosse negado provimento ao recurso e mantida a sentença recorrida, sem concluir, já que se limitou, em substância, a repetir as correspondentes alegações.
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A assistente CC respondeu no mesmo sentido, concluindo a propósito:
“(...) No seu recurso da matéria de facto, o arguido/recorrente limita-se a dizer que perante os factos provados o Tribunal a quo, deveria ter decidido de outro modo e não como o fez; 4 - Na realidade, o que existe é uma divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e aquela que o Tribunal firmou sobre os factos, o que se prende com a apreciação da prova em conexão com o princípio da livre apreciação da mesma consagrado no artigo 127º do Código de Processo Penal. 5 - Se os critérios subjetivos expressos pelo julgador se apresentarem com o mínimo de consistência para a formulação do juízo sobre a credibilidade dos depoimentos apreciados e, com base no seu teor, alicerçar uma convicção sobre a verdade dos factos, para além da dúvida razoável, tal juízo há de sempre sobrepor-se às convicções pessoais dos restantes sujeitos processuais, como corolário do princípio da livre apreciação da prova ou da liberdade do julgamento (...) 8 - É manifesto que a posição assumida pelo recorrente traduz apenas a sua opinião a qual, neste contexto, de pouco vale, porque se impõe o estatuído no artigo 127º, do Código de Processo Penal (a prova é apreciada segundo as regras de experiência comum e a livre convicção do julgador) (...)”
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Respondeu também a assistente BB, no mesmo sentido, concluindo a propósito:
“(...) Não se verifica qualquer erro notório na apreciação da prova, na Sentença recorrida. 3. A Sentença recorrida não padece de qualquer insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, assim como não resulta do texto da decisão recorrida, qualquer contradição insanável entre a fundamentação e a decisão. 4. O teor detalhado e a análise crítica de toda a prova produzida e apreciada pelo Tribunal, permitiu ao Tribunal recorrido formular a sua convicção, com toda a certeza e sem quaisquer margem para dúvidas. 5. Não ocorreu qualquer violação do princípio “in dúbio pro reu” por parte do Tribunal recorrido. 6. A Sentença proferida, ora recorrida, não violou qualquer disposição legal e consequentemente, não merece qualquer reparo, devendo ser integralmente mantida.”
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Neste Tribunal da Relação, o Ministério Público emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso.
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Respondeu o recorrente pugnando pelo bem fundado do seu recurso.
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Respondeu também a assistente BB aderindo ao parecer.
-- // -- // -- Fundamentação.
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A sentença recorrida estabeleceu como tal os seguintes factos provados:
“1. O arguido, AA, e a assistente BB, contraíram casamento em ........2000.
2. Dessa união nasceram CC, em ........2000, DD, em ........2004, e EE, em ........2008.
3. A família residiu na ... e, depois, em ....
4. Mudaram-se, no verão de 2016, para a casa sita na ....
5. A relação entre AA e BB foi-se degradando.
6. Perante a postura assumida pela esposa BB, o arguido, AA, começou a dirigir-lhe, com frequência e foros de veracidade, as expressões “whore”, “Vai para a rua!” e “Não vales nada!”.
7. Quando BB regressava a casa, o arguido, AA, dizia-lhe, em tom de voz sério, “Já abriste as pernas hoje a quantos?!” e “Andas a dormir com este e com aquele!”.
8. Chamava-lhe “demónio”, “feia”, “satânica”, “puta”, acrescentando que ía ficar com a guarda dos filhos.
9. Entre os anos de 2016 e 2019, com frequência, no interior da residência da família, o arguido, AA, cruzava-se com a esposa, BB, no corredor e, ostentando uma postura ameaçadora, encostava o seu corpo ao corpo desta e dizia-lhe, em tom de voz sério, que não tinha medo dela e que lhe dava um soco que a fazia parar à parede.
10. No decurso das discussões, o arguido, AA, empurrava BB e cuspia-lhe no rosto.
11. Em ..., e no interior da residência da família, o arguido, AA, fazendo uso da força, torceu o pulso da vítima, provocando-lhe dores.
12. No dia ........2019, pelas 23 horas, quando a vítima chegou a casa, o arguido iniciou uma violenta discussão com a vítima, e disse-lhe, em tom de voz sério, “És uma puta. Estiveste a abrir as pernas para alguém!”
13. No decurso do ano de 2017, o arguido começou a dizer à vítima CC, “és uma puta, e a tua mãe e a tua irmã também são!”, começou também a dizer-lhe, “quero que tu morras!”
14. Desde que a família vive no …, que o arguido começou a dirigir à vítima CC as expressões, “puta”, “bitch”, “son of a bitch” e “bitch like your mother”.
15. Com frequência, no mencionado período, o arguido, AA, iniciava discussões com a vítima CC questionando as roupas que esta vestia e, nessas mesmas alturas, dirigia-lhe as expressões mencionadas.
16. Chegou, inclusivamente, a empurrá-la.
17. AA apresentava BB e CC como maus exemplos.
18. AA agiu sempre com o propósito conseguido de molestar física e psicologicamente as vítimas BB e CC, de as atingir na sua saúde psíquica, bem como de a perturbar na sua paz e sossego.
19. Agiu ciente de que a ofendida BB era a sua mulher e que CC era sua filha, estudante e, economicamente, dependente do arguido.
20. Mais sabia que lhes devia respeito e consideração e que as suas condutas porque praticadas no interior da residência do casal, eram especialmente gravosas.
21. Agiu sempre de forma livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que as condutas por si perpetradas eram proibidas porque punidas por lei penal.
22. Mantém-se primário e não existe notícia de se encontrarem pendentes contra o mesmo quaisquer outros processos-crime.
23. AA é natural do ..., onde foi criado por pai e mãe.
24. Iniciou actividade laboral/empresarial, ainda, no ..., acabando por emigrar para a Europa e por chegar a Portugal em 1996, trabalhando como massagista.
25. Por ocasião de uma deslocação ao ..., em 1999, conheceu a assistente BB, com quem viria a casar e a ter os 3 (três) filhos supra mencionados.
26. Presta auxílio à amiga, FF, em casa de quem vive, na actividade empresarial que a mesma desenvolve e beneficia de r.s.i.
27. Por força de uma lesão, o arguido, AA, deixou de trabalhar como massagista.
28. Já deixou de importunar BB e a filha CC.
29. BB e CC experimentaram receio, ansiedade e dificuldade em dormir e em concentrar-se, em razão do comportamento do arguido, AA.
30. Pernoitaram fora de casa, receosas do mesmo e chegaram até a sofrer de ataques de pânico.
31. BB foi medicada para a depressão.
32. Já no final do relacionamento que mantiveram, a assistente, BB, começou a responder ao arguido, AA, com insultos e pontapés aos insultos e pontapés que lhe eram dirigidos pelo mesmo, chegando a arranhá-lo para se defender.
33. Quando tinham falta de dinheiro, BB pedia dinheiro ao marido, o que o mesmo recusava.
34. Pediu ajuda aos vizinhos e gritou para que chamassem a polícia, acabando por se mudar, com os filhos, para outra casa, e pedir o divórcio.
35. Aconteceu, por mais de uma vez, chamar-lhe “filho da granda puta”, “filho da puta”, “cabrão de merda” e “cabrão”, anunciou-lhe que acabaria na prisão e falido, que tudo faria para que regressasse à sua terra, para que ficasse “em baixo”, “fora do país” e “sem ver estes filhos”, que iria “até ao fim para o prejudicar, após o divórcio” e, para o efeito, se uniria a CC ou que iria sozinha para o ..., quando lhe pagassem “retroactivos”.
36. Chegou também a falar de forma agressiva com os filhos, usando expressões como “fuck” e “merda”, e disse-lhes “Vocês com ele vão estar fodidos. Ele vai-vos massacrar o tempo todo. Não vai tomar conta de vocês. Nem sequer vão ter o que comer” e “vão ficar aqui sem jantar”.
37. Disse a CC “Vai levar no cu” e “se me voltas a tocar, mato-te, rapariga” e a EE “Vai para o caralho, com o teu pai”, “Desaparece. És a mesma merda do que ele”.
38. Chamou-lhes “grandes filhos da puta” e repetiu-lhes que o pai é “mau”, “o diabo em forma de gente”, “faz-e santo, mas é o diabo”, “vai rezar e, assim que chega cá fora trata mal os outros”, “não gosta de vocês”, “não vos ama”, “só quer é controlar”, referindo-se, numa ocasião, ao mesmo como “este gajo”.
39. EE chegou a chorar, depois de BB, gritar consigo.”
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E os seguintes factos não provados:
“a) Que EE nasceu a ... de ... de 2001;
b) Que, a partir do ano de 2012, coincidindo com o início da adolescência, o arguido AA começou a implicar com a filha CC, começando a chamar-lhe mentirosa;
c) Que o arguido, AA, dirigisse a BB as expressões transcritas em 6 quando esta defendia a filha de ambos, CC;
d) Que, com frequência, entre os anos de 2016 e 2019, e no interior da residência do casal, o arguido, AA, dizia aos filhos que não podiam tocar na mãe, BB, porque esta tinha o sangue contaminado;
e) Que, no dia ........2019, no interior da residência da família na sequência de uma discussão, o arguido desferiu um soco no antebraço da vítima;
f) Que, em razão da pendência dos presentes autos, o arguido, AA, começou a dizer aos três filhos menores que sabe o que eles disseram em declarações, que vai por a mãe na prisão e que eles vão fazer o teste do polígrafo e que, por causa dos filhos, ele pode ser preso entre 3 a 6 meses;
g) Que, a partir de 2016, o arguido, AA, começou a dizer aos filhos que se a mãe não está em casa é porque não gosta deles, com frequência diz aos filhos que os odeia, e aponta as vítimas BB e CC como exemplos do mal;
h) Que agiu também com o propósito de perturbar e molestar, psicologicamente, os filhos mais novos, DD e EE, o que quis e logrou;
i) Que a assistente, BB, se refugiava em casa dos vizinhos;
j) Que foi diagnosticada com depressão e deixou de conseguir trabalhar.
k) Que a filha CC se isolou e, por força da actuação do arguido, não alcançou as notas que desejava.
l) Que a única vítima de agressões físicas foi o ora arguido, AA, e que o seu autor foi sempre a BB;
m) Que, a partir do Verão de 2019, altura em que o arguido, AA, descobriu que BB tinha um relacionamento extra-conjugal, a situação do casal piorou drasticamente;
n) Que passou a ser normal BB chamar a polícia, com o objectivo de se fazer passar por vítima de violência doméstica;
o) Que o arguido, AA, nada fez que justificasse os pedidos de auxílio de BB;
p) Que a assistente, BB, só queria chamar atenções;
q) Que, numa das discussões que mantiveram, a assistente, BB, esmurrou o vidro da porta do quarto, onde o arguido, AA, se refugiara, partindo-o;
r) Que DD e AA procuraram acalmar BB e EE na ocasião descrita em 37;
s) Que BB pedia ao arguido, AA, dinheiro para ir jantar fora;
t) Que trouxe carne de porco para casa, desrespeitando a crença do marido, e o ameaçou com uma faca;
u) Que o humilhou, exigindo-lhe que se pusesse de joelhos e lhe pedisse perdão;
v) Que o empurrou contra a parede, raspando o cotovelo e fazendo uma ferida;
w) Que pai e filhos se divertiram nas festas do ...”
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E como motivação da fixação da factualidade que antecede discorreu a sentença recorrida como segue:
“A convicção do tribunal, quanto à matéria de facto provada teve por base a análise crítica de toda a prova produzida em audiência e constante dos autos, segundo juízos de experiência comum e de acordo com o princípio da livre apreciação, nos termos do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal, tendo em conta, essencialmente, as declarações prestadas por BB e pela filha mais velha, CC, bem assim como o depoimento prestado por DD, filho do extinto casal, os quais confirmaram:
• que AA e BB casaram, em ... de 2000, e permaneceram casados durante 21 (vinte e um anos);
• que tiveram 3 (três) filhos: CC, DD e EE;
• que a relação começou a deteriorar-se quando viviam em ..., por razões financeiras;
• que o arguido, AA, começou a apresentar uma postura mais agressiva, em ...;
• que, a partir de 2017, as discussões entre o arguido AA e a assistente BB se tornaram diárias, justamente, porque a sua relação se degradou;
• que também a relação entre o pai e a filha mais velha, CC, se complicou, então, nas palavras desta, porque começou a intervir em tais discussões dos pais;
• que a questão religiosa os opôs, como, de resto, a questão da educação dada à filha CC;
• que o arguido, AA, insultava a mulher e a filha mais velha nos exactos termos supra transcritos;
• que procurava controlá-las a ambas;
• que, a dada altura, a assistente, BB, passou a dormir no sofá e, ultimamente, já não dormia em casa para evitar discussões;
• que chegou a pô-las – a BB e à filha CC – na rua;
• que tinham medo dele;
• que encostava a esposa, BB, à parede, encostando-se todo a si, no corredor da casa onde viviam, a empurrava, lhe cuspia e a ameaçava, inclusivamente, de morte;
• que chegou a torcer-lhe um pulso, o que a impediu de escrever, durante umas semanas;
• que proibia a filha CC de usar determinada roupa, impondo-lhe que usasse calções, na praia, e mangas compridas;
• que chegou a repreendê-la, em público, por causa da roupa que trazia;
• que também a empurrou e ameaçou de morte;
• que mãe e filhos acabaram por sair de casa, em 2019, e o casal divorciou-se; e, finalmente, que
• sofreram, durante os últimos anos, em razão da conduta do arguido, experimentando medo, ansiedade e dificuldades em dormir e em concentrar-se.
Isso fizeram sem escamotear:
• que AA e BB refizeram – ambos - a sua vida sentimental, após a separação, tendo arranjado “namorados”;
• que CC conseguiu manter o namoro com GG, de quem está noiva, pernoitando, semanalmente, em casa deste, de 5.ª-feira a Domingo, a partir de 2017, e, para o efeito, mentindo ao pai, o que só contribuiu para degradar o relacionamento com o mesmo;
• que BB nunca foi diagnosticada, formalmente, com depressão ou o que quer que fosse, que sempre trabalhou e que, apesar de ter procurado ajuda, desistiu de ser acompanhada, em psiquiatria/psicologia, por entender que não precisava;
• que com os filhos mais novos não existiam problemas, correndo tudo bem; e, finalmente, que
• o arguido, AA, deixou de os importunar a todos, mantendo-se distante, não obstante comunique com os filhos mais novos;
• nunca fez “esperas” à filha mais velha ou procurou o namorado desta;
• a assistente, BB, começou, ultimamente, também a insultar o marido, quando o mesmo a insultava, e a devolver-lhe os pontapés e empurrões que recebia dele – causando-lhe lesões que encontramos documentadas a fls. 148 dos autos, em ficha de urgência cujo teor, de igual modo, se valorou - e que, presentemente, já conseguem estar todos mais tranquilos e “abertos”, para além de mais alegres, sentindo que essa outra fase da vida já terminou.
Mereceram credibilidade, justamente, em razão da forma, aparentemente, objectiva e sincera com que depuseram, não obstante, visivelmente, agastada no caso das ofendidas BB e CC, tendo – como já se referiu – tido a preocupação de frisar o que presenciaram e, somente, lhes foi relatado, como, de resto, de não escamotear o que de favorável podiam dizer a respeito do arguido, AA, nomeadamente, no que se refere à relação mantida com os outros filhos do casal.
Inversamente, as declarações prestadas pelo arguido, AA, não mereceram idêntica credibilidade, a não ser na parte em que esclareceu o tribunal a respeito da sua actual situação de vida e na parte em que se mostraram consistentes com os relatos apresentados pela ex-mulher e filhos de ambos (ou seja, na parte em que confirmou a relação matrimonial que manteve com a assistente, BB, e a existência de três filhos, bem assim como a sua progressiva degradação e ruptura).
Muito embora tenha negado, perentoriamente, a factualidade que lhe é imputada, persistindo que são “falsas” as acusações que lhe são feitas e que mantém uma boa relação com a filha mais velha, certo é que, simultaneamente, não deixou de confirmar que discutiam amiúde, que insultou a ex-mulher, no decurso de tais discussões, e que a confrontava – como, de resto, à filha - com as suas ausências ou a respeito da roupa que a segunda vestia e imputando-lhe amantes, que foi BB quem pôs fim ao casamento e que não mantém qualquer contacto com a filha CC, o que não sucederia – dizem-nos as regras da experiência comum – se a sua relação com a mesma fosse positiva, como, inicialmente, pretendeu.
A verdade é que, como adiante se verá, foram vários os inquiridos a confirmar a versão fáctica trazida a juízo por BB e CC e, somente, o arguido, AA, a desmenti-la sem que se alcancem que motivos teriam, afinal, para faltar à verdade.
Isto porque AA e BB refizeram as suas vidas e já estão divorciados, as responsabilidades parentais de DD e EE foram reguladas, permanecendo os filhos mais novos com a mãe, a contento desta e a filha mais velha, CC – já maior de idade, de resto, há vários anos - está noiva de GG, com quem pretende casar.
Inexiste, ademais, património comum ou próprio do arguido AA, que tão pouco aufere rendimentos que lhe permitam satisfazer as pretensões indemnizatórias das demandantes.
Que motivos teriam (ou DD), em face de todo o exposto - para querer prejudicar o arguido, AA, mentindo?
O que levaria mãe e filhos a ocultar do arguido, AA, o seu propósito de abandonar a casa de morada de família, preparando tal saída às ocultas?
Acresce que a prova carreada para os autos não se resume às declarações/depoimento que mãe e filhos que prestaram, não se vislumbrando que interesse teriam os demais inquiridos em favorecê-las, em detrimento do arguido, AA, ficcionando o ocorrido.
Vejamos.
Inquirido na qualidade de testemunha, o namorado de CC e, presentemente, seu noivo, CC confirmou, por seu turno, os receios que a mesma sentia de que o pai descobrisse que namoravam e os ataques de pânico de que era acometida, bem assim como os gritos que ouviu a este último, no decurso de chamadas telefónicas, feitas para a filha, CC, as queixas de CC no tocante aos insultos e ameaças que o pai lhe dirigia e as lágrimas que verteu, na sua presença, em razão das discussões que mantinham.
Mereceu credibilidade pela forma espontânea e consistente como prestou o seu depoimento, não deixando de frisar, espontaneamente, que não chegou a conhecer AA ou sequer a estar em presença do mesmo, não podendo senão confirmar o que lhe ouviu, no decurso das sobreditas chamadas telefónicas, bem assim como o impacto da actuação do primeiro no bem-estar da namorada, justamente, em razão do relacionamento e proximidade que mantinha com a jovem.
Identicamente, o amigo da assistente HH, com quem BB manteve um relacionamento, confirmou a tristeza que lhe notou e o estado, nas suas palavras, “lastimável” e “deprimido” em que ficava por força dos insultos e ameaças que ouviu o marido dirigir à mesma, em chamadas telefónicas que a mesma recebeu na sua presença, confirmando que chegou a ter de levá-la ao hospital.
Mais confirmou o impacto que tal vivência tinha nos filhos de ambos, que conheceu na mesma altura, “monossilábicos” e tristes, bem assim como a mudança “da noite para o dia” – que mãe e filhos experimentaram quando o casal se separou e, finalmente, que o arguido, AA, deixou, entretanto, de provocar BB, trocando, com a mesma, algumas mensagens a respeito dos filhos, mas não mais do que isso, e que a mesma não deixou de o insultar, ultimamente, quando o ex-marido a insultava a si.
Inquiridas na qualidade de testemunhas, as vizinhas II, JJ e KK confirmaram, por seu turno, que, inicialmente, AA e BB se comportavam com um casal “normal”, mas, ultimamente, discutiam, queixando-se a segunda de falta de dinheiro e do marido que a tratava mal, tendo chegado a ouvi-lo a gritar dentro de casa, à filha, CC, a chorar, e ao filho do casal a pedir ao pai que parasse, gritando, e, quando isso aconteceu, sentido necessidade de chamar a polícia.
Mais confirmaram que as crianças lhes pareciam tristes, nunca sendo vistas a sorrir, e que BB emagreceu muito e que chegaram a vê-la aleijada, acabando por sair, com os filhos, de casa.
Inquirido na qualidade de testemunha, o vizinho LL, neto de JJ, também confirmou que eram frequentes as discussões mantidas entre os vizinhos e que se apercebeu, numa ocasião em que lhes foi bater à porta, que a vizinha insultava o, então, marido e que, então, este lhe pediu ajuda e que pôde aperceber-se de que o mesmo era um homem “de grande fé”, tendo para si que as vizinhas se puseram “do lado” de BB porque AA era um homem corpulento que não falava português, diversamente, da esposa.
A ocorrência de tal discussão e as queixas que, então, o arguido AA fazia da assistente, BB, foram, igualmente, confirmadas pelo agente da P.S.P. que se deslocou à sua residência, MM, o qual verteu, no aditamento, de fls. 118 dos autos, o que, então, constatou e lhe foi referido por cada um deles, cujo teor, de igual modo, se valorou.
A respeito das últimas discussões que mantiveram enquanto casal, valorámos, ultimamente, as gravações juntas aos autos pela defesa e as transcrições e traduções feitas das mesmas, mas também o que o próprio arguido, AA, e as assistentes, BB e CC, puderam esclarecer a tal respeito (e não já as inferências, subjectivamente, feitas a respeito das mesmas):
• o primeiro, confirmando que fez as gravações em causa, justamente, no decurso de discussões que manteve com a assistente, BB, filmando-a nessas ocasiões porque, nas suas palavras, os próprios amigos não acreditavam em si e pretendia obter “provas”; e
• as segundas que guardam recordação daqueles momentos, mas também (1) das provocações – por banda do arguido, AA – que os precederam, dizendo à ex-mulher, nas palavras de CC, filha de ambos, “coisas que a deixavam nervosa, para depois começar a filmar”, e sorrindo para obter tais reações, (2) que BB – que, então, acumulava quatro empregos e sofria com as dificuldades financeiras que a família atravessava e que o pai/marido pouco ou nada fazia para minorar - nunca falara e não tornaria a falar naqueles termos e (3) que, depois de a primeira reagir da forma retratada naquelas gravações, mãe e filhos recolhiam – juntos - ao quarto e choravam, bem assim como (4) que a “união” de que BB fala, em tais gravações, tem na sua génese o desejo que tinha de “justiça”, por um lado, e, por outro lado, os receios da filha, CC, que já fizera saber à mãe que queria ir à polícia, para apresentar queixa, por não se sentir segura, nada tendo sido planeado no sentido de o “prejudicar”.
A este passo, urge deixar claro que, não obstante o seu teor, as imagens em questão não abalaram a credibilidade dos relatos apresentados por BB, CC e até por DD (ou qualquer outra das testemunhas que os corroboraram), justamente, porque resulta evidente da sua visualização, desde logo, que não retratam tais discussões por inteiro, não permitindo concluir o que esteve na origem das reacções (de facto, agressivas, mas também explosivas e destemperadas de BB que grita e insulta os que lhe são mais próximos, mas, simultaneamente, chora e pede “paz” e que a ajudem), reacções essas que, considerada a notícia trazida a juízo pela generalidade dos inquiridos, de que, na mesma altura, foi medicada com antidepressivos e a confirmação – feita pelos mesmos – de que nunca foi esta a sua forma de estar na vida, não podemos deixar de atribuir a esse transtorno de que ficou a padecer, por um lado, e, por outro lado (e desde logo), às condutas do arguido, AA, sendo, com toda a probabilidade, a forma como se dirigiu aos filhos – com quem é sabido que mantinha e mantém uma relação próxima - um mecanismo de defesa a que os psicólogos dão o nome de agressão “deslocada”.
BB exaspera-se com tudo e todos, nas sobreditas imagens, denotando uma instabilidade que, noutras fases (e contextos) da sua vida, não há notícia de ter experimentado, mormente, para com os filhos.
Já os filhos – que a acompanharam quando saiu de casa e têm permanecido sempre junto da mãe – choram, pedindo ao pai que pare e a ambos que se acalmem, apesar de nada resultar das filmagens que o segundo esteja a fazer, sendo essa reação dos filhos sintomática da incompletude das gravações feitas.
AA, o arguido, permanece, não raras vezes, calado e imóvel, nas aludidas gravações, limitando-se a registar, em filme, as reacções inusitadas da assistente, BB, e o sofrimento dos filhos de ambos, e, quando interage com estes, vitimiza-se e diz aos filhos, em presença da mesma, que a mãe está maluca (“mad”), formas -plácidas - de reagir que caracterizam muitos agressores, especialmente, os que usam disfarçar a sua agressividade e que é, de todo o modo, esclarecedora a respeito do propósito – confessado – da realização das gravações em causa, a justificar até o sacrifício do bem-estar dos filhos menores.
Há uma excepção, qual seja, a ocasião em que é possível ouvi-lo a exaltar-se com BB, à hora do jantar, e em que esta lhe retorque, dizendo “Chega-te mais a mim, que pego na faca e desfaço-te, filho da puta”, palavras que – desacompanhadas de imagem – permitem, apenas, alvitrar a hipótese de se ter sentido ameaçada quando o mesmo, depois (ou enquanto lhe grita), se aproxima de si (e não já, como pretende a defesa, que se haja, efectivamente, munido da faca a que alude e o tenha, com a mesma, ameaçado ou trazido, para comerem todos, carne de porco).
As imagens em questão ajudaram – em bom rigor – a compreender o impacto das actuações do arguido, AA, no bem-estar da assistente, BB, e dos filhos de ambos, mas também a escassa relevância que lhe atribuiu, optando, como explicou a filha de ambos, CC, por acicatar os ânimos, provocando as discussões e, num segundo momento, calar-se ou mudar o tom de voz, começando a filmar - para convencer os mais próximos das suas razões e obter provas contra a esposa, como o próprio fez saber – sem a poupar, apesar de já desnorteada e medicada, e aos filhos, também em sofrimento.
Já as amigas do arguido, de seus nomes FF e NN, confirmaram, por seu turno, que consigo o arguido, AA, tem um comportamento muito diferente do supra descrito, que o apoiaram, financeiramente, bem assim como o contacto esporádico que mantém com os filhos e a agressividade que a ex‑mulher e a filha manifestaram contra o mesmo, já na sequência da separação do casal.
Mais valorou o tribunal, no tocante:
• aos filhos do casal, sua naturalidade e suas datas de nascimento, às certidões dos respectivos assentos de nascimento, juntas a fls. 12 e ss.;
• à deterioração da relação marital que AA e BB mantinham ao teor das mensagens trocadas entre ambos, elucidativas da mencionada degradação;
• ao impacto, na saúde e bem-estar da assistente, BB, das condutas do arguido, a informação médica coligida junto da ... e do ...; e
• ao percurso e actual situação de vida do arguido, AA, o teor do relatório social elaborado, que o foi, desde logo, com base em entrevistas feitas ao próprio e também à assistente, contendo descrição dos mesmos.
Já no que concerne ao passado criminal do arguido, AA valorou-se o certificado de registo criminal requisitado, de cuja leitura resulta que nenhuma condenação traz averbada.
Justificou-se, por assim ser, a factualidade dada como provada, resultando a não provada do facto de ninguém a ter confirmado, resultando, de resto, dos relatos trazidos a juízo pela generalidade dos inquiridos que o arguido, AA, não protagonizou as condutas – descritas na acusação pública deduzida - que ali ficaram vertidas, nomeadamente, no que tange aos filhos mais novos, que BB nunca deixou de trabalhar, antes tendo acumulado vários empregos, que não foi, formalmente, diagnosticada com depressão, ainda que houvesse sido medicada com antidepressivos, ou sequer se “refugiou” em casa dos vizinhos, procurando-os, somente, para solicitar apoio financeiro e para se queixar do, então, marido e, no que tange à jovem CC, que a mesma namorava e mantinha relações de amizade com terceiros, próximos de ambos, ou seja, que não vivia “isolada”, mas também que BB não era – diversamente, do que a defesa pretende – uma pessoa agressiva, tendo reagido de forma agressiva, perante o, então, marido e os filhos, numa fase (final) do seu relacionamento e só nesta fase, altura em que já havia sido medicada com antidepressivos, em que acumulava vários empregos e em que o mesmo começou a gravar as discussões que mantinham, provocando-a, repetidamente, para obter determinadas reações.”
-- // -- // -- Cumpre apreciar.
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Atendendo às conclusões apresentadas são questões a resolver:
Contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
Erro notório na apreciação da prova; e
Erro de julgamento.
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Donde se retira que o recurso visa apenas a matéria de facto fixada.
Conforme resulta do nº 1 do art.º 428º do Código de Processo Penal “as relações conhecem de facto e de direito”.
A decisão sobre a matéria de facto pode ser impugnada por duas vias:
Com fundamento no próprio texto da decisão, por ocorrência dos vícios a que alude o nº 2 do art.º 410º do Código de Processo Penal (impugnação em sentido estrito, no que se denomina de “revista alargada” equivalente a “error in procedendo”); ou
Mediante a impugnação ampla da matéria de facto, a que se referem os nos 3, 4 e 6 do artigo 412º do Código de Processo Penal (impugnação em sentido lato, ou ampla, equivalente a “error in judicando” na sua vertente “error facti”).
Quanto aos vícios formais, também designados de vícios decisórios (impugnação em sentido estrito) - insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova - sendo de conhecimento oficioso, devem resultar do texto da sentença recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência, sem recurso a quaisquer provas documentadas, não se estendendo, pois, a outros dados, nomeadamente que resultem do processo mas que não façam parte daquela decisão, sendo portanto inadmissível o recurso a princípios àquela estranhos para o fundamentar, como por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento. Tratam-se, portanto, de vícios intrínsecos da sentença que afectam a construção do silogismo judiciário, limitando‑se a actuação do tribunal de recurso à sua verificação na sentença e não podendo saná-los, à determinação do reenvio, total ou parcial, do processo para novo julgamento, nos termos do nº 1 do art.º 426º do Código de Processo Penal.
Quanto à segunda modalidade (impugnação ampla), impõe-se, conforme resulta dos nos 3 e 4 daquela art.º 412º, que o recorrente especifique os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, bem como que indique as provas específicas que impõem decisão diversa da recorrida, e não apenas a permitam, demonstrando-o, bem como referir as concretas passagens das declarações que obrigam à alteração da matéria de facto, transcrevendo-as (se a acta da audiência não faz referência ao início e termo de cada declaração gravada) ou mediante a indicação dos segmentos da gravação que suportam o entendimento divergente, com indicação do início e termo (quando aquela acta faz essa referência - o que não obsta a que, também nesta eventualidade proceda à transcrição dessas passagens).
“Importa, portanto, não só proceder à individualização das passagens que alicerçam a impugnação, mas também relacionar o conteúdo específico de cada meio de prova suscetível de impor essa decisão diversa com o facto individualizado que se considera incorretamente julgado, o que se mostra essencial, pois, julgando o tribunal de acordo com as regras da experiência e a livre convicção e só sendo admissível a alteração da matéria de facto quando as provas especificadas conduzam necessariamente a decisão diversa da recorrida – face à exigência da alínea b), do n.º 3, do artigo 412.º, do C.P.P., a saber: indicação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida -, a demonstração desta imposição compete também ao recorrente” (Ac. do TRL de 16.11.2021, Procº nº 1229/17.8PAALM.L1-5, em dgsi.pt).
A clara delimitação legal decorre da circunstância desta reapreciação da matéria de facto não se traduzir num novo julgamento, mas antes num remédio jurídico, destinado a colmatar erros de julgamento patenteados e tornados perceptíveis pelo processo descrito.
Já se a decisão proferida for uma das soluções plausíveis segundo o princípio da livre apreciação e as regras de experiência, a mesma será inatacável, pelo que importa que o recorrente na indicação das concretas provas torne perceptível a razão da divergência quanto aos factos, dando a conhecer a razão pela qual as provas que indica impõem decisão diversa da recorrida (neste sentido e por todos, Ac. da R.L. de 9.1.2024 - procº nº 762/21.1PCAMD.L1).
Donde resulta ainda que para poder, com sucesso, haver possibilidade de apreciação sobre factualidade apurada (e eventualmente modificação) necessário se torna que se indiquem os pontos incorrectamente julgados, bem como as concretas provas que forcem tal mutação e o correspondente motivo.
Ou seja, em apertada síntese, o correspondente recurso de facto em ordem a ser apreciado (por isso, eventualmente a ter sucesso) tem de indicar claramente três aspectos - factos a alterar, provas concretas que impõem a modificação e porquê.
Seguidamente, o tribunal de recurso aprecia este tríplice aspecto (sujeito, entretanto ao contraditório e podendo ainda lançar mão a qualquer prova produzida) e conclui pela alteração ou manutenção, naturalmente motivando a opção.
*
Nesta conformidade e analisado o recurso, evidente se torna logo que o mesmo, ao pretender que se proceda a exame de provas concretas, portanto elementos externos ao texto da sentença, não utiliza em sentido próprio a alusão às contradições e ao erro notório.
Nem estes se verificam, manifestamente como resulta claro do que se transcreveu da sentença recorrida (já agora, sequer insuficiência para a decisão da matéria de facto, já que como veremos, a contemplada foi muito além da legalmente deprecada).
Daquela entende-se perfeitamente o que foi dado como provado ou não, ali se explanando clara e abundantemente os motivos das correspondentes opções, sem que daquele texto ressalte qualquer tipo de contradição, obscuridade ou paradoxo.
Destarte, o recurso pretende, apenas e claramente a impugnação ampla, por discordar da leitura probatória efectuada pelo tribunal.
Compreende-se a dificuldade na distinção, já que a mesma não resulta cristalina do preceituado a tal propósito no Código de Processo Penal, pois que originalmente apenas previa aquela impugnação estrita, enxertando mais recentemente a restante, ademais sem clara distinção sistemática.
Não obstante, a distinção dos conceitos é elementar e obrigatória.
E como se disse, sempre que for nítido que a pretensão recursiva é a de, unicamente, substituir a leitura probatória do recorrente, total ou em pontos determinados, sobre a levada a cabo pelo tribunal recorrido dentro dos limites da livre apreciação, o recurso de facto, nessa parte, claudica e justamente por tal motivo.
Resulta do preceituado no Código de Processo Penal sobre esta matéria que apenas séria discrepância entre o que motivou o tribunal de 1ª instância e aquilo que resulta da prova (principalmente a prestada por declarações) no seu todo e à luz de regras de experiência comum, poderá ser de molde a inverter aquela factualidade, impondo, nas palavras da lei, outra decisão.
Por isso se estabelece que, nos termos das alíneas a) e b) do nº 3 do art.º 412º do Código de Processo Penal, “quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar... os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados... as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida...”
Donde também se retira que o recurso sobre a matéria de facto não equivale a um segundo julgamento, pois é apenas uma possibilidade de remédio para apreciação em que claramente se haja errado, em face do que é possível apreciar e na correspondente fase.
Não por capricho ou acaso, posto ser apenas parte da prova por declarações a que nesta fase temos acesso - meras gravações destas - sem qualquer tipo de imediação, de oralidade reduzida e não filtrada por poder de atalhar ou emendar inúmeras perguntas ardilosas ou sugestivas, ou até mesmo feitas por intervenientes a sujeitos processuais que, nos termos da lei, não podem questionar directamente, que logo tornam imprestável, em grande parte, o que de outra forma se poderia aproveitar.
As declarações são ainda indissociáveis da atitude e postura de quem as presta, olhares, trejeitos, hesitações, pausas e demais reacções comportamentais às diversas perguntas e questões abordadas, isoladas ou entre si combinadas, bem como a regras de experiência e senso comuns à luz da normalidade dos comportamentos humanos.
Nunca se poderá ainda perder de vista a circunstância de, por princípio, ter aquela observação levado em devida conta a apreciação comunitária e o exame individual de todos os intervenientes no caso, perante o tribunal, durante a audiência e enquanto declarações são prestadas, com todas as vantagens atinentes e intrínsecas à imediação, desta resultando, sem qualquer tipo de reserva, factores impossíveis de controlar após o respectivo encerramento. De resto, tal como em relação à prova em geral, especialmente no que toca à prova por declarações e muito particularmente depois a todo o seu caldeamento com a generalidade do material probatório recolhido.
Toda a sensibilidade que ali desfila e se observa, individual, mas também geral, tem enorme importância no sentenciamento justo e é impossível apartá-lo da resposta que o tribunal irá dar ao caso concreto, em nome da comunidade.
Matéria tão importante quanto impossível de captar para futura reprodução.
Só a imediação, a par da oralidade, garante o processo e decisão justos, princípios adquiridos com segurança, vai para mais de um século.
Não por acaso, a antecedente prova escrita (a velha assentada) foi obliterada do processo português, precisamente porque, eliminando o material supramencionado, facilmente permitia a afirmação judicial de inverdades e justamente na fase de recurso.
Paralelamente, é essa a razão de ser das apertadas e exíguas possibilidades de recurso sobre a matéria de facto. Maior abertura à sua restrição aumentaria, na exacta proporção, aí sim, a hipótese de erro judiciário.
Tudo para concluir ser de primordial importância saber-se que na concreta fixação da verdade do caso influem elementos determinantes que escapam por natureza a apreciação posterior.
Neste sentido, Ac RL de 11.3.2021 procº 179/19.8JDLSB.L1-9:
“Os Tribunais da Relação têm poderes de intromissão em aspectos fácticos (art.ºs 428º e 431º/b) do CPP), mas não podem sindicar a valoração das provas feitas pelo tribunal em termos de o criticar por ter dado prevalência a uma em detrimento de outra, salvo se houver erros de julgamento e as provas produzidas impuserem outras conclusões de facto;
Normalmente, esses erros de julgamento capazes de conduzir à modificação da matéria de facto pelo tribunal de recurso consistem no seguinte: dar-se como provado um facto com base no depoimento de uma testemunha que nada disse sobre o assunto; dar-se como provado um facto sem que tenha sido produzida qualquer prova sobre o mesmo; dar-se como provado um facto com base no depoimento de testemunha, sem razão de ciência da mesma que permita a referida prova; dar-se como provado um facto com base em prova que se valorou com violação das regras sobre a sua força legal; dar-se como provado um facto com base em depoimento ou declaração, em que a testemunha, o arguido ou o declarante não afirmaram aquilo que na fundamentação se diz que afirmaram; dar-se como provado um facto com base num documento do qual não consta o que se deu como provado; dar-se como provado um facto com recurso à presunção judicial fora das condições em que esta podia operar;
Quando o tribunal recorrido forma a sua convicção com provas não proibidas por lei, prevalece a convicção do tribunal sobre aquelas que formulem os Recorrentes.”
Por isso que a lei compele os recorrentes a indicarem os pontos incorrectamente julgados e a indicar com precisão as provas e motivos que obrigam a uma resposta diversa.
Nada que se pareça com o que se vai assistindo na prática judiciária: solicitação de segundo julgamento pelo tribunal de recurso, que tratará (já agora...) de escolher as provas, ou parte delas, adequadas à finalidade pretendida.
De passagem, como será inevitável, sem dar cumprimento às citadas exigências legais de rigor – alíneas a) e/ou b) do nº 3 e nº 4 do art.º 412º do Código de Processo Penal.
Ora, como se referiu, se a decisão proferida for uma das soluções plausíveis segundo o princípio da livre apreciação e as regras de experiência, a mesma será inatacável, pelo que importa que o recorrente na indicação das concretas provas torne perceptível a razão da divergência quanto aos factos, dando a conhecer a razão pela qual as provas que indica impõem decisão diversa da recorrida (neste sentido e por todos, Ac. da R.L. de 9.1.2024 - procº nº 762/21.1PCAMD.L1).
E para poder dar lugar à possibilidade de apreciação sobre factualidade apurada (e eventualmente modificação) necessário se torna que se indiquem os pontos incorrectamente julgados, bem como as concretas provas que forcem tal mutação e o correspondente motivo.
Ou seja, de novo em resumo, o recurso amplo de facto em ordem a sequer ser apreciado (por isso, eventualmente, a ter sucesso) deve indicar claramente três temas - factos a alterar, provas concretas que o impõem e porquê.
Seguidamente, o tribunal de recurso aprecia este tríplice aspecto e conclui pela alteração ou manutenção, naturalmente motivando a opção.
Com este enquadramento e ao menos em grande parte, é patente a improcedência do recurso, como judiciosamente apontado nas correspondentes respostas.
Socorreu-se o tribunal recorrido de elementos de prova ao seu dispôr fora do alcance recursivo, como vimos, designadamente no que respeita à prova por declarações que no caso constitui o cimento para a apreciação probatória global, completada, a integrar e a complementar toda a restante, designadamente a documental.
No que à esmagadora maioria do seu conteúdo respeita, o recurso pretende seja efectuado aquele legalmente vedado segundo julgamento integral, expressando-o de forma indubitável, o que nessa medida implica a sua rejeição.
Existe, todavia, ponto fulcral da factualidade em causa que, além de identificado com precisão (ainda que titulado de forma ambígua) e justificadas as razões da correspondente pretensão de mudança, ainda especifica devidamente as provas concretas que a imporiam.
Trata-se do seguinte: “Apartir de 2018 (...) começaram os desentendimentos no “relacionamento entre o casal (...) existiram agressões verbais mútuas entre o marido e a mulher, agressões físicas mútuas entre o marido e a mulher (...).”
Tudo o mais, para além do que já se referiu, releva de ilegal pretensão de pronúncia sobre factos irrelevantes ou de dar por provados meios de prova (designadamente os que em profusão surgem alegados como factos na contestação).
Acresce, contudo, que aquela profusamente discutida precisão do início dos desentendimentos é essencial, não para dar qualquer tipo de panorâmica ou visão geral (inutilidade já mencionada) mas apenas no que respeita ao crime de violência doméstica imputado ao arguido na pessoa de CC, porquanto esta atingiu a maioridade no decurso de 2018.
Destarte, se a actuação do arguido relativamente à mesma se situou nesse ano, sem outro tipo de precisão, o crime de que a este propósito vinha acusado não se verificaria, por dúvida relativamente ao preenchimento factual de um dos elementos objectivos do tipo: a menoridade daquela.
Simplesmente, provou-se que parte dos factos pertinentes ocorreram em 2017 (durante a sua menoridade, por conseguinte) e a impugnação de facto a este propósito, de resto como relativamente a muitos outros, é inapta ao efeito, pois que se limita a adiantar não ter sido “feita qualquer prova nesse sentido”.
Ora, da motivação da sentença resulta muito claramente o inverso, já que aqueles factos resultaram da prova por declarações prestadas em audiência por ambas as assistentes.
Nestas circunstâncias, a singela conclusão sobre ausência de prova mais não é do que afirmação de discordância com a decisão, sem qualquer tipo de fundamento.
Necessário seria que se afirmasse (identificando e indicando a prova concreta) que aquelas não souberam precisar a data, por qualquer razão, ou que tivessem apontado outra e qual, quanto aos factos atinentes a CC, note-se, que constam dos números 13 a 16 dos factos provados constantes da sentença.
Não olvidar que relativamente a CC o processo corre por conexão, por desde logo ser o mesmo arguido. Mas essa circunstância não lhe retira a singularidade (basta pensar na possibilidade legal de ser separado). Ou seja, e no caso a data da ocorrência relativamente a esta assistente em nada briga com o sucedido entre o casal. E salvo se clara, indubitável e particularmente se tivesse alegado que o sucedido tinha tido lugar após tal desentendimento, assumiria relevância, pois poderia indirectamente acarretar a sua verificação já em 2018. Ora, curiosamente, o que na contestação do arguido está incontornavelmente alegado quanto ao momento de início do sucedido é totalmente diverso – em finais de 2016 quando se mudaram para o ...
Para o mais, a data daquele início é totalmente irrelevante, pois qualquer que seja, situa os factos no período relevante ao efeito (preenchimento do tipo), isto é, durante a vivência em comum.
Poderia ter relevância a duração do sucedido, desde logo para efeito de fixação das medidas das penas e dos montantes indemnizatórios atribuídos, mas, como vimos, não são objecto do recurso, pelo que a pronúncia redundaria em pura inutilidade e de novo, não excluiria a ocorrência respeitante a CC.
Ainda se refere que teria aptidão para transformar em não provados factos assentes relativos a insultos transcritos em português a circunstância do arguido não falar esta língua, mas não é claramente suficiente para o efeito, já que ou os proferiu em inglês e foram traduzidos, ou, pelo seu uso corrente, os conhecia e articulou, como é evidente.
Assim e com propriedade, cabe apreciar o recurso de facto com aquela singela extensão, não obstante, mas também por isso, com relevo que pode ser determinante. Acrescerá uma breve menção à também tradicional alegação sobre violação do princípio da inocência, a final.
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Antes ainda da apreciação do recurso, assim delimitado, logo se verifica que o teor das conclusões apresentadas, paralelas ao constante das peças processuais destinadas a fixar o objecto do processo, fazem intuir que alguma entorse se verificou nos presentes autos.
E na verdade assim sucede.
Os crimes em causa são de violência doméstica.
“Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais... ao cônjuge... a menor que seja seu descendente... no domicílio comum... é punido com pena de prisão de dois a cinco anos”, nos termos do que dispõe o art.º 152º, nº 1, a) e e) e nº 2, a) do Código Penal, sob a epígrafe “Violência doméstica.”
Logo, os factos penalmente relevantes seriam tão-somente aqueles que, trazidos aos autos, serviriam para preencher ou infirmar aquelas condutas típicas, na sua multiplicidade.
É certo ser aquele um tipo penal abrangente, mas que ainda assim se contém em proposições apreensíveis e o mais sintéticas possível, como é característica das normas penais e não só, por razões que de tão evidentes e conhecidas dispensam outro género de explanação.
Como assim e por regra, os factos a tanto ajustados não hão-de constituir um longo acervo, apto, desde logo, a penosa tramitação, julgamento e mal entendidos.
E não é por constarem de peças processuais, que circunstâncias várias, ainda que conexas com os factos bastantes para a integração da conduta no tipo penal, passam a ser objecto do processo.
Sobre o ponto a jurisprudência está firmada há muito tempo.
“... Não existe violação do artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal por nem todos os factos constantes da acusação/pronúncia e da contestação terem sido enumerados como provados ou não provados. Só os factos essenciais para a decisão da causa têm de constar dessa enumeração”, Ac. S.T.J. de 11.2.1998 em B.M.J. 474, 151.
E o que sejam tais factos essenciais foi, já há muito, alvo de doutrina do S.T.J. no seu Ac. de 15.1.1997, em C.J., tomo I, pág. 181:
“A obrigação legal de na sentença se fazer a descrição dos factos provados e não provados refere-se aos que são essenciais à caracterização do crime e suas circunstâncias juridicamente relevantes, o que exclui os factos inócuos, irrelevantes para a qualificação do crime ou para a graduação da responsabilidade do arguido, mesmo que descritos na acusação ou na contestação”.
Em acórdão de 2.6.2005 (procº 05P1441), o S.T.J, pela pena do Colendo Conselheiro Pereira Madeira, à margem do “thema decidendum”, tratou da matéria dos requisitos formais da sentença em termos que nos devem encorajar a retomar caminho interrompido há tempos por sobressaltos processuais, impensáveis quando a economia e brevidade, a par com a sua celeridade e utilidade, constituíam referências habituais na discussão forense, vindo a desaparecer paulatinamente e a dar lugar a discussões sobre descrição e prova acerca dos próprios meios de prova, da sua obtenção, ou de meios de convicção de intervenientes processuais, a par de despiciendas introduções e ilações, quantas vezes seguidas de retrocessos na marcha do processo, o qual acabava assim por ser o objecto de si mesmo, correndo ainda o risco de olvidar o crime cuja notícia lhe deu origem e única razão de ser, ainda que o tempo entretanto decorrido tenha revelado que a prática persiste, tenazmente.
Transcrevendo, “(...) importa afirmar com a frontalidade exigida na “jurisdictio” de um Supremo Tribunal, que o elenco da matéria de facto, tal como foi levado avante pelas instâncias, mormente pelo tribunal recorrido, não deixa de ser tecnicamente censurável (...) Com efeito, não se vê onde buscar assento legal para, em vez de se cingir à enunciação de factos que a lei exige – art.º 374º, nº 2, do Código de Processo Penal - se haver adoptado uma postura algo próxima do floreado relato jornalístico (...) em vez, como seria mister, desses elementos de prova se extraírem os factos e apenas os factos com relevo para a decisão da causa. São esses - e só esses - que a lei manda enunciar, procedendo-se, se necessário e na extensão tida por necessária, ao aparo ou corte do que porventura em contrário e com carácter supérfluo provenha da acusação ou mesmo da pronúncia, de que a sentença não é nem pode ser fiel serventuária. De resto, sempre ao juiz se impõe, sob pena de ilegalidade que se abstenha da prática de actos inúteis, como esse a que se acaba de fazer menção – art.º 137º do diploma adjectivo subsidiário.”
A prova, em processo penal, tem como objecto, por definição elementar e primeira, factos que à luz da lei penal substantiva constituam crime, ou o excluam.
Desde logo, a prova não é objecto de prova. Este é constituído por factos.
É o que se retira claramente do disposto no art.º 124º do Código de Processo Penal, o qual, justamente sob a epígrafe “Objecto da prova”, dispõe que “constituem objecto da prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis.
Se tiver lugar pedido civil, constituem igualmente objecto da prova os factos relevantes para a determinação da responsabilidade civil.”
Harmonicamente o nº 4 do art.º 339º do Código de Processo Penal estabelece que “a discussão da causa tem por objecto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência”.
E harmonicamente, por princípio “a discussão da causa tem por objecto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência” – nº 4 do seu art.º 339º.
E note-se, de novo, que não são todos os factos. Apenas aqueles que sejam relevantes, isto é, os essenciais, tal como a jurisprudência os designou, procedendo-se àquele corte, ainda possível.
Posto que o recurso visa apenas parcela da parte criminal do processo, definitivamente assentes as absolvições em 1ª instância, deixando ainda de fora tal pretensão no que respeita à fixação das penas e pedidos de indemnização civil, com relevância para a correspondente decisão temos como real objecto do processo a seguinte matéria de facto (e ainda assim com alguma latitude, proveniente da extrema prolixidade das peças processuais a tanto tendentes):
O arguido, em finais de 2016, começou a dirigir à sua esposa (BB, com quem era casado desde 2000) com frequência as expressões “whore”, “Vai para a rua!” e “Não vales nada!”.
Quando BB regressava a casa, o arguido, dizia-lhe “Já abriste as pernas hoje a quantos?!” e “andas a dormir com este e com aquele!”.
Chamava-lhe “demónio”, “feia”, “satânica”, “puta”, acrescentando que ia ficar com a guarda dos filhos.
Entre os anos de 2016 e 2019, com frequência, no interior da residência da família, cruzava‑se com a esposa no corredor e, ostentando uma postura ameaçadora, encostava o seu corpo ao corpo desta e dizia-lhe que não tinha medo dela e que lhe dava um soco que a fazia parar à parede.
No decurso das discussões empurrava BB e cuspia-lhe no rosto.
Em ..., e no interior da residência da família, torceu o pulso daquela, provocando-lhe dores.
No dia ........2019, pelas 23 horas, quando a mesma chegou a casa, o arguido iniciou uma violenta discussão com aquela e disse-lhe “és uma puta. Estiveste a abrir as pernas para alguém!”
No decurso do ano de 2017, o arguido começou a dizer a CC (filha do casal, nascida em ........2000) “és uma puta, e a tua mãe e a tua irmã também são!”, começou também a dizer-lhe, “quero que tu morras!”
O arguido, a partir do Verão de 2016, começou a dirigir a CC as expressões, “puta”, “bitch”, “son of a bitch” e “bitch like your mother”.
Com frequência o arguido iniciava discussões com CC questionando as roupas que esta vestia.
Chegou a empurrá-la.
Apresentava BB e CC como maus exemplos.
Agiu sempre com o propósito conseguido de molestar física e psicologicamente BB e CC, de as atingir na sua saúde psíquica, bem como de a perturbar na sua paz e sossego.
Agiu de forma livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo as condutas proibidas e punidas por lei.
A única vítima de agressões físicas foi o ora arguido e autor foi sempre BB, com comportamento constantemente agressivo entre 2018 e 2019, dirigindo-se aos filhos de ambos e arguido com impropérios e insultos como “grandes filhos da puta vocês todos”, bem como ao arguido, insultando-o e ameaçando-o, como “filho da grande puta” “Vai à puta que te pariu. Seu cabrão de merda. “Ponho-te a faca no pescoço.” Seu cabrão, que tu nem sabes aquilo que te espera”, expressando desejo de o ver expulso do país.
Agredindo o arguido com arranhões no rosto, pontapeando-o e empurrando-o contra a parede.
Referindo-se ao arguido perante os filhos com ultrajes como: “ele não quer saber de vocês. Ele não vos ama. “Ele é mau, o diabo em figura de gente.”
Chegou a perseguir o arguido esmurrando o vidro da porta do quarto até o partir.
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Tudo o mais cabe na consideração do aparo a que se fez referência, ou é irrelevante para o recurso por ausência de impugnação (desde logo, absolvições, medidas das penas e indemnizações civis).
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Como acima se viu, do objecto factual do processo e com relevância para a decisão do recurso, foi dado por provado, com pertinência, que:
Entre os anos de 2016 e 2019, o arguido começou a dirigir à sua esposa (BB, com quem era casado desde 2000) com frequência as expressões “whore”, “Vai para a rua!” e “Não vales nada!”.
Quando BB regressava a casa, o arguido, dizia-lhe “Já abriste as pernas hoje a quantos?!” e “andas a dormir com este e com aquele!”.
Chamava-lhe “demónio”, “feia”, “satânica”, “puta”, acrescentando que ia ficar com a guarda dos filhos.
Entre os anos de 2016 e 2019, com frequência, no interior da residência da família, cruzava‑se com a esposa no corredor e, ostentando uma postura ameaçadora, encostava o seu corpo ao corpo desta e dizia-lhe que não tinha medo dela e que lhe dava um soco que a fazia parar à parede.
No decurso das discussões empurrava BB e cuspia-lhe no rosto.
Em ..., e no interior da residência da família, torceu o pulso daquela, provocando-lhe dores.
No dia ........2019, pelas 23 horas, quando a mesma chegou a casa, o arguido iniciou uma violenta discussão com aquela e disse-lhe “és uma puta. Estiveste a abrir as pernas para alguém!”
No decurso do ano de 2017, o arguido começou a dizer a CC (filha do casal, nascida em ........2000) “és uma puta, e a tua mãe e a tua irmã também são!”, começou também a dizer-lhe, “quero que tu morras!”
O arguido, desde o Verão de 2016, começou a dirigir a CC as expressões, “puta”, “bitch”, “son of a bitch” e “bitch like your mother”.
Com frequência o arguido iniciava discussões com CC questionando as roupas que esta vestia.
Chegou a empurrá-la.
Apresentava BB e CC como maus exemplos.
Agiu sempre com o propósito conseguido de molestar física e psicologicamente BB e CC, de as atingir na sua saúde psíquica, bem como de a perturbar na sua paz e sossego.
Agiu sempre de forma livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que as condutas por si perpetradas eram proibidas porque punidas por lei penal.
Já no final do relacionamento que mantiveram, a assistente BB começou a responder ao arguido com insultos e pontapés aos mesmos insultos e pontapés que lhe eram dirigidos pelo mesmo, chegando a arranhá-lo para se defender.
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Perante tal factualidade, é patente o naufrágio do recurso quanto às condenações impostas no respeitante ao crime cometido na pessoa de CC, bem como a manutenção do julgado quanto ao correspondente pedido de indemnização civil, já que dependiam totalmente daquela impugnação de facto.
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Pretende o recurso que se altere aquela referência ao tipo de agressões, desde logo por se terem verificado desde o início do desentendimento e não apenas no final do relacionamento do casal, tendo sido sempre mútuas, passando a constar como provado e relevantemente que os desentendimentos no relacionamento entre o casal consistiram em agressões verbais e físicas recíprocas.
Para tanto alinham-se as concretas passagens das declarações que a este propósito fundaram a convicção do tribunal recorrido, pedindo-se a mudança pois daquelas resulta exactamente tal reciprocidade.
Ouvidas aquelas declarações, é certo que as expressões transcritas fazem parte das declarações, muito particularmente das assistentes, já que como é natural constituíram o principal meio de prova daqueles.
Todavia, menos certo não é que aquelas colocam o início dos acontecimentos nucleares até muito antes de 2016 (vinda da família para o …), até mesmo anteriormente a 2012 (quando saíram da ... para ...).
O que, se necessário fosse, resolveria questão já apreciada, no que toca à localização temporal dos factos.
Também é relatada a ocorrência de retorsão da assistente a insultos e agressões, mas nos termos assim plasmados pela sentença recorrida, ou seja, no final da relação e como resposta a atitudes do arguido.
O que coloca a questão no pleno domínio da livre apreciação do tribunal de 1ª instância. Insindicável e o que é mais importante, do mesmo passo revelando não serem afinal aquelas provas impositivas da pretendida alteração factual. É apenas a leitura feita por sujeito processual interessado no desfecho da causa.
Mais. Nesta conformidade, é escusada qualquer outra pronúncia sobre os factos, já que a esta luz, aqueles que com base na “alegação” de provas destas se poderiam retirar ocorreram em plena fase de retorsão, pelo que caldeados com as circunstâncias em que terão sucedido e que foram também explicadas pelo tribunal recorrido, nenhuma relevância têm. Seguramente não a pretendida, menos ainda terão a virtualidade de ofuscar ou apagar o passado.
Improcede, pois, o restante recurso de facto.
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Como referido, uma palavra apenas para a invocação de violação do princípio “in dubio pro reo”.
Argumento tradicional e habitual de largas décadas na prática forense, não correspondendo, todavia, por si mesmo e nos termos da lei processual vigente, a qualquer tipo de questão autónoma a tratar, posto que naquela não é previsto como causa de nenhum vício.
A eventual violação de tal princípio conduzirá a correspondente decisão a entorse factual que, a existir, necessariamente se materializará em vício legalmente regulado: erro notório na apreciação da prova, evidenciado pelo texto da mesma decisão, ou erro de julgamento revelado pelo apontar de prova concreta a impôr ambiguidade no que respeita a facto, assim e por isso incorrectamente julgado.
Destarte, serão aquelas imperfeições o real fundamento recursivo, processualmente alicerçado, a arguir e a apreciar.
Quando a alegação daquela violação surge desgarrada ou de forma subsidiária, isto é, sem qualquer ligação a qualquer figura típica legalmente prevista, trata-se, com toda a segurança, de improficuidade vazia de conteúdo.
Se a arguição de erro factual é cabal e efectivamente executada ao abrigo dos referidos institutos processuais, então dispensa, por isso mesmo, referência e tratamento autónomos, integrando-se perfeitamente na correspondente e apropriada argumentação.
Por outro lado, se efectivada fora do abrigo legal daquelas regras processuais, justamente desenhadas para a respectiva impugnação, naturalmente com propriedade, substanciação e enquadramento, trata-se apenas de alegação vaga e inconsequente, destituída de conteúdo útil, por muito tradicional e antiga que seja.
Como no caso sucede, já que nos aparece ligado àquela deslocada invocação de vetusto brocardo.
Acima se tratou de circunstância que cabe em pleno nesta apreciação.
Tivesse sido devidamente impugnado facto essencial que equivale ao ano do início do sucedido com CC e demonstrado com propriedade que teria ocorrido em 2018, sem mais precisão, então, porque a mesma alcançou a maioridade a 8.3 desse ano, por dúvida razoável quanto à menoridade daquela haveria de concluir em favor do acusado, tudo se passando como se os factos tivessem ocorrido após ........2018.
Mas sabemos que assim não foi (tal como sabemos que afinal o arguido sempre saberia pronunciar algumas palavras em português...)
A mesma acusação de violação do princípio da inocência é tanto mais deslocada porque o tribunal recorrido, perante a confirmação da admissibilidade das provas rejeitadas não se limitou ao que então foi determinado: proceder ao respectivo exame, conjugado com toda prova já produzida e elaborar nova sentença para sanar a nulidade por omissão de que padecia a primeira sentença.
Indo muito além do estabelecido (ultrapassando o decidido quanto ao recurso interlocutório, julgado improcedente por requerer patente entorse, ademais usualmente inútil – produção de prova sobre meios de prova, sabido que seja em regra bastarem-se estes a si mesmos e ter aquela apenas factos como seu objecto) acabou por proceder à exibição daquela prova documental e confronto de intervenientes com a mesma (isto é, prova por declarações tendo por objecto prova documental) oferecendo, na prática, merecimento àquele infundado recurso.
Ora, para tal prolongamento da decisão uma só explicação é possível e admissível dentro do quadro processual legal vigente: pretendeu-se que não restasse qualquer tipo de dúvida quanto a todo o ocorrido.
Como então não restou e resulta claro da sentença.
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Cumpre decidir.
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Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando na íntegra a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em três UC.
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Lisboa, 20 de Maio de 2025
Manuel Advínculo Sequeira
Sandra Oliveira Pinto
Ana Lúcia Gordinho