ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
ERRO DE JULGAMENTO
MEDIDA DA PENA
PENAS ACESSÓRIAS
REPARAÇÃO OFICIOSA DA VÍTIMA
Sumário

I- A tomada de declarações para memória futura corresponde a uma antecipação da produção de prova, com as formalidades inerentes à audiência de julgamento, ainda que devidamente adaptadas, que, no caso das vítimas de crime de tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual, tem, sobretudo, uma finalidade protetora e tutelar de tais vítimas, atendendo à especial vulnerabilidade que em regra se lhes associa (e que a lei expressamente reconhece, nas disposições conjugadas dos artigos 1º, alínea j) e 67º-A, nº 3 do Código de Processo Penal), com o especial propósito de evitar a vitimização secundária.
II- É evidente, cremos, que a inquirição de uma criança de 9 anos não pode ser levada a cabo nos mesmos termos em que se procede à inquirição de um adulto – e tal é ainda mais relevante quando o que está em causa é a alegada prática de atos sexuais de relevo sobre essa criança, factos relativamente aos quais dificilmente disporá de discernimento e estratégias de coping que lhe permitam relatá-los nos mesmos termos em que o faria um adulto. Por isso, exige-se do juiz que procede a essa inquirição um especial tato e sensibilidade, de modo a facilitar o relato, sem pré-juízos, mas, simultaneamente, garantindo à criança a disponibilidade para ouvi-la sem a violentar. E foi o que aconteceu no caso dos autos.
III- A aplicação das penas acessórias previstas nos artigos 69º-B e 69ºC do Código de Processo Penal não visa apenas proteger a vítima direta do crime cometido pelo arguido, mas afastá-lo de potenciais vítimas, salvaguardando o bem-estar das crianças a que pudesse ter acesso, atenta a significativa gravidade dos crimes em questão – não exigindo a lei que o crime pelo qual o arguido tenha sido condenado tenha sido cometido contra o menor ou menores sob a respetiva responsabilidade profissional ou parental.
IV- Ao Tribunal é imposta a obrigação de arbitrar, em relação a vítimas especialmente vulneráveis, uma quantia indemnizatória para reparação pelos danos sofridos, a suportar pelo agente do crime. A atribuição desta quantia não é regulada pela lei civil, mas nos termos do no artigo 82º-A, do Código de Processo Penal.
V- Estando meramente em causa a fixação de reparação, ainda que o legislador use o termo «indemnização», aquela deve ser fixada de acordo com a equidade.

Texto Integral

Acordam em conferência na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
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I. Relatório
1. No processo comum coletivo nº 1249/23.3PHAMD do Juízo Central Criminal de Sintra (Juiz 2), do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, foi julgado o arguido AA, filho de BB e de CC, …, nascido a ........2004, natural de ..., solteiro, residente na ..., em ..., tendo sido condenado, por acórdão datado de 19.12.2024, “pela prática de um crime de Abuso sexual de crianças agravado, previsto e punível pelos artigos 171.º, n.º 3 b) e 177.º, n.º 1, al. b) e c) do Código Penal e pelos artigos 73º, nº 1 a) e b) do mesmo Código e 4º do Decreto-Lei nº 401/82, de 23 de setembro, na pena parcial de 1 (um) ano de prisão; (…) pela prática de um crime de Abuso sexual de crianças agravado, previsto e punível pelos artigos 171.º, n.º 1 e n.º 2 e 177.º, n.º1, al. b) e c) do Código Penal e pelos artigos 73º, nº 1 a) e b) do mesmo Código e 4º do Decreto-Lei nº 401/82, de 23 de setembro, na pena parcial de 4 (quatro) anos de prisão; (…) pela prática de um crime de Abuso sexual de crianças agravado, previsto e punível pelos artigos 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, al. b) e c) do Código Penal e pelos artigos 73º, nº 1 a) e b) do mesmo Código e 4º do Decreto-Lei nº 401/82, de 23 de setembro, na pena parcial de 3 (três) anos e 6 (seis) anos1 de prisão”.
E, em cúmulo jurídico, “pela prática destes três crimes descritos de 2. a 4., na pena única de 5 (cinco) anos e 9 (nove) meses de prisão”.
Mais foi o arguido2 condenado, por cada um dos três crimes de abuso sexual, “nas penas acessórias parciais de 5 (cinco) anos de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, previstas no artigo 69.º-B do Código Penal, e condena-o nas penas acessórias parciais de 5 (cinco) anos de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, previstas no artigo 69.º-C, n.º 2 e 4 do Código Penal. E, de acordo com as regras de punição previstas nos artigos 77º e 78º do Código Penal, condena o arguido AA, na pena única de 7 (sete) anos de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores e na pena única de 7 (sete) anos de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores”.
Finalmente, foi o arguido condenado “Nos termos do artigo 82.º-A, do Código de Processo Penal, (…) a pagar € 25 000,00 (vinte e cinco mil euros), a título de montante compensatório, à vítima DD”.
2. Inconformado com a decisão final, dela interpôs recurso o arguido, formulando as seguintes conclusões:
“1- O presente recurso tem como objecto a matéria de facto e de direito do Acórdão proferido autos, a qual condenou o Recorrente prática, em autoria material e na forma consumada, de três de crimes de Abuso sexual de crianças agravado, na pena única de 5 (cinco) anos e 9 (nove) meses de prisão;
2- O Recorrente foi também condenado na pena única de 7 (sete) anos de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores e na pena única de 7 (sete) anos de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores;
3- Foi ainda condenado o Recorrente a pagar € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros), a título de montante compensatório, à vítima DD (artigo 82.º-A, do Código de Processo Penal);
4- O tribunal de 1ª Instância errou na apreciação do conjunto da prova produzida relativa aos factos sob os nºs 7, 8, 9, 10, 11, 12 e 13 e subsequente condenação do recorrente pela prática dos crimes pelos quais foi condenado;
5- Pelas razões que pormenorizadamente vêm explanadas de forma extensa e concreta no corpo da presente motivação, os segmentos e factos referidos, e ora em crise, devem merecer resposta contrária: Não Provados aqueles que erradamente ficaram assentes sob os números nºs 7, 8, 9, 10, 11, 12 e 13;
6- A condenação do Recorrente surge por via do grave erro de apreciação por parte do tribunal a quo das declarações para memória futura prestadas pela menor DD e dos depoimentos das testemunhas EE e FF;
7- O Tribunal de 1ªInstância baseou-se essencialmente nas declarações prestadas pela menor, para fundamentar o Acórdão que vem a condenar o Requerente;
8- O depoimento da Ofendida DD não foi claro, faltou espontaneidade ao mesmo, o que levou a respostas conduzidas sob a inquirição de perguntas sugestivas por parte da Magistrada Judicial, o que prejudicou de forma grave a sua sinceridade;
9- A MMª Juiz de Instrução Criminal fez uso de perguntas que, em vez de esclarecer dúvidas ou colectar relatos espontâneos, induziram a menor a confirmar factos que não haviam sido mencionados por ela de forma independente;
10- As perguntas sugestivas violam a essência do artigo 127.º do Código de Processo Penal, que exige uma análise livre e crítica da prova, e compromete a validade das Declarações para memória futura como meio de prova confiável;
11- Perante a falta de precisão, clareza e espontaneidade, deveria o tribunal de 1ªInstância ouvir a Ofendida DD em audiência de julgamento, o que não sucedeu, bem como não foi elaborado Relatório de Perícia Psicológica para aferir se a menor falava com verdade;
12- Os depoimentos das testemunhas EE (mãe da Ofendida) e FF (vizinha da Ofendida) limitaram-se a relatar o que a Ofendida lhes terá contado;
13- As testemunhas EE e FF não presenciaram os factos em causa, nem notaram nada de estranho no comportamento da vizinha DD que pudesse indiciar a existência de alegados abusos sexuais;
14- Os depoimentos das duas testemunhas consubstanciam incertezas, ambiguidades e contradições que não são, de nenhuma forma, compatíveis com o grau de certeza que uma decisão judicial condenatória exige;
15- Existe uma manifesta insuficiência de prova;
16- O Tribunal a quo não aplicou o princípio universal in dubio pro reo;
17- Uma correcta apreciação e valoração do conjunto da prova produzida impunha, como impõe, a absolvição do arguido com recurso ao princípio universalmente aceite do in dubio pro reo;
18- Como melhor se alcança das boas razões que alinhou no corpo da presente motivação, não é claro nem isento de dúvidas, portanto, não é seguro, que o Arguido tenha praticado os factos pelos quais vinha acusado;
19- O relatório de perícia médico-legal refere que “não foram encontrados sinais de lesões traumáticas na superfície corporal em geral, nem nas regiões oral, anal e genital”;
20- Pelo exposto, há errada valoração do conjunto da prova produzida e, consequente, erro de julgamento quanto aos factos tendentes a condenação do recorrente pelos crimes do artigo 171º, nºs 1 e 2, do Código Penal;
21- Caso assim não se entenda, o Recorrente está consciente da forte necessidade de se punir com rigor e uniformidade os crimes da natureza sexual, vistas as molduras penais abstractamente aplicadas, mas entende-se que as penas parcelares e a pena única que foram aplicadas in casu se mostram excepcionalmente severas;
22- A pena concreta tem como finalidade principal ser um remédio que, não pondo entre parêntesis a censura do facto, potencie a ressocialização do delinquente, principalmente quando jovem, primo-delinquente, com bom comportamento anterior e posterior aos factos, inserido familiar, social e profissionalmente;
23- O desiderato da ressocialização, tendo de ser avaliado em concreto, não pode, contudo, deixar de ter como parâmetro o inconveniente maléfico de uma longa separação do delinquente da comunidade natal, que em nada contribui para a respectiva reintegração social posterior;
24- O Recorrente era na data dos factos, menor de 21 anos, pelo que deve ser aplicado o Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de Setembro (Regime Especial para Jovens).
25- A aplicação do Regime Especial para Jovens permite que o Recorrente beneficie de uma atenuação especial da pena que se consubstancia numa redução significativa na moldura penal abstractamente aplicável dos três crimes de abuso sexual agravado.
26- A melhor apreciação da matéria de facto assente e uma correcta subsunção da mesma ao direito, quando mais, impõe a condenação do recorrente pela prática de três crimes de abuso sexual agravado, na pena única de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, com sujeição a regime de prova, a cargo da D.G.R.S..
27- As penas parcelares no caso concreto devem aproximar-se mais do limite mínimo da moldura penal abstractamente aplicável, pela qual se pugna relativamente aos factos dos quais foi vítima a menor DD e a pena única não exceder, em circunstância alguma, os 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução, com sujeição a regime de prova.
28- Entende-se que esta é a correcta apreciação da matéria de facto assente e a melhor interpretação e aplicação dos artºs. 50.º, n.ºs 1 e 2, e 53.º, n.ºs 1, 2 e 4, 71º, 77º, 170º e 171º, nºs 1 e 3 do Código Penal, coisa que o douto Tribunal a quo não fez.
29- Nesta esteira, a melhor apreciação da matéria de facto assente e uma correcta subsunção da mesma às disposições previstas nos artigos 69º-B, 69-C, 71º, 77º, 170º e 171º, nºs 1, 2, 3, al. a), todos do Código Penal, quando mais, impõe a condenação do recorrente nas seguintes penas acessórias:
- na pena única de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores;
- na pena única de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores.
30- Tal, é o que resulta de uma correcta apreciação da matéria de facto assente e a melhor interpretação e aplicação do disposto nos artºs. 69º-B, 69-C, 71º, 77º, 170º e 171º, nºs 1, 2, 3, al. a), todos do Código Penal, coisa que o douto Tribunal a quo não fez.
31- No que diz respeito à compensação fixada nos termos do disposto no artigo 82º-A do Código de Processo Penal pelos danos sofridos por DD, segundo o melhor juízo de equidade, cotejado com a modesta e instável situação económica do Recorrente, que será agravada pela prisão que lhe foi determinada, deve ser fixada em montante não superior a € 2.500,00.
32- Esta é a correcta apreciação da matéria de facto assente e a melhor interpretação e aplicação do disposto nos artigos 483º, 496 e 563º do Código Civil, e 82º-A do C.P.P., segundo o melhor juízo de equidade, o que o douto Tribunal a quo não fez.
33- Embora o Recorrente esteja neste momento sujeito à medida de coação de O.P.H.V.E., o Tribunal de 1ªInstância ignorou por completo as circunstâncias positivas, que levariam a um juízo de prognose favorável à substituição da pena de prisão efectiva por cumprimento da mesma em regime domiciliário, o que em última ratio se requer.
34- Em conclusão, o Acórdão recorrido violou por erro de interpretação e aplicação o disposto nas disposições legais supra citadas (artºs. 22.º, nº 1 e 2, al. c), 23.º, 50.º, n.ºs 1 e 2, 53.º, n.ºs 1 a 4, 71.º, 73.º, n.º 1, als. a) e b), 77.º, 78.º, 73.º, nº 1, 170.º e 171.º, nºs 1, 2 e 3, todos do Código Penal), devendo por esse facto ser nulo (artigos 374.º, n.º 2; 379.º, n.º 1, alínea a); 412.º, nº 3, todos do C.P.P. e artigo 32.º, n.º 1 da C.R.P.).
Termos em que e nos demais de direito, deve o presente recurso ser julgado procedente e em consequência:
I- ser nulo o Acórdão recorrido por errada valoração do conjunto da prova produzida e, consequente, erro de julgamento quanto aos factos tendentes a condenação do recorrente pelos crimes do artº 171º, nºs 1 e 2, do Código Penal (artºs. 22.º, nº 1 e 2, al. c), 23.º, 50.º, n.ºs 1 e 2, 53.º, n.ºs 1 a 4, 71.º, 73.º, n.º 1, als. a) e b), 77.º, 78.º, 73.º, nº 1, 170.º e 171.º, nºs 1, 2 e 3, todos do Código Penal), devendo por esse facto ser nulo (artigos 374.º, n.º 2; 379.º, n.º 1, alínea a); 412.º, nº 3, todos do C.P.P. e artigo 32.º, n.º 1 da C.R.P.);
II- ser revogado o Acórdão recorrido e substituí-lo por outro que faça uma correcta apreciação e valoração da prova produzida e, em consequência, absolva o Recorrente dos três crimes de abuso sexual agravado a que foi condenado.
Por último, por cautela, ainda sem prescindir, as penas parcelares e a pena única, assim como as penas acessórias e a compensação fixada são exageradas, devendo sofrer redução e fixação nos termos pelos quais se
pugna supra na presente motivação.
Deve-se ainda considerar a substituição da pena de prisão efectiva por cumprimento da mesma em regime domiciliário, sendo que o Recorrente reúne as condições necessárias, uma vez que se encontra em sujeito à medida de coação de O.P.H.V.E. na sua habitação, o que em última ratio se requer.
Resolvendo no sentido da procedência do recurso, só assim se decidirá de acordo com a Lei e Vossas Excelências farão inteira JUSTIÇA!”
3. O recurso foi admitido, por legal e tempestivo, com subida nos autos e efeito suspensivo.
4. O Ministério Público apresentou resposta ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pela sua improcedência. Concluiu nos seguintes termos:
“Conclui-se, em conformidade, pelo acerto do douto acórdão recorrido e, concomitantemente, pela não violação de qualquer dispositivo legal, devendo o recurso improceder in totum.
V. Ex.as, porém, e como sempre, farão JUSTIÇA!”
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5. Neste Tribunal, a Exma Procuradora-Geral Adjunta, na intervenção a que se reporta o artigo 416º do Código de Processo Penal, apresentou o seu parecer, aderindo aos fundamentos da resposta apresentada na 1ª instância, e aditando:
“(…) analisados os fundamentos do recurso, bem como o acórdão recorrido, nesta sede e no mais, acompanhamos a bem elaborada e fundamentada resposta do digno magistrado do Ministério Público junto da 1.ª Instância, ao recurso interposto pelo arguido AA, quando pugna pela improcedência do recurso.
Entendemos que o magistrado do Ministério Público na primeira instância identificou corretamente o objeto do recurso, respondeu a todas as questões de modo claro e esclarecedor, pelo que aderimos, na íntegra, à resposta apresentada, a qual damos aqui por reproduzida.
Na verdade, e como veremos, o acórdão recorrido, a nosso ver, mostra-se acertado e devidamente fundamentado, não nos merecendo nenhum reparo ou censura.
Vejamos.
O recorrente limita-se a divergir subjetiva e genericamente na avaliação da prova produzida com recurso a uma argumentação de valoração apoiada em apelos de vida pessoal e não apoiada em elementos de prova concretamente impositiva de sentido contrário à decidida pelo tribunal recorrido.
No entanto, e contrariamente à posição negatória, artificial, sem emoção e preparada do próprio arguido que evola da motivação de recurso, apesar de ter prestado declarações parcialmente confessórias, há que referir que, e como bem se fundamenta no acórdão recorrido, que a ofendida, apesar da sua pouca idade, foi uma testemunha credível que prestou depoimento sincero, genuíno, e, descreveu de modo claro o essencial dos atos que o arguido a obrigou a suportar.
Aliás, o tribunal fundamenta passo a passo, ato a ato, com enorme rigor, o motivo(s) por que deu como provado cada um dos factos e atos em apreciação nestes autos.
Assim, e por isso mesmo, o Tribunal que julga em primeira instância, goza de ampla liberdade de movimentos ao eleger, dentro da globalidade da prova produzida, os meios de que se serve para fixar os factos provados.
Ora, a questão fundamental é que o tribunal recorrido adquiriu a convicção firme sobre o facto e fundamentou o juízo crítico sobre a prova em que suportou tal convicção de acordo com as regras da lógica e da experiência comum.
A ser assim, no exame crítico levado a efeito o Tribunal recorrido seguiu um processo lógico e racional na apreciação da prova, tendo esta sido apreciada segundo as regras da experiência e da livre apreciação, nos termos do disposto no art.º. 127.º do Código de Processo penal.
Assim, entende-se que não deve haver lugar à alteração da decisão sobre a matéria de facto e, consequentemente, deve improceder a impugnação sobre a matéria de facto.
Não se mostra violado o princípio do in dúbio pro reo, o qual só tem aplicação quando o tribunal não consegue ultrapassar dúvida razoável e persistente acerca dos factos, o que seguramente não ocorreu no caso sub judice, tendo o tribunal explicitado o modo como formou a sua convicção para dar como provados os factos e os crimes pelos quais condenou o recorrente.
3.2.2. Das medidas das penas
Contrariamente ao que alega o recorrente, as penas parcelares, únicas e acessórias mostram-se justas, adequadas aos factos e aos crimes em presença, de acordo com a culpa do arguido e as razões de prevenção, geral e especial.
Os crimes em causa, cometidos contra uma criança (prima do arguido), assumem uma enorme gravidade, sendo rejeitados pela comunidade e geradores de alarme social.
As razões de prevenção geral são por isso muito elevadas.
Acresce que o arguido não fez qualquer exercício de autocensura e muito menos de arrependimento, pelo que as necessidades de prevenção especial são também muito elevadas.
Tendo em conta as molduras penais aplicáveis aos crimes em apreço, as penas parcelares, únicas e acessórias, mostram-se adequadas à culpa e às necessidades de prevenção, afigurando-se-nos que qualquer redução de penas não satisfaria tais necessidades.
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Pelo exposto, e salvo o devido e muito respeito por diferente opinião, somos do parecer que o recurso interposto pelo arguido deve ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se na íntegra o acórdão recorrido.”
6. Foi cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não tendo o recorrente apresentado resposta.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.
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II. Questões a decidir
Como é pacificamente entendido, o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso3.
Atentas as conclusões apresentadas pelo recorrente, que traduzem as razões de divergência do recurso com a decisão impugnada – o acórdão proferido nos autos – são questões a examinar:
- existência de erro julgamento quanto aos factos provados 7 a 13;
- violação do princípio in dubio pro reo;
- erro de direito no que se refere à medida das penas, principais e acessórias, e execesso quanto ao montante arbitrado a favor da vítima.
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III. Da decisão recorrida
Com interesse para as questões em apreciação em sede de recurso, consta da decisão recorrida:
“II – FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO:
Discutida a causa, o Tribunal considera provados os seguintes factos, com relevância:
1. O arguido AA nasceu a ... de ... de 2004.
2. DD nasceu a ... de ... de 2014.
3. O arguido AA é primo de DD.
4. Na data dos factos infra descritos, o arguido AA residia na ..., em ....
5. DD, nesse período, residia com a sua mãe, uma irmã e dois tios na ..., em ....
6. Em diversas ocasiões e atenta a relação familiar entre o arguido AA e DD, esta ficou à guarda do arguido e dos familiares deste, na residência do arguido enquanto a sua mãe trabalhava.
7. Em data não concretamente apurada, mas seguramente situada no ano de 2022, quando a DD se encontrava com o arguido AA, na residência deste e aproveitando-se que estavam ambos sozinhos, o arguido AA aproximou-se da menor que se encontrava sentada na sala e exibiu-lhe, num telemóvel, um vídeo pornográfico no qual eram exibidas relações sexuais entre adultos.
8. Após, o arguido AA, com uma das suas mãos, retirou o seu pénis do interior das calças e exibiu-o à menor DD.
9. Igualmente em dia não concretamente apurado, mas seguramente situado entre o ano de 2022 e o dia ... de ... de 2023 quando o arguido AA e DD se encontravam sozinhos na residência do arguido, a menor DD solicitou a este que lhe desse bolachas com leite, tendo o arguido respondido à ofendida que apenas o faria se lhe deixasse dar beijinhos na sua vagina.
10. Nessa mesma ocasião, o arguido AA com as suas mãos desceu as cuecas que DD trajava e, de seguida, colocou a sua língua na vagina da menor, lambendo-a.
11. No dia ... de ... de 2023, o arguido AA pernoitou na residência da menor DD.
12. Em hora não concretamente apurada, mas de noite, AA deitou-se na cama de DD, a qual permanecia deitada com o seu tio GG, ficando a menor no meio, entre o seu tio e o arguido.
13. Nessa ocasião, enquanto GG dormia, o arguido AA aproximou-se de DD e colocou uma das suas mãos por dentro das cuecas que esta trajava, na vagina da menor, friccionando-a com os seus dedos, apenas tendo parado porquanto a menor se abraçou ao tio GG.
14. O arguido AA sabia que DD era menor de idade e sua prima, à data dos factos com 8/9 anos de idade, e que ao posicionar os seus dedos e a sua língua na vagina daquela, friccionando-a, colocava em causa o livre desenvolvimento da personalidade na esfera sexual e a liberdade sexual da ofendida, o que quis e conseguiu.
15. O arguido AA, ao agir do modo descrito contra a sua prima menor, atuou movido pelo desejo de satisfazer os seus instintos sexuais, aproveitando-se do fácil contacto e da relação de confiança e familiar que mantinha com a sua prima, menor de idade e da ingenuidade desta bem como da sua particular vulnerabilidade em razão da idade, bem como do natural ascendente que sobre ela mantinha, o que representou e concretizou.
16. O arguido tinha ainda perfeito conhecimento das consequências psicológicas que o seu comportamento provocava na ofendida menor, quer por causa da sua idade quer pela relação de parentesco, aproveitando-se da sua especial vulnerabilidade, o que quis e conseguiu.
17. O arguido estava ciente de que a sua relação familiar propiciava um contacto estreito e frequente com a DD, gerando com esta uma relação de dependência que limitava a possibilidade desta opor resistência aos atos libidinosos que sobre ela praticava.
18. Ao assumir os comportamentos supra referidos, o arguido pretendeu valer-se e valeu-se sempre, da relação de dependência que havia estabelecido com a menor.
19. O arguido AA agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
20. Em 2022, AA, vivia com a mãe e com o seu irmão de oito anos e um primo de 14 anos, na morada constante do TIR.
21. A habitação corresponde a um imóvel urbano, descrito como possuindo adequadas condições de acomodação e habitabilidade, cedida por familiar, mediante o pagamento de uma renda de 500€ mensal.
22. O agregado reside nesta habitação desde ... de ... de 2021, pelo que a situação habitacional se mantém idêntica na atualidade, com exceção da saída do primo do arguido que regressou a ....
23. A zona de residência é considerada uma zona urbana sensível.
24. AA é o único filho comum dos pais.
25. O pai, após acidente sofrido em ..., ficou com sequelas traumáticas, que têm motivado, até à atualidade, problemas de saúde mental.
26. O casal viveu junto cerca de 10 anos, altura em que se separou.
27. A mãe do arguido refez a vida marital com um outro companheiro.
28. Desta relação nasceu o irmão mais novo do arguido, HH, que tem, atualmente, oito anos.
29. Esse relacionamento também não persistiu.
30. Em 2019, a mãe veio trabalhar para Portugal, e trouxe os filhos menores consigo.
31. A mãe é trabalhadora-estudante e verbaliza que quis proporcionar aos filhos uma melhor perspetiva de futuro.
32. O arguido mantinha, em 2022, interação social e relacionamento descrito como próximo e positivas com tias, primos e outros elementos da família alargada, residentes em Portugal.
33. A mãe do arguido, assume uma postura de protecionista e cuidadora do filho.
34. Em 2022, o arguido frequentava o ensino secundário, mas dava mostras de preferir a atividade laboral.
35. Na atualidade, AA frequenta curso profissional de 12 meses, sem equivalência académica, para obtenção de certificação especializada em …, por ser da sua área de interesses e completamente realizável por via remota.
36. Dedica entre uma hora a cinco horas diárias ao curso, dependendo das atividades diárias.
37. AA ao nível escolar, não teve dificuldades até ao 9º ano de escolaridade, nível escolar que veio completar já em Portugal.
38. Posteriormente, fez duas tentativas de vir a completar o 10º ano de escolaridade, sem sucesso, em escolas locais e, em 2023/2024, estava já em situação de abandono.
39. Teve dificuldades com a exigência e disponibilidade para os estudos, na medida em que iniciou atividade laboral em 2023, com crescente dedicação de número de horas.
40. Trabalhou, primeiramente, em … e, posteriormente, em ….
41. O arguido trabalhava de forma remunerada e com descontos, há mais de um ano, à data da sua detenção, desenvolvendo, de forma complementar, atividade como …, em ocasiões diversas.
42. AA, em 2022, trabalhava em ..., com rendimentos mensais de, aproximadamente, € 800,00.
43. Em ... de 2024, auferiu o vencimento de € 592,75, após abonos e descontos.
44. Com esse valor, assegurava as suas despesas pessoais e apoiava, de forma regular, as despesas familiares.
45. Na atualidade, AA subsiste do salário da mãe, que é …, no valor de €1100,00.
46. Aquela tem um volume de despesas fixas mensais de € 900,00 (com renda, consumos domésticos e bens alimentares essenciais), às quais acrescem a propina formativa do curso do arguido, no valor de € 165,00, desde ... de 2024.
47. O facto de AA, não contribuir para o agregado a nível financeiro, veio a agudizar a situação fragilizada do agregado.
48. E exigiu que a sua mãe desenvolvesse uma atividade secundária, na área de serviços, para conseguir pagar as despesas.
49. O arguido verbaliza que, reganhada a liberdade, pretende retomar a atividade laboral, na área de … ou …, com vista à sua futura autonomização.
50. O arguido, em 2022, descansava, fazia passeios e desporto, entre os concelhos de … e ....
51. Na atualidade, AA, beneficia das visitas de amigos e familiares e, em particular, da sua namorada de há dez meses, II, de 18 anos, estudante do 11º ano.
52. Está menos presente nas redes sociais e tem menor disponibilidade para socializar.
53. O relacionamento de namoro iniciou-se no final de ... de 2024 e tem evoluído de forma positiva, havendo, de ambos, investimento afetivo e sexual, assim como a perspetiva de continuidade.
54. II está a par do atual processo judicial.
55. O arguido, atualmente, dedica-se a iniciar/concluir pequenos projetos, por aptidão para … e ….
56. O arguido não tem qualquer condenação averbada no seu registo criminal.
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Factos não provados, com relevância para a causa:
a. Que na situação descrita em 7., o arguido AA tocasse com a sua mão na vagina da ofendida DD, por dentro das calças e cuecas, tendo friccionado com dois dedos a vagina daquela;
b. Que em dia não concretamente apurado, mas seguramente situado no ano de 2022, no interior da sua residência, o arguido AA aproveitando-se novamente de estar sozinho com a ofendida DD, tenha colocado uma das suas mãos na vagina desta, por dentro das calças e cuecas, tendo friccionado com dois dedos a vagina de DD.
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Motivação da Decisão de Facto
A convicção do tribunal, quanto à dinâmica dos factos assentes e sua configuração, resulta do confronto das declarações produzidas pelo arguido, com as declarações para memória futura produzidas por DD, com os depoimentos de EE e de FF, com o relatório de clínica forense de fls. 12 e com o assento de nascimento de fls. 255.
O arguido tem declarações, em audiência, que não divergem muito das produzidas em sede de primeiro interrogatório.
De forma pouco espontânea e despida de emoções, em concreto da indignação que é transversal a pessoas injustamente acusadas de fatualidade tão estigmatizante, o arguido admite ter atuado perante a menor DD, apalpando-a, ainda que negue a restante matéria.
Assim, o arguido afirma desconhecer a idade precisa da sua prima, mas ainda que evasivamente, acaba por reconhecer que sabia que esta teria uma diferença, em relação a si, de cerca de 10 anos.
O arguido admite os factos vertidos em 4. e 5. da acusação, bem como em 6, esclarecendo que a menor ficava entregue a si sobretudo aos Sábados e Domingos.
O arguido rejeita que alguma vez tenha exibido um vídeo pornográfico à DD, ou que lhe tenha exibido o pénis.
No entanto, reconhece que quando frequentava o 9º e estava preste a passar para o 10º ano, pôs a mão sobre a roupa da prima, mas na zona da vagina e das pernas.
O arguido não consegue, no entanto, justificar a razão pela qual atuou desta forma, justificando-a, genericamente, como ato de rebeldia e por “curiosidade”. E não rejeita que tivesse, nessa altura, mais de 16 anos.
O arguido, rejeitando a seguinte fatualidade, admite os factos assentes em 13 e 14.
Afirma o arguido que esteve a ver no seu telemóvel, conjuntamente com a DD e com o tio “GG”, uma série na Netflix. Assim, permaneceram os 3 lado a lado, na cama.
A DD, afirma, adormeceu com a cabeça no peito do tio GG, que tinha cerca de 27 a 30 anos de idade.
E esclarece que, na mesma divisão, estavam e pernoitaram, a mãe da DD, bem como o namorado desta e a filha mais nova. E, no sofá, dormiu, ainda, uma amiga da mãe da DD.
Quando amanheceu, a DD foi para a Igreja com a FF e com a irmã desta.
O arguido declara que falou com a DD, pela manhã, normalmente.
Depois, o arguido foi comprar bens para o pequeno almoço e a DD voltou para tomar o pequeno almoço, tendo regressado, depois, para casa da vizinha, pretendendo insinuar, assim, que a menor estava serena e sem se queixar do que quer que fosse.
O arguido justifica, depois, esta denúncia com a circunstância da sua mãe e da mãe da DD estarem de relações cortadas, mas reconhece que isso não o impedia de ficar em casa da sua tia, que o recebia, como se alcança da descrição que faz da pernoita na casa e do pequeno almoço, de braços aberto.
O declarante afirma que o corte de relações entre as duas irmãs remontava à altura do COVID e do confinamento, numa altura em que a sua mãe emprestou a casa à tia e esta teria levado um homem para a cama daquela.
Em sede de últimas declarações, o arguido já assume que a única coisa que fez foi pôr a mão duas ou três vezes.
Reproduzidas, em audiência, as declarações produzidas para memória futura pela DD, ressuma que o seu relato é credível e objetivo.
O relato espontâneo (em discurso aberto) não é muito extenso, mas suficiente, sendo completado com questões mais diretivas, não sugestivas.
Não se percecionam motivações ou ganhos secundários que justifiquem uma mentira ou sugestionamento por parte de terceiros.
E também não se identificam indicadores que possam remeter para uma situação de fantasia por parte da criança.
A menor, quando inquirida, tinha 9 anos, demonstrando extrema maturidade atenta a forma como se expressa e a capacidade de descrição dos factos.
A criança conta que o AA é seu primo.
Questionada sobre a pessoa a quem contara o sucedido, esta declara que foi a sua vizinha FF.
Ao ser solicitado à menor que efetuasse o relato da situação, comove-se, pelo que nos deparamos com uma manifesta reativação emocional, espontânea e sincera.
A testemunha, num registo naturalmente contraído, declara que, em determinado dia, que não precisa, estava na casa da tia, a brincar. A sua irmã estava na sala com os dois primos pequenos, enquanto a depoente estava a brincar noutra divisão.
O arguido estava, igualmente, na sala.
Porque estava com fome, em determinada altura, a depoente pediu comida ao primo, o aqui arguido, e este foi com ela para a cozinha. No entanto, o primo não lhe deu logo comida.
E afirma, ele disse-lhe que dava comida se ela “deixasse fazer uma coisa”.
O arguido começou “logo a fazer”. Puxou-lhe as calças para baixo e lambeu a sua “parte íntima”.
A depoente disse para parar (o que é sintomático do desconforto da menor) e ele parou.
Sendo-lhe perguntado, a testemunha esclarece que o arguido “apenas” a lambeu uma vez.
Ainda que não se lembre que dia era, afirma que era sábado ou domingo
A sua mãe tinha ido trabalhar e não tinha ninguém para ficar com ela, para além do arguido.
Espontaneamente, conta que esta situação, ocorrida em casa do arguido, foi, cronologicamente, a segunda.
Assim, retroagindo, na sua narrativa, à primeira situação, a testemunha conta que a sua irmã estava, no quarto do AA, a dormir. E a testemunha estava com o arguido na sala de estar.
Em determinada altura, o arguido pediu o telemóvel dela e começou a pesquisar uma coisa no Google. Depois, ele exibiu o que estava a dar no telemóvel, que colocou no respetivo colo.
E solicitado que esclarecesse o conteúdo do vídeo, a menor afirma que se visualizava “uma mulher e um homem” que estavam “a fazer sexo”.
No que demonstra, uma vez mais, o incómodo da menor com a situação, esta declara que saiu dali (fugiu).
O arguido tirou o vídeo e devolveu-lhe o telemóvel, tendo a menor voltado a fazer o que estava a fazer.
Referindo-se à terceira situação, a menor identifica-a como tendo ocorrido na sua própria casa. Explica a menor que o arguido pernoitou ali, na cama do tio, após ter vindo do trabalho.
A menor, de forma espontânea, revela que, quando estava a dormir, o arguido “mexeu na sua parte íntima”, com a mão. Precisa que ele meteu “um dedo” na “parte íntima”.
A menor esclarece que, aí, o arguido tocou com o dedo, mas não “meteu o dedo”, rejeitando, assim, que tivesse ocorrido introdução daquela parte do corpo do arguido. “Só à entrada”, reitera a menor, mesmo após a insistência da Mmª Juiz de Instrução, o que reforça a certeza de que o seu depoimento é seguro e pouco permeável a sugestionamentos. Conta a menor que o arguido “esfregou para baixo e para cima e à roda”. E a depoente, aflita, encostou-se ao tio.
A menor, no que é, mais uma vez, sinal inequívoco do mal estar e incómodo vivenciado, revela-nos, de forma impressiva, que ela foi beber água e que, ao regressar à cama, se deitou na parte de cima “para ele não voltar a incomodar”.
A menor esclarece que, apesar deste reboliço, o seu tio não acordou.
E, questionada, esclarece, de forma mais uma vez espontânea, que também viu a “parte íntima” do arguido naquele dia em que ele lhe mostrou o vídeo, ou seja, afirma que o arguido lhe exibiu o pénis. E responde que quando ele lhe mostrou o vídeo, não tocou na “parte íntima” dela.
Concretizando o que entendia por “fazer sexo”, a criança explica que, no vídeo exibido pelo arguido, o homem “usava a pila dele”. Ele punha a pila “na parte íntima da mulher”, explicando, pelas suas palavras, assim, que o indivíduo do sexo masculino penetrava a vagina da mulher.
Solicitado que esclarecesse, a menor não teve capacidade de descrever como estava o pénis do arguido quando lhe foi exibido.
E confirma que a sua vizinha FF é que foi contar à sua mãe, reconhecendo que não tomou essa iniciativa.
A depoente afirma que após esta revelação, jamais voltou a estar com o AA.
Destarte, o depoimento da menor não permite confirmar os factos descritos em 9. e em 10. da douta acusação, mas corrobora, de forma segura e espontânea a matéria factual remanescente, tal como se dá, agora, por assente. Dividindo-a em três momentos e ações distintas.
E note-se que, solicitado ao arguido que comentasse as declarações que ouvira à menor, este, num ato de ingenuidade, mas que é revelador da credibilidade do discurso da DD, corrige que esta estava sentada à porta do quarto da sua mãe, referindo-se, assim, a um pormenor que sempre lhe seria supérfluo e impossível de se recordar, considerando que, na sua perspetiva, nada se passara.
EE, tia do arguido e mãe da DD, tem um depoimento absolutamente escorreito, espontâneo e objetivo.
Esta confirma que apenas descobriu o que se estava a passar através da sua vizinha.
Informada por esta, a testemunha, ao chegar a casa, perguntou à filha o que se passava com o arguido e esta confirmou.
A testemunha afirma, da forma convicta, ainda, que confrontou o arguido e que este não negou os factos, sendo que o tribunal se apercebe que esta parte do depoimento é particularmente acompanhada pelo arguido com um sinal de assentimento, acenando com a cabeça. EE completa, mais adiante, que o arguido lhe admitiu, quando ela o confrontou diretamente em frente à própria mãe (a sua irmã) com o facto da prima dizer que ele tinha tentado introduzir o pénis na vagina, que o tentou, efetivamente, por três vezes.
A depoente, de forma fundamentada, explica que apesar de ter tido problemas com a mãe do arguido, sempre o apoiou, afirmando, por diversas vezes, de forma convincente que uma coisa eram os problemas das duas irmãs, outra era o relacionamento destas com os sobrinhos.
Pelo que a testemunha sempre incentivou, mesmo depois do corte de relações, que a sua filha visitasse e convivesse com a tia e com os primos.
A depoente conta, ainda, que vivia, desde 2020, na ..., na ....
O arguido viveu com a madrasta da depoente e, depois, foi, com a mãe, para o ..., para uma casa perto da casa da madrasta.
E assevera que, entre 2022 e 2023, era normal frequentarem a casa uns dos outros.
A depoente chegou a dar dinheiro ao arguido para ficar com as suas filhas, quando trabalhava ao fim de semana, sendo uma forma de se apoiarem mutuamente.
No entanto, não era frequente o aqui arguido pernoitar em sua casa, de tipologia T0.
A última vez que ele ficou em sua casa foi na noite que antecedeu a revelação dos factos pela sua filha. Sendo que após a revelação se seguiu a imediata denúncia.
Nessa noite, pernoitaram na casa para além da depoente e do arguido, o seu namorado, a DD e o primo JJ (que é conhecido por GG).
O arguido ficou a dormir na mesma cama do seu primo (GG), onde também dormiu a DD.
Informa a testemunha que a DD, já em 2023, num sinal que não percebeu, afirmou que não queria ir a casa da tia.
Referindo-se ao que a sua filha lhe narrou, a depoente conta que a DD lhe disse que o arguido tentava “meter a coisa na parte íntima” e que ele baixava as calças. E afirma que a DD lhe disse que o arguido atuou, assim, perante ela, 5 ou 6 vezes.
A testemunha revela, ainda, que a filha lhe contou, ainda, que o arguido “meteu a língua”.
A depoente foi ao encontro da sua filha, quando a mãe da FF lhe telefonou para o trabalho a dizer que se tinha passado uma coisa séria.
E encontrou a sua filha DD, muito chorosa, em casa da sua vizinha, evidenciando que tinha medo de ir para casa.
A DD chorou muito em frente a si e jurou-lhe que era tudo verdade o que afirmava.
A depoente, corroborando o depoimento da filha, assevera que esta não mente e que não tem tendência a efabular.
Em determinado momento, após esta revelação, as notas da filha começaram a descer, pelo que a depoente falou com a Diretora de turma.
E após uma abordagem pedagógica, a menor conseguiu recuperar as notas.
FF tem, igualmente, um depoimento muito credível e objetivo.
A testemunha, que tem atualmente 19 anos, declara que conhece o arguido como sobrinho de uma sua ex-vizinha chamada EE.
A filha desta sua vizinha andava na mesma escola do seu irmão, pelo que as relações se estreitaram.
Num dia em que tinha ido à Igreja com o seu irmão e com a DD, ao regressarem a casa da testemunha, a DD pediu para falar consigo. E disse que o que ia dizer ia fazer com que ela ficasse a pensar mal do AA.
E, encorajada a dizer a verdade, a menor disse-lhe que o “AA fazia sexo com ela”.
A testemunha explicou à criança que tinha que partilhar aquela informação com a sua própria mãe, pois tinha só 18 anos, explicando que sentiu que era um grande fardo para si.
A DD asseverava-lhe que o arguido metia a mão na sua “parte íntima”.
E esclareceu-lhe que a última vez tinha acontecido na noite anterior.
A menor, ao contar estes acontecimentos, pareceu-lhe nervosa, tendo chorado mais à sua frente quando, através da verbalização da situação (e, depreende-se, da reação dos adultos) percebeu que era uma situação “muito séria”.
A testemunha estava presente quando a DD chorou.
E esclarece que a sua mãe “fez as perguntas todas”, numa abordagem mais experiente.
A depoente não ficou, assim, com qualquer dúvida sobre a genuinidade do relato da menor, sobretudo depois das perguntas feitas pela sua mãe.
Do convívio que manteve com a DD, a depoente não tem dúvidas de que esta é uma menor reservada, com interesses próprios da idade, que não demonstrou, jamais, qualquer interesse por assuntos de sexo.
Ora, estes dois depoimentos destas testemunhas corroboram plenamente o depoimento da menor DD, avalizando a credibilidade do discurso da menor.
Sendo que as declarações do arguido são insuscetíveis de infirmar essa convicção, atentas as incongruências e falta de espontaneidade. Mais, o arguido acaba por admitir, inegavelmente, uma situação de um apalpão na zona da vagina para, depois, em sede de declarações finais, assumir ter atuado assim, de forma que sabia proibida, por 3 vezes.
O relatório pericial de fls. 13 é insuscetível de comprovar qualquer agressão sexual, mas demonstra que a menor tinha uma idade aparente semelhante à idade cronológica, que resulta assente com base no certificado de assento de nascimento de fls. 255.
Assim, para além de ser familiar da menor, o arguido não poderia deixar de perceber, também pela aparência da menor, que estava a lidar com uma criança muito nova e especialmente vulnerável.
A prova dos factos assentes de 14. a 19., ligados à vontade e à vida interior do arguido, são projetados, no exterior, de acordo com regras de experiência comum, pelo comportamento assumido pelo arguido e pelo que ora se deu por assente. E resultam, além do mais, das considerações já expendidas a propósito das declarações do arguido que não poderá deixar de conceber, à data da prática dos factos, da ilicitude da sua atuação.
O Tribunal alicerçou a convicção dos factos relativos às condições económicas e sociais do arguido e do desenvolvimento da sua personalidade e percurso de vida, no relatório social junto aos autos e nas declarações produzidas pelo próprio.
A ausência de antecedentes criminais está demonstrada pelo certificado de registo criminal junto aos autos.
Os factos que se deram por não assentes justificaram-se pelo que ficou dito e pela falta de qualquer meio de prova que os confirmasse, para além de uma dúvida razoável.”
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IV. Fundamentação
iv.1. do recurso em matéria de facto – erro de julgamento
Nas conclusões apresentadas insurge-se o recorrente contra a matéria de facto fixada pelo Tribunal a quo, argumentando ter sido injustificadamente valorado o depoimento da vítima DD, e, em sentido inverso, desconsideradas as suas declarações.
Insiste que não se produziu qualquer prova quanto aos abusos sexuais, por não merecer a ofendida crédito, e ser indireto o conhecimento revelado pelas restantes testemunhas.
Reclama, em consequência a sua absolvição.
Vejamos.
Como resulta do disposto no artigo 428º, nº 1, do Código de Processo Penal, os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito, do que decorre que, em regra e quanto a estes Tribunais, a lei não restringe os respetivos poderes de cognição.
A matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, no que se denomina de «revista alargada», cuja indagação tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos para a fundamentar4, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento; ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se reporta o artigo 412º, nos 3, 4 e 6, do mesmo diploma legal, caso em que a apreciação se alarga à análise da prova produzida em audiência, dentro dos limites fornecidos pelo recorrente, só podendo alterar-se o decidido se as provas indicadas obrigarem a decisão diversa da proferida [assim não podendo fazer-se caso tais provas apenas permitam uma outra decisão, a par da decisão recorrida - neste último caso, havendo duas, ou mais, possíveis soluções de facto, face à prova produzida (o que sucede, com algum grau de frequência, nomeadamente nos casos em que os elementos de prova recolhidos são totalmente opostos ou muito contraditórios entre si), se a decisão de primeira instância se mostrar devidamente fundamentada e couber dentro de uma das possíveis soluções face às regras de experiência comum, é esta que deve prevalecer, mantendo-se intocável e inatacável, pois tal decisão foi proferida de acordo com as imposições previstas na lei (artigos 127º e 374º, nº 2 do Código de Processo Penal), inexistindo assim violação destes preceitos legais] – cf., por todos, o acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 02.11.20215.
A reapreciação só determinará uma alteração à matéria fáctica provada quando, do reexame realizado dentro das balizas legais, se concluir que os elementos probatórios impõem uma decisão diversa, mas já não assim quando esta análise apenas permita uma outra decisão6.
Assim, quando se visa impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto na modalidade ampla, as conclusões do recurso, por força do estabelecido no artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal, têm de discriminar:
a) Os concretos pontos de facto considerados incorretamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados.
A especificação das «concretas provas» só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.
Finalmente, a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cf. artigo 430º do Código de Processo Penal).
Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na ata, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação (não basta a simples remissão para a totalidade de um ou vários depoimentos), pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (nos 4 e 6 do artigo 412º do Código de Processo Penal), salientando-se que o Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão nº 3/20127, fixou jurisprudência no sentido de que: «Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações».
As menções feitas nas alíneas a), b) e c) dos nos 3 e 4 do referido artigo 412º estão intimamente relacionadas com a inteligibilidade da própria impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto. É o próprio ónus de impugnação da decisão sobre a matéria de facto que não pode considerar-se minimamente cumprido quando o recorrente se limite a, de forma vaga ou genérica, questionar a bondade da decisão fáctica.
Na verdade, o que decorre dos requisitos legais supra enunciados é algo simples – cabe ao recorrente enunciar qual a factualidade concreta que se mostra mal apreciada e discutir os diversos segmentos probatórios que, no seu entender, deveriam fundar uma diversa apreciação relativamente a tais pontos de facto.
Efetivamente, não basta afirmar sumariamente que A. ou B. disse isto ou aquilo, que não corresponde ao que foi dado como assente; necessário se mostra que o recorrente, com base nesses elementos probatórios, os discuta face aos restantes e demonstre que o raciocínio lógico e conviccional do tribunal a quo se mostra sem suporte, na análise global da prova a realizar, enunciando concretamente as razões para tal.
No caso, analisadas as conclusões do recurso (e a motivação que as precede), constata-se que o recorrente, apesar de referenciar os factos provados nos 7 a 13 como incorretamente julgados, reporta-se, nessa indicação, a toda a factualidade que justificou a sua condenação (excluída, no entanto, dos aspetos subjetivos contemplados nos factos provados nos 14 a 19, que não foram impugnados). Por outro lado, para justificar a sua posição, limita-se a manifestar a opinião de que as declarações da vítima não merecem credibilidade, mais apontando a sua negação dos factos, que, no seu modo de ver, deveria conduzir o Tribunal a um estado de dúvida inultrapassável.
Face a tal alegação, resulta evidente que não foram apontadas pelo recorrente quaisquer provas que imponham decisão diversa da que foi tomada pelo Tribunal recorrido, designadamente, provas que tenham sido desconsideradas, mas apenas uma visão divergente quanto à credibilidade que entende ser devida aos diversos declarantes.
Ora, não sendo o recurso um novo julgamento, mas um mero instrumento processual de correção de concretos vícios praticados e que resultem de forma clara e evidente da prova indicada pelo recorrente, é patente a necessidade de impugnação especificada com a devida fundamentação da discordância no apuramento factual, em termos de a prova produzida, as regras da lógica e da experiência comum, imporem diversa decisão (cf. acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 25.01.20228).
Não é viável, no caso, o convite ao aperfeiçoamento das conclusões, já que a motivação (corpo) do recurso apresenta idênticos defeitos, pelo que a alteração a introduzir, para cumprir aquelas exigências, não poderia conter-se dentro dos limites do já alegado, antes representando uma oportunidade de reformular todo o recurso, o que não pode considerar-se compreendido na previsão do artigo 417º, nos 3 e 4, do Código de Processo Penal – neste sentido, vd. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07.10.20049, e os acórdãos do Tribunal Constitucional nos 259/2002, de 18.06.2002, e 140/2004, de 10.03.2004, ambos consultáveis em www.tribunalconstitucional.pt.
A impugnação da matéria de facto não está, por isso, em condições de ser conhecida por este Tribunal ad quem.
O que se observa, porém, é que o recorrente, ao apresentar aquela impugnação, na verdade limita-se a revelar na motivação do recurso, o seu desacordo quanto à leitura que o Tribunal recorrido fez da prova produzida, o que se prende com a avaliação da prova em conexão com o princípio da livre apreciação da mesma consagrado no artigo 127º do Código de Processo Penal.
Tal livre apreciação da prova, não é livre arbítrio ou valoração puramente subjetiva, realizando-se de acordo com critérios lógicos e objetivos que determinam uma convicção racional, objetivável e motivável. Não significando, porém, que seja totalmente objetiva pois, não pode nunca dissociar-se da pessoa do juiz que a aprecia e na qual “(…) desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais (...)”10.
O juízo sobre a valoração da prova tem diferentes níveis.
Num primeiro aspeto trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova e depende substancialmente da imediação e aqui intervêm elementos não racionalmente explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a determinado meio de prova). Num segundo nível referente à valoração da prova intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e agora já as inferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão-de basear-se na correção do raciocínio que há de assentar nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência.
Dos ensinamentos da doutrina e da jurisprudência, podemos concluir que a valoração das provas, reportada à credibilidade dos depoimentos que é eminentemente subjetiva, depende, essencial e substancialmente, da imediação, princípio que, pressupondo a oralidade, domina a recolha das provas de índole testemunhal, permite, num quadro de emissão e receção de sinais de comunicação - que não apenas de palavras, mas também de gestos ou outras formas de ação/reação, como o próprio silêncio - potenciar a adequada apreciação dos depoimentos11.
No caso, da análise do conjunto das provas produzidas em julgamento, resulta evidente que inexiste (e não foi indicada) qualquer prova que obrigasse a decisão diferente da proferida pelo Tribunal a quo, mostrando-se a decisão de facto devida e claramente fundamentada, estando suportada pela prova produzida, criticamente analisada pelo Tribunal, nos termos constantes da motivação da decisão de facto, acima reproduzida (e é, por isso, igualmente óbvio que inexiste qualquer nulidade do acórdão recorrido por falta de fundamentação, ao contrário do que en passant disse o recorrente na sua alegação, sem, no entanto, apresentar qualquer sustentação para tal afirmação).
Como repetidamente se disse já em inúmeras decisões dos Tribunais Superiores em recursos sobre matéria de facto, é errado pretender-se que o Tribunal de julgamento está preso às palavras proferidas pelos declarantes e testemunhas, absorvendo-as qual esponja, para as verter do mesmo modo na decisão. Assim não acontece. Assim não deve acontecer, precisamente porque, como cremos que resulta claro do que acima se expôs quanto ao princípio da livre apreciação da prova, que rege a operação de determinação dos factos posta a cargo do julgador, o seu adequado uso implica uma apreciação crítica do conjunto da prova produzida, de forma a dela extrair, do modo mais fiel possível, a verdade material, processualmente válida12. Nesta operação, o Tribunal não está vinculado à estrita literalidade das palavras proferidas, antes podendo (e devendo) retirar dos relatos perante si produzidos todo o respetivo conteúdo útil, apreciado à luz das regras de experiência.
O princípio da livre apreciação da prova impõe um exercício que não pode deixar de ser subjetivo, que resulta da imediação e da oralidade, cujo resultado só seria afastado se o recorrente demonstrasse que a apreciação do Tribunal a quo não teve o mínimo de consistência. O que não é o caso, porque só sabemos que o recorrente, se fosse o julgador, não teria interpretado os diversos depoimentos nos termos em que o fez o coletivo julgador. Porém, o Tribunal a quo fundamentou de modo razoável e suficiente a sua convicção, com enquadramento no artigo 127º, do Código de Processo Penal.
Uma convicção solidamente fundamentada não exige uma concordância absoluta de toda a prova produzida, e também não exige a respetiva «perfeição». É função do julgador interpretar todos os contributos probatórios perante si trazidos, tomando em conta não só o que é dito, mas também o modo como é dito, e, além disso, avaliar, na medida do possível, todas as circunstâncias suscetíveis de intervir na genuinidade dos depoimentos, distinguindo indícios de falsidade de quaisquer outras (compreensíveis) emoções humanas.
Na esteira do que se referiu no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 18.01.201713, concordamos que “[n]aturalmente que a inimizade, a emoção própria de quem intervém directamente num litígio e o interesse individual num determinado sentido da decisão constituem circunstâncias que fazem recear pela fidedignidade, quer do depoimento da ofendida, quer das declarações do arguido; Seja por erro de percepção ou de memorização ou ainda intencionalmente por se entender que daí possa resultar benefício próprio ou para pessoa amiga ou familiar, acontece frequentemente que arguidos e testemunhas relatem versões díspares e mesmo absolutamente contraditórias dos mesmos tempos e espaços da história.
Porém, o tribunal não se encontra adstrito a desvalorização de um meio de prova, quer por relacionamento directo com os interesses em litígio, quer por outro motivo e a lei não impõe qualquer “contabilidade de provas”, nem exige a confirmação acrescida para a prova por depoimento da ofendida.
Exista ou não univocidade no teor dos depoimentos e declarações, o convencimento da entidade imparcial a quem compete julgar a matéria de facto depende sempre de uma conjugação de elementos tão diversos como a espontaneidade das respostas, a coerência e pormenorização do discurso, a emoção exteriorizada ou a consistência do depoimento pela compatibilidade com a demais prova relevante.
Com efeito, os motivos pelos quais se confere credibilidade a determinados elementos de prova – sejam declarações do arguido sejam depoimentos de testemunhas – têm subjacente elementos de racionalidade e experiência comum, mas também factores de que o tribunal de recurso não dispõe, onde se incluem a desenvoltura do depoimento, a comunicação gestual, o refazer do itinerário cognitivo, os olhares para os advogados e as partes, antes, durante e depois da resposta, os gestos, movimentos e toda uma série de circunstâncias insusceptíveis de captação por um registo de áudio. Todos estes indicadores são importantes e podem ser reveladores do desconforto da mentira e da efabulação.
Neste sentido, não será a circunstância de o tribunal se deparar com versões contraditórias ou de o arguido afirmar repetidamente a sua inocência que deva conduzir a uma situação de dúvida intransponível e um consequente juízo probatório de «não provado».”
Tal reflexão é também justificada no caso que temos em mãos.
Lida a decisão (e a respetiva fundamentação), é de considerar que, de acordo com as regras da experiência comum, da normalidade das coisas e da lógica do homem médio, é razoável o entendimento do Tribunal a quo quanto à valoração da prova e à fixação da matéria de facto, mostrando-se exposto de forma absolutamente transparente o percurso conviccional seguido na decisão recorrida, em termos que não suscitam reparo.
O recorrente não concorda. Porém, a fundamentação da convicção do Tribunal, em conjugação com a matéria de facto fixada, não revela que seja notoriamente errada, ilógica, contrária às regras da experiência comum. Podemos, pois, concluir, que o Tribunal a quo, imbuído da imediação, explicitou as razões da sua convicção, de forma lógica e global, com o mínimo de consciência para a formulação do juízo sobre a credibilidade dos depoimentos apreciados e, com base no seu teor, alicerçar uma convicção sobre a verdade dos factos. Acresce que, para além da dúvida razoável, tal juízo há de sempre sobrepor-se às convicções pessoais dos restantes sujeitos processuais, como corolário do princípio da livre apreciação da prova ou da liberdade do julgamento.
No caso, verdadeiramente, o recorrente não apontou nenhum indício concreto de que se tenha verificado erro de julgamento (v.g., que o Tribunal a quo tenha atribuído às provas examinadas conteúdo diverso do que se mostra plasmado nos autos). Limitou-se a dizer que, na sua opinião, as dúvidas lançadas sobre a credibilidade da ofendida, deveriam ter levado o Tribunal recorrido a considerar os factos da acusação não provados. E, segundo expõe, assenta essa sua convicção na sua negação dos factos e na sua opinião de que as declarações prestadas pela ofendida não são credíveis.
Argumentou, ainda, que a inquirição da menor DD em declarações para memória futura foi efetuada de modo dirigido, não sendo espontâneas as suas respostas, antes tendo sido induzida pelo Tribunal a confirmar os factos que lhe foram apresentados. E acrescentou que, segundo o seu entendimento, “na produção de prova, inerente a este tipo de processos, são as vítimas ouvidas em momentos diferentes (memória futura/audiência de julgamento), para se atestar da veracidade dos seus depoimentos em confronto com o prestado em momento anterior”.
Vamos por partes.
Como se sabe, nos termos previstos no artigo 271º, nº 1 do Código de Processo Penal, nos casos de vítima de crime de tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual, o juiz de instrução, a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou das partes civis, pode proceder à sua inquirição no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento. E, em conformidade com a previsão do nº 2 do mesmo preceito, tal inquirição antecipada é obrigatória quando esteja em causa a prática de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor.
A tomada de declarações para memória futura corresponde, assim, a uma antecipação da produção de prova, com as formalidades inerentes à audiência de julgamento, ainda que devidamente adaptadas, que, no caso das vítimas de crime de tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual, tem, sobretudo, uma finalidade protetora e tutelar de tais vítimas, atendendo à especial vulnerabilidade que em regra se lhes associa (e que a lei expressamente reconhece, nas disposições conjugadas dos artigos 1º, alínea j) e 67º-A, nº 3 do Código de Processo Penal), com o especial propósito de evitar a vitimização secundária14 - ou seja, não é verdade, ao contrário do que pretende o recorrente, que tal antecipação da produção de prova tenha em vista o confronto com declarações a prestar, de novo, na audiência de julgamento15.
Nas palavras do Tribunal Constitucional, no Acórdão nº 367/201416, “[…], visa-se não só assegurar a genuinidade e a credibilidade das declarações prestadas, mas também, no quadro das recomendações do direito europeu sobre a matéria, mitigar o efeito de vitimização secundária que a repetição das inquirições inelutavelmente comporta [cfr. António Miguel Veiga, «Notas sobre o âmbito e a natureza dos depoimentos (ou declarações) para memória futura de menores ou vítimas de crimes sexuais (ou da razão de ser de uma aparente “insensibilidade judicial” em sede de audiência de julgamento», Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 19, 2009, p. 107, e ainda Rui do Carmo, «Declarações para memória futura – Crianças vítimas de crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual», Revista do Ministério Público, n.º 134, 2013, p. 123]. Tal intenção é, aliás, expressamente coonestada pelo artigo 28.º da Lei de Proteção de Testemunhas.”
Não obstante, reconhece-se no mencionado aresto, que “O imperativo constitucional de concordância prática entre o interesse da vítima, o interesse da descoberta da verdade material e a salvaguarda dos direitos fundamentais do arguido (cfr. o artigo 18.º, n.º 2, da CRP) reclama naturalmente que as cedências ou compressões de cada um destes direitos ou interesses constitucionalmente protegidos se limite ao indispensável para a realização dos demais, asserção que desvela, no domínio das declarações para memória futura, uma série de consequências normativas (cfr. Maria João Antunes, «O segredo de justiça e o direito de defesa do arguido sujeito a medida de coação», Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, p. 1238).”
Desta imperativa compatibilização decorre a necessidade de que a audição daquelas vítimas se faça com o respeito possível pelo princípio do contraditório, assegurando-se, designadamente, que se encontre presente na diligência um defensor do arguido (que pode sugerir questões relevantes para a respetiva defesa) – e que, a posteriori, o registo de tais declarações possa ser examinado pela defesa e discutido na audiência de julgamento.
Ainda assim, em consonância com a posição assumida pelo Tribunal Constitucional no aresto citado, o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão nº 8/201717, fixou jurisprudência no sentido de que «As declarações para memória futura, prestadas nos termos do artigo 271.º do Código de Processo Penal, não têm de ser obrigatoriamente lidas em audiência de julgamento para que possam ser tomadas em conta e constituir prova validamente utilizável para a formação da convicção do tribunal, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 355.º e 356.º, n.º 2, alínea a), do mesmo Código.»
Considerou-se, a propósito, no AUJ 8/2017, que “O respeito pelo princípio do contraditório não exige, em termos absolutos, o interrogatório direto em cross-examination. Não é pelo facto de serem lidas/ouvidas em audiência de julgamento as declarações para memória futura, que se torna mais efetivo o direito a contraditar as declarações ali prestadas.” Mais se ponderando que “As declarações para memória futura estão «cristalizadas» no processo, sendo a sua leitura/audição insuscetível de as alterar. Em audiência de julgamento apenas se permite que tais declarações sejam contraditadas por outras provas, e esse exercício de contraditar é imutável, não variando consoante elas sejam lidas/ouvidas, ou não, em audiência de julgamento.”
E ali se conclui, em conformidade, que “em audiência de julgamento, o princípio do contraditório, manifesta-se com o direito de, perante o juiz que vai decidir a causa, haver a possibilidade de contrariar toda a prova existente, constituída ou constituenda, (testemunhal, pericial, documental, etc), apresentando outros elementos probatórios, descredibilizando o declarante que depôs para memória futura, em fase de inquérito ou instrução com outros depoimentos ou com outros elementos de prova.
Desta feita, os depoimentos para memória futura, não são excluídos do contraditório, em audiência de julgamento, na medida em que podem ser apresentadas testemunhas ou outras provas para contradizer o que ali foi declarado.”
No caso dos autos, não só o arguido esteve representado por defensor na tomada de declarações para memória futura (dispondo este de ampla oportunidade para formular os pedidos de esclarecimento que entendeu relevantes, como se colhe da respetiva gravação), como essas declarações foram, efetivamente, reproduzidas na audiência de julgamento, facultando-se à defesa o adequado exercício do contraditório, nomeadamente, apresentando as provas que entendesse necessárias para o efeito.
Ainda assim, sempre se dirá que, no que se refere à matéria de facto, é verdade que apenas a vítima DD relatou, em concreto, os atos praticados pelo arguido na sua pessoa (e relatou-os, diga-se, nos termos em que foram dados como provados). Não surpreende que assim seja, já que, admitidamente, a descrita conduta ocorreu sempre fora da vista de terceiros.
Não obstante, ouvidas atentamente as declarações prestadas pela ofendida, não podemos deixar, por um lado, de louvar o cuidado e diligência postos pela Mma JIC na realização de tal inquirição, a qual, por se tratar de uma menor de 9 anos de idade, é de reconhecida dificuldade, sendo claramente percetível o desconforto da menor e o esforço desenvolvido para a tranquilizar e permitir-lhe relatar os factos, sabido que é que a mesma já antes os havia relatado (não só à vizinha e à sua mãe, mas também aos agentes da Polícia Judiciária) – com a inevitável consequência de que cada novo interrogatório representa uma inevitável revitimização.
Todavia, como aliás relevou a decisão recorrida, das declarações para memória futura produzidas por DD “ressuma que o seu relato é credível e objetivo”, mais se relevando que “o relato espontâneo (em discurso aberto) não é muito extenso, mas suficiente, sendo completado com questões mais diretivas, não sugestivas”, concluindo-se que “não se percecionam motivações ou ganhos secundários que justifiquem uma mentira ou sugestionamento por parte de terceiros. E também não se identificam indicadores que possam remeter para uma situação de fantasia por parte da criança”.
Tendo procedido à audição de tais declarações, subscrevemos, sem qualquer hesitação, a avaliação efetuada pelo Tribunal a quo.
É notória a dificuldade da menor em relatar os factos. Porém, ao contrário do sugerido pelo recorrente, tal não significa que os esteja a inventar. Pelo contrário, é percetível que lhe causam angústia e que preferia não falar neles, o que é inteiramente compreensível numa criança de 9 anos.
Ainda assim, de modo simples e com termos adequados à sua faixa etária, DD relatou os acontecimentos – sendo também percetível que, em algumas ocasiões fez gestos, assentiu e escreveu palavras18. O relato que fez é congruente e verosímil, não se lhe divisando quaisquer exageros, devendo louvar-se a serenidade que rodeou tal diligência, com o mínimo de constrangimento para a depoente, a quem não deixaram de ser pedidas clarificações e esclarecimentos – que prestou de forma sofrida, mas factual – não se divisando indícios de falta de genuinidade ou de instrumentalização do Tribunal, sendo certo que não se vislumbra que vantagem poderia advir à ofendida da «invenção» de tais factos.
Deve, de resto, anotar-se que a Mma JIC que procedeu à inquirição da ofendida, ciente da frequente dificuldade em determinar o concreto número de atos a que as vítimas de abusos sexuais terão sido sujeitas, especialmente quando se trate de crianças e os factos tenham perdurado por um período de tempo mais ou menos longo (como sucede no caso dos autos), foi cuidadosa, metódica e exaustiva no esforço seguido para concretizar as condutas que puderam ser recordadas pela vítima. Não merece, pois, reparo o modo como o Tribunal recorrido valorou tais declarações – como também não suscita qualquer censura a forma como foi executada a diligência de inquirição para memória futura19.
O recorrente, porém, escorando-se na sua alegada negação dos factos, pretende desacreditar a menor, com o estereotipado argumento de que as crianças são sugestionáveis (e mentirosas)20, sem que, no entanto, se perceba que razão teria a menor para mentir (a quem poderia a mesma querer agradar com tal suposta invenção), não sendo oferecida qualquer razão plausível para o efeito.
É, em suma, apenas a opinião do recorrente.
Contudo, aqui a sua discordância quanto ao valor relativo das provas coligidas nos autos de pouco vale, porque se impõe o estatuído no artigo 127º, do Código de Processo Penal (a prova é apreciada segundo as regras de experiência comum e a livre convicção do julgador).
Resulta evidente da leitura da decisão que o Tribunal a quo analisou a globalidade das declarações prestadas pela vítima DD, em conjunto com toda a demais prova (declarações do arguido incluídas21), explicando de forma clara e pormenorizada o percurso que seguiu na formação da sua convicção, bem como as razões pelas quais reconheceu credibilidade e verosimilhança a tais meios de prova.
Em face de tais circunstâncias não pode censurar-se a opção do Tribunal recorrido ao considerar credível o depoimento prestado pela ofendida – que corresponde a um relato na primeira pessoa dos acontecimentos que interessam aos autos.
A tais declarações oferecem os depoimentos das restantes testemunhas apoio circunstancial, na medida em que deles resulta que a menor às mesmas relatou os factos em termos semelhantes ao declarado em Tribunal, tendo tais testemunhas transmitido igualmente a sua convicção de que a menor falava com verdade. E mesmo a negação do arguido não é absoluta: por que razão assumiria ter tocado a sua prima «na vagina», se nada tivesse sucedido?
O exame que o Tribunal a quo fez da prova produzida, para além de evidenciar com clareza a caminho seguido pelo Tribunal na formação da sua convicção, mostra-se também feito com respeito pelas regras da experiência comum e da normalidade da vida e dos critérios da racionalidade e da lógica.
Acresce que, para além da dúvida razoável, tal juízo há de sempre sobrepor-se às convicções pessoais dos restantes sujeitos processuais, como corolário do princípio da livre apreciação da prova ou da liberdade do julgamento.
O recorrente alegou, é certo, que, face à prova produzida, o Tribunal deveria ter permanecido na dúvida quanto à verificação dos factos, o que imporia a respetiva absolvição, em obediência ao princípio in dubio pro reo.
Ora, a propósito do princípio in dubio pro reo22, há a dizer que o que dele resulta é que quando o tribunal fica na dúvida quanto à ocorrência de determinado facto, deve daí retirar a consequência jurídica que mais beneficie o arguido, quer na instrução, quer no julgamento.
Mas, para que a dúvida seja relevante para este efeito, há de ser uma dúvida razoável, uma dúvida fundada em razões adequadas e não qualquer dúvida (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I, p. 205)23.
A violação deste princípio tem sempre que ser aferida em concreto, porque só em concreto pode acontecer que no final da produção da prova no tribunal permaneça alguma dúvida importante e séria sobre o ato externo e a culpabilidade do arguido. Tal aferição não pode ser feita em abstrato, dizendo-se que a admissão deste ou daquele tipo de prova viola este princípio. Existem provas proibidas e provas cuja valoração é proibida, em determinadas circunstâncias, mas isso é outro problema. Se as provas levadas em conta forem legais, só em concreto se pode aferir se o tribunal ficou, ou devia ter ficado, com dúvidas relevantes.
Só haverá, pois, violação do mencionado princípio quando, perante uma dúvida sobre factos essenciais para a decisão da causa, venha o julgador a decidir em desfavor do arguido. Tal não ocorreu, manifestamente, no caso dos autos, mostrando-se a factualidade julgada provada estribada em prova produzida em julgamento (e as declarações para memória futura são, para todos os efeitos, prova produzida em julgamento) e em consonância com essa prova. Não vislumbramos no acórdão recorrido, quer na matéria de facto julgada provada, quer na sua fundamentação, que, ao fazer esta opção fáctica, o Tribunal a quo tivesse tido qualquer hesitação quanto à valoração da prova, não se vislumbrando também que, na concreta situação dos autos, devesse ter tido qualquer dúvida.
A argumentação do recorrente a este respeito assenta, apenas, numa íntima convicção, expressa na afirmação de que, “se impunha ao tribunal a quo, a quando da valorização do depoimento considerar tais factos e ponderar que os mesmos poderiam levar DD a faltar com a verdade, o que se vem a verificar”, mais aditando que “perante tamanhas ambiguidades, deveria o tribunal a quo ouvir DD em audiência de julgamento, o que não sucedeu, assim como não foi elaborado Relatório de Perícia Psicológica para aferir se a menor falava com verdade”. E conclui, por isso, que “o depoimento de DD, por si só, não consubstancia fundamento bastante para a condenação do Recorrente, na medida em que tem a mesma força probatória que as declarações deste, que desde sempre negou a prática dos factos”.
A este respeito, duas notas:
Primeiro, a de que, como já acima se disse, a inquirição em declarações para memória futura visa, precisamente, evitar que a criança ofendida, que é, por definição legal, uma vítima especialmente vulnerável, seja repetidamente «arrastada» para o Tribunal e obrigada a reviver os factos denunciados uma e outra vez. Só circunstâncias graves e ponderosas podem justificar tal opção por parte do Tribunal, as quais não se verificam no caso (como decorre do que já se expôs a propósito do modo como foram prestadas as declarações e do conteúdo das mesmas), sendo além do mais certo que não resulta dos autos que tal reinquirição tenha sido requerida em julgamento, pelo que, mesmo que se pudesse reputar tal diligência como essencial (o que não sucede, diga-se), sempre estaria a nulidade decorrente da respetiva omissão há muito sanada (cf. artigo 120º, nº 2, alínea d) e nº 3, alínea a), do Código de Processo Penal).
E a segunda nota, para esclarecer que, efetivamente, não foi realizada perícia sobre a personalidade da menor, mas esta constitui apenas uma possibilidade da qual o Tribunal se pode socorrer, se a considerar necessária (cf. artigo 131º, nº 3 do Código de Processo Penal), e não uma imposição legal. É sempre ao julgador que, em última análise, cabe avaliar a credibilidade dos depoimentos perante si produzidos, não podendo, em qualquer caso, uma eventual perícia sobre a personalidade significar um «selo de qualidade», sem o qual o depoimento não é válido.
Da circunstância de não se ter realizado tal perícia psicológica não decorre, como é evidente, que o Tribunal fique impossibiliato de ajuizar se a testemunha em questão falou, ou não, com verdade.
Assim, mostrando-se a opção fáctica feita pelo Tribunal a quo baseada em prova produzida em julgamento e à qual o Tribunal atribuiu credibilidade e verosimilhança, nenhum reparo merece a decisão recorrida, sendo evidente que o recorrente não indicou prova que obrigasse a decisão diferente da adotada.
*
Face à falência da impugnação ampla da matéria de facto, apenas poderia questionar-se a existência de vícios da decisão suscetíveis de conhecimento oficioso24, no que, já acima se disse, se designa por «revista alargada».
O artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal prevê que, “mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova”. (sublinhado nosso)
A indagação de tais vícios, por parte do tribunal ad quem, é uma tarefa puramente jurídica, de matéria de direito, já que mais nenhuma outra prova é necessária para que se possa concluir pela eventual existência ou não dos mesmos. Mais não constitui tal tarefa de indagação do que a aplicação da norma adjetiva em causa às circunstâncias concretas da decisão em recurso.
Como anota Pereira Madeira25, “É a lei quem o inculca com clareza ao impor que o vício resulte do texto da decisão recorrida, apenas e só, eventualmente com recurso às regras de experiência comum. Por isso, fica excluída da previsão do preceito toda a tarefa de apreciação e ou valoração da prova produzida, em audiência ou fora dela, nomeadamente a valoração de depoimentos, mesmo que objecto de gravação, documentos ou outro tipo de provas, tarefa reservada para o conhecimento do recurso em matéria de facto.”
Ora, confrontado o teor da decisão recorrida, não vemos que na mesma se tenha cometido algum dos mencionados vícios – designadamente, que a matéria de facto provada seja insuficiente para a decisão, que seja evidente a existência de factos que ficaram por apurar ou que tenha sido extraída da matéria de facto qualquer conclusão patentemente errada, ilógica ou arbitrária.
Analisado o texto da decisão recorrida, vemos que a respetiva argumentação se desenvolve de forma lógica e coerente, achando-se preenchidos todos os pressupostos do silogismo judiciário.
Consequentemente, inexistindo qualquer erro de julgamento ou qualquer violação do princípio in dubio pro reo, impõe-se manter a matéria de facto nos precisos termos fixados pela 1ª instância.
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Não tendo o recorrente suscitado qualquer questão quanto à correção do enquadramento jurídico dos factos operado pelo Tribunal a quo, não cabe a este Tribunal ad quem debruçar-se sobre o mesmo, não se vislumbrando, a este respeito, qualquer circunstância que imponha o respetivo conhecimento ex officio.
iv.2. da medida das penas aplicadas
Fixados que estão, em definitivo, os factos provados e, bem assim, o respetivo enquadramento jurídico (que o recorrente não discute no recurso), importa apreciar a questão suscitada que passa por saber se as penas aplicadas são excessivas e se deverão ser reduzidas (e, eventualmente, suspensa a execução da pena de prisão, ou cumprida – a pena de prisão – na habitação).
O recorrente AA foi condenado, em 1ª instância, pela prática de um crime de abuso sexual de crianças agravado, previsto e punível pelos artigos 171º, nº 3, alínea b) e 177º, nº 1, alíneas b) e c) do Código Penal e pelos artigos 73º, nº 1, alíneas a) e b) do mesmo Código e 4º do Decreto-Lei nº 401/82, de 23 de setembro, na pena parcial de 1 (um) ano de prisão; pela prática de um crime de abuso sexual de crianças agravado, previsto e punível pelos artigos 171º, nº 1 e nº 2 e 177º, nº1, alíneas b) e c) do Código Penal e pelos artigos 73º, nº 1, alíneas a) e b) do mesmo Código e 4º do Decreto-Lei nº 401/82, de 23 de setembro, na pena parcial de 4 (quatro) anos de prisão; e pela prática de um crime de abuso sexual de crianças agravado, previsto e punível pelos artigos 171º, nº 1 e 177º, nº 1, alíneas b) e c) do Código Penal e pelos artigos 73º, nº 1, alíneas a) e b) do mesmo Código e 4º do Decreto-Lei nº 401/82, de 23 de setembro, na pena parcial de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão.
Em cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na pena única de 5 (cinco) anos e 9 (nove) meses de prisão.
Entende o recorrente que “as penas parcelares in casu devem aproximar-se mais do limite mínimo da moldura penal abstractamente aplicável, designadamente quanto à qualificação jurídica, pela qual se pugna relativamente aos factos dos quais foi vítima a menor DD e a pena única não exceder, em circunstância alguma, os 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução, com sujeição a regime de prova”, mais aditando que, face à sua idade na data do cometimento dos factos, deve ser-lhe aplicado o Regime Penal Aplicável a Jovens Delinquentes, previsto no Decreto-Lei nº 401/82, de 23 de setembro, com a consequente atenuação especial da pena.
Ultrapassadas as questões relativas à fixação da matéria de facto e não sendo discutido o enquadramento jurídico-penal dos factos, importa, então, apreciar da razoabilidade das penas fixadas.
A este respeito, importa ter em conta que, como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.05.202126, no que se reporta à decisão sobre a pena, mormente a sua medida, “os recursos não são re-julgamentos da causa, mas tão só remédios jurídicos. Assim, também em matéria de pena o recurso mantém o arquétipo de remédio jurídico.
Daqui resulta que o tribunal de recurso intervém na pena, alterando-a, quando deteta incorreções ou distorções no processo aplicativo desenvolvido em primeira instância, na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que regem a pena. Não decide como se o fizesse ex novo, como se inexistisse uma decisão de primeira instância. O recurso não visa, não pretende e não pode eliminar alguma margem de atuação, de apreciação livre, reconhecida ao tribunal de primeira instância enquanto componente individual do ato de julgar.”
Assim, só em caso de desproporcionalidade na sua fixação ou necessidade de correcção dos critérios de determinação da pena concreta, atentos os parâmetros da culpa e as circunstâncias do caso, deverá intervir o Tribunal de 2ª instância alterando o quantum da pena concreta.
Caso contrário, isto é, mostrando-se respeitados todos os princípios e normas legais aplicáveis e respeitado o limite da culpa, não deverá o Tribunal de 2ª instância intervir corrigindo/alterando o que não padece de qualquer vício.
Para essa apreciação, revisitemos as considerações do Tribunal a quo no que se refere à determinação da medida da pena de prisão no caso concreto:
“Em sede de determinação das consequências jurídicas do crime e da reação criminal adequada, a culpa e a prevenção funcionam como critérios gerais orientadores da medida da pena, tendo esta, sempre, como limite, aquela, que é justamente o seu suporte.
Relevantes para encontrar a "medida da culpa" são os próprios ilícitos típicos, enquanto apreciados nas suas consequências típicas, que lhe conferem uma certa "imagem" ou sentido social.
Assim, tendo como pressuposto este critério orientador, analisemos então a situação do arguido.
Como se viu, o arguido é condenado pela prática, em autoria material, e em concurso real e efetivo, por crime de abuso sexual de crianças, na forma agravada, previsto e punível pelos artigos 171.º, n.º 1 e 2 e 177º, nº 1, b) e c), do Código Penal com pena de prisão de 4 a 13 anos e 4 meses.
É condenado por um crime de abuso sexual de crianças, na forma agravada, previsto e punível pelos artigos 171.º, n.º 1 e 177º, nº 1, b) e c), do Código Penal, com pena de 1 ano e 4 meses a 10 anos e 8 meses.
E é, ainda, condenado por um crime de abuso sexual de crianças, na forma agravada, previsto e punível pelos artigos 171.º, n.º 3 b) e 177º, nº 1, b) e c), do Código Penal, com pena de prisão de 40 dias a 4 anos.
Uma vez que o tipo de crime em apreço não contempla, em alternativa, pena de diferente natureza, haveria que graduar as penas de prisão, tendo em conta o critério para determinação concreta da pena, cuja base está consagrada no artigo 71º do Código Penal.
No entanto, verifica-se que o arguido ora condenado era na data dos factos, menor de 21 anos.
Nos termos do artº 9º do Código Penal, “aos maiores de 16 anos e menores de 21 são aplicáveis normas fixadas em legislação especial”.
Esta legislação especial está contida no Decreto-Lei nº 401/82, de 23 de setembro (Regime Especial para Jovens), e assenta na ideia de que o jovem delinquente é merecedor de um tratamento penal especializado, “não só porque a sua capacidade de ressocialização é mais fácil, por se encontrar no limiar da maturidade, como ainda porque se deve evitar, em princípio, um tratamento estigmatizante”.
O Decreto-Lei nº 401/82, aplica-se a jovens que tenham cometido um facto qualificado como crime – nº 1 do artº 1º.
Para efeitos do Decreto-Lei nº 401/82, é considerado jovem o agente que, à data da prática do crime, tiver completado 16 anos sem ter ainda atingido os 21 anos – artº 1º, nº 2.
Nos termos do artº 4º daquele regime, se for aplicável pena de prisão, deve o juiz atenuar especialmente a pena nos termos dos artigos 73º e 74º do Código Penal, quando tiver sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado.
Analisada a matéria de facto provada, verifica-se que o arguido era e é primário.
O relatório social expõe fatores de proteção, sobretudo apoio familiar estruturado, que atenuam um risco sério de reincidência.
O arguido demonstra, em audiência, extrema imaturidade, nada o distinguindo, no processamento intelectual, de um menor.
Pelo que é de concluir que este arguido beneficiará, do ponto de vista da perspetiva de ressocialização social, com a aplicação do regime especial para jovens delinquentes.
Decide-se, assim, que deverá ser aplicar o regime punitivo mais favorável consagrado no DL nº 401/82, de 23 de setembro, já que favorável à respetiva reintegração social.
Excluída a adequação de medidas corretivas previstas neste diploma, atenta a gravidade dos factos, entendemos que este arguido deverá beneficiar tão somente da atenuação especial da pena, contemplada no artigo 73º, nº 1 do Código Penal (“a) O limite máximo da pena de prisão é reduzido de um terço; b) O limite mínimo da pena de prisão é reduzido a um quinto se for igual ou superior a três anos e ao mínimo legal se for inferior”).
Pelo que o arguido passa a incorrer, por força desta atenuação, numa pena que vai de 9 meses e 18 dias a 8 anos, 10 meses e 20 dias de prisão (artigo 171.º, n.º 1 e 2 e 177º, nº 1, b) e c), do Código Penal).
E passa a incorrer em pena de 10 meses e 20 dias a 7 anos e um mês e 10 dias de prisão (pelo um crime de abuso sexual de crianças, na forma agravada, previsto e punível pelos artigos 171.º, n.º 1 e 177º, nº 1, b) e c), do Código Penal).
E incorre, ainda, na pena de prisão de um mês a 2 anos e 8 meses (pelo crime de abuso sexual de crianças, na forma agravada, previsto e punível pelos artigos 171.º, n.º 3 b) e 177º, nº 1, b) e c), do Código Penal).
Ora, o mencionado critério de graduação da medida concreta da pena prevista no artigo 71.º do Código Penal prevê que “A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”, e condicionada pelo nº 2 que que se refere às “circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuseram a favor do agente ou contra ele.”
O grau de culpa do agente surge, assim, como indicador do limite intransponível da medida da pena, que deve expressar as exigências de prevenção, que constituem o seu parâmetro.
Vejamos qual o quantum sancionatório para cada crime com que o arguido está comprometido.
O crime de abuso sexual é fortemente estigmatizante e preocupa a comunidade, sendo, assim, prementes as exigências de prevenção geral.
Procurando-se, agora, dentro de cada uma das molduras penais definidas, encontrar a justa medida exigida pelas necessidades de prevenção especial, tem-se em conta que:
- a intensidade do dolo, direto, é já significativa - o arguido não é afetado por parafilias conhecidas, ou de qualquer perturbação de personalidade, que contenda com a sua capacidade de regular a sua conduta de acordo com o juízo normativo que é capaz de fazer. E isto, não obstante a sua manifesta imaturidade.
O arguido age motivado pelo desejo de obter satisfação sexual, empreendendo reflexão suficiente neste caso concreto. E volta a atuar sobre a menor em mais duas situações.
- a intensidade dos ilícitos é, dentro do tipo criminal em apreço, mediana, atenta a natureza dos atos, a duração e dinâmica. A idade da menor é já de si refletida na moldura penal agravada, pelo que não deve ser considerada especificamente.
O arguido sujeita a menor, em duas situações a toques genitais, um deles com contato da sua saliva com o sexo da menor, numa relação mais evasiva.
Numa última situação, o arguido atua pela calada da noite, mas atuando sobre a menor quando esta dormia na sua casa, rodeada de familiares.
A conduta do arguido vai, assim, galgando em atrevimento.
- a conduta anterior ao facto, revelada pela falta de antecedentes criminais e boa integração social é valorada a favor do arguido.
- o arguido rejeita o grosso da prática dos factos, não elaborando, assim, um juízo de auto censura pleno.
Tudo sopesado, entendemos ser de graduar a medida das penas parcelares em:
- 1 (um) ano de prisão, no que tange ao primeiro crime de abuso sexual de crianças, previsto e punível pelo artigo 171º, nº 3 b) e 177º, nº 1 b) e c) do Código Penal, (exibição do pénis e de vídeo);
- 4 (quatro) anos de prisão, no que respeita ao crime de abuso sexual de crianças, previsto e punível pelo artigo 171º, nº 1 e 2 e 177º, nº 1 b) e c) do Código Penal, descrito em segundo lugar (introdução da língua na vagina da menor);
- 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, no que tange ao crime de abuso sexual de crianças, praticado em terceiro lugar, previsto e punível pelo artigo 171º, nº 1 e 177º, nº 1 b) e c) do Código Penal (toque na vagina com o dedo);
*
Da pena única.
Por ter sido condenado por 3 crimes, que são julgados neste mesmo acórdão, e que estão, assim, numa relação de concurso, importa fixar ao arguido uma pena única.
Assim, operando o cúmulo jurídico, de harmonia com o disposto no artigo 77º do Código Penal, há que aplicar uma pena unitária, que deve ser fixada entre a maior das penas concretamente aplicadas e a soma de todas.
O arguido incorre, assim, por força da aplicação desta regra, numa pena mínima de 4 anos, correspondente à maior das penas aplicadas e máxima de 8 anos e 6 meses, que equivale à soma aritmética das 3 penas.
De acordo com os traços de personalidade demonstrados pela sua atuação e evidenciados pelo relatório social, visto estarmos perante um arguido primário, atenta a relativa homogeneidade da conduta, a sua juventude e integração, apesar da imagem global da ação delinquente ser muito negativa, julga-se adequado condenar o arguido na pena única global de 5 (cinco) anos e 9 (nove) meses, ou seja, ainda a da diferença da pena máxima aplicada e da pena máxima aplicável em abstrato.”
As considerações tecidas pelo Tribunal a quo não se mostram desenquadradas da realidade que aqui enfrentamos – sendo de notar que foi efetivamente aplicado o Regime Penal Aplicável a Jovens Delinquentes previsto no Decreto-Lei nº 401/82, de 23 de setembro, mostrando-se especialmente atenuadas as molduras penais aplicáveis, não assistindo, nesta parte qualquer razão ao recorrente.
No mais:
O relacionamento entre culpa e prevenção vem exposto no artigo 40º do Código Penal, relativo aos fins das penas, que, ao dispor que a aplicação das penas visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, não podendo porém a pena ultrapassar a medida da culpa (nº 2 do mesmo artigo 40º do Código Penal), veio atribuir à pena natureza predominantemente preventiva, e não retributiva, ao invés do que acontecia na versão originária do Código Penal27.
A pena tem como finalidade primordial a prevenção geral (“proteção dos bens jurídicos”), entendida como prevenção positiva, ou seja, como afirmação contrafáctica da validade das normas perante a comunidade; é nessa moldura que devem ser valoradas as exigências da prevenção especial, intervindo a culpa como limite máximo da pena, como travão inultrapassável às exigências preventivas.
É neste quadro que, para determinação da medida concreta da pena, há que atender, de acordo com o nº 2 do citado artigo 71º, às circunstâncias do crime, nomeadamente à ilicitude, e a outros fatores ligados à execução do facto, como a gravidade das consequências deste; o grau de violação dos deveres impostos (alínea a)); a intensidade do dolo ou da negligência (alínea b)); os sentimentos manifestados pelo agente e os fins ou motivos que o determinaram (alínea c)); as condições pessoais e económicas do agente (alínea d)); a personalidade do agente (alínea f)); e a sua conduta anterior e posterior ao crime (alínea e)).
No que se refere à determinação da pena única, em caso de concurso de crimes, importa ter em conta que, como escreve Paulo Pinto de Albuquerque28, em anotação ao artigo 77º do Código Penal, “A moldura do concurso de crimes é construída, não de acordo com o princípio da absorção puro (punição do concurso com a pena concreta do crime mais grave), nem com o princípio da exasperação ou agravação (punição do concurso com moldura do crime mais grave, devendo a pena concreta ser agravada em virtude do concurso de crimes), mas antes com o princípio da cumulação, segundo o qual se procede à punição do concurso com uma pena conjunta determinada no âmbito de uma moldura cujo limite máximo resulta da soma das penas concretas aplicadas a cada crime imputado, mas cuja medida concreta é decidida em função da imagem global dos crimes imputados e da personalidade do agente, procurando, nas palavras de Eduardo Correia, «na medida em que é possível e conveniente, trazer a ideia da chamada “pena unitária” para dentro do sistema da acumulação» (Actas CP/Eduardo Correia, 1965a: 155). Trata-se, pois, de um sistema de cumulação, mas na forma de um cúmulo jurídico. (…)
Em regra, a ponderação da imagem global dos crimes imputados e da personalidade é feita nos seguintes termos: tratando-se de uma personalidade mais gravemente desconforme com o Direito, o tribunal determina a pena única somando à pena concreta mais grave metade (ou, em casos excecionais, dois terços) de cada uma das penas concretas aplicadas aos outros crimes em concurso; tratando-se de uma personalidade menos gravemente desconforme ao Direito, o tribunal determina a pena conjunta à pena concreta mais grave um terço (ou, em casos excecionais, um quarto) de cada uma das penas concretas aplicadas aos outros crimes em concurso (em sentido próximo, por exemplo, acórdão do STJ, de 9.5.2002, processo 02P1259, acórdão do STJ, de 17.10.2002, processo 2792/2002, acórdão do STJ, de 27.1.2005, processo 04P4449, acórdão do STJ, de 12.7.2005, com anotação in RPCC, ano 16: 151, acórdão do STJ, de 6.10.2005, processo 05P2107, acórdão do STJ, de 14.1.2009, processo 3856/08-5, acórdão do STJ, de 26.2.2009, processo 08P2873, acórdão do STJ, de 29.10.2009, processo 18/06.0PELRA.C1.S1-5, acórdão do STJ, de 19.5.2010, in CJ, Acs. do STJ, XVIII, 2, 191, acórdão do STJ, de 12.7.2012, in CJ, Acs. do STJ, XX, 2, 238, acórdão do STJ, de 12.9.2014, CJ, Acs. do STJ, XXII, 3, 179, acórdão do STJ, de 4.2.2016, CJ, Acs. do STJ, XXIV, 2, 253, e acórdão do STJ, de 8.7.2020, processo 74/14.7JAPTM.3.E1.S1, e com considerações semelhantes, referindo-se a um fator de compressão do remanescente das penas parcelares, Carmona da Mota, 2009, Souto Moura, 2010: 108 e 109, Lourenço Martins, 2011: 306 e 307, Miguez Garcia e Castela Rio, 2014: 387, anotação 11ª ao artigo 77º, e Tiago Milheiro, 2020: 75 a 77, mas críticos desse fator, Simas Santos, 2010: 150, embora o Autor o tenha utilizado enquanto relator, por exemplo, nos acórdãos do STJ, de 27.1.2005, e de 6.10.2005 (referindo-se à ponderação de «menos de 1/3 da soma das restantes penas parcelares»), Artur Rodrigues da Costa, 2013: 180 e 181, admitindo que as fórmulas referidas conduzem a «penas conjuntas muito inferiores e aparentemente mais adequadas e mais conformes a um princípio de humanidade», mas duvidando da sua «suficiente solvabilidade jurídica», e António Barreiros, 2009, ainda mais cético em relação à possibilidade de introduzir racionalidade no sistema legal de cúmulo jurídico, tendo até Isabel São Marcos, 2016, considerado que não era «viável identificar o concreto e preciso raciocínio que terá servido de fio condutor na metodologia porventura usada pelo mesmo [Supremo] Tribunal para concretizar tal operação»).”
Debrucemo-nos, então, sobre a concreta materialidade dos autos.
O arguido não tem antecedentes penais registados pela prática de crimes da natureza dos que se apreciam nos autos, como é de esperar de um cidadão comum.
As penas abstratamente previstas nestes casos convocam desde logo elevadíssimas exigências de prevenção geral evidenciadas pela viva reação da sociedade a este tipo de crimes, reclamando penas em medida que patenteie a gravidade objetiva e a dimensão da censura social por tais condutas.
Os fins e motivos que determinaram o arguido à prática dos crimes – a satisfação da lascívia e desejo sexual servindo-se de uma criança, o que sucedeu em, pelo menos, três ocasiões distintas – evidenciam uma tendência que importa reduzir ou, idealmente, corrigir de modo a prevenir a reincidência que é muito comum neste tipo de criminalidade em razão da escolha de vítimas com diminuída capacidade de autodeterminação sexual.
Neste circunstancialismo espelhado pelos factos provados conclui-se que o Tribunal recorrido, no procedimento empreendido para dosear a medida das penas impostas ao arguido, atentou nos critérios e fatores legalmente estabelecidos, quantificando-as em moldes adequados.
Perante as considerações tecidas, nos termos que se deixaram reproduzidos, não pode deixar de considerar-se que o recorrente não tem razão ao acusar o Tribunal a quo de não ter tomado em consideração circunstâncias relevantes.
No que se refere à determinação da medida concreta da pena, vemos que o Tribunal a quo foi sensível ao sofrimento pelo arguido infligido à sua vítima e às potenciais consequências que para esta advirão de ter sido sujeita às investidas do arguido em tão tenra idade; e não deixou também de ponderar a ausência de interiorização da censurabilidade do comportamento evidenciada pelo arguido, nomeadamente nos elementos colhidos do respetivo relatório social – sendo notória a ausência de crítica e tentativa de desresponsabilizaçao, apresentando-se o arguido autocentrado apenas nos inconvenientes que lhe advêm da presente condenação.
Quanto à alegada falta de consideração de circunstâncias referentes à gravidade e consequências das condutas, às condições pessoais do arguido e às necessidades de prevenção especial, a simples leitura da decisão recorrida permite, sem esforço, concluir pela falta de razão do recorrente – as circunstâncias provadas foram consideradas nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 71º, nº 2, alíneas a), d), e) e f), do Código Penal, em termos que não nos merecem qualquer censura.
De modo absolutamente racional foi considerada a ausência de antecedentes criminais averbados no respetivo registo criminal, bem como o adequado enquadramento social; porém, com igual racionalidade, foi também tida em conta a ausência de reconhecimento da censurabilidade da conduta, e, bem assim, a objetiva (e acentuada) gravidade dos factos praticados – que ocorreram no domicílio da vítima e em casa de familiares, locais onde deveria estar protegida de quaisquer agressões, e foram praticados por quem se deveria constituir como figura protetora, face aos laços familiares existentes, tanto mais que, pelo menos nas duas primeiras circunstâncias, a menor havia sido confiada ao seu cuidado, circunstâncias estas capazes de gerar elevado alarme social. E foi dentro de tais parâmetros, avaliando conjugadamente todas as circunstâncias em presença, e não apenas as que seriam suscetíveis de beneficiar o arguido, que o Tribunal recorrido concluiu pela adequação das penas parcelares de 1 ano de prisão, 4 anos de prisão, e 3 anos e 6 meses de prisão (sempre abaixo daquele que seria o termo médio das molduras penais abstratamente previstas) para os crimes cometidos.
Tendo sido considerados todos os fatores relevantes, não assiste razão ao recorrente, não tendo o Tribunal a quo deixado de ponderar devidamente todas as circunstâncias provadas.
Na determinação da pena de prisão concreta a aplicar, concorda-se com as conclusões extraídas dessas circunstâncias pelo julgador de primeira instância, entendendo-se que a ponderação final de síntese (balanceamento dos vários factores agravantes e atenuantes em presença), foi adequada à execução dos crimes e à personalidade do arguido, não obstante a ausência de antecedentes criminais.
Foram ponderadas, quanto à execução dos factos (pensada em termos globais – cf. artigo 71º, nº 2, alíneas a), b) e c), do Código Penal) todas as circunstâncias relevantes: a forma intencional da vontade criminosa (a intensidade da vontade no dolo); o modo de execução da actividade delituosa (designadamente, o local onde os factos ocorreram e o modo como a menor foi surpreendida).
Assim, atentas as elevadas exigências de prevenção geral que o caso reclama, bem como o grau de ilicitude e da culpa do arguido, bem andou o Tribunal recorrido ao determinar a aplicação das supra indicadas penas de prisão para cada um dos crimes cometidos.
No caso que temos em mãos, o Tribunal a quo, a propósito da determinação da pena única do concurso, relevou em particular o modo de execução dos factos e o elevado grau de culpa evidenciado, de par com a evidente ausência de interiorização da censurabilidade do seu comportamento, para concluir pela adequação de uma pena única de cinco anos e nove meses de prisão.
Em tal pena única vão devidamente ponderadas as circunstâncias específicas do arguido, nomeadamente a sua idade e enquadramento familiar, mas tais circunstâncias, adequadamente avaliadas, não se sobrepõem à necessidade de garantir à vítima e à sociedade o valor das normas violadas, sendo igualmente certo que a elevada culpa do arguido se gradua em medida claramente superior à pena única fixada.
Tendo em conta os parâmetros que devem orientar a determinação da pena única – nos termos supra expostos – é de considerar acertada a opção da decisão recorrida na fixação da pena única imposta ao recorrente AA, fixada, ainda assim, claramente abaixo do ponto médio da moldura do concurso, não se justificando a respetiva alteração em recurso.
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Tendo em conta a medida da pena única em que o arguido foi condenado, e que agora se mantém, não há que equacionar a suspensão da respetiva execução, e, menos ainda, a possibilidade de cumprimento de tal pena em regime de permanência na habitação, ambas, em qualquer dos casos, legalmente inadmissíveis (cf. artigos 43º e 50º do Código Penal).
Improcede, pois, o recurso, quanto à questão da redução da medida da pena aplicada.
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No que se refere às penas acessórias de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores e de proibição de assumir a confiança de menor, nos termos disposto nos artigos 69º-B, nº 2 e 69º-C, n.ºs 1, 2 e 4, ambos do Código Penal, que a decisão recorrida fixou, em qualquer dos casos, em cinco anos para cada uma dessas penas e para cada um dos crimes cometidos, e, em cúmulo jurídico, duas penas acessórias (de proibição do exercício de profissão envolvendo contacto com menores, e de proibição de assunção da confiança de menor) com a duração de 7 anos, cada uma, o recorrente limitou-se a pugnar pela respetiva redução, com o único argumento de que se lhe afiguram exageradas.
Na determinação da medida da pena acessória prevista no artigo 69º-B do Código Penal (proibição do exercício de funções), expendeu o Tribunal recorrido: “O arguido replica comportamentos em 3 ocasiões, sobre uma vítima muito jovem, em factos que demonstram uma deficiência na formação da sua personalidade.
O arguido atua com total desconsideração da vítima, sua prima que lhe foi entregue, em duas ocasiões, para vigiá-la e protegê-la.
O arguido, segundo o relatório social, exerceu, informalmente, esta atividade de baby sitting com outras crianças (como se levou aos factos assentes).
O arguido pondera poder posicionar-se no mercado de trabalho, o que reforça, em concreto, do ponto de vista da prevenção especial, a necessidade de aplicação desta pena, ainda que a atual redação coloque na disponibilidade do julgador a ponderação sobre a aplicação, ou não, da pena acessória, num regime que se afigura concretamente mais favorável ao infrator.
Tendo em conta os fatores supra enunciados na fixação das penas parcelares e sem se perder de vista o tempo de reclusão que o arguido previsivelmente irá cumprir, fixa-se a medida parcelar de cada uma das penas acessórias previstas naquele preceito em (cinco) anos pela prática de cada um dos 3 crimes de abuso sexual de crianças.
Sanada a discussão sobre o cúmulo jurídico de penas acessórias com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2018, deverão ser observadas as regras do cúmulo jurídico estabelecidas nos artigos 77.º e 78.º do Código Penal, já analisadas.
O arguido incorre, assim, numa pena que deve ser fixado entre o mínimo de 5 anos e o máximo de 15 anos (pena acessória máxima aplicável, correspondente à soma aritmética das 3 penas).
Tudo ponderado, e considerando, em especial, a perigosidade deste condenado, entende-se ser adequado fixar a proibição do arguido exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas por 7 (sete) anos.”
E, no que se reporta à pena acessória prevista no artigo 69º-C do Código Penal (proibição de assunção da confiança de menor), disse o Tribunal recorrido: “Volvendo ao caso concreto, o arguido é condenado por 3 crimes de abuso sexual de crianças, abusando da relação de família que mantém com a menor.
Assim, a aplicação desta pena acessória tem primacialmente uma função sancionatória, não se podendo deixar de graduar a sua medida, em função da medida da culpa.
Em concreto, entende-se adequado graduar esta pena acessória prevista no artigo 69º-C, nº 2 do Código Penal em 5 (cinco) anos, por cada um dos 3 crimes.
Tendo, agora, de graduar a pena única entre 5 (cinco) anos e 15 (vinte) anos, entende-se ser adequado graduar, em concreto, a pena única em 7 (sete) anos, igualmente proporcional e adequada e refletir a imagem global dos factos.”
Não vemos, no que se refere às penas acessórias (parcelares e únicas) fixadas na decisão recorrida, que a fundamentação do Tribunal a quo se mostre desajustada da realidade, ou que tenham sido ignoradas circunstâncias relevantes para a determinação da respetiva medida (e nem o recorrente as apontou).
De acordo com o disposto no artigo 69º-B, nº 2 do Código Penal, na redação introduzida pela Lei nº 15/2024, de 29 de janeiro (que foi a aplicada na decisão recorrida), “Pode ser condenado na proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, por um período fixado entre 5 e 20 anos, quem for punido por crime previsto nos artigos 163.º a 176.º-A e 176.º-C, quando a vítima seja menor”.
Por seu turno, o artigo 69º-C, nº 2 do Código Penal, na redação introduzida pela Lei nº 15/2024, de 29 de janeiro (que foi a aplicada na decisão recorrida), “Pode ser condenado na proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, por um período fixado entre 5 e 20 anos, quem for punido por crime previsto nos artigos 163.º a 176.º-A e 176.º-C, quando a vítima seja menor”.
Ambas as disposições foram originalmente aditadas ao Código Penal pela Lei nº 103/2015, de 04 de agosto.
Como se pode ler na exposição de motivos da Proposta de Lei nº 305/XII29, que esteve na origem das alterações legislativas de 2015, a referida lei destinou-se a transpor «para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 2011/93/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de dezembro de 2011, relativa à luta contra o abuso sexual e a exploração sexual de crianças e a pornografia infantil, e que substitui a Decisão-Quadro n.º 2004/68/JAI do Conselho, de 22 de dezembro de 2003. Dá ainda cumprimento às obrigações assumidas por Portugal com a ratificação da Convenção do Conselho da Europa para a Proteção das Crianças contra a Exploração Sexual e os Abusos Sexuais, assinada em Lanzarote, em 25 de outubro de 2007».
No enquadramento das referidas penas acessórias, há que ter em conta, como se refere ainda na exposição de motivos da mencionada Proposta de Lei, que «Quer a Diretiva n.º 2011/93/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de dezembro de 2011, quer a Convenção de Lanzarote, exigem sanções elevadas, criminalizando formas graves de abuso e de exploração sexual de crianças, a maioria das quais já previstas pelo ordenamento jurídico interno. Ambos os instrumentos graduam o nível das penas, ampliando-o para que sejam proporcionais, eficazes e dissuasivas».
Por seu turno, «A inibição de uma pessoa condenada pela prática de crimes contra a autodeterminação sexual e a liberdade sexual de menor do exercício de atividades profissionais ou voluntárias que impliquem contatos diretos e regulares com crianças resulta da necessidade de transposição do artigo 10.º30 da Diretiva n.º 2011/93/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de dezembro de 2011, relativa à luta contra o abuso sexual e a exploração sexual de crianças, e de assegurar o cumprimento das obrigações que resultam do artigo 5.º da Convenção de Lanzarote, que obriga os Estados Parte a tomar medidas que garantam que candidatos a profissões cujo exercício implique, de forma habitual, contatos com crianças não tenham sido anteriormente condenados por atos de exploração sexual ou abusos sexuais de crianças.»
Como referem José Mouraz Lopes e Tiago Caiado Milheiro31, “deve recordar-se que a justificação para a aplicação de penas acessórias no âmbito dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual assenta essencialmente em razões de defesa dos interesses dos menores, enquanto possíveis vítimas do crime. Ou seja, razões de prevenção criminal de caráter geral.”
Assim, importa ter em conta que a imposição de tais penas acessórias tem como escopo prevenir o perigo representado pelos autores de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual e eventuais riscos de reincidência. Por outro lado, é consabido que o cometimento deste tipo de crime tem, na sua génese, parafilias, deficiências na formação da personalidade e total desconsideração da pessoa que deles é vítima, o que vem sendo entendido, do ponto de vista da prevenção especial, como justificação bastante para a necessidade de aplicação destas penas acessórias (cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.11.202032).
Note-se que a aplicação das penas acessórias em questão não visa apenas proteger a vítima direta do crime cometido pelo arguido, mas afastá-lo de potenciais vítimas, salvaguardando o bem-estar das crianças a que pudesse ter acesso, atenta a significativa gravidade dos crimes em questão – não exigindo a lei que o crime pelo qual o arguido tenha sido condenado tenha sido cometido contra o menor ou menores sob a respetiva responsabilidade profissional ou parental.
Não obstante, “[a]s penas acessórias são, em regra, entendidas como uma mera faculdade e não como uma consequência direta do crime, na linha da doutrina aceite de que inexistem efeitos automáticos das penas33.
As penas acessórias têm uma função coadjuvante das penas principais, dependendo de razões de prevenção geral e especial e da culpa a determinação da medida concreta. A pena acessória deve revelar-se necessária, adequada, proporcional e não excessiva.
A sua aplicabilidade, em termos processuais, deve estar sustentada em factualidade própria (e demonstrada) e o pedido de aplicação destas penas acessórias deve constar na acusação. (…) As razões que sustentam a jurisprudência do acórdão uniformizador nº 7/200834, do STJ assim o impõem.”35
[Também neste sentido, vd. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.09.201636]
As alterações legislativas introduzidas em 2024 permitem, atualmente, uma avaliação pelo julgador da necessidade e justificação da imposição de tais medidas (em contrário do que sucedia com a redação original dos dois preceitos aqui em causa), mostrando-se em definitivo afastada a automaticidade da respetiva aplicação.
Não pode deixar de ser tida em conta, por outro lado, a apreciação que o Tribunal Constitucional empreendeu já, a respeito de tais normas, designadamente, no Acórdão TC nº 688/202437, no qual se ponderou:
“Em reforço e de sua parte, a pena acessória prevista no artigo 69.º-B, n.º 2, do CP, apenas desempenhará a apontada função de tutela de crianças e jovens em situação vulnerável de acordo com estas mesmas premissas, que é dizer, quando pelo facto penal (na sua complexidade e singularidade) se manifeste uma situação de perigo e de carência de proteção de vítimas potenciais nos contextos circunstanciais colocados pelo exercício das atividades interditadas pelo agente da infração que imponha que o desempenho da função de tutela apenas seja possível mediante a imposição de período de interdição das atividades proibidas por pelo menos cinco anos: de outro modo, estaremos perante uma função sancionatória vazia quanto a desempenho operativo útil, que é dizer, penalizadora, mas excessiva para a realização do escopo de proteção de valores jurídicos que, noutras circunstâncias, legitimaria a ingerência nos direitos fundamentais do agente.
Levando em conta todo o exposto, e em suma, os dois tipos de crime em referência possuem espectros de condutas puníveis demasiado vastos e de conteúdo e gravidade demasiado heterógenos para que se admitisse a solução rígida e estática que o Legislador adotou pelo artigo 69.º-B, n.º 2, do CP, no registo de ingerência em direitos fundamentais que da norma decorre: a aplicação imperativa e obrigatória de pena acessória de proibição de atividades que envolvam contactos com menores pela prática do crime p. p. pelos artigos 172.º, n.º 2 e 171.º, n.º 3, alínea b), ambos do CP e p. p. pelo artigo 170.º do CP, ao não permitir ao julgador um juízo sobre a respetiva necessidade para realização dos objetivos do Direito do crime e ao fixar como limite mínimo da interdição o período de cinco anos resulta, face ao exposto, materialmente inconstitucional por violação dos artigos 26.º, n.º 1, 47.º, n.º 1 e 18.º, n.º 2, todos da Constituição da República Portuguesa.”
E mais adiante, no mesmo aresto:
“Sobre a admissibilidade genérica da consagração desta medida na Lei criminal, o juízo negativo de inconstitucionalidade acima exposto resulta tanto mais evidente, já que, no caso da pena acessória prevista no artigo 69.º-C, n.º 2, do CP, não se trata apenas da proibição do exercício de funções ou de cargos que envolvem contactos com crianças e jovens, mas verdadeiramente da assunção do papel de cuidador dos mesmos, partilhando residência, quotidiano e adquirindo o poderoso ascendente emocional e a autoridade prática inerentes a um providenciador. O registo de confiança de que depende a aquisição desta posição, por consequência, é tanto mais elevado e acentua-se de forma impressiva a situação de desproteção de crianças e menores contra abusos quando achados nestas condições, também os que possuam contornos sexualizados.
No entanto, descendo ao caso particular da punição dos crimes de abuso sexual de menores dependentes e de importunação, vale também o acima despendido sobre o excesso em que incorre o regime desta pena acessória, isto quando se considere o limite mínimo da moldura penal (cinco anos) – dificilmente compatível com o registo de ilicitude e de censurabilidade de algumas das condutas que se entenderão incriminadas pelos dois tipos – e o seu caráter injuntivo, subtraindo ao julgador o necessário controlo da adequação, necessidade e proporcionalidade da pena, nesta estrita dimensão se podendo falar de uma disciplina legal caracterizada por automaticidade que não é compatível com a proibição de excesso patenteada no artigo 18.º, n.º 2, da Lei Fundamental.
Assim sendo, o disposto no artigo 69.º-C, n.º 2, do CP, quando aplicável pela prática de crime de abuso sexual de menores dependentes, p. p. pelos artigos 172.º, n.º 2 e 171.º, n.º 3, alínea b), ambos do CP, ou de crime de importunação, p. p. pelo artigo 170.º do CP, no segmento normativo em que não permite ao julgador um juízo sobre a respetiva necessidade e adequação para realização dos objetivos do Direito do crime e em que fixa como limite mínimo da proibição o período de cinco anos, é materialmente inconstitucional por violação dos artigos 36.º, n.º 1, 26.º, n.º 1 e 18.º, n.º 2, todos da Constituição da República Portuguesa.”
E, concluindo:
“Sumariando o que fica dito, conclui este Tribunal Constitucional que a introdução no regime jurídico-penal de penas acessórias estatutivas da proibição do exercício de funções relacionadas com menores (artigo 69.º-B, n.º 2, do CP) e da proibição de confiança de menores e inibição de responsabilidades parentais (artigo 69.º-C, n.º 2, do CP) como fórmulas de reação penal aos crimes de abuso sexual de menores dependentes, p. p. pelos artigos 172.º, n.º 2 e 171.º, n.º 3, alínea b), ambos do CP, e de importunação, p. p. pelo artigo 170.º do CP, não é proibido pela Lei Constitucional. Na verdade, o domínio de tutela em causa é extremamente sensível e legitima respostas jurídico-penais de grau de ingerência expressivo, também em função da especial vulnerabilidade dos titulares dos bens jurídicos protegidos pelos tipos incriminadores.
No entanto, o modelo jurídico adotado, ao associar o caráter injuntivo de aplicação das penas a molduras legais de mínimos de proibição de cinco anos, sinaliza rotura com o princípio da proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa), isto perante o nível de intrusão que as medidas sinalizam na liberdade de escolha e de exercício de profissão (artigo 47.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa), no direito ao desenvolvimento da personalidade (artigo 26.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa) e no direito a constituir família (artigo 36.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa) e a ampla heterogenia (em medida de lesão, censurabilidade e necessidades preventivas) das condutas incriminadas pelos tipos-de-crime em referência.”
Ora, tomando boa nota da lição do Tribunal Constitucional, cujos fundamentos subscrevemos na íntegra38, a verdade é que, no caso dos autos, estamos perante a prática de crimes graves (e agravados pela previsão das alíneas b) e c) do nº 1 do artigo 177º do Código Penal), não se justificando qualquer condicionamento da medida das penas acessórias em função da respetiva proporcionalidade, por um lado.
Por outro lado, muito embora as penas aplicadas a título principal tenham sido especialmente atenuadas (nos termos do disposto no artigo 73º do Código Penal), a verdade é que tal sucedeu por força da aplicação do Regime Penal Aplicável aos Jovens Delinquentes, considerada a vantagem da atenuação para a potencial reinserção social do jovem condenado (e não com fundamento em significativa diminuição da ilicitude da sua atuação), e, nos termos previstos no artigo 4º do Decreto-Lei nº 401/82, de 23 de setembro, tal atenuação apenas se aplica às penas de prisão. Neste quadro, não há sequer que discutir a possibilidade de atenuação especial das penas acessórias (que, de resto, vem sendo rejeitada pela jurisprudência39).
Em face do que fica dito, ponderada a fundamentação apresentada na decisão recorrida, e atendendo a que as penas acessórias foram fixadas no respetivo limite inferior, observando-se assinalável compressão no cúmulo jurídico realizado, inexiste qualquer motivo para que se proceda à respetiva redução, não encontrando a pretensão formulada pelo recorrente a este respeito acolhimento legal.
O recurso improcede também quanto a esta questão.
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iv.3. da compensação fixada a favor da vítima
Importa, ainda, analisar a questão de saber se a compensação fixada a favor da vítima DD deve ser considerada excessiva, havendo lugar à respetiva redução.
O recorrente, que assim peticiona, argumentou para o efeito que, “sem desmerecer a gravidade dos factos, a verdade é que os que (alegadamente) se provaram relativamente à menor DD não suscitam reacção indemnizatória de tal monta”, mais aditando que “não se provaram que os factos praticados foram causa de ansiedade, medo e angústia ou “sinais de lesões traumáticas na superfície corporal em geral, nem nas regiões oral, anal e genital”, nem foi demonstrada a necessidade de acompanhamento psicológico por parte da menor DD”. Conclui, em consequência, que “[n]o que diz respeito à compensação nos termos do disposto no artº 82º-A do Código de Processo Penal a fixar pelos danos sofridos por DD, segundo o melhor juízo de equidade, cotejado com a modesta e instável situação económica do Recorrente, que será agravada pela prisão que lhe foi determinada, deve ser fixada em montante não superior a € 2.500,00 (dois mil euros).”
Cumpre apreciar.
O Tribunal a quo fundamentou a atribuição de compensação à vítima tecendo as seguintes considerações:
“Nos termos do artigo 16º, nº 1 do Estatuto da Vítima, aprovado pela Lei nº 130/2015, de 04/09, reconhece-se “à vítima” (…) “no âmbito do processo penal, o direito a obter uma decisão relativa a indemnização por parte do agente do crime, dentro de um prazo razoável”.
O nº 2 prevê que “há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82º-A do Código de Processo Penal em relação a vítimas especialmente vulneráveis, excepto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser.”
De acordo com o artigo 67º-A, do CPP, aditado pelo mesmo diploma, na parte a ter em conta, considera-se “a) 'Vítima': i) A pessoa singular que sofreu um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou psíquica, um dano emocional ou moral, ou um dano patrimonial, directamente causado por acção ou omissão, no âmbito da prática de um crime;(…)
b) “Vítima especialmente vulnerável”, a vítima cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua idade, do seu estado de saúde ou de deficiência, bem como do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social”.
O artigo 82º-A, do mesmo Código de Processo Penal, por seu turno, prevê que “1 - Não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72º e 77º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de protecção da vítima o imponham. 2 - No caso previsto no número anterior, é assegurado o respeito pelo contraditório. 3 - A quantia arbitrada a título de reparação é tida em conta em acção que venha a conhecer de pedido civil de indemnização.”
Assim, estes normativos permitem concluir que ao Tribunal é imposta a obrigação de arbitrar, em relação a vítimas especialmente vulneráveis, uma quantia indemnizatória para reparação pelos danos sofridos, a suportar pelo agente do crime.
DD é vítima de 3 crimes de abuso sexual de criança.
Trata-se de uma vítima menor – à data dos factos com 8 a 9 anos – e, por isso, especialmente vulnerável.
No caso dos autos, os representantes legais da vítima não deduziram, em seu nome, pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, mas também não se opuseram à atribuição de uma quantia reparadora.
Deste modo, existem especiais exigências de proteção da vítima que justificam que se fixe uma quantia a título de reparação dos prejuízos sofridos pela ofendida dos crimes que levaram à condenação do arguido.
A atribuição desta quantia não é regulada pela lei civil, mas nos termos do no artigo 82º-A, do CPP.
Este normativo não consagra um direito a uma indemnização proper rem, mas à reparação dos prejuízos – uma vez que a quantia é tida em conta em ação que venha a conhecer o pedido civil de indemnização, de acordo com o nº 3.
Assim, estando meramente em causa a fixação de reparação, ainda o legislador use o termo “indemnização”, aquela deve ser fixada de acordo com a equidade – cfr. Ac. do STJ de 06/10/2011, Proc. nº 88/09.9PESNT.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
A menor foi sujeita a suportar sexo oral e a ver o seu sexo acariciado enquanto dormia no seu domicílio nas condições que se deram por assentes. Foi forçada a ver um vídeo pornográfico e a suportar a exibição do pénis do arguido, numa brutal interrupção da sua inocência de criança.
Deste modo, tudo ponderado, considerando a atuação do arguido, potenciada pela especial suscetibilidade da vítima, menor com 8/9 anos, visto o seu contributo para o sofrimento e ansiedade da vítima ainda que não atingindo níveis patológicos conhecidos ou consolidados, vistas as potenciais consequências para o normal desenvolvimento da personalidade da menor (sentimento de culpa e de vergonha sentido pela vítima e eventual dificuldade em viver saudavelmente a sua sexualidade), e ainda que as condições económicas conhecidas do ora condenado sejam muito humildes, entende-se ser de fixar o montante indemnizatório a pagar pelo arguido a DD em € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros).”
Não vislumbramos que a avaliação feita pelo Tribunal a quo seja merecedora de censura.
Nos termos do artigo 16º, nº 1 do Estatuto da Vítima, aprovado pela Lei nº 130/2015, de 04 de setembro, reconhece-se “à vítima” (…) “no âmbito do processo penal, o direito a obter uma decisão relativa a indemnização por parte do agente do crime, dentro de um prazo razoável”.
O nº 2 da mesma disposição prevê que “há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82º-A do Código de Processo Penal em relação a vítimas especialmente vulneráveis, excepto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser.
De acordo com o artigo 67º-A, do Código de Processo Penal, aditado pelo mesmo diploma, na parte a ter em conta, considera-se “a) «Vítima»: i) A pessoa singular que sofreu um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou psíquica, um dano emocional ou moral, ou um dano patrimonial, directamente causado por acção ou omissão, no âmbito da prática de um crime;(…)
b) «Vítima especialmente vulnerável», a vítima cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua idade, do seu estado de saúde ou de deficiência, bem como do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social”.
Preceitua o nº 3 do mesmo preceito que “As vítimas de criminalidade violenta e de criminalidade especialmente violenta são sempre consideradas vítimas especialmente vulneráveis para efeitos do disposto na alínea b) do n.º 1 (…)”.
O artigo 82º-A, do Código de Processo Penal, por seu turno, prevê que “1 - Não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72º e 77º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de protecção da vítima o imponham. 2 – No caso previsto no número anterior, é assegurado o respeito pelo contraditório. 3 - A quantia arbitrada a título de reparação é tida em conta em acção que venha a conhecer de pedido civil de indemnização.
Tais normativos permitem concluir que ao Tribunal é imposta a obrigação de arbitrar, em relação a vítimas especialmente vulneráveis, uma quantia indemnizatória para reparação pelos danos sofridos, a suportar pelo agente do crime.
DD é vítima de 3 crimes de abuso sexual, que integram o conceito de criminalidade violenta, à luz da alínea j) do artigo 1º do Código de Processo Penal, que define como tal “as condutas que dolosamente se dirigirem contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a autoridade pública e forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos”.
Existem, pois, especiais exigências de proteção da vítima que justificam que se fixe uma quantia a título de reparação dos prejuízos sofridos pela ofendida dos crimes que levaram à condenação do arguido AA.
A atribuição desta quantia não é regulada pela lei civil, mas nos termos do no artigo 82º-A, do Código de Processo Penal. Este normativo não consagra um direito a uma indemnização propter rem, mas à reparação dos prejuízos – uma vez que a quantia é tida em conta em ação que venha a conhecer o pedido civil de indemnização, de acordo com o nº 3.
De resto, como se considerou no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02.05.201840 (citado pelo Ministério Público na resposta ao recurso), “A “reparação” a que se refere o artigo 82.º-A do CPP situa-se, assim, numa zona de intercepção de fronteiras do direito civil e do direito penal, visando efeitos de natureza penal – contribuindo para a realização dos fins das penas, em particular pelo seu efeito ressocializador, que obriga o autor a enfrentar as consequências do crime e a reconhecer os interesses da vítima (Roxin, apud “A Suspensão Parcial da Pena de Prisão e a Reparação do Dano”, J. A. Vaz Carreto, Almedina, 2017, nota 251) – através da compensação da vítima pelos danos causados. Daí que, como de há muito se vem sublinhando na jurisprudência deste Tribunal (ainda que a propósito da suspensão da execução da pena de prisão), se deva considerar que a “reparação não constitui uma verdadeira indemnização, mas uma compensação destinada principalmente ao reforço do conteúdo reeducativo e pedagógico da pena e dar satisfação suficiente às finalidades da punição, respondendo nomeadamente à necessidade de tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias”, o que justifica “que o montante arbitrado não tenha de corresponder ao que resultaria da fixação da indemnização segundo os critérios estabelecidos na lei para a responsabilidade civil e para a obrigação de indemnizar (artigos 483.º e segs. e 562.º e segs. do Código Civil” (acórdão de 11.6.1997, Colectânea de Jurisprudência, acórdãos do STJ, ano V, T. 2, pp. 226ss).”
Assim, estando meramente em causa a fixação de reparação, ainda que o legislador use o termo «indemnização», aquela deve ser fixada de acordo com a equidade41.
Ora, como se escreveu no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 18.05.201642, “A fixação da indemnização de acordo com a equidade significa que o seu valor é determinado considerando a culpa do agente, a sua situação económica e a situação económica do lesado, as especiais circunstâncias do caso, a gravidade do dano, etc., ou seja, todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida43: a indemnização deve ser proporcional à gravidade do dano, a avaliar objectivamente, e ser fixada de acordo com critérios de boa prudência e ponderação das realidades da vida.
E não podia deixar de ser assim porque a indemnização por danos não patrimoniais não visa pagar, nem apagar, os danos provocados pelo facto, porque sobre eles não podem incidir regras de cálculo. O que aqui se pretende é atenuar, minorar e de certo modo compensar os danos sofridos pelo lesado44, atribuindo-lhe uma soma em dinheiro que lhe permita um acréscimo de bem-estar que sirva de contraponto ao sofrimento moral provocado.
Sendo essa a função a indemnização pelo dano não patrimonial, não pode ela ser meramente simbólica, a menos que seja isso que se pretenda.
Para o ressarcimento destes danos a lei, conforme resulta do art. 496.º do C. Civil, confia ao julgador a tarefa de determinar o que é equitativo e justo em cada caso, e nesta apreciação releva não o rigor contabilístico da adição de custos, despesas, ou de ganhos mas sim o desiderato de, prudentemente, dar alguma correspondência compensatória ou satisfatória entre uma maior ou menor quantia de dinheiro a arbitrar à vítima e a importância dos valores de natureza não patrimonial em que ela se viu afectada45.”
Ora, vistas todas as circunstâncias relevantes para a medida da compensação a arbitrar, entre as quais merece destaque a gravidade dos comportamentos e a sua repercussão no desenvolvimento futuro da personalidade da menor no que tange à sua esfera sexual (e não pode duvidar-se de que tal dano existe, face à factualidade dada como provada, cabendo salientar a evidência de que os atos apurados não podem deixar de ter impacto na formação da personalidade da menor, com potenciais consequências na sua capacidade de se relacionar com outros indivíduos46), sem descurar a modesta situação económica do arguido, a verdade é que a compensação deve ser efetiva e não meramente simbólica e, neste contexto, não podemos reputar de excessivo o valor fixado pelo Tribunal a quo, que, de resto, se encontra em linha com a mais recente jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores (veja-se, por todos, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.06.201947 e a jurisprudência no mesmo citada).
Também nesta parte, improcederá o recurso.
*
V. Decisão
Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, confirmando-se, em consequência, o acórdão recorrido nos seus precisos termos.
Condena-se o arguido no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC.
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Lisboa, 20 de maio de 2025
(texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal)
Sandra Oliveira Pinto
Alexandra Veiga
Alda Tomé Casimiro
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1. O lapso de escrita é evidente: a pena fixada é de três anos e seis meses de prisão (e não seis anos), havendo lugar a retificação, nos termos previstos no artigo 380º do Código de Processo Penal.
2. A menção, constante do dispositivo do acórdão, a KK, constitui evidente lapso de escrita, a corrigir nos termos do disposto no artigo 380º do Código de Processo Penal.
3. Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., pág. 335, Simas Santos e Leal Henriques, Recursos Penais, 9ª ed., 2020, págs. 89 e 113-114, e, entre muitos outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007, Procº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art.º 412.°, n.° 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.»
4. Cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 16ª ed., p. 873; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª ed., p. 339; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª ed., 2007, pp. 77 e ss.; Maria João Antunes, RPCC, Janeiro-Março de 1994, p. 121).
5. No processo nº 477/20.8PDAMD.L1-5, relatado pelo, então, Desembargador Jorge Gonçalves, disponível em www.dgsi.pt.
6. Note-se que, como se escreveu no acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 01 de abril de 2008 (no processo nº 360/08-01, Relator: Desembargador Ribeiro Cardoso, acessível em www.dgsi.pt): “Impor decisão diversa da recorrida não significa admitir uma decisão diversa da recorrida. Tem um alcance muito mais exigente, muito mais impositivo, no sentido de que não basta contrapor à convicção do julgador uma outra convicção diferente, ainda que também possível, para provocar uma modificação na decisão de facto. É necessário que o recorrente desenvolva um quadro argumentativo que demonstre, através da análise das provas por si especificadas, que a convicção formada pelo julgador, relativamente aos pontos de facto impugnados, é impossível ou desprovida de razoabilidade. É inequivocamente este o sentido da referida expressão, que consubstancia um ónus imposto ao recorrente.
As provas que impõem decisão diversa são as provas relevantes e decisivas que não foram analisadas e apreciadas, ou, as que, tendo-o sido, ponham em causa ou contradigam o entendimento plasmado na decisão recorrida.”
7. Publicado no Diário da República, Iª série, Nº 77, de 18 de abril de 2012.
8. No processo nº 4833/16.8T9SNT.L1-5, Relator: Desembargador Artur Vargues, em www.dgsi.pt.
9. No processo nº 3286/04, 5ª Secção, disponível em www.dgsi.pt.
10. Cf. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, pág. 205.
11. Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.02.2008, no processo nº 07P4729, Relator: Conselheiro Pires da Graça, acessível em www.dgsi.pt.
12. Que se traduz no apuramento dos factos efetivamente acontecidos, salvaguardadas as garantias de defesa constitucional e legalmente previstas.
13. No processo nº 1050/14.5PFCSC.L1-3, Relator: Desembargador João Lee Ferreira, acessível em www.dgsi.pt.
14. Como expressamente resulta do artigo 17º da Lei nº 130/2015, de 04 de setembro (Estatuto da Vítima).
15. O que configuraria um regime de exceção – mais gravoso para a vítima, que teria de ser inquirida repetidamente – sem paralelo no nosso ordenamento processual penal, que apenas exige a prestação de depoimento na audiência de julgamento (como resulta da disposição contida no artigo 355º do Código de Processo Penal). 16. De 06.05.2014, relatado pelo Conselheiro José da Cunha Barbosa, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, no qual se decidiu “Não julgar inconstitucional o artigo 271.º, n.º 8, do CPP, no segmento segundo o qual não é obrigatória, em audiência de discussão e julgamento, a leitura das declarações para memória futura”.
17. De 11.10.2017, processo nº 895/14.0PGLSB.L1-A.S1, relatado pelo Conselheiro Manuel Augusto de Matos, em https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao-supremo-tribunal-justica/8-2017-114223836
18. Na folha que lhe foi oferecida, para poder desenhar, como estratégia para que se sentisse mais à vontade (o que foi eficaz, sendo audível que a criança «garatujou» nesse papel).
19. É evidente, cremos, que a inquirição de uma criança de 9 anos não pode ser levada a cabo nos mesmos termos em que se procede à inquirição de um adulto – e tal é ainda mais relevante quando o que está em causa é a alegada prática de atos sexuais de relevo sobre essa criança, factos relativamente aos quais dificilmente disporá de discernimento e estratégias de coping que lhe permitam relatá-los nos mesmos termos em que o faria um adulto. Por isso, exige-se do juiz que procede a essa inquirição um especial tato e sensibilidade, de modo a facilitar o relato, sem pré-juízos, mas, simultaneamente, garantindo à criança a disponibilidade para ouvi-la sem a violentar. E foi o que aconteceu no caso dos autos.
20. José Mouraz Lopes e Tiago Caiado Milheiro, Crimes Sexuais – análise substantiva e processual, 3ª ed., Almedina, 2021, pág. 45, refletem sobre algumas antinomias identificadas a propósito dos crimes sexuais, alertando, nomeadamente, para a negação do agressor e para o descrédito da testemunha. Citamos: “No domínio da criminalidade sexual a negação dos factos imputados ao agressor, por parte deste nos seus depoimentos, pode ser considerada uma evidência. No caso de crimes sexuais contra menores raramente o agressor assume que praticou atos sexuais com as vítimas. Negar, negar, negar. Sempre. Negar mesmo o conhecimento das vítimas. Ainda que confrontado com evidências ou mesmo provas físicas inequívocas sobre a ocorrência dos factos a sua postura é e será sempre a negação.
E ainda: “Importa referir que a seguir à negação dos factos por parte do agressor, a estratégia de defesa usual utilizada pelo arguido/agressor consiste em questionar e desqualificar os depoimentos das vítimas e a própria personalidade desta. A estratégia de questionamento assume duas vertentes.
Quando a vítima é menor trata-se de questionar desde logo a credibilidade do seu testemunho, atenta a sua idade e sobretudo a sua personalidade frágil e vulnerável. Assim, a desqualificação do depoimento, quer por via da alusão à sua idade ou através da sugestão e mesmo imputação de «depoimentos» imaginários, são frequentes.
Quando a vítima é maior, trata-se de afirmar desde logo que, se ocorreu alguma coisa ou se foi praticado qualquer ato sexual, essa situação decorre ou de uma «comparticipação» da vítima nos factos, do seu assentimento à sua prática dos mesmos ou mesmo da ocorrência de um passado menos próprio da vítima. (…). Trata-se, também de um fenómeno que implica igualmente uma revitimização da vítima, na medida em que não só o seu corpo e integridade física foi objeto de uma violência (e de um trauma) como é, também, o seu carater que é atingido.
21. Note-se que, como aliás relevou o Tribunal a quo, o arguido assumiu ter posto a mão entre as pernas da menor (tocando-a na vagina), por duas ou três vezes, embora tenha procurado minimizar tal gesto, para o qual também não ofereceu qualquer explicação.
22. “A presunção de inocência é identificada por muitos autores como princípio in dubio pro reo, no sentido de que um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido. A dúvida sobre a responsabilidade é a razão de ser do processo. O processo nasce porque uma dúvida está na sua base e uma certeza deveria ser o seu fim. Dados, porém, os limites do conhecimento humano, sucede frequentemente que a dúvida inicial permanece dúvida a final, malgrado todo o esforço para a superar. Em tal situação, o princípio político-jurídico da presunção de inocência imporá a absolvição do acusado já que a condenação significaria a consagração de um ónus de prova a seu cargo, baseado na prévia admissão da sua responsabilidade, ou seja, o princípio contrário ao da presunção de inocência.” (Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, I, 5ª ed., 2008, págs. 83 e 84).
23. Sobre as possibilidades de aplicação do princípio in dubio pro reo, vd. o importante acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.05.2009, no processo nº 09P0484, Relator: Conselheiro Raul Borges, em www.dgsi.pt.
24. Cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Uniformização de Jurisprudência nº 7/95, de 19.10.1995, in Diário da República, Iª série, de 28.12.1995, que fixou jurisprudência no sentido de que «É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito».
25. Código de Processo Penal Comentado, 3ª ed. revista, Almedina, 2021, pág. 1291.
26. No processo nº 10/18.1PELRA.S1, Relatora: Conselheira Ana Barata Brito, acessível em www.dgsi.pt.
27. Assim, Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas – Editorial Notícias, 1993, § 55, págs. 72-73.
28. Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª ed. atualizada, Universidade Católica Editora, 2021, págs. 407-408. 29. Que pode ser acedida em https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=39169
30. Cujo nº 1 prevê: «A fim de evitar o risco de reincidência, os Estados-Membros tomam as medidas necessárias para garantir que uma pessoa singular condenada por um dos crimes referidos nos artigos 3.º a 7.º seja impedida, temporária ou permanentemente, de exercer actividades pelo menos profissionais que impliquem contactos directos e regulares com crianças
31. Ob. cit., pág. 316.
32. No processo nº 114/18.2TELSB.S1, Relator: Conselheiro António Clemente Lima, acessível em www.dgsi.pt
33. Figueiredo Dias, Direito Penal – As Consequências Jurídicas do Crime, Lisboa, 1994, pág. 158.
34. De 25.06.2008, publicado no Diário da República, Iª série, Nº 146, de 30.07.2008, Relator: Conselheiro Oliveira Mendes, do qual citamos: «[a] pena acessória é, evidentemente, uma verdadeira pena. Efectivamente, conquanto seja uma sanção dependente da aplicação da pena principal (como a própria denominação indica), não resulta directa e imediatamente da cominação desta, no sentido de que não é seu efeito automático, o que, aliás, constitui imposição constitucional, decorrente do n.º 4 do artigo 30º da Constituição, que estabelece, tal qual o faz o n.º 1 do artigo 65º do Código Penal, que nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos, constituindo uma sanção autónoma.»
35. Mouraz Lopes e Tiago Milheiro, Ob. cit., pág. 317.
36. No processo nº 459/14.9PBEVR.S1, Relator: Conselheiro Francisco Caetano, acessível em www.dgsi.pt.
37. De 09.10.2024 (retificado pelo Acórdão nº 755/24, de 23 de outubro), relatado pelo Conselheiro António Ascensão Ramos, acessível em www.tribunalconstitucional.pt.
38. Em cujo sentido já havíamos apontado, no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 19.04.2022, proferido no processo nº 3007/16.2T9CSC.L1-5, e relatado pela aqui relatora, acessível em www.dgsi.pt.
39. Vd., a título de exemplo, o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 18.06.2024, no processo nº 358/23.3GTABF.E1, Relator: Desembargador Artur Vargues, acessível em ECLI:PT:TRE:2024:358.23.3GTABF.E1.05/
40. No processo nº 156/16.0PALSB.L1.S1, Relator: Conselheiro Lopes da Mota, acessível em em www.dgsi.pt.
41. Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06.10.2011, no processo nº 88/09.9PESNT.L1.S1, Relator: Conselheiro Souto de Moura, disponível em www.dgsi.pt.
42. No processo nº 232/12.9GEACB.C2, Relatora: Desembargadora Olga Maurício, em www.dgsi.pt.
43. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 2003, pág. 602 e segs.
44. Autor, obra e local citados acima.
45. Acórdão do T.R.P. de 9-7-1998, CJ, Ano XXIII, tomo IV, pág. 185, citando Pessoa Jorge, in Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil.
46. Recordamos que da matéria de facto dada como provada resulta que o arguido atuou movido pelo desejo de satisfazer os seus instintos sexuais, aproveitando-se do fácil contacto e da relação de confiança e familiar que mantinha com a sua prima, menor de idade e da ingenuidade desta bem como da sua particular vulnerabilidade em razão da idade, bem como do natural ascendente que sobre ela mantinha, o que representou e concretizou (15); que o mesmo tinha ainda perfeito conhecimento das consequências psicológicas que o seu comportamento provocava na ofendida menor, quer por causa da sua idade quer pela relação de parentesco, aproveitando-se da sua especial vulnerabilidade, o que quis e conseguiu (16); que estava ciente de que a sua relação familiar propiciava um contacto estreito e frequente com a DD, gerando com esta uma relação de dependência que limitava a possibilidade desta opor resistência aos atos libidinosos que sobre ela praticava (17); e, ao assumir os comportamentos supra referidos, o arguido pretendeu valer-se e valeu-se sempre, da relação de dependência que havia estabelecido com a menor (18) – não sendo possível equacionar que uma criança de 8-9 anos possa passar por uma situação como a descrita nos autos indiferente e imperturbada, e, de facto, assim não foi, como os autos mostram.
47. No processo nº 98/17.2GAPTL.S1, Relator: Conselheiro Vinício Ribeiro, acessível em www.dgsi.pt.