I. O actual regime do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça [redacção da Lei nº 94/2021, de 21 de Dezembro, entrada em vigor em 21 de Março de 2022, dada ao art. 432º do C. Processo Penal] estabelece que os vícios da decisão e as nulidades que não devam considerar-se sanadas, previstos nos nºs 2 e 3 do art. 410º do C. Processo Penal, só podem fundamentar recurso para o mesmo tribunal, de acórdão da relação proferido em 1ª instância (alínea a) do nº 1 do art. 432º do C. Processo Penal), ou de acórdão, em recurso per saltum, do tribunal de júri ou do tribunal colectivo que tenha aplicado pena de prisão superior a 5 anos (alínea c) do nº 1 do art. 432º do C. Processo Penal). Portanto, os recursos de 1º grau para o Supremo Tribunal de Justiça, além da matéria de direito, podem ainda ter por fundamento os referidos vícios e nulidades.
II. É entendimento pacífico do Supremo Tribunal de Justiça que os vícios e as nulidades previstas nos nºs 2 e 3 do art. 410º do C. Processo Penal, não podem, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 432º, nº 1, b) e 434º, ambos do mesmo código, fundamentar recurso de acórdãos da relação, tirados em recurso.
III. Tendo o presente recurso por objecto o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, que teve por objecto os recursos interpostos [pelo arguido e pela assistente] do acórdão do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, e tendo nele o arguido sindicado a modificação da matéria de facto operada pela Relação, pelas sobreditas razões, não pode esta concreta questão, porque questão de facto, ser seu fundamento, uma vez que não se integra nos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça, tal como se encontram definidos no art. 434º do C. Processo Penal.
I. RELATÓRIO
No Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Juízo Central Criminal de ... – Juiz ..., o Ministério Público requereu o julgamento, em processo comum com intervenção do tribunal colectivo, do arguido AA, com os demais sinais nos autos, imputando-lhe a prática, em autoria material e concurso efectivo de, um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nºs 1, a) e c), 2, a), 4 e 5, do C. Penal [ofendida BB], de quatro crimes de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nºs 1, e), 2, a), 4, 5 e 6, do C. Penal [ofendidos CC, DD, EE e FF] e, de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22º, 23º, nºs 1 e 2, 73º, 131º e 132º, nºs 1 e 2, b), h) e i), do C. Penal.
Por acórdão de 11 de Julho de 2024, foi o arguido, absolvido da prática dos quatro imputados crimes de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nºs 1, e), 2, a), 4, 5 e 6, do C. Penal e do imputado crime de homicídio qualificado na forma tentada, e condenado pela prática do imputado crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nºs 1, a) e c) e 4, do C. Penal, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão e na pena acessória de proibição de contactos com a ofendida BB, pelo período de três anos e seis meses.
Mais foi o arguido condenado no pagamento à demandante civil BB, da quantia de € 2615 acrescida de juros de à taxa legal, desde a notificação do pedido de indemnização e até integral pagamento, por danos patrimoniais sofridos, e da quantia de € 4000 acrescida de juros de à taxa legal, desde a data do trânsito em julgado da decisão e até integral pagamento.
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Inconformado com a decisão, recorreu o arguido AA para o Tribunal da Relação do Porto, pretendendo ser desnecessária, desadequada e desproporcional a pena de prisão fixada pela 1ª instância, sendo bastante para assegurar as exigências de prevenção, o período de onze meses de detenção já sofrido e a mera censura do facto, pelo que deveria a pena de prisão ser suspensa na respectiva execução.
Igualmente inconformada, recorreu a assistente BB para o Tribunal da Relação do Porto, pretendendo a condenação do arguido pela prática do imputado crime de homicídio qualificado na forma tentada e ainda, no pagamento da quantia de € 3406 e no que se liquidar em execução de sentença, quanto a despesas médicas futuras, a título de danos patrimoniais sofridos, e na quantia de € 35000, a título de danos não patrimoniais sofridos.
O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 27 de Novembro de 2024, proferiu a seguinte decisão:
Pelo exposto, acordam os Juízes Desembargadores da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em:
1. Conceder provimento ao recurso interposto pela assistente/demandante civil na parte atinente à impugnação da matéria de facto, nos moldes acima referidos;
2. Em consequência, e concedendo igual provimento ao recurso interposto pela assistente, condenar o arguido AA pelo cometimento, em autoria material e em concurso efectivo com o crime de violência doméstica pelo qual se encontra já condenado nos presentes autos, de um crime de homicídio qualificado tentado, na pessoa da assistente BB, p.p. pelos artigos 131º, 132º, n.ºs 1 e 2, al. b), 22º, 23º, n.ºs 1 e 2 e 73º, todos do CP;
3. Fixar em 6 (seis) anos de prisão a pena pelo cometimento do aludido crime de homicídio qualificado na forma tentada;
4. Reformular a pena aplicada pelo cometimento de um crime de violência doméstica, p.p. pelo artigo 152º, n.º 1, als. a) e c) e n.º 2, al. a) do CP na pessoa da assistente, fixando-a em 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;
5. Fixar em 6 (seis) anos e 8 (oito) meses de prisão a pena única a cumprir pelo arguido AA;
6. Manter em 3 (três) anos e 6 (seis) meses a medida da pena acessória de proibição de contactos na qual foi o arguido condenado;
7. Não conhecer das questões recursivas do arguido, porque prejudicadas face ao provimento concedido à pretensão recursiva da assistente e ao decorrente do artigo 403º, n.º 3 do CPP;
8. Conceder parcial provimento ao recurso interposto pela demandante civil/assistente, fixando-se desta feita em 17.500,00 € (dezassete mil e quinhentos euros) o quantum indemnizatório devido pelo demandado civil AA a título de danos não patrimoniais à demandante civil BB.
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De novo inconformado com a decisão, recorre o arguido AA para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:
A – O arguido não se conforma com o douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, porquanto, devido à alteração da matéria de facto dada como provada, modificada pelo Tribunal a quo, nem com a nova qualificação jurídica dada pelo douto Acórdão recorrido e, consequentemente, da medida concreta da pena que foi aplicada ao arguido, na sequência daquela alteração, tendo o douto Acórdão proferido pelo Tribunal a quo violado o artigo 409.º, n.º 1 do CPP.
B – Ora, o arguido é primário e social e profissionalmente integrado, pelo que referem os mais altos Princípios do Processo Penal Português que o arguido com a pena deve ser ressocializado na sociedade, o que a decisão recorrida não permite.
C – Não concordamos que a medida da pena foi bem aplicada pelo Tribunal da Relação do Porto, pois o arguido não teve intenção de tirar a vida à Assistente – pelo que não devem ser dados como provados os factos não provados n.º 6, 8, 9 e 11, bem como os factos não provados n.º 15 a 19, relativamente ao pedido de indemnização civil.
D – Pelo que, não existindo intenção de matar, não estamos perante os elementos objectivos e subjectivos do ilícito tipo do crime de homicídio qualificado, na forma tentada, mas sim um crime de violência doméstica, p. e p. no artigo 152.º, n.º 1, al. a) e c) do Código Penal, conforme acórdão proferido pelo Tribunal de 1.ª Instância.
E – Não concordamos, por isso, também, com a medida da pena aplicada ao arguido pelo tribunal a quo, que subiu de 3 anos e seis meses para seis anos e oito meses de prisão efectiva, motivo pelo qual, se entende que o douto Acórdão do Tribunal a quo, violou o artigo 409º, nº 1 do CPP.
F – Na Audiência de Discussão e Julgamento, o arguido prestou declarações, admitindo que, no dia dos factos, esperou pela Assistente junto à porta da residência desta, empunhando uma forquilha que levou de sua casa e, com o cabo da forquilha, desferiu na assistente, uma única pancada na zona do ombro, que terá feito com que a assistente caísse. A zona do ombro não é uma zona de órgãos vitais, pelo que não teve o arguido qualquer intenção de tirar a vida à assistente.
G – Declarando-se arrependido, justificou o seu comportamento com o facto ter conflitos com a Assistente relacionados com a partilha das responsabilidades parentais dos filhos e de ter sabido, na véspera, que a Assistente teria apresentado uma nova queixa crime contra si, o que o terá deixado transtornado.
H – Com efeito, apesar de confirmar a existência dos referidos conflitos com a assistente, negou ter-lhe dirigido, ou aos filhos, as expressões que lhe são imputadas, referindo nunca ter feito ameaças nem lhe ter chamado nomes. Tendo o Tribunal de 1.ª Instância feito valer como verdadeiros estes factos.
I – Ora, o arguido não teve intenção de tirar a vida à Assistente, conforme conclui o Tribunal de 1.ª Instância – pelo que não devem ser dados como provados os factos não provados n.º 6, 8, 9 e 11, bem como os factos não provados n.º 15 a 19, relativamente ao pedido de indemnização civil.
J – Pelo que, não existindo intenção de matar, não estamos perante os elementos objectivos e subjectivos do ilícito tipo do crime de homicídio qualificado, na forma tentada, mas sim um crime de violência doméstica, p. e p. no artigo 152.º, n.º 1, al. a) e c) do Código Penal, conforme acórdão proferido pelo Tribunal de 1.ª Instância.
K – Ora, na parte dos factos não admitida pelo arguido a convicção do tribunal a quo formou-se erradamente com base nas declarações prestadas pela Assistente BB, que prestou declarações para memória futura, afigurando-se-nos não ter prestado um depoimento espontâneo e sincero.
L – Termos em que, uma vez que as lesões não são compatíveis com as lesões descritas nos relatórios periciais, não poderá o Arguido ver aumentada a sua pena, nem o quantum indemnizatório.
M – Mesmo os Senhores Desembargadores do Tribunal a quo não acolheram na totalidade a versão da assistente quanto à dinâmica das agressões de que foi vítima no dia 27 de setembro de 2023, por considerarmos que as lesões descritas nos relatórios periciais e no relatório de urgência apenas permitem, nesta parte, formular um grau de certeza quanto à factualidade que se julgou provada pelo Tribunal de 1.ª Instância.
N – Com efeito, a descrição das concretas condutas praticadas pelo arguido, efetuada pela assistente e percecionada num momento que, seguramente, foi um momento de pânico, afigura-se-nos algo exagerada em face das lesões medicamente atestadas.
O – Já a versão do arguido – colher o melhor entendimento no Colectivo de Juízas no sentido de que apenas desferiu uma pancada na assistente, ou mais do que uma, ainda que o arguido não o tenha admitido – é compatível com as lesões que foram imediatamente constatadas no corpo de BB, não se nos afigurando possível, sequer, que tais lesões infligidas pelo Arguido, tenham tido o resultado que agora o Tribunal da Relação do Porto pretende dar.
P – Ora, o relatório pericial referia quanto às eventuais feridas (...) (vide ponto 24). Ora, nunca tendo o arguido desferido a pancada com a referida forquilha com intenção de matar a Assistente, não tendo direccionado o referido objecto a uma parte vital do corpo da vítima, muito menos, na zona da cabeça e abdómen.
Q – O arguido ao desferir a pancada na Assistente BB, apenas pretendeu assustá-la e
Consequentemente, não se vislumbra que os atos por si praticados sejam, sem margem para dúvidas, compatíveis com a intenção de matar.
R – Porquanto, em primeiro lugar, o facto de o arguido, como referiu a ofendida, a raspar com os dentes da forquilha, “como se estivesse a juntar feno” não é compatível com a intenção de a atingir em qualquer órgão vital, nem de lhe retirar a vida, pois tal conduta é apta a provocar ferimentos superficiais na pele, mas não a alcançar o resultado morte.
S – Em segundo lugar, mesmo que se admitisse como totalmente verdadeira a descrição dos factos que é feita pela ofendida e descontando alguns exageros narrativos que nos parecem decorrer do receio que sofreu, não logramos entender por que razão, caso fosse intenção do arguido atingir a assistente na cabeça com o cabo da forquilha ou espetar a forquilha em qualquer órgão vital, não o fez.
T – Efetivamente, afigura-se-nos que, como já se referiu, atendendo às caraterísticas da forquilha em causa e à situação de fragilidade em que a ofendida se encontrava, o arguido, se assim o quisesse, poderia ter atingindo a vítima em zonas do corpo onde se alojam órgãos vitais, tendo espetado a forquilha com força, ao invés de o fazer de forma superficial, que é aquela que é compatível com as lesões descritas. O que não fez, Senhores Conselheiros!
U – Termos em que quer a medida da pena única aplicada ao arguido de 6 anos e 8 meses, face à factualidade dada como provada e com a qual não se concorda, se revelar pouco criteriosa e desequilibradamente doseada, não tendo sido bem aplicada as disposições relativas à dissimetria da pena na sua plenitude, violando os artigos 70.º e ss do CPP.
V – Devendo, também, a indemnização por danos não patrimoniais a pagar pelo Arguido à Assistente também ser reconsiderada e diminuída, devido ao supra alegado quanto à falta de existência dos elementos objectivos e subjectivos do ilícito tipo homicídio qualificado, na forma tentada.
W – Importando ainda referir que, a personalidade do agente, a sua integração social, as condições pessoais, nomeadamente familiares que deverão pender a favor do arguido, pela aplicação do Princípio geral “in dubio pro reo”.
Y – Pelo que, a pena única deve ser reconsiderada e consequentemente reformulada e reduzida, por violação do Tribunal a quo dos artigos 71.º do Código Penal e do artigo 30.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa.
Z – Devendo, também, a indemnização por danos não patrimoniais a pagar pelo Arguido à Assistente também ser reconsiderada e diminuída, devido ao supra alegado quanto à falta de existência dos elementos objectivos e subjectivos do ilícito tipo homicídio qualificado, na forma tentada.
Termos em que deve o presente recurso merecer provimento e, consequentemente, sendo a pena de prisão a que o arguido foi condenado diminuído por todo o exposto, fazendo-se assim a acostumada Justiça!
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O recurso foi admitido por despacho de 10 de Janeiro de 2025.
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Respondeu ao recurso a Exma. Procuradora-Geral Adjunta junto do Tribunal da Relação do Porto, alegando, em síntese, i) que o objecto do recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça apenas pode versar matéria de direito pois, no caso concreto, não se verificam as excepções previstas nas alíneas a) e c) do nº 1 do art. 432º do C. Processo Penal, o que determina que toda a argumentação do recorrente relativa à matéria de facto considerada provada pelo Tribunal da Relação não pode ser conhecida, ii) que assim sendo, a pena de prisão fixada pela prática do crime de homicídio qualificado tentado e a pena única fixada para o concurso de crimes terá que partir da matéria de facto provada fixada no acórdão recorrido, sendo assim evidente, a improcedência do recurso, iii) que não obstante a integração social e profissional do arguido e a circunstância de ser delinquente primário, porque são graves as condutas praticadas e revelam uma personalidade agressiva, vingativa, sem ressonância afectiva e indiferente para com a assistente, a medida concreta da pena fixada para o crime de homicídio qualificado tentado, face às exigências de prevenção existentes, é ajustada,
e concluiu pela improcedência do recurso.
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Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto deste Supremo Tribunal emitiu parecer, começando por sublinhar ser consensual o entendimento de que a discussão relativa à matéria de facto e à forma como as instâncias decidiram quanto a ela e sobre a valoração da prova produzida, está excluída dos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça, não podendo, por tal razão, constituir objecto do recurso, passando, depois a afirmar que o recorrente configura e sustenta a problemática da desadequação e desproporcionalidade da pena, num errado juízo de subsunção dos factos ao direito pois que, fixada que foi a matéria de facto pelo tribunal a quo, sem que exista erro ou vício que a inquine, é correcta a subsunção feita pela Relação aos tipos legais que convocou, resultando também da sua fundamentação, que a pena aplicada ao crime de homicídio respeita a medida da culpa e assegura as exigências de prevenção existentes, em obediência ao disposto no art. 71º do C. Penal, sendo justa e adequada, o mesmo se verificando com a pena única fixada, e concluiu pela improcedência do recurso.
Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.
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Colhidos os vistos, foram os autos presentes à conferência.
Cumpre decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
A) Factos provados
A matéria de facto provada que provém das instâncias [com a modificação operada pela Relação sinalizada a negrito] é a seguinte:
“(…).
1. A assistente BB, nascida em .../.../1970 e o arguido AA, nascido em .../.../1974, casaram entre si em 21/12/1996;
2. Divorciaram-se em 14/02/2001, tendo-se separado de facto nessa altura e, a partir de data não apurada, mas certamente anterior ao ano de 2007, reataram a relação, passando desde então a viver em condições análogas às dos cônjuges, partilhando cama e mesa, em habitação situada na Rua ..., lugar da ..., concelho de ...;
3. Dessa relação resultou o nascimento de cinco filhos, a saber, GG, nascido a .../.../1999; CC, nascida a .../.../2007; DD, nascida a .../.../2011; EE, nascido a .../.../2014; e FF, nascida a .../.../2019;
4. O casal separou-se novamente de facto em data situada em março de 2023;
5. Corre termos no Juízo de Competência Genérica de ... da Comarca de Aveiro o Processo Comum Singular nº 128/23.9..., no âmbito do qual, em 01/07/2023, foi deduzida acusação contra o aqui arguido AA por factos ali qualificados como crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, nº 1, alíneas a) e c) e n.º 2 alínea a) do Código Penal, figurando como vítima de tais factos a aqui ofendida BB;
6. Pouco após a separação de facto do casal, ocorrida em março de 2023 – apesar de no âmbito do processo referido no ponto 5 o arguido, desde 04/04/2023 ter ficado sujeito a medidas de coação, entre as quais a obrigação de permanecer na habitação do casal e proibição de aproximação da habitação do casal ou do trabalho da ofendida e de a contactar pessoalmente por qualquer meio, por si ou por intermédio de outra pessoa – o arguido passou a residir numa casa em frente à residência da ofendida, esta sita na Rua ..., localidade da ..., ..., ;
7. No período compreendido sensivelmente entre os meses de março de 2023 e de setembro de 2023, com frequência de, pelo menos, uma vez por semana, mais precisamente aos Domingos, quando estava com os seus filhos menores, CC, DD, EE e FF, o arguido, em tom enfurecido, verbaliza as seguintes expressões:
8. - “Qualquer dia entro lá em casa e acabo com aquilo tudo;
9. - “Uma certa pessoa que está lá em vossa casa, qualquer dia vai para debaixo da terra!”
10. – “Vocês vêm comigo, porque eu ando a pagar para estar convosco. Mas isto vai mudar!”
11. - “A vossa mãe vai para debaixo da terra! Eu vou para a prisão uns anitos, mas ela vai para debaixo da terra!”
12. - “Eu mato essa pessoa e vou uns anitos para a cadeia!”
13. - “A tua mãe é uma puta, um coirão!”
14. - Só anda metida com cabrões e com putas”
15. - “Puta, cabra, nojenta, coirão!”
16. - “Devia ter morrido!”
17. - “Nunca devia ter nascido!”
18. Na senda de atingir o bom nome e a honra, bem como a paz e sossego da ofendida BB, no dia 01 de junho de 2023, a hora não apurada, quando se dirigia para a ..., em ..., fazendo-se acompanhar dos referidos menores e fazendo-se transportar no seu veículo automóvel, ao mesmo tempo que ia vociferando as habituais expressões que acima ficaram descritas, disse uma vez mais a um daqueles menores, sendo ouvido também pelos outros três: “A tua mãe um destes dias vai para debaixo da terra!”, anunciando, assim, a todos os referidos filhos menores que tinha intenção de colocar termo à vida da mãe dos mesmos, a aqui ofendida BB;
19. Em data não concretamente apurada de julho de 2023, num dia de domingo em que se fez acompanhar dos menores CC, DD, EE e FF, seguindo todos de automóvel, o arguido, gritando e referindo-se à aqui ofendida BB, disse “Ela é uma merda, é um coirão! Não devia ter nascido!”
20. No dia 27 de agosto de 2023, quando regressaram a casa após terem estado com o pai, aqui arguido, o menor EE, disse à ofendida BB: “Fecha os portões, que o AA vai-te matar!”;
21. Em muitas das referidas situações e após o arguido, na presença dos mesmos, vociferar contra a ofendida BB, a DD, o EE e a FF choravam, entristecidos e atemorizados perante a possibilidade de a sua mãe vir a morrer;
22. Nestas mesmas ocasiões, CC, então com 16 anos de idade, também ficava atemorizada, pois que, perante o tom enraivecido com que o arguido proferia as sobreditas expressões, acreditava que o mesmo realmente poderia atentar contra a vida da sua mãe;
23. Ainda devido aos sobreditos comportamentos do arguido, a menor FF, então com 4 anos de idade, perguntava todos os dias à sua mãe, BB, se a mesma ia morrer e, em muitas dessas ocasiões, a chorar, fazia a mãe prometer-lhe que não iria morrer;
24. Em consequência daqueles repetidos comportamentos, os menores, aos domingos, manifestavam sempre vontade de não acompanhar o seu progenitor, acabando por ser obrigados a fazê-lo, o que os entristecia e lhes provocava um continuado estado de grande ansiedade e sofrimento emocional;
25. Por outro lado, sempre que os menores regressavam a casa depois de cada um dos referidos encontros com o arguido, relatavam à ofendida BB tudo o que havia ocorrido, sentindo-se esta humilhada e afetada no seu bom nome, honra e consideração, para além de se sentir também atemorizada perante a possibilidade de o arguido vir a atentar efetivamente contra a sua vida;
26. No dia 09 de setembro de 2023, visando perturbar a paz e sossego da ofendida BB, quando esta se encontrava no quintal da sua residência, sita Rua ..., localidade da ..., ..., aí foi avistada pelo arguido que, de forma audível, lhe dirigiu as seguintes expressões: “Puta; Anda aqui esta puta do caralho…”;
27. Na madrugada do dia 27 de setembro de 2023, cerca das 05h00, à imagem do que sucedia diariamente, a ofendida BB, fazendo-se transportar no seu veículo automóvel, foi levar o seu filho mais velho, GG, ao seu local de trabalho, sito na empresa S..., em ...;
28. Ao regressar a casa, sita na morada referida, foi surpreendida pelo arguido que, conhecedor da sua rotina diária, ali a aguardava, escondido;
29. Ato contínuo, assim que a ofendida saiu do veículo, o arguido, visando atentar contra a vida da mesma e fazendo uso do objeto que se encontra apreendido a fls. 90 e fotografado a fls. 111 dos autos, correspondente a um utensílio agrícola, vulgarmente denominado de “forquilha”, composto por cabo longo e quatro dentes metálicos e pontiagudos numa das extremidades, aproximou-se da BB e logo vociferou “Puta do caralho, queres pôr-me na cadeia? Põe-me lá, então, caralho! Dou cabo de ti! Eu mato-te!”;
30. Enquanto assim vociferava, o arguido, elevando a referida forquilha e fazendo uso da força, desferiu, com o cabo da forquilha, diversas pancadas na direcção da cabeça de BB que a atingiram nos braços e em outras partes do corpo, atingindo-a mais o lado direito, pelo que a BB, a cerca altura, caiu no chão;
31. Então, o arguido, persistindo no propósito de colocar termo à vida da ofendida BB, apontou os dentes metálicos da forquilha de modo a espetá-los na zona do abdómen da mesma, ensaiando diversas tentativas de a atingir com a dita forquilha nessa parte do corpo;
32. Visando sempre espetar os dentes da forquilha naquela zona do abdómen da ofendida, o arguido desferiu repetidos golpes nessa direção, só não logrando atingir a vítima nessa parte do corpo porque a mesma continuou a rebolar no chão, tendo-a o arguido atingido com os dentes da forquilha nos braços e pernas, causando-lhe diversas feridas nesses membros do corpo;
33. Nesta altura, um cão pertencente à ofendida, que se encontrava no pátio da residência, começou a ladrar intensamente.
34. Como consequência direta e necessária da conduta do arguido, a ofendida BB, para além do mais, sofreu dores naquelas partes do corpo atingidas e ainda as lesões que se mostram descritas no registo do Serviço de Urgência do Centro Hospitalar do ..., onde foi admitida em 27-09-2023, pelas 07h04, designadamente:
35. Múltiplas feridas perfurantes (marcas de forquilha): 2 na região antebraço esquerdo e 2 na região face anterior da coxa esquerda; 2 feridas na face lateral interna do joelho esquerdo; escoriação na face anterior do joelho esquerdo; dor à mobilidade do cotovelo e antebraço direitos; ferida contusa no lábio superior; fratura parcial do dente molar (inferior, à esquerda);
36. Tendo a ofendida sido posteriormente submetida a exame médico-legal no Gabinete Médico-Legal do ..., ainda naquele dia 27-09-2023, foram observadas as lesões e tudo o mais que se encontra documentado no relatório de exame médico-legal junto a fls. 127 a 128 dos autos, designadamente:
- Na face: fratura da coroa de 4.6 (já com carie prévia); escoriação avermelhada com 1 cm por 1 cm na metade esquerda do lábio superior;
- No membro superior direito: equimose esverdeada de todo o carpo, com acentuado edema e impossibilidade de mobilizar os dedos; escoriação centimétrica no 5º raio, face posterior;
- No membro superior esquerdo: cotovelo e parte do antebraço envolvidos em ligadura, que não foi destapada para não interferir no normal processo de cicatrização das lesões;
- No membro inferior esquerdo: penso e ligadura a envolver o membro, desde o terço distal da coxa até ao terço médio da perna, que não foi destapada para não interferir no normal processo de cicatrização das lesões.
37. Submetida a novo exame médico-legal em 27-12-2023, a ofendida apresentava ainda as lesões que se mostram descritas no relatório de exame que se encontra a fls. 521 e 522, designadamente:
- Na face: fratura da coroa e 4.6 (com cárie previa);
- No membro superior direito: Duas tumefações infracentimétricas, duras, móveis, no terço proximal da face posterior do antebraço; Cicatriz arroxeada infracentimétrica no dorso da mão, nº 5º raio; Dor à mobilização da mão.
- No membro superior esquerdo: Cicatriz arroxeada infracentimétrica na face posterior do terço médio do antebraço.
- No membro inferior esquerdo: Cicatriz arroxeada vertical não queloide com 5cm por 05,cm na face antero-lateral do terço distal da coxa; Cicatriz arroxeada não queloide, ligeiramente oblíqua, com 4,5cm por 0,5cm, na face interna do joelho.
38. As lesões acima referidas causaram à ofendida BB um número não concretamente apurado de dias de doença;
39. Como consequência direta e necessária da conduta levada a cabo pelo arguido ao longo de todo o período descrito e até ao dia 27 de setembro de 2023, a ofendida BB sofreu um acentuado desgaste psicológico e emocional, tendo a mesma vivido entristecida, humilhada, ansiosa e amedrontada, temendo outras e mais graves investidas por parte do arguido, designadamente, que o mesmo atentasse contra a sua vida, como vinha repetidamente anunciando que iria fazer, bem como que atentasse contra a vida dos filhos de ambos;
40. Por sua vez e ainda relativamente ao sobredito período, com a conduta acima descrita o arguido AA quis, para além do mais, como conseguiu, molestar reiteradamente a saúde psíquica e física da ofendida BB, atentando repetidamente contra o seu bom nome, honra e consideração e atentando, ainda, contra o seu bem-estar emocional, paz e sossego, não se abstendo de o fazer mesmo através dos filhos menores de ambos ou na presença destes, bem sabendo que a ofendida havia sido sua companheira e que tinham filhos em comum;
41. No dia 27 de Setembro de 2023, ao agredir a vítima BB com a sobredita forquilha nos moldes em que o fez, o arguido actuou com a intenção de lhe tirar a vida, visando atingir a zona abdominal do corpo desta, ciente de que tal zona corporal alberga órgãos vitais e que as agressões por ele tentadas, se concretizadas na sua totalidade, seriam adequadas a provocar de forma direta e necessária a morte da vítima, resultado esse que representou e que só não logrou atingir por motivos alheios à sua vontade;
42. E o arguido atuou do modo supra descrito não obstante a relação conjugal que havia mantido com a BB e o facto de terem filhos em comum, quatro deles menores, e aos especiais deveres de respeito e de cooperação que sabia decorrerem dessa relação, o que representou;
43. Por outro lado, e igualmente como consequência direta e necessária da conduta levada a cabo pelo arguido AA ao longo de todo o período descrito, os menores CC, DD, EE e FF sofreram um desgaste psicológico e emocional;
44. O arguido bem sabia que a CC, a DD, o EE e a FF eram seus filhos e que, à data dos factos, contavam, respetivamente e apenas, 15, 12, 9 e 4 anos de idade;
45. O arguido agiu sempre de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que toda a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.
[Do pedido de indemnização civil formulado por BB]:
46. Na sequência das agressões de que foi vítima, a demandante sofreu fratura parcial de um dos dentes;
47. Necessitará de efetuar exodontia desse dente, bem como de recorrer a uma solução implanto-suportada;
48. Para efetuar tais tratamentos terá de despender, pelo menos, a quantia de €2.500 (dois mil e quinhentos euros);
49. A demandante exercia a atividade agrícola por conta própria, auferindo quantia variável não concretamente apurada, mas não inferior a 200,00 € (duzentos euros) mensais;
50. Até ao mês de dezembro de 2023, a demandante teve dificuldades na realização de algumas tarefas agrícolas, como tratar dos animais ou efetuar trabalhos na terra;
51. Tendo tais tarefas sido efetuados por familiares;
52. Para acompanhamento dos tratamentos médicos ao membro superior direito, a demandante realizou eletromiografia, no dia 22/04/2024 e uma ecografia no dia 28/12/2023;
53. Tendo pago com tais exames a quantia de €115 (cento e quinze euros);
54. Em consequência das agressões de que foi vítima a demandante padeceu, durante período não concretamente apurado, de dores e dormência na sua mão direita;
55. Bem como de dores no membro superior direito e no ombro direito, quando faz movimentos que exijam a aplicação de força;
56. Tal determina que muitas das tarefas domésticas e do seu trabalho como agricultora tenham sido realizadas com um esforço acrescido;
56-A. Sem prejuízo do descrito em 56, a demandante civil, em consequência das lesões de que foi vítima, e durante período não concretamente apurado, necessitou de ajuda de terceira pessoa para a realização de tarefas do dia a dia, como sejam as de vestir, comer, fazer a higiene pessoal e apertar os atacadores, ajuda essa que foi prestada pelos seus filhos e pela sua mãe;
56-B. Devido aos factos praticados pelo arguido no dia 27.09.2023 a demandante, durante um período de tempo não concretamente apurado, mas não para além da data de 27.12.2023, passou a ter dificuldades para manter o sustento do agregado familiar, por não conseguir trabalhar com a mesma desenvoltura, sendo que a sua mãe passou a ajudá-la para poder sustentar o seu agregado familiar;
57. Após 27/09/2023, passou a ter medo de estar sozinha em casa, tendo ainda medo do escuro e sofrendo de pesadelos frequentes;
58. Sentindo-se humilhada, angustiada, esgotada e deprimida;
59. A demandante tem pesadelos frequentes, dormindo de forma agitada;
60. Tem medo de sair de casa sozinha;
61. Como forma de minorar os medos de que ficou a padecer a mãe da demandante passou a dormir na casa principal, quando antes vivia num anexo da casa;
62. A demandante passou a dormir com os filhos EE e FF;
63. A sua filha DD passou a dormir com a avó para aí se sentir mais segura;
64. A demandante toma medicação para dormir;
65. Passou a sentir-se emocionalmente instável, sendo acometida por ataques de angústia, desespero e medo;
[Mais se provou:]
65.Antes de ser detido no âmbito do presente processo, AA encontrava-se a residir sozinho, num terreno em frente da casa da ofendida, apesar de estar sujeito a medidas de coação no processo n.º 128/23.9... desde 04-04-2023, entre as quais, a de proibição de permanecer na habitação do casal, proibição de aproximação da habitação do casal e/ou do trabalho da ofendida e proibição de contactar pessoalmente ou por qualquer meio, por si ou por intermédio de outra pessoa, com a mesma;
66. À data, encontrava-se a trabalhar na firma “I...”, na ..., onde se encontra empregado há 22 anos. No contexto laboral, é considerado um bom trabalhador, disponível, responsável e com bom relacionamento com colegas e patrão. Desenvolvia trabalho de manutenção essencial ao funcionamento da empresa. Por esses motivos, quando sair em liberdade, tem lugar assegurado na firma, segundo o seu empregador;
67. Os pais do arguido, com 83 (o pai) e 84 anos de idade (a mãe), pensionistas, mostram-se totalmente disponíveis para essa coabitação, acreditando nas capacidades pessoais do filho para se reinserir na sociedade e prosseguir a vida sem enveredar por condutas criminais;
68. AA foi criado com os pais e irmão, num ambiente familiar sem fatores de perturbação significativos, existindo bom relacionamento entre todos os elementos do agregado;
69. O pai acumulava o trabalho numa fábrica com a agricultura, enquanto a mãe, para além do trabalho nos campos, vendia hortícolas no mercado. O valor do trabalho era cultivado no ambiente familiar, a par de uma gestão comedida dos rendimentos disponíveis. Não se verificava dificuldade no acesso a bens essenciais;
70. Habituado desde criança a trabalhar na agricultura, o arguido não quis prosseguir os estudos para além do 6.º ano de escolaridade, depois de reprovar dois anos. Teria algumas dificuldades aprendizagem e não gostava da escola;
71. Aos 16 anos começou a trabalhar numa oficina de automóveis, iniciando um percurso laboral marcado pela continuidade, sem períodos inativos;
72. Para além do emprego, ocupava a maior parte do tempo livre a trabalhar na agricultura, incluindo fins-de-semana;
73. Privilegiava o convívio com a família, raramente frequentado cafés ou outros espaços de socialização;
74. Conheceu a ofendida numa festa popular, casaram em 21-12-1996 e fixaram residência em casa dos seus sogros;
75. Divorciaram-se em 14-02-2001 e estiveram separados cerca de sete anos;
76. Terão reatado o relacionamento em 2007, voltando a coabitar com a mãe da ofendida;
77. AA encontra-se preso preventivamente no Estabelecimento Prisional de ... desde o dia 29-09-2023, à ordem do presente processo. Apresenta comportamento ajustado às normas da reclusão, não tendo registo de infrações disciplinares;
78. Encontra-se a trabalhar na cozinha do estabelecimento;
79. Mantém contacto regular com os pais, irmão e alguns amigos e conhecidos, incluindo o seu patrão. Não recebe visitas nem telefonemas dos filhos, mostrando-se desgosto com essa circunstância;
80. Afirma-se decidido a não mais contactar com ofendida, pretendo estabelecer residência junto dos pais, assim que for colocado em liberdade;
81. AA tem apoio da família (pais e irmão), mostra-se atualmente decidido a se manter afastado da ofendida e tem possibilidade de reintegrar a sua anterior entidade laboral;
82. O arguido é visto pela sua entidade patronal e colegas de trabalho como sendo uma pessoa calma, trabalhadora e empenhada;
83. O arguido não tem antecedentes criminais registados.
(…)”.
B) Factos não provados
A matéria de facto provada que provém das instâncias [com a modificação operada pela Relação sinalizada a negrito] é a seguinte:
“(…).
[Da acusação:]
1.O arguido nunca aceitou a separação do casal;
2. Que o arguido tenha passado a residir numa casa em frente à residência da ofendida, com o propósito de observar de perto os movimentos da ofendida, intensificando, assim, a perseguição e observação dos movimentos desta;
3. Que o arguido tenha usado as expressões “Meto-vos a todos debaixo da terra! E ai de quem se meter à minha frente!” “Vocês e uma certa pessoa vão para debaixo da terra”;
4. Que numa situação em que se fez acompanhar dos menores CC, DD, EE e FF, seguindo todos de automóvel, tenha proferido a expressão “Acabo com vocês todos!”;
5. Que, noutra ocasião, quando todos seguiam novamente no interior do automóvel e, desta feita, no dia 27 de agosto de 2023, domingo, após ter encetado discussão com os mesmos menores, o arguido tenha dito, aos gritos, “Vão todos para debaixo de terra, coloco-vos a todos debaixo de terra”, pretendendo significar, uma vez mais, que tinha intenção de matar a aqui ofendida BB e os filhos de ambos, acrescentando que não se importava de ir 7 ou 8 anos para a cadeia, mas que a mãe deles não ficava cá para contar a história;
6. O arguido, nas circunstâncias descritas em 31. dos factos provados, e sem prejuízo do aí descrito, apontou os dentes metálicos da forquilha de modo a atingir a assistente na zona das costas, dos braços e das pernas;
7. Sem prejuízo do descrito nos pontos 29. a 32. e 41. dos factos provados, o arguido, no dia 27.09.2023, ao agredir a assistente BB com a sobredita forquilha nos moldes em que o fez, actuou com a intenção de a atingir nas zonas onde efectivamente a atingiu, sabendo que a sua actuação era adequada a causar dores e ferimentos naquela, atingindo-a na sua integridade física.
8. Que o arguido, persistindo no propósito de colocar termo à vida da ofendida BB, tenha apontado os dentes metálicos da forquilha de modo a espetá-los na zona do abdómen e das costas da mesma, ensaiando diversas tentativas de a atingir com a dita forquilha nessas partes do corpo;
9. Visando sempre espetar os dentes da forquilha naquelas zonas do abdómen e das costas da ofendida, o arguido desferiu repetidos golpes nessa direção, só não logrando atingir a vítima nessas partes do corpo porque a mesma continuou a rebolar no chão;
10. Que o cão da ofendida tenha começado a atirar-se repetidamente contra o portão ali existente, ensaiando tentativa de transpor o mesmo, altura em que o arguido, convencido de que alguém havia detetado o que estava a ocorrer, atirou a forquilha para o chão e colocou-se em fuga, a correr;
11. Que ao agredir a vítima BB com a sobredita forquilha nos moldes em que o fez, o arguido tenha atuado com a intenção de lhe tirar a vida, visando atingir as zonas torácica e abdominal do corpo desta, ciente de que tais zonas corporais albergam órgãos vitais e que as agressões por ele tentadas, se concretizadas na sua totalidade, seriam adequadas a provocar de forma direta e necessária a morte da vítima, resultado esse que representou e que só não logrou atingir por motivos alheios à sua vontade;
12. Que, como consequência direta e necessária da conduta do arguido, os menores CC, DD, EE e FF tenham vivido permanentemente entristecidos, ansiosos e aterrorizados, representando a possibilidade de a sua mãe vir efetivamente a ser morta pelo arguido, temendo ainda, os menores, que o seu pai igualmente atentasse contra a vida deles, tal como repetidamente anunciava aos menores que iria fazer, quando estes estavam na sua companhia;
13. O arguido bem sabia que a CC, a DD, o EE e a FF não tinham, os mesmos, capacidade emocional para enfrentar aquelas investidas sem que isso afetasse gravemente o são e normal desenvolvimento da personalidade dos mesmos menores, o que representou;
14. Agiu o arguido, também em relação aos seus filhos menores acima identificados, com o propósito alcançado de atentar repetidamente contra a paz e sossego, bem-estar emocional e saúde física e psíquica dos mesmos, como conseguiu, não se abstendo de o fazer mesmo sabendo que os mesmos eram seus filhos e que, devido à sua evidente fragilidade decorrente desde logo da idade, eram, também eles, incapazes de se defender das suas investidas.
[Do pedido de indemnização civil:]
15. A demandante esteve 95 dias totalmente incapaz de exercer a sua atividade laboral;
16. Em consequência das agressões de que foi vítima a demandante necessitou, até final de dezembro de 2023, de ajuda de terceira de pessoa para a realização de tarefas como vestir, comer, fazer a higiene pessoal, conduzir veículos automóveis e apertar os atacadores, ajuda que foi prestada pela sua mãe e pelos seus filhos; [eliminado, pela redacção do ponto 56-A dos factos provados],
17. Devido aos factos praticados pelo arguido no dia 27/09/2023 a demandante passou a ter dificuldades para manter o sustento do agregado familiar, por não conseguir trabalhar com a mesma desenvoltura, sendo que a sua mãe passou a ajudá-la para poder sustentar o seu agregado familiar; [eliminado, pela redacção do ponto 57-B dos factos provados],
18. A demandante auferia mensalmente, por conta da atividade agrícola desempenhada, quantia não inferior ao salário mínimo;
19. Na presente data, a demandante ainda mantém limitações físicas decorrentes dos factos praticados pelo arguido.
[20. Não resultaram provados, nem não provados, quaisquer outros factos com interesse para a decisão da causa.]
[21. Não tomámos posição direta quanto aos factos meramente conclusivos ou integradores de conceitos de direito.]
(…)”.
C) Fundamentação relativa à determinação da medida da pena [na parte relevante]
“(…).
Quanto à tarefa de cálculo da medida da pena de prisão aplicável, em concreto, ao arguido, a disposição do n.º 1 do artigo 71º do CP vincula o julgador aos critérios da culpa do agente e da exigência de prevenção, devendo atender-se preponderantemente à medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos em concreto violados, pelo que, cabe à prevenção geral positiva ou de integração e não à culpa, fornecer a sub-moldura de prevenção correspondente à tutela dos bens jurídicos e à estabilização das expectativas comunitárias na validade ou reafirmação contrafáctica da norma violada. Dentro da sub-moldura encontrada actuará, depois, o princípio da culpa consagrado no artigo 13º do CP, fixando o limite máximo da medida concreta da pena.
Continua a citada disposição legal que para a determinação da medida concerta da pena ter-se-á em conta ainda todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra ele (n.º 2), considerando nomeadamente o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, a intensidade do dolo, as condições pessoais do agente, a conduta anterior e posterior ao facto, etc.
- O grau de ilicitude, isto é, o sentido de desvalor jurídico-penal revelado pelo comportamento do arguido, situa-se num patamar muito acentuado, pois este revelou com toda a sua actuação um total desprezo pelo bem “vida" da assistente, bem esse jurídico-penalmente protegido, manejando para o efeito uma alfaia agrícola em circunstâncias tais que impediram que a assistente se defendesse por outra forma que não a reacção instintiva que teve de colocar os braços a proteger a cabeça e de se rebolar no solo, protegendo a zona abdominal com os braços e/ou pernas, sendo notória ainda a perigosidade de tal instrumento, atenta a sua capacidade letal se usada fora do uso específico, mormente para agressão a pessoas, o que era do conhecimento do arguido.
- O modo de execução do facto ilícito, revelou uma actuação bastante censurável, uma vez que o arguido actuou desferindo vários golpes no corpo da assistente, ora com o cabo da forquilha, ora com os dentes da mesma, não refreando o seu ímpeto criminoso, antes insistindo no mesmo. Acresce que o arguido actuou sem que precedesse qualquer tipo de provocação da assistente, com o arguido a fazer-lhe uma “espera”: o encontro entre o arguido e a assistente não foi fortuito, foi o arguido quem o procurou; o “ataque” à assistente não decorreu, por ex., no decurso de uma discussão acalorada entre ambos, por mera casualidade. Pelo contrário, foi preparado pelo arguido. Não se pode ignorar ainda o carácter desafiador revelado pela expressão usada pelo arguido no momento imediatamente precedente às agressões “Puta do caralho, queres pôr-me na cadeia? Põe-me lá, então, caralho! Dou cabo de ti! Eu mato-te!”
- O grau de violação dos deveres impostos ao arguido é elevado, porquanto sendo a vítima por si visada mãe dos seus cinco filhos, pessoa com quem tinha sido casado e com quem tinha mantido ao longo de 16 anos uma relação análoga à dos cônjuges, merecia-lhe outro respeito e consideração.
Quanto à gravidade das suas consequências estas não são de relevante gravidade, tendo em conta a extensão das lesões e as zonas do corpo atingidas.
Temos então, por outro lado, que quanto à intenção criminosa do arguido, este agiu com dolo, dolo directo, sendo este a modalidade do dolo que traduz a forma mais intensa do querer - o arguido quis sempre o resultado morte como o fim da sua conduta.
As exigências de prevenção especial fazem-se sentir com acuidade. Pese embora o arguido, à data da prática dos factos, não tenha registados antecedentes criminais (vide ponto 84. dos factos provados), gozando de boa integração social, familiar e profissional (vide pontos 67., 69., 74., 82. e 83. dos factos provados), mostrando no Estabelecimento Prisional, porque sujeito à medida de coacção prisão preventiva à ordem dos presentes autos, um comportamento ajustado às normas da reclusão, aí trabalhando na cozinha (pontos 78. e 79.), o certo é que evidencia não ter ainda interiorizado o desvalor da sua conduta, parecendo até que as desvaloriza, pois que, como se lê no Acórdão recorrido, “justificou o seu comportamento com o facto de ter conflitos com a assistente relacionados com a partilha das responsabilidades parentais dos filhos e de ter sabido, na véspera, que a assistente teria apresentado uma nova queixa contra si, o que o terá deixado transtornado”. Revela, assim, a sua postura, uma incapacidade de auto-crítica.
Mais: o arguido não se coibiu de praticar os factos consubstanciadores do crime de homicídio qualificado na forma tentada na pessoa da assistente quando sujeito, no âmbito de uns outros autos em que se encontra acusado pelo cometimento de um crime de violência doméstica na pessoa daquela, à medida de coacção de proibição de contactos. O vindo se sublinhar não ignora a factualidade julgada provada nos pontos 81. e 82. dos factos provados – “o arguido afirma-se decidido a não mais contactar com a ofendida, pretendendo estabelecer residência junto dos pais assim que for colocado em liberdade”. No entanto, tal resume-se a uma mera intenção que necessitará, no futuro, de uma efectiva concretização, não afastando assim o juízo feito quanto às elevadas exigências de prevenção especial.
Concomitantemente, as exigências de prevenção geral são igualmente elevadas pois que o cometimento de factos integradores de um crime de homicídio, ainda que na forma tentada, gera na sociedade um forte sentimento de insegurança, ainda mais quando cometido de forma inopinada e surpreendendo a vítima, com recurso a instrumento agrícola e, por tal, de fácil acesso e sem qualquer controlo. Não se pode, por outra banda, ignorar o número crescente de violência sobre pessoas do sexo feminino num horizonte de relação existencial, cumprindo, desta feita, com a pena concreta a fixar, obstar à banalização ou vulgaridade de tais condutas, pondo cobro a qualquer sentir de impunidade.
Reclamam assim estas exigências, bem tudo o mais que ficou explanado, a fixação de uma pena concreta que se afaste do mínimo legal. Considerando, porém, que as lesões provocadas na vítima não a colocaram em perigo para a vida, entendemos que a pena deverá ficar abaixo do meridiano da pena que se situa pelos 9 (nove) anos e 4 (quatro) meses.
Tudo ponderado, atendendo aos limites abstractos da pena, tem-se por ajustada e proporcional condenar o arguido numa pena de 6 (seis) anos de prisão para o crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p.p. pelos artigos 131º, 132º, n.º 1 e n.ºs 2, al. b), 22, 23, n.º 1 e 2 e 73º, todos do CP.
Também no que se reporta à factualidade integradora do crime de violência doméstica, a actuação do arguido – que num crescendo, de forma insistente verbalizou ameaças e expressões ofensivas da honra e dignidade da assistente, fazendo-o em tom enfurecido, não se coibindo de o fazer perante os seus filhos menores de idade, sendo dois deles de tenra idade (pontos 7. a 20. dos factos provados) – revela um elevado grau de ilicitude e de violação dos deveres impostos. Com efeito, para o arguido foi-lhe de todo indiferente aos sentimentos que a sua actuação criava nos filhos - choro, tristeza, temor, ansiedade, convencimento de que o mal futuro anunciado se viesse a concretizar e sofrimento emocional (vide pontos 21. a 24. dos factos provados) -, pois que o seu fito egoístico era atingir a assistente com tais condutas, humilhando-a, afectando-a no seu bom nome e consideração, atemorizando-a perante a possibilidade daquele vir efectivamente a atentar contra a sua paz e sossego, bem como contra a sua vida (vide pontos 25. e 26. dos factos provados), sendo assim graves as consequências da sua conduta. Da mesma forma, o arguido, como vimos, actuou aqui com dolo directo.
É de igual forma altamente censurável a conduta do arguido, não evidenciando o mesmo juízo crítico quanto à sua conduta, escudando-se em diferendos com a assistente relacionados com a partilha das responsabilidades parentais. Elevadas são então as exigências de prevenção especial, ainda que se não ignore a ausência de antecedentes criminais e a boa inserção social, familiar e profissional do arguido.
A par, as exigências de prevenção geral são de grande monta, pois que a sociedade reclama uma punição no caso concreto por forma a dissuadir do cometimento, no futuro, de factos ilícitos e culposos idênticos aos dos presentes autos. Tal não significa, clarifique-se, a aplicação por parte dos tribunais de “penas exemplares”, mas antes a aplicação de uma pena que, tendo sempre por limite a culpa do agente, não deixe de ser vista como constituindo a defesa da ordem jurídica e da paz social – conteúdo mínimo da prevenção geral positiva.
Por tudo o exposto, e dentro da apontada moldura de uma pena de 2 (dois) a 5 (cinco) anos de prisão, a pena a aplicar não poderá ser fixada pelo mínimo legal – atentas as consequências que os factos cometidos criaram na assistente e nos menores, filhos do arguido –, mas não exige uma aproximação ao seu limite máximo, considerando que a culpa do arguido, pese embora actuando com dolo, não é tão elevada que mereça tal máxima censura.
Julga-se assim adequada e proporcional à gravidade dos factos (da agora reduzida constelação) e respeitadora da culpa do agente, uma pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão para o cometimento pelo arguido de um crime de violência doméstica, p.p. pelo artigo 152º, n.º 1, als. a) e c) e n.º 2, al. a) do CP.
Chegados aqui, ainda uma nota: a redução vinda de fazer da medida concreta da pena de prisão aplicada ao arguido pelo cometimento por este de um crime de violência doméstica na pessoa da assistente, p.p. pelas citadas disposições legais, impôs-se em virtude da diminuição da constelação de factos integradores de tal apontado crime, atendendo à disciplina ínsita no artigo 403º, n.º 3 do CPP.
Tendo sido este o fundamento para tal decisão, prejudicada fica a apreciação da primeira pretensão recursiva do arguido – dosimetria da pena, porquanto o tribunal a quo, ao fixar a pena de 3 anos e 6 meses de prisão pelo cometimento do apontado crime de violência doméstica, violou o disposto nos artigos 40º e 71º do CP.
*
Da Pena Única de Concurso
Porque os crimes cometidos se posicionam numa relação de concurso efectivo entre si (vide artigo 30º, n.º 1 do CP), importa proceder à determinação de uma pena única, tendo esta como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos, tratando-se de pena de prisão e 900 dias, tratando-se de pena de multa e como limite mínimo, a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (vide artigo 77º, n.ºs 1 e 2 e 78º, n.ºs 1 e 2, ambos do CP)
Nos termos deste citado artigo 77º, n.º 1, a pena única a fixar segue os critérios da culpa e da prevenção mencionados no acima citado artigo 71º do CP, devendo ser ainda considerados, em conjunto, como critério especial, os factos e a personalidade do agente (n.º 1 do artigo 77º, in fine), com respeito pelo princípio da proibição da dupla valoração. Aqui se incluem, designadamente, as condições económicas e sociais, reveladoras das necessidades de socialização, a sensibilidade à pena, a suscetibilidade de por ela ser influenciado e as qualidades da personalidade manifestadas no facto, nomeadamente a falta de preparação para manter uma conduta lícita (Figueiredo Dias, “As Consequências Jurídicas do Crime”, 3.ª reimp., 2011, pág. 248 e ss. e ainda o Ac. do STJ de 17.4.2024, Proc. 251/22.7PCRGR.L1.S1, relator Juiz Conselheiro Lopes da Mota, consultável em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/e84da367a87711f180258b03003935a9?OpenDocument.
Seguindo jurisprudência constante do Supremo Tribunal de Justiça, com a fixação da pena conjunta pretende-se sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também, e especialmente, pelo seu conjunto, enquanto revelador da dimensão e gravidade global do seu comportamento. É o conjunto dos factos descritos na sentença que evidencia a gravidade do ilícito perpetrado (o “grande facto”), sendo decisiva, para a sua avaliação, a conexão e o tipo de conexão que se verifique entre os factos que constituem os tipos de crime em concurso.
Há que atender ao conjunto de todos os factos e ao fio condutor presente na repetição criminosa, estabelecendo uma relação desses factos com a personalidade do agente, ter em conta a caracterização desta pela sua projeção nos crimes praticados, levando-se em consideração a natureza dos crimes e a verificação ou não de identidade dos bens jurídicos violados, tudo isto tendo em vista descortinar e aferir se o conjunto dos factos praticados é a expressão de uma tendência criminosa, isto é, se significará já a expressão de algum pendor para uma “carreira”, ou se, diversamente, a repetição emergirá antes e apenas de fatores meramente ocasionais.
Tudo deve passar-se, por conseguinte, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido a atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. “A personalidade do agente – se bem que não a personalidade no seu todo, mas só a personalidade manifestada no facto”, – “é um factor da mais elevada importância para a medida da pena e que para ela releva, tanto pela via da culpa como pela via da prevenção” (Figueiredo Dias, “Direito Penal Português…”, ob. cit., pág. 291).
O que resulta então da globalidade dos factos?
- as acções do arguido, balizadas nos autos entre os meses de Março de 2023 e 27 de Setembro do mesmo ano, dirigiram-se contra a sua ex-esposa e ex-“companheira”, mãe dos seus cinco filhos, quatro deles ainda menores de idade, atingindo bens jurídicos pessoais;
- os factos mais graves, consubstanciadores do crime de homicídio qualificado na forma tentada, p.p. pelas supra citadas disposições legais, ocorreram a hora matutina, após as 5:00 h, mas antes das 07:04 h (vide pontos 27., 28. e 34. dos factos provados), na via pública, tendo-se o arguido deslocado para aquele lugar concreto em momento anterior, munindo-se de uma forquilha.
Temos assim que o arguido foi escalando na gravidade e na violência empregada, revelando uma personalidade com propensão para a prática de crimes contra a família, à qual não repugna o uso da violência para levar a cabo os seus intentos, afastando-se assim a hipótese de os factos se reconduzirem a mera pluriocasionalidade, antes surgindo umbilicalmente ligados à personalidade do arguido que revela uma tendência para reagir, com desprezo pelas mais básicas regras de vivência em comunidade. Com efeito, os factos globalmente ponderados e a “justificação” dada pelo arguido em audiência para os actos por si cometidos, evidenciam que o arguido se pauta por um código de valores individuais que se afasta dos padrões éticos socialmente aceitáveis. O arguido, com a sua actuação objecto dos autos, evidenciou puro egoísmo, pois que sobrepôs a sua vontade aos mais elementares deveres decorrentes da conjugalidade (análoga) que em tempos existiu entre si e a assistente, ultrapassando os supra apontados mecanismos inibitórios, revelando desprezo pela pessoa com a qual partilhou a sua vida por dois períodos distintos, o último dos quais, desde data anterior ao ano de 2007.
Por tudo isto, dentro de uma moldura penal de concurso de 6 (seis) anos a 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão, mostra-se adequada e proporcional, porque atendendo, em conjunto, aos factos (acima descritos e cuja gravidade e especial culpa no cometimento dos mesmos por parte do arguido criticamente analisámos) e à personalidade do agente (sem antecedentes criminais, integrado no meio social mas que, contudo, não deixou de actuar de forma egoística e destituída de motivo válido e socialmente relevante e/ou compreensível) (artigo 77º, n.º 1, 2ª parte Código Penal), uma pena única de concurso de 6 (seis) anos e 8 (oito) meses de prisão.
(…)”.
D) Fundamentação relativa ao pedido de indemnização civil [danos não patrimoniais]
“(…).
Já o mesmo não sucede quanto ao montante arbitrado a título de danos não patrimoniais.
Vejamos então, sem que, contudo, percamos da mira o decidido no Ac. do STJ de 12.03.2004, Proc. n.º 04P2364, relator Juiz Conselheiro Pereira Madeira, consultável em www.dgsi.pt, que conta com o seguinte sumário: “Tal como escapam à admissibilidade do recurso “as decisões dependentes da livre resolução do tribunal” (artigos 400º, n.º 1, al. b) do CPP e 679º do CPC), devam os tribunais de recurso limitar a sua intervenção - em caso de julgamento segundo a equidade às hipóteses em que o tribunal recorrido afronte, manifestamente, “as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida”.( )
In casu, o montante indemnizatório que se mostra fixado a título de danos não patrimoniais considerou que o demandado/arguido lesou, com a sua actuação ilícita e culposa cometida no dia 27.09.2023, o direito à integridade física da demandante, sendo que o grau de culpa do lesante evidenciado nos factos então julgados provados justificou, de acordo com os critérios de equidade, a fixação de um montante indemnizatório de 4.000,00 €.
Tendo nós, na presente sede, revogado na parte penal o decidido de facto e de direito pelo tribunal a quo no que tange ao episódio ocorrido na data de 27.09.2023, considerando que o bem jurídico contra o qual o arguido/demandado atentou foi a vida da demandante, evidenciado a sua conduta uma culpa especialmente acrescida, importa, consequentemente alterar o juízo de equidade feito no Acórdão recorrido.
Dispõe o artigo 496º do Código Civil (doravante CC):
“1. Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
2. (...)
3. O montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494º (…)”
O artigo 494º do mesmo diploma legal alude ao grau de culpabilidade do agente, à situação económica deste e do lesado e às demais circunstâncias do caso justificativas.
É ainda consabido que a indemnização por danos não patrimoniais tem por finalidade compensar desgostos e sofrimentos suportados pelo lesado. Como ensina Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, 6ª edição, vol. I, pág. 571: “Danos não patrimoniais são os prejuízos (como dores físicas, desgostos morais, vexames, perda de prestígio ou de reputação, complexos de ordem estética) que, sendo insusceptíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens (como a saúde, o bem estar, a liberdade, a beleza, a honra, o bom nome) que não integram o património do lesado, apenas podem ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente, sendo esta mais uma satisfação do que uma indemnização”.
E nos termos do preceituado nos citados n.ºs 1 e 3 do artigo 496º, são indemnizáveis, com base na equidade, os danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
Significa isto que na indemnização pelo dano não patrimonial, o pretium doloris deve ser fixado, por recurso a critérios de equidade, de modo a proporcionar ao lesado momentos de prazer que, de algum modo, contribuam para atenuar a dor sofrida. (Ac. STJ de 07.11.2006, Proc. n.º 06ª3349, relator Juiz Conselheiro Sebastião Póvoas, consultável em www.dgsi.pt). Diz-nos igualmente o ainda mais vetusto, mas sempre actual Ac. STJ de 01.06.1982, Proc. 070011, relator Juiz Conselheiro Joaquim Figueiredo, com o seguinte sumário consultável em www.dgsi.pt: “I. Os danos não patrimoniais são insusceptíveis de tradução em dinheiro. Fala-se a esse respeito em pretium doloris, no “dinheiro da dor”. Mas deve ter-se presente que a reparação de tais danos não constitui uma verdadeira indemnização, mediante a qual se visa reconstituir a situação preexistente. Trata-se, antes, de compensar, de algum modo, os danos sofridos pelo lesado - não, propriamente, de o indemnizar por eles.”
Para a formulação do juízo de equidade, que norteará a fixação da compensação pecuniária por este tipo de dano, dizem-nos os Professores Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. I, pág. 501: “O montante da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais deve ser calculado em qualquer caso (haja dolo ou mera culpa do lesante) segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e às do lesado e do titular da indemnização, às flutuações do valor da moeda, etc. E deve ser proporcionado à gravidade do dano, tomando em conta na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida.”
Alertando-nos para iguais critérios orientadores do juízo de equidade que preside à fixação do montante indemnizatório por danos não patrimoniais sofridos, surge-nos o já citado Ac. STJ 01.06.1982, em cujo sumário se pode ler: “II. A valoração dos danos não patrimoniais, que a lei comete aos tribunais, reveste-se de especial dificuldade. O prudente arbítrio do julgador tem nessa matéria largo espaço de intervenção. Há, no entanto, um certo número de dados objectivos a ter em conta: o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso (entre as quais avultam, designadamente, a natureza e a intensidade do dano causado) - artigo 496, n. 3, com referência ao artigo 494, ambos do Código Civil.” E bem assim deve o julgador atender “aos padrões médios de indemnização fixados pela jurisprudência dos Tribunais Superiores” (neste sentido, Ac. Rel. Porto de 12.06.1991, relator Juiz Desembargador Hernani Esteves, com sumário consultável em www.dgsi.pt, porquanto tal juízo de equidade, porque não deve dispensar a observância do princípio da igualdade, obriga ao confronto com indemnizações atribuídas em outras situações, temporalmente próximas e por referência a situações similares, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito (Ac. Rel. Porto de 07.02.2023, Proc. n.º 193/21.3T8PVZ-A.P1, relator Juiz Desembargador Alberto Taveira, consultável em www.dgsi.pt.
Resulta do exposto que o juiz, para a decisão a proferir no que respeita à valoração pecuniária dos danos não patrimoniais, em cumprimento da prescrição legal que o manda julgar de harmonia com a equidade, deverá atender aos factores expressamente referidos na lei e, bem assim, a outras circunstâncias que emergem da factualidade provada. Tudo com o objectivo de, após a adequada ponderação, poder concluir a respeito do valor pecuniário que considere justo para, no caso concreto, compensar o lesado pelos danos não patrimoniais que sofreu, para, em certa medida, neutralizar o sofrimento sentido. São as próprias finalidades prosseguidas pela indemnização por este tipo de danos que nos darão o ponto de equilíbrio (assim, Ac. Rel. Porto de 23.05.2024, Proc. n.º 3637/21.0T8VFR.P1, relator Juíza Desembargadora Judite Pires, www.dgsi.pt.
Há ainda ter presente que o montante indemnizatório a fixar por danos não patrimoniais, para responder, actualizadamente, ao comando do artigo 496º do CC e, porque visa oferecer ao lesado uma compensação que contrabalance o mal sofrido, deve ser significativa, e não meramente simbólica, devendo o juiz, ao fixá-la segundo critérios de equidade, procurar um justo grau de “compensação”.
Norteando-nos pelo supra apontado princípio da igualdade e a aplicação uniforme do direito ( ) e não nos merecendo actualização o entendimento consolidado na jurisprudência de que o dano pela perda do direito à vida deve situar-se, com algumas oscilações, entre os € 50.000,00 e € 80.000,00 ( ), considerando que o demandado atentou de forma deliberada e especialmente censurável contra tal direito da assistente, em consequência do que esta sofreu dores, ansiedade, perturbações de sono, alterações das dinâmicas domésticas, temor experienciado com graves repercussões em termos psicológicos, não esquecendo ainda as limitações físicas que advieram para a demandante em consequência do comportamento delitivo do demandado no que respeita às actividades diárias do dia a dia e para o desenvolvimento da sua actividade agrícola, pela sua extensão e gravidade (nos precisos termos dados como provados), cujas sequelas ainda não se encontram definidas, tudo melhor descrito nos factos provados e que aqui nos dispensamos de reproduzir, afigura-se equitativo fixar a indemnização a título de danos não patrimoniais em 17.500,00 € (dezassete mil e quinhentos euros) - valor esse que se tem por atualizado, vencendo assim juros à taxa legal com a prolação da presente decisão.
(…)”.
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Âmbito do recurso
Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem, pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.
Consistindo as conclusões num resumo do pedido, portanto, numa síntese dos fundamentos do recurso levados ao corpo da motivação, entre aquelas [conclusões] e estes [fundamentos] deve existir congruência.
Deste modo, as questões que integram o corpo da motivação só podem ser conhecidas pelo tribunal ad quem se também se encontrarem sumariadas nas respectivas conclusões. Quando tal não acontece deve entender-se que o recorrente restringiu tacitamente o objecto do recurso.
Por outro lado, também não deve ser conhecida questão referida nas conclusões, que não tenha sido tratada no corpo da motivação (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Vol. 3, 2020, Universidade Católica Editora, pág. 335 e seguintes).
Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir no presente recurso, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são, por ordem de precedência lógica:
- A incorrecta fixação da matéria de facto pelo Tribunal da Relação;
- A incorrecta qualificação jurídica dos factos;
- A incorrecta fixação da medida da pena;
- A violação da proibição de reformatio in pejus;
- O excessivo montante da indemnização fixada por danos não patrimoniais.
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Questão prévia
1. Como se disse, o arguido foi absolvido, em 1ª instância, além do mais, da prática do crime de homicídio qualificado na forma tentada que lhe era imputado na acusação, e na sequência do recurso interposto pela assistente BB, merecedor de provimento, veio a ser condenado pelo Tribunal da Relação do Porto, pela prática do referido crime de homicídio qualificado na forma tentada, na pena de 6 anos de prisão e, em cúmulo [após redução da pena de 3 anos e 6 meses de prisão imposta pela 1ª instância, pela prática de um crime de violência doméstica, para 2 anos e 6 meses de prisão] , na pena única de 6 anos e 8 meses de prisão.
Não se suscitam dúvidas quanto à admissibilidade do recurso interposto pelo arguido do acórdão da Relação do Porto para este Supremo Tribunal, face aos disposto nos arts. 399º, 400º, nº 1, e) e f) ambas a contrario, e 432º, nº 1, b), todos do C. Processo Penal.
Questão distinta é já a de saber se o objecto do recurso fixado pelo arguido se compreende nos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça.
O arguido submeteu ao conhecimento do tribunal ad quem, no que respeita à matéria de facto, o desacerto da alteração da matéria de facto operada pelo Tribunal da Relação, pois não existiu intenção de matar, como afirmou nas declarações prestadas na audiência de julgamento, ao admitir ter aguardado a assistente, munido de uma forquilha, com cujo cabo lhe desferiu uma única pancada no ombro, fazendo-a cair, tudo porque estava com ela em conflito, por causa da regulação das responsabilidades parentais dos filhos de ambos e por ter sabido que a assistente havia apresentado nova queixa contra si, sendo que a convicção da Relação se formou nas declarações para memória futura por ela prestadas, que não foram espontâneas nem sinceras, até porque se reportavam a um momento por ela vivido com pânico, acrescendo que as lesões descritas no relatório pericial não referem a cabeça nem o tórax da assistente, sendo tais lesões compatíveis com a sua [do arguido] versão dos acontecimento, razões pelas quais, não deve ser considerada provada, como decidiu o acórdão recorrido, a matéria de facto que consta dos pontos 6, 8, 9 e 11 dos factos não provados do acórdão proferido pela 1ª instância, nem a matéria de facto que consta dos pontos 15 a 19 dos factos não provados relativos ao pedido de indemnização civil, também do acórdão da 1ª instância.
Portanto, e em síntese, o arguido deduziu impugnação ampla da matéria de facto – tendo por objecto o identificado segmento da decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal da Relação – perante o Supremo Tribunal de Justiça [questão diversa seria a de saber se essa impugnação observou os requisitos previstos no art. 412º, nºs 3 e 4, do C. Processo Penal].
Dispõe o art. 432º do C. Processo Penal, com a epígrafe «Recurso para o Supremo Tribunal de Justiça», na parte em que agora releva:
1 – Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:
a) De decisões das relações proferidas em 1ª instância, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos nºs 2 e 3 do artigo 410º;
b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400º;
c) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal de júri ou pelo tribunal colectivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos nºs 2 e 3 do artigo 410º;
d) De decisões interlocutórias que devam subir com os recursos referidos nas alíneas anteriores.
(…).
Por sua vez, dispõe o art. 434º do C. Processo Penal, com a epígrafe «Poderes de cognição», que, [o] recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame da matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do nº 1 do artigo 432º.
Nos termos deste artigo, os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça restringem-se ao reexame da matéria de direito, excepção feita às situações, únicas, previstas nas alíneas a) e c) do nº 1 do art. 432º do C. Processo Penal.
Assim, o actual regime do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça [redacção da Lei nº 94/2021, de 21 de Dezembro, entrada em vigor em 21 de Março de 2022, dada ao art. 432º do C. Processo Penal] estabelece que os vícios da decisão e as nulidades que não devam considerar-se sanadas, previstos nos nºs 2 e 3 do art. 410º do C. Processo Penal, só podem fundamentar recurso para o mesmo tribunal, de acórdão da relação proferido em 1ª instância (alínea a) do nº 1 do art. 432º do C. Processo Penal), ou de acórdão, em recurso per saltum, do tribunal de júri ou do tribunal colectivo que tenha aplicado pena de prisão superior a 5 anos (alínea c) do nº 1 do art. 432º do C. Processo Penal). Portanto, os recursos de 1º grau para o Supremo Tribunal de Justiça, além da matéria de direito, podem ainda ter por fundamento os referidos vícios e nulidades.
O mesmo não acontece com os recursos interpostos de acórdão da Relação, proferido em recurso, para o Supremo Tribunal de Justiça – recurso de 2º grau – que só podem ter por fundamento o reexame da matéria de direito. Ressalvado fica, naturalmente, o conhecimento oficioso (Acórdão nº 7/95, de 19 de Outubro, DR I-A, de 28 de Dezembro de 1995), pelo Supremo Tribunal de Justiça, dos vícios decisórios que possam afectar o acórdão recorrido, se forem impeditivos da prolação da correcta decisão de direito.
Na verdade, é entendimento pacífico do Supremo Tribunal de Justiça que os vícios e as nulidades previstas nos nºs 2 e 3 do art. 410º do C. Processo Penal, não podem, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 432º, nº 1, b) e 434º, ambos do mesmo código, fundamentar recurso de acórdãos da relação, tirados em recurso (entre outros, acórdãos de 24 de Abril de 2024, processo nº 2634/17.5T9LSB.L1.S1, de 29 de Fevereiro de 2024, processo nº 9153/21.3T8LSB.L1.S1, de 29 de Fevereiro de 2024, processo nº 864/20.1JABRG.G1.S1, de 15 de Fevereiro de 2024, processo nº 135/22.9JAFUN.L1.S1, de 7 de Dezembro de 2023, processo nº 356/20.9PHLRS.L1.S1, de 8 de Novembro de 2023, processo nº 651/18.7PAMGR.C3.S1, de 1 de Março de 2023, processo nº 589/15.0JABRG.G2.S1 e de 23 de Março de 2022, processo nº 4/17.4SFPRT.P1.S1, todos in www.dgsi.pt).
Nesta decorrência, tendo o presente recurso por objecto o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27 de Novembro de 2024, que teve por objecto os recursos interpostos [pelo arguido e pela assistente] do acórdão do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, e tendo nele o arguido sindicado a modificação da matéria de facto operada pela Relação, pelas sobreditas razões, não pode esta concreta questão, porque questão de facto, ser seu fundamento, uma vez que não se integra nos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça, tal como se encontram definidos no art. 434º do C. Processo Penal.
Não ignoramos a existência de doutrina no sentido de também nas situações previstas na alínea b) do nº 1 do art. 432º do C. Processo Penal, quando o acórdão da relação é inovatoriamente condenatório, poder o recorrente impugnar amplamente a matéria de facto, sob pena de violação do direito ao recurso de defesa constitucionalmente garantido (Helena Morão, a Revista, Supremo Tribunal de Justiça, “A Revista Penal em Revista”, Jul. a Dez. 2022, pág. 147). Porém, o Supremo Tribunal de Justiça vem afirmando a conformidade do entendimento em causa com a Constituição da República Portuguesa, em apertada síntese, por não se revelar desproporcionado que o arguido fique limitado à faculdade de influir ex ante no juízo decisório da relação, sem possibilidade de impugnação ex post, porque em sede de recurso da matéria de facto, a lei do processo lhe confere significativas oportunidade de participar na conformação da decisão a ser tomada pelo tribunal de recurso, sendo o duplo grau de jurisdição assegurado, no caso de recurso da decisão absolutória da 1ª instância, pela tramitação do próprio recurso, que lhe permite pronunciar-se sobre o objecto do recurso – ainda que interposto contra si por outros sujeitos processuais –, designadamente, sobre o segmento relativo à matéria de facto, e em termos que não se afastam significativamente dos que disporia na interposição de recurso da decisão da matéria de facto proferida pela relação, se a lei o previsse (acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Março de 2025, processo nº 875/19.0T9CTB.C1.S1, ainda inédito, e de 15 de Fevereiro de 2023, processo nº 7528/13.0TDLSB.L3.S1, in www.dgsi.pt).
Em suma, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 414º, nº 3, 420º, nº 1, b), 432º, nº 1, b) e 434º, todos do C. Processo Penal, deve ser rejeitado o recurso, na parte em que tem por fundamento a impugnação da decisão da matéria de facto proferida no acórdão recorrido pelo Tribunal da Relação do Porto.
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Da incorrecta qualificação jurídica dos factos
2. Diz o arguido – conclusões A, D, I e J – não se conformar com a nova qualificação jurídica pois, não existindo intenção de matar, não está preenchido o tipo do crime de homicídio qualificado, na forma tentada, antes subsistindo o crime de violência doméstica, tal como decidido pela 1ª instância.
A dissensão do arguido quanto à qualificação jurídica dos factos provados, tal como foram fixados no acórdão recorrido, assenta numa premissa que não está verificada, pois que a sua argumentação parte do pressuposto de não estar provado o dolo de homicídio.
Como vimos, o Supremo Tribunal de Justiça não conhece de questões de matéria de facto, razão pela qual não pôde conhecer da impugnação ampla da matéria de facto do acórdão recorrido, deduzida pelo arguido.
Assim sendo, e porque a matéria de facto se encontra definitivamente fixada nos termos em que o foi pelo acórdão recorrido, resultando dos pontos 27 a 32 dos factos provados que o arguido, na madrugada do dia 27 de Setembro de 2023, quando a ofendida regressou à sua residência, depois de ter transportado o filho mais velho ao local de trabalho, foi surpreendida pelo arguido, que a aguardava, empunhando uma forquilha, e que, anunciando-lhe o propósito de a matar, a atingiu com o cabo daquele instrumento agrícola em diversas partes do corpo e, caída a assistente no chão, a espetou em várias partes do corpo com os dentes metálicos do mesmo instrumento, e resultando dos pontos 41 e 45 dos factos provados, que ao assim actuar, teve o arguido intenção de lhe tirar a vida, o que não conseguiu por razões alheias à sua vontade, sabendo tal conduta proibida e punida por lei, é evidente que agiu com dolo de homicídio, portanto, com conhecimento e vontade de causar a morte da assistente, aliás, na modalidade de dolo directo.
Sendo manifesta a falta de fundamento da pretensão deduzida, resta concluir, sem necessidade de maiores considerações, pelo acerto da qualificação jurídico-penal feita pela Relação do Porto – crime de homicídio qualificado na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22º, 23º, nºs 1 e 2, 73º, 131º e 132º, nºs 1 e 2, b), todos do C. Penal – e, consequentemente, pela improcedência da questão suscitada.
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Da incorrecta fixação da medida da pena
3. Alega o arguido – conclusões B, C, D, G, U, W e Y – que sendo primário, estando social e profissionalmente inserido, e visando a pena a ressocialização do agente, a que lhe foi aplicada nos autos tal não permite, pois que, não existindo intenção de matar, não existe crime de homicídio qualificado tentado e por isso, não pode concordar com a pena única de 6 anos e 8 meses de prisão que, porque pouco criteriosa e desequilibrada, violou os arts. 70º e seguintes do C. Penal.
No corpo da motivação, nada mais de relevante acrescentou o arguido quanto a esta problemática.
Também aqui o arguido suporta a sua argumentação num pressuposto não verificado, isto é, que a sua provada conduta, quanto aos factos ocorridos a 27 de Setembro de 2023, não é qualificável como crime de homicídio qualificado na forma tentada, antes integrando o conjunto factual qualificado no acórdão proferido pela 1ª instância como crime de violência doméstica, aí punido com a pena de 3 anos e 6 meses de prisão.
Por outro lado, sindica apenas a medida concreta da pena única, não questionando a medida concreta da pena parcelar imposta pela Relação, relativamente ao crime de homicídio qualificado, na forma tentada – 6 anos de prisão –, ao que cremos, pela simples razão de entender que não o praticou, e ignorando, pura e simplesmente, a redução que a Relação operou na pena imposta pela 1ª instância ao crime de violência doméstica, sancionando-o agora com 2 anos e 6 meses de prisão.
Pois bem.
a. Assente que está que o arguido praticou um crime de homicídio qualificado na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22º, 23º, nºs 1 e 2, 73º, 131º e 132º, nºs 1 e 2, b), todos do C. Penal, a moldura penal abstracta aplicável ao seu sancionamento é a correspondente ao crime consumado especialmente atenuada portanto, a de 2 anos 4 meses e 24 dias a 16 anos e 8 meses de prisão.
Ainda que o arguido não tenha incluído no objecto do recurso a pena parcelar de 6 anos de prisão, imposta pela Relação pelo cometimento do crime de homicídio qualificado tentado, sempre diremos que na sua concretização observou o tribunal a quo o critério legal de determinação da medida concreta da pena previsto no art. 71º do C. Penal, tendo ponderado, como se pode ler na fundamentação do acórdão recorrido supra transcrita, o acentuado grau de ilicitude em razão do modo de execução do facto pelo arguido, o elevado grau de violação dos deveres impostos, a relevância relativa das consequências da sua conduta, o dolo directo com que actuou, a inexistência de antecedentes criminais, a sua inserção laboral, familiar e social, e o comportamento adequado às regras da instituição prisional. Também ponderou a Relação que as declarações prestadas pelo arguido em audiência de julgamento não traduzem uma confissão, nem o mesmo revelou arrependimento quanto aos factos praticados.
No que às exigências de prevenção concerne, considerou a Relação que, não obstante a inexistência de antecedentes criminais, a inserção laboral, familiar e social do arguido e o seu adequado comportamento prisional, são elevadas as exigências de prevenção especial, pois o mesmo revela não ter interiorizado o desvalor da conduta praticada que desvaloriza, justificando-a com o litígio existente com a assistente por causa da regulação das responsabilidades parentais dos filhos menores de ambos, mostrando-se incapaz de auto-crítica, bem como, são igualmente elevadas as exigências de prevenção geral, uma vez que o crime de homicídio, ainda que tentado, é causador de grande alarme social, e vem assumindo um particular protagonismo no que respeita à violência sobre o sexo feminino, causando na comunidade grande alarme social.
Concordando-se com a generalidade das considerações tecidas, uma vez que as circunstâncias agravantes se sobrepõem significativamente às circunstâncias atenuantes, e sendo as exigências de prevenção elevadas, situando-se a pena imposta pela Relação quase que exactamente, sobre o primeiro quarto da moldura penal abstracta aplicável, mostra-se observado o princípio legal previsto no art. 71º do C. Penal, sendo a pena de 6 anos de prisão adequada, necessária, proporcional e plenamente suportada pela culpa do arguido.
b. Entrando agora na análise da medida da pena única, relembremos que a Relação procedeu ao cúmulo da pena que, inovatoriamente, aplicou ao arguido, pelo cometimento do crime de homicídio qualificado na forma tentada – 6 anos de prisão –, com a pena imposta pela 1ª instância, pela prática do crime de violência doméstica [3 anos e 6 meses de prisão] depois de a ter reduzido para 2 anos e 6 meses de prisão, em consequência de parte significativa dos factos objectivos que concorreram para aferir o grau de ilicitude da respectiva conduta, ter passado a integrar o tipo objectivo do crime de homicídio (art. 403º, nº 3, do C. Processo Penal).
O arguido, nunca referindo este circunstancialismo, limita-se a dizer não concordar com a subida da medida concreta da pena, que subiu de 3 anos e 6 meses de prisão, para 6 anos e 8 meses de prisão, que não existindo intenção de matar não pode ser aumentada a pena, e que a pena única de 6 anos e 8 meses de prisão, face à factualidade provada, se mostra sem critério e desproporcionada, violando os arts. 70º e seguintes do C. Penal.
Vejamos.
O art. 77º do C. Penal, com a epígrafe «Regras da punição do concurso», dispõe na 1ª parte do seu nº 1 que, [q]uando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena.
É pressuposto da aplicação deste critério especial de determinação da medida da pena que o agente tenha praticado uma pluralidade de crimes constitutiva de um concurso efectivo – real ou ideal, homogéneo ou heterogéneo –, antes do trânsito em julgado da condenação por qualquer deles, distinguindo este último aspecto os casos de concurso dos casos de reincidência. Verificado que seja o referido pressuposto, o agente é condenado numa pena única.
O legislador afastou o sistema da acumulação material de penas, tendo optado por acolher um sistema de pena conjunta, resultante de um princípio de cúmulo jurídico (Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas/Editorial Notícias, pág. 283 e seguintes e Maria João Antunes, As Consequências Jurídicas do Crime,1ª Edição, 2013, Coimbra Editora, pág. 56 e seguintes). Por isso, estabelece o nº 2 do art. 77º do C. Penal que, a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limites mínimos a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
A determinação da medida concreta da pena única a aplicar ao concurso de crimes impõe a observância de uma sequência de procedimentos.
Em primeiro lugar, há que determinar a medida concreta da pena de cada crime que integra o concurso (art. 71º do C. Penal).
Em segundo lugar, há que fixar a moldura penal do concurso, que terá como limite máximo a soma das penas parcelares aplicadas aos vários crimes que o integram – limite que, contudo, não pode ultrapassar os limites expressamente fixados na lei – e como limite mínimo, a mais elevada das penas parcelares (nº 2 do art.77º do C. Penal).
Em terceiro lugar – constituindo a verdadeira operação de concretização da pena única – há que determinar a medida concreta da pena conjunta do concurso, dentro dos limites da respectiva moldura penal, em função dos critérios gerais da medida da pena – culpa e prevenção – fixados no art. 71º do C. Penal, e do critério especial previsto no art. 77º, nº 1, parte final, do mesmo código, nos termos do qual, na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
Por último, há que verificar a possibilidade de substituição da pena conjunta por pena de substituição, quando legalmente admissível.
A ponderação conjunta dos factos e da personalidade do agente, recomenda algumas explicações breves.
O conjunto dos factos indicará a gravidade do ilícito global praticado – sendo particularmente relevante, para a sua fixação, a conexão existente entre os factos integrantes do concurso –, enquanto a avaliação da personalidade unitária do agente permitirá aferir se o conjunto dos factos integra uma tendência desvaliosa da personalidade ou se, pelo contrário, é apenas uma pluriocasionalidade que não tem origem na personalidade, sendo que, só no primeiro caso, o concurso de crimes deverá ter um efeito agravante. É igualmente importante, neste âmbito, a análise do efeito previsível da pena sobre a conduta futura do agente (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas/Editorial Notícias, pág. 290 e seguintes). Ou como defende Cristina Líbano Monteiro, o C. Penal rejeita uma visão atomística da pluralidade de crimes e obriga a olhar para o conjunto – para a possível conexão dos factos entre si e para a necessária relação de todo esse bocado de vida criminosa com a personalidade do seu agente (A pena «unitária» do concurso de crimes, RPCC, Ano 16, Nº 1, 2006, pág. 162). Como se pode ler no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Fevereiro de 2013 (processo nº 455/08.5GDPTM, in www.dgsi.pt), «[f]undamental na formação da pena do concurso é a visão de conjunto, a eventual conexão dos factos entre si e a relação desse espaço de vida com a personalidade.».
In casu, temos que o arguido foi condenado pela Relação do Porto, pela prática de um crime de violência doméstica, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, pela prática de um crime de homicídio qualificado tentado, na pena de 6 anos de prisão e, em cúmulo, na pena única de 6 anos e 8 meses de prisão.
Nos termos do disposto no art. 77º, nº 2 do C. Penal, a moldura penal abstracta aplicável ao concurso de crimes é a de 6 anos a 8 anos e 6 meses de prisão.
Quanto ao mais.
Tendo presente que os factores enunciados no art. 71º do C. Penal, globalmente considerados, podem constituir guia para a concretização da medida da pena única, resulta da fundamentação do acórdão recorrido, supra transcrita, quanto à determinação da medida da pena única, ter a Relação considerado que o arguido praticou os factos entre Março e 27 de Setembro de 2023, dirigidos contra o ex-cônjuge e, também, ex-companheira, escalando a gravidade da violência empregue contra a assistente, cujo uso lhe não repugna, revelando uma personalidade com propensão para a prática de crimes contra a família, o que afasta a possibilidade de os factos praticados consubstanciarem uma mera pluriocasionalidade, antes mostrando radicarem da sua personalidade.
Concordamos, no essencial, com a ponderação feita, mas deve notar-se a estreita conexão existente entre os dois crimes em concurso, porque praticados no âmbito de um clima de violência doméstica e num período temporal relativamente curto, e aceitando-se os traços da personalidade desvaliosa do arguido, consideramos não existir, neste momento, uma carreira criminosa.
Por outro lado, não se compreende a alegação do arguido no sentido de que a sua personalidade e a sua integração familiar e social, deverão pender a seu favor, pela aplicação do princípio in dubio pro reo.
Assim, considerando o grau elevado da gravidade do ilícito global e a personalidade unitária desvaliosa do arguido, entendemos que a pena única fixada pela Relação, de 6 anos e 8 meses de prisão, não viola o art. 71º do C. Penal e o art. 30º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa, por ser adequada, necessária, proporcional e plenamente suportada pela medida da sua culpa, não se justificando quanto a ela, a intervenção correctiva deste Supremo Tribunal.
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Da violação da proibição de reformatio in pejus
3. Diz o arguido – conclusão E – não concordar com a subida da medida da pena aplicada, de 3 anos e 6 meses de prisão para 6 anos e 8 meses de prisão, por violar o disposto no art. 409º, nº 1, do C. Processo Penal.
Dispõe o art. 409º do C. Processo Penal, com a epígrafe «Proibição de reformatio in pejus», na parte em que agora releva:
1 – Interposto recurso de decisão final somente pelo arguido, pelo Ministério Público, no exclusivo interesse daquele, ou pelo arguido e pelo Ministério Público no exclusivo interesse do primeiro, o tribunal superior não pode modificar, na sua espécie ou medida, as sanções constantes da decisão recorrida, em prejuízo de qualquer dos arguidos, ainda que não recorrentes.
(…).
Resulta, basicamente, desta norma, que, interposto recurso pelo arguido, ou pelo Ministério Público, no exclusivo interesse daquele, o tribunal de recurso não pode agravar, em espécie ou medida, as penas impostas na sentença recorrida.
No caso, recorreram do acórdão da 1ª instância, o arguido e a assistente, tendo o Tribunal da Relação do Porto, na procedência do recurso desta, agravado a situação processual do arguido, que se viu condenado por mais um crime, numa nova pena, e numa pena única, evidentemente, mais grave do que a pena imposta na 1ª instância.
Assim, havendo outro recorrente além do arguido, e tendo este a sua situação agravada pela via da procedência do recurso do outro recorrente, a assistente, é evidente que não se mostra violado o art. 409º, nº 1 do C. Processo Penal.
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Do excessivo montante da indemnização fixada por danos não patrimoniais
4. Alega o arguido – conclusões C, I, V e Z – que não tendo tido a intenção de matar a assistente, não podem ser dados como provados os pontos de facto não provados 15 a 19, relativamente ao pedido de indemnização civil, devendo o montante da indemnização atribuída à assistente ser repensado e diminuído, devido à inexistência de crime de homicídio qualificado tentado.
No corpo da motivação nada mais de relevante foi acrescentado, relativamente à questão em análise.
Vejamos.
Também aqui o arguido suporta a sua argumentação no entendimento de que não cometeu o crime de homicídio qualificado tentado por cuja prática foi condenado no acórdão recorrido, pressuposto que, como sabemos, não está verificado.
De todo modo, o arguido não contesta a sua qualidade de devedor da obrigação de indemnizar fundada na prática de crime, questionando apenas o montante da indemnização fixada, na vertente dos danos não patrimoniais.
Tendo, pois, por assente a verificação de todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito (arts. 129º do C. Penal e 483º, nº 1, do C. Civil) e a qualidade de devedor da obrigação de indemnizar, do arguido, vejamos se a questionada indemnização é ou não, excessiva.
Estabelece o art. 496º, nº 1, do C. Civil que [n]a fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
Estes danos, pela sua natureza, não são avaliáveis em dinheiro e por isso, são insusceptíveis de uma verdadeira reparação, razão pela qual, a indemnização a atribuir a eles referida, visa apenas a sua compensação ao lesado, mediante a atribuição de uma quantia pecuniária que mitigue o sofrimento por eles causado.
O dano não patrimonial só pode ser compensado se tiver atingido uma gravidade tal que o torne merecedor da tutela do direito. A gravidade do dano deve ser aferida por um padrão objectivo, tendo em conta as circunstâncias objectivas do caso, sendo assim, irrelevantes, não justificando a indemnização, os simples incómodos ou contrariedades, bem como os desgostos resultantes de uma exacerbada sensibilidade (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª Edição, 1987, Coimbra Editora, pág. 499, e Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 8ª Edição, 2000, Almedina, pág. 539-540).
O critério legal para a fixação dos danos não patrimoniais encontra-se fixado no nº 3 do art. 496º do C. Civil, nos termos do qual, [o] montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstância referidas no art. 494º; (…). Dispõe o art. 494º do C. Civil que, [q]uando a responsabilidade se fundar na mera culpa, poderá a indemnização ser fixada, equitativamente, em montante inferior ao que corresponderia aos danos causados, desde que o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem.
Assim, o montante da indemnização por danos não patrimoniais será sempre calculado segundo critérios de equidade, considerando o grau de culpabilidade do respectivo autor, a sua situação económica e a situação económica da vítima, e todas as circunstâncias de relevo atendíveis, v.g., a praxis jurisprudencial e a flutuação do valor da moeda. Em qualquer caso, o montante da indemnização deve ser proporcionado à gravidade do dano, tomando em conta na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom sendo prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidade da vida (Pires de Lima e Antunes Varela, op. cit., pág. 501).
Dito isto.
Resulta da matéria de facto provada que a assistente, em consequência das condutas do arguido, ocorridas entre Março e 27 de Setembro de 2023, sofreu dores e dormência na mão direita [ponto 54 dos factos provados], sofre dores no braço e ombro direitos quando faz movimentos que exigem o emprego de força [ponto 55 dos factos provados], passou a ter medo do escuro, de estar em casa só e de sair de casa desacompanhada, bem como, passou a sofrer de frequentes pesadelos e sono agitado, tomando medicação para dormir [pontos 57, 59, 60 e 64 dos factos provados], sente-se humilhada, angustiada, esgotada e deprimida [ponto 58 dos factos provados], sente-se emocionalmente instável, tendo ataques de angústia, desespero e medo [ponto 65 dos factos provados].
Como se vê, no referido período, a assistente foi difamada, ameaçada e injuriada pelo arguido, e no dia 27 de Setembro de 2023, foi vítima de uma tentativa de homicídio, na decorrência da qual sofreu diversas ferimentos que, naturalmente, lhe causaram dores em diversas partes do corpo, bem como, passou a medos diversos – do escuro, de estar e de sair só, à rua –, a ter pesadelos, a sentir-se humilhada angustiada, deprimida, desesperada e emocionalmente instável. Para além disto, as lesões sofridas pela assistente determinaram que a mesma, durante algum tempo, tenha tido necessidade de ser auxiliada por terceiros, quer para se alimentar, vestir e fazer a higiene pessoal, quer para a realização da sua actividade agrícola [pontos 50, 51, 56 e 56-A dos factos provados], o que, como é notório, a constrangeu.
Em suma, o arguido violou, inequivocamente, os direitos de personalidade física e moral da assistente (art. 70º, nº 1 do C. Civil), atentando contra a sua vida e integridade física, contra a sua liberdade e contra a sua honra e consideração, não se suscitando dúvidas quanto a, devido às provadas condutas daquele, ter sofrido danos não patrimoniais que, pela a sua relevância, são merecedores de protecção jurídica, mediante a atribuição de uma compensação pecuniária.
Considerando que o arguido é o único responsável pela produção dos danos verificados, que actuou dolosamente, assumindo comportamentos especialmente censuráveis, quer pela qualidade da vítima, quer pela natureza dos bens jurídicos atingidos, considerando a diversidade de danos por esta sofridos, com particular destaque para o sobressalto inevitavelmente causado pela agressão homicida, e para o medo incutido, por via da mesma, na assistente, que, como é expectável, persiste, considerando que a assistente e o arguido aparentam modestas mas equilibradas situações económicas [como se infere dos pontos 50, 51, 66 e 72 dos factos provados], porque a responsabilidade extracontratual não tem apenas uma função reparadora do dano, assumindo também um lado sancionatório da conduta, entendemos que o quantitativo indemnizatório de € 17500 fixado pela Relação, se mostra prudente e proporcionado à gravidade dos danos verificados, realizando, por isso, a justiça do caso concreto, pelo que, deve ser mantido.
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Improcedendo as conclusões formuladas do arguido, deve ser mantido o acórdão recorrido.
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III. DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem este coletivo da 5.ª Secção Criminal, em:
A) Rejeitar o recurso, na parte em que tem por fundamento a impugnação da decisão da matéria de facto proferida no acórdão recorrido pelo Tribunal da Relação do Porto, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 414º, nº 3, 420º, nº 1, b), 432º, nº 1, b) e 434º, todos do C. Processo Penal.
B) Negar provimento ao recurso, relativamente às demais questões e, em consequência, confirmam o acórdão recorrido.
D) Custas pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça em 7 UC (arts. 513º, nº 1 e 514º, nº 1 do C. Processo Penal, e 8º, nº 9 do R. das Custas Processuais e Tabela III, anexa).
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(O acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado pelos signatários, nos termos do art. 94º, nº 2 do C. Processo Penal).
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Lisboa, 23 de Abril de 2025
Vasques Osório (Relator)
Ernesto Nascimento (1º Adjunto)
Jorge Jacob (2º Adjunto)