CONFLITO DE COMPETÊNCIA
AMPLIAÇÃO DO PEDIDO
SENTENÇA
PRINCÍPIO DA PLENITUDE DA ASSISTÊNCIA DO JUIZ
Sumário

I. O conhecimento da ampliação do pedido insere-se na apreciação do mesmo objeto processual, correspondendo ao conhecimento de um segmento do referido objeto que ficou por conhecer, determinando um julgamento inacabado ou incompleto de toda a pretensão do autor que veio a ser objeto de admissão nos autos.
II. Compreende-se, pois, que, deva atuar, na íntegra, o princípio da plenitude da assistência do julgador, que começou o julgamento.
III. Assim, a competência para a prolação da sentença a proferir deverá radicar no juiz perante o qual teve lugar a produção probatória e que presidiu à audiência, solução que se conforma e coaduna com o regime resultante do n.º 3 do artigo 605.º do CPC, no que respeita à conclusão do julgamento por parte do juiz que for promovido.

Texto Integral

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I. O atual titular do Juízo Local Cível de Almada - Juiz “X”, Sr. Juiz de Direito “A” – aí colocado na sequência do movimento judicial ordinário de 2024 (cfr. deliberação do CSM n.º 1153/2024, publicada no DR, II, n.º 168, de 30-08-2024) - suscita a resolução do conflito negativo de competência, no que concerne à prolação da sentença a proferir, entre si e o Sr. Juiz “B”, que aí exerceu funções (e que no movimento judicial ordinário de 2023 foi movimentado para este Tribunal da Relação, por promoção, sendo, presentemente, juiz desembargador do Tribunal da Relação de Lisboa – cfr. deliberação do CSM n.º 841/2023, publicada no DR, II, n.º 169, de 31-08-2023) e que presidiu à audiência de discussão e julgamento de 24-09-2019 e que elaborou sentença nos autos, proferida com data de 01-10-2019.
Por despacho de 28-09-2023, a Sra. Juíza de Direito “C”, então titular do Juízo Local Cível de Almada – Juiz “X”, determinou que o processo fosse concluído ao juiz que se encontrava a julgar a causa.
Por sua vez, o Sr. Juiz Desembargador “B”, por despacho de 19-10-2023, considerando não ter jurisdição para intervir no processo, determinou que o processo fosse concluso à Juíza titular do mesmo.
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II. Mostra-se apurado, com pertinência para a resolução da questão, o seguinte:
1) Por petição inicial, entrada em juízo em 20-07-2018, “D”, “E” e “F” instauraram a presente ação declarativa, com processo comum, contra Zurich Insurance PLC – Sucursal em Portugal, formulando o seguinte pedido:
“TERMOS EM QUE E NOS MAIS DE DIREITO DEVE A PRESENTE ACÇÃO SER JULGADA PROCEDENTE, POR PROVADA E, EM CONSEQUÊNCIA, DEVE A R. SER CONDENADA A PAGAR AO 1º A. O MONTANTE DE 11.792,24 €, A TÍTULO DE DANOS PATRIMONIAIS, BEM COMO JUROS DE MORA, À TAXA LEGAL, A PARTIR DA CITAÇÃO E ATÉ INTEGRAL PAGAMENTO.
DEVE, AINDA, SER A R. CONDENADA A PAGAR AO 2º A. O MONTANTE DE 927,00 €, A TÍTULO DE DANOS PATRIMONIAIS, BEM COMO JUROS DE MORA, À TAXA LEGAL, A PARTIR DA CITAÇÃO E ATÉ INTEGRAL PAGAMENTO.
POR FIM, DEVE AINDA A R. SER CONDENADA A PAGAR À A. O MONTANTE DE 852,85 €, A TÍTULO DE DANOS PATRIMONIAIS, E O MONTANTE DE 6.000,00 € A TÍTULO DE DANOS NÃO PATRIMONIAIS, BEM COMO JUROS DE MORA, À TAXA LEGAL, A PARTIR DA CITAÇÃO E ATÉ INTEGRAL PAGAMENTO (…)”.
2) A ré deduziu contestação e foi proferido despacho saneador, com fixação dos temas da prova.
3) Após a prolação do despacho saneador, pelos autores foi apresentado em juízo, em 23-07-2019, requerimento de ampliação do pedido, concluindo pela sua admissão nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 265º do CPC, “sendo a R. condenada a pagar aos A.A.:
a) € 8.280,00, a título de privação de uso;
b) € 13.286,00 a título de dano patrimonial futuro;
c) € 1.505,00 a título de perdas salariais;
d) € 5.000,00 a título de dano biológico;
e) € 3.120,00 a título de ajuda medicamentosa;
f) € 24.900,00 a título de ajuda de terceira pessoa.
g) € 9.880,00 a título de tratamentos médicos;
O que totaliza o montante de € 65.971,00 (sessenta e cinco mil novecentos e setenta e um euros), acrescidos de juros de mora vencidos e vincendos desde a presente ampliação, até efectivo e integral pagamento”.
4) A ré respondeu ao requerimento de ampliação do pedido da contraparte, nos termos de requerimento apresentado em juízo em 02-08-2019, concluindo pelo seu indeferimento e, caso assim não se entendesse, impugnando o mesmo.
5) Em 05-09-2019 foi proferido despacho que não admitiu a ampliação do pedido requerida.
6) Por requerimento e alegação apresentados em juízo em 20-09-2019, os autores interpuseram recurso de apelação relativamente ao despacho que indeferiu a ampliação.
7) Em 24-09-2019 teve lugar audiência de discussão e julgamento presidida pelo Sr. Juiz “B”.
8) Em 01-10-2019 foi proferida sentença, subscrita pela Sr. Juiz “B”, julgando a ação parcialmente procedente e, em consequência, condenado a ré a pagar aos autores as seguintes importâncias:
“a) Ao autor “D”, a quantia de 11.792,24€, a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a data da citação até integral pagamento;
b) Ao autor “E”, a quantia de 927,00€, a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a data da citação até integral pagamento;
c) À autora “F”, a quantia de 852,85€, a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a data da citação até integral pagamento;
d) À autora “F”, a quantia de 5.000,00€, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a data da prolação da presente sentença, até integral pagamento (…)”.
9) Por despacho datado de 28-11-2019 foi proferido despacho de admissão do recurso referido em 6).
10) Em 11-03-2021, a 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa proferiu acórdão – no apenso A – dando provimento ao recurso interposto e revogando a decisão recorrida, constando da respetiva fundamentação, nomeadamente, escrito o seguinte:
“(…) Como é sabido a causa de pedir do acidente de viação, é complexa pois que abrange não só o próprio acidente como todos os danos daí derivados.
É verdade que se não se pedirem os danos sofridos pelo veículo não se poderá depois vir a pedi-los em ampliação do pedido, todavia a privação pelo uso do veículo será um desenvolvimento do pedido inicial, se tivermos em atenção que o veículo teve de ser reparado a expensa do Apelante, pelo que o mesmo ficou privado do veículo, pelo menos durante o tempo do arranjo do mesmo.
No que concerne ao dano patrimonial futuro relativamente à Autora “F”, o mesmo também é de atender, pois que a Apelante para além de ter estado um período totalmente incapacitada para o trabalho, quando retomou mesmo não pode trabalhar de imediato como antigamente só o podendo fazer a espaços, como resulta da sua alegação inicial e o mesmo se diga relativamente às perdas salariais da Apelante “F” já que estando com dificuldades em trabalhar e tendo estado impedida de trabalhar durante certo lapso de tempo como alega, terá direito aos lucros cessantes.
Quanto ao dano biológico entendemos que sim, pode ser pedido pois que se configura como um desenvolvimento do pedido inicial, parcialmente alegado em sede de danos físicos que pelos vistos continua a sofrer, bem como o déficit funcional permanente que se enquadra também no desenvolvimento do pedido primitivo, pelo que terá de ser tido em consideração.
A ajuda medicamentosa para a Apelante “F” também se enquadra no desenvolvimento do pedido inicial em que a mesma pede o pagamento de medicamentos, de internamento hospitalar de sessões de fisioterapia e alegar ter ficado com uma raquealgia permanente que a leva a tomar medicação.
Na esteira deste pedido considera-se também como desenvolvimento do pedido inicial os tratamentos médicos para a Apelante “F”.
No que tange ao pedido de ajuda de terceira pessoa, o mesmo é de aceitar, pois que derivará da alegada raquealgia permanente e na dificuldade de exercício das suas tarefas diárias.
Neste circunstancialismo, procedem as conclusões das alegações (…)”.
11) Em 31-05-2021 foi proferido despacho, subscrito pelo Sr. Juiz “B”, no qual se lê o seguinte:
“Atenta a decisão tomada pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa sobre o requerimento de ampliação do pedido formulados pelos autores, notifique autores e ré para indicarem a prova a considerar para apreciação de tal ampliação.
Prazo: dez dias”.
12) Na sequência, as partes apresentaram os requerimentos de 08-06-2021 (autores) e de 11-06-2021.
13) Foi determinada a realização de prova pericial, tendo sido junto aos autos, em 20-03-2023, relatório da perícia realizada.
14) Em 28-09-2023, pela Sra. Juíza de Direito “C”, então titular do Juízo Local Cível de Almada – Juiz “X”, foi proferido despacho do seguinte teor:
“Ao abrigo do disposto no artigo 605.º, n.º 3 do Código de Processo Civil, que consagra o princípio da plenitude da assistência do juiz, conclua os autos ao Meritíssimo Juiz de Direito que se encontra a julgar a causa.
Notifique”.
15) Em 19-10-2023, o Sr. Juiz “B” proferiu despacho onde se lê o seguinte:
“Nos presentes autos, os autores interpuseram recurso do despacho proferido em 05/09/2019, no qual se indeferiu o seu requerimento no sentido de ampliar o pedido formulado.
No aludido despacho entendeu-se que, com fundamento em factos não antes alegados (integrantes da causa de pedir), os autores decidiram formular pedidos diversos que pretendiam somar ao pedido anteriormente deduzido.
Não se conformando com tal decisão, os autores interpuseram recurso da mesma, recurso esse que veio a ser admitido para subir imediatamente, em separado e com efeito meramente devolutivo, por despacho de 28/11/2019.
Sucede que, anteriormente em 22/11/2019, já tinha sido proferida sentença a julgar o mérito desta causa, sentença essa que notificada às partes não foi posta em crise por qualquer delas.
Em 11/03/2021, por Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa e na sequência do recurso interposto pelos autores, foi decidido revogar o despacho de 05/09/2019 e, se bem interpretámos o dito aresto, o mesmo entende que deve ser admitida a ampliação do pedido quanto: aos danos de privação pelo .uso do veículo; ao dano patrimonial futuro relativo à autora “F”; ao dano biológico sofrido pela autora “F”; danos patrimoniais sofridos pela autora “F” derivado aos custos dos tratamento médicos; e, aos custos com ajuda de terceira pessoa.
Recebido o resultado do recurso, entendeu-se que mesmo não questionava a conclusão sustentada na decisão recorrida de que os autores pretendiam prevalecer-se de factos não anteriormente alegados, nem considerados em sede despacho saneador aquando da formulação dos temas de prova, logo não tidos em conta na realização da audiência final, na decisão sobre a matéria de facto è enquadramento jurídico constantes da sentença.
Em face do aludido entendimento, conclui-se que o recurso não punha em crise a sentença anteriormente proferida - a qual, repita-se, também não foi posta em causa pelas partes - existindo caso julgado quanto às questões nelas decididas (ex: dinâmica do acidente e outros danos) e, nesse desenrolamento, por despacho de 31/05/2021 foi determinada a notificação das partes para indicaram prova sobre a ampliação do pedido.
O signatário, por deliberação do Plenário Ordinário do Conselho Superior da Magistratura, de 04 de julho de 2023, publicada no Diário da República n.º 169/2023, Série II de 2023-08-31, foi nomeado Juiz Desembargador no Tribunal da Relação de Lisboa, tomou posse no pretérito dia 04/09/2023, pelo que cessou funções no Juízo Local Cível de Almada (enquanto Jl), deixando de ser titular de todos os processos que no mesmo pendiam nas já referidas datas e carecendo de jurisdição para os tramitar e decidir.
Não obstante o que se referiu, situações há em que o julgador em caso de transferência, promoção ou aposentação continua vinculado a praticar actos em processos que deixaram de lhe estar afectos, disso exemplo são os previstos no art.º 605° nums. 3 e 4 do CPC- O juiz que for transferido, promovido ou aposentado conclui o julgamento, exceto se a aposentação tiver por fundamento a incapacidade física, moral ou profissional para o exercício do cargo ou se for preferível a repetição dos atos já praticados em julgamento (n° 3)- Nos casos de transferência ou promoção, o juiz elabora também a sentença (n° 4); e, ainda naqueles casos em que por determinação de Tribunal superior há que fazer intervir o mesmo Juiz que presidiu ao julgamento e elaborou a sentença (cfr. art.º 662º nums. 1 als. a) a d) e n° 3 ais. a) a d) do CPC.
Sendo evidente que há que produzir prova para avaliar os novos factos do pedido de ampliação dos autores, o caso que nos é patenteado, não cabe em qualquer das situações expostas: não cabe no art.º 605° nums. 3 e 4 do CPC porque o signatário concluiu a produção de prova relativamente aos factos que então se discutiam e proferiu sentença que constitui caso julgado e, havendo que produzir prova para avaliar a ampliação dos autores pelos novos factos por estes alegados, não encontramos base legal para que tal tenha de se feito pelo anterior titular do processo; também não cabe no âmbito de pf o vi são do art.º 662° nums. 1 ais. a) a d) e n° 3 ais. a) a d) do CPC, visto que não há qualquer decisão do Tribunal superior que imponha a intervenção do signatário, sublinhando-se que entendemos não estar perante a previsão da al. c) do n° 3 daquele artigo, uma vez que a ampliação da matéria de facto de que aí se fala é a matéria de facto constante da sentença recorrida, não a matéria de facto que resulta do incidente de ampliação do pedido.
Pelas razões expostas, entendemos não ter jurisdição para intervir nos presentes autos e, consequentemente, determinamos que o processo seja concluso à MMa Juíza titular do mesmo.
Notifique”.
16) Por despacho de 28-09-2024 foi suscitada a resolução de conflito negativo de competência.
17) O Ministério Público, que teve vista dos autos, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 112.º, n.º 2, do CPC, pronunciou-se concluindo “que competente para apreciar os factos relacionados com a ampliação do pedido será o senhor Juiz Desembargador que fez o primeiro julgamento”.
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III. Nos termos do n.º 2 do artigo 109.º do CPC, há conflito, positivo ou negativo, de competência quando dois ou mais tribunais da mesma ordem jurisdicional se consideram competentes ou incompetentes para conhecer da mesma questão.
Não há conflito enquanto forem suscetíveis de recurso as decisões proferidas sobre a competência (cfr. artigo 109.º, n.º 3, do CPC).
Quando o tribunal se aperceba do conflito, deve suscitar oficiosamente a sua resolução junto do presidente do tribunal competente para decidir (cfr. artigo 111.º, n.º 1, do CPC).
A questão que se coloca é a de saber quem vai elaborar a sentença ainda a proferir nestes autos, na decorrência da admissão do requerimento de ampliação do pedido (na sequência do determinado pelo acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa): Se o Sr. Juiz – ora desembargador - que presidiu à audiência de discussão e julgamento primeiramente efetuada (em 2019), ou, se o Sr. Juiz titular do juízo onde corre termos o processo.
Em bom rigor não estamos perante um conflito de competência (sendo que a competência, absoluta ou relativa, reporta-se aos tribunais ou órgãos jurisdicionais funcionando enquanto tal), uma vez que o conflito gerado não é entre tribunais, mas entre juízes.
De acordo com o disposto no artigo 114.º do CPC e para além dos casos contemplados nas respetivas alíneas desses preceito, “o disposto nos artigos 111.º a 113.º é aplicável a quaisquer outros conflitos que devam ser resolvidos pelas Relações (…)”, pelo que, na falta de específico regime legal há que resolver a divergência, por forma a ultrapassar o impasse gerado, com apelo às regras que disciplinam os conflitos de competência.
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IV. Assim, o impasse verificado entre os dois juízes, deve ser resolvido como se conflito de competência se tratasse, mas no quadro do princípio da plenitude da assistência dos juízes (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30-10-2008, Pº 08B3163, rel. SALVADOR DA COSTA).
O princípio da plenitude da assistência dos juízes, que constitui um corolário dos princípios da oralidade e da apreciação da prova (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo n.º 3/2019, de 16 de outubro, publicado no Diário da República n.º 199/2019, Série I de 16-10-2019, pp. 22 – 39), tem na sua base “a ideia de que é vantajoso para a coerência e adequação da decisão final do processo concentrar a apreciação da causa, em cada instância, no mesmo julgador (ou julgadores)” (assim, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre; Código de Processo Civil Anotado, 1.º volume, 3.ª edição, Coimbra Editora, 2014, p. 408).
Trata-se de um princípio que não é, aliás, exclusivo do processo civil, sendo regulado, com particulares contornos, por exemplo, no âmbito do processo tutelar cível (cfr. artigo 30.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível -RGPTC - aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 8 de setembro) e no do processo penal (cfr. artigo 426.º-A do Código de Processo Penal). Também, no Estatuto dos Magistrados Judiciais, o princípio em questão se manifesta, conforme decorre da previsão do artigo 70.º, n.º 2 (“Nos casos previstos no número anterior e nas alíneas a) a c) do artigo 12.º, os magistrados judiciais que tenham iniciado qualquer julgamento prosseguem os seus termos até final, salvo disposição legal em contrário ou se a mudança de situação resultar de ação disciplinar").
Sobre o princípio da plenitude da assistência do juiz no âmbito do processo civil, rege, presentemente, o artigo 605.º do CPC de 2013, preceito onde se prescreve o seguinte:
“1 - Se durante a audiência final falecer ou se impossibilitar permanentemente o juiz, repetem-se os atos já praticados; sendo temporária a impossibilidade, interrompe-se a audiência pelo tempo indispensável, a não ser que as circunstâncias aconselhem a repetição dos atos já praticados, o que é decidido sem recurso, mas em despacho fundamentado, pelo juiz substituto.
2 - O juiz substituto continua a intervir, não obstante o regresso ao serviço do juiz efetivo.
3 - O juiz que for transferido, promovido ou aposentado conclui o julgamento, exceto se a aposentação tiver por fundamento a incapacidade física, moral ou profissional para o exercício do cargo ou se for preferível a repetição dos atos já praticados em julgamento.
4 - Nos casos de transferência ou promoção, o juiz elabora também a sentença”.
Precedentemente vigorou na ordem jurídica o artigo 654.º do CPC de 1961 (cuja redacção se manteve inalterada desde o Decreto-Lei n.º 44129, de 28 de Dezembro de 1961 e é equivalente à que constava do CPC de 1939), preceito que dispunha nos seguintes termos:
“1 - Só podem intervir na decisão da matéria de facto os juízes que tenham assistido a todos os actos de instrução e discussão praticados na audiência final.
2 - Se durante a discussão e julgamento falecer ou se impossibilitar permanentemente algum dos juízes, repetir-se-ão os actos já praticados; sendo temporária a impossibilidade, interromper-se-á a audiência pelo tempo indispensável, a não ser que as circunstâncias aconselhem, de preferência, a repetição dos actos já praticados, o que será decidido sem recurso, mas em despacho fundamentado, pelo juiz que deva presidir à continuação da audiência ou à nova audiência.
3 - O juiz que for transferido, promovido ou aposentado concluirá o julgamento, excepto se a aposentação tiver por fundamento a incapacidade física, moral ou profissional para o exercício do cargo ou se, em qualquer dos casos, também for preferível a repetição dos actos já praticados, observado o disposto no número anterior.O juiz substituto continuará a intervir, não obstante o regresso ao serviço do juiz efectivo".
Conforme se deu nota no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo n.º 3/2019, de 16 de outubro (publicado no Diário da República n.º 199/2019, Série I, de 16-10-2019, pp. 22-39):
“O traço distintivo essencial entre o artigo 605.º do novo CPC e o artigo 654.º do CPC de 1961 consiste na eliminação do n.º 1 deste último preceito onde se estipulava: "Só podem intervir na decisão da matéria de facto os juízes que tenham assistido a todos os actos de instrução e discussão praticados na audiência final''.
E, ainda na supressão da palavra ''preferência'' contida no n.º 2 do mesmo preceito que não transitou para o actual n.º 1 do artigo 605.º do novo CPC o qual no mais, em substância, é idêntico no tratamento da impossibilidade permanente ou temporária do(s) Juiz(es).
O n.º 4 do mesmo preceito afigura-se como despiciendo face à previsão constante do seu n.º 3 e na circunstância de ter sido abolida a cisão entre o julgamento da matéria de facto e a respectiva integração jurídica (….)”.
A eliminação do anterior n.º 1 do artigo 654.º do CPC de 1961 derivou da eliminação da dicotomia que se estabelecia no anterior CPC – e que foi eliminada no novo Código – em sede de audiência final, entre a fase de produção de prova, de julgamento da matéria de facto e de discussão da matéria de direito e a fase de julgamento/subsunção dos factos ao direito.
Em diversas situações, a jurisprudência dos nossos tribunais superiores tem enfrentado a aplicação concreta deste princípio, de que são exemplo as seguintes decisões:
- Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 22-11-2018 (Pº 851/12.3TBPRG-C.G1, rel. AFONSO CABRAL DE ANDRADE): “O art.º 605º,1 CPC, que consagra o princípio da plenitude da assistência do juiz, aplica-se às situações em que o julgador fica incapacitado durante a audiência final. Estando já encerrada esta, e sendo o processo concluso para sentença, já não estamos no âmbito de aplicação dessa norma. Rege então o nº 4 do mesmo artigo, o qual, porém, apenas faz estender a regra da plenitude da assistência do juiz à elaboração da sentença nos casos de transferência ou promoção”;
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15-12-2021 (Pº 40/17.0T8MCN.P1, rel. ANA PAULA AMORIM): “O princípio da plenitude da assistência dos juízes, consagrado no art.º 605º/1/3 CPC, determina que só podem intervir na decisão da matéria de facto os juízes que tenham assistido a todos os atos de instrução e discussão praticados na audiência final. De acordo com a previsão do art.º 605º/3 CPC o juiz que for transferido conclui o julgamento. Admite-se, porém, a repetição dos atos praticados em julgamento se tal for preferível, com base num juízo concreto de conveniência. O decurso do período de dois anos desde a data de inicio do julgamento, associado ao facto do julgamento estar gravado, ter sido produzida apenas prova por depoimento de parte, o qual consta de assentada, não constitui motivo para considerar preferível que perante a transferência do juiz se proceda à repetição da prova produzida”;
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22-11-2022 (Pº 81852/19.2YIPRT.P1, rel. JOÃO DIOGO RODRIGUES): “O princípio da plenitude da assistência do juiz significa que a sentença - que atualmente engloba a decisão sobre a matéria de facto e de direito -, deve ser proferida pelo juiz que assistiu a todos os atos de instrução realizados durante a audiência final. A audição do registo fonográfico dos depoimentos prestados naquela audiência não garante nem preenche, em primeira instância, o princípio da plena assistência do juiz. Ainda que as partes tenham sido ouvidas previamente sobre a possibilidade de a sentença ser proferida por um juiz, que não o que presidiu à audiência final, e não tenham deduzido oposição, esta sua atitude é irrelevante, uma vez que não se trata de matéria na livre disponibilidade das partes”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 07-04-2017 (Pº 50/17.8YREVR, rel. FERNANDO RIBEIRO CARDOSO): “O suprimento de uma nulidade de sentença, no caso de entretanto ter sido aposentado o juiz que a proferiu, deve ser feita pelo juiz em exercício no Juízo em que corre o respectivo processo”
- Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 19-05-2016 (Pº 1454/03.9TBMDL.G1, rel. JORGE SEABRA): “No caso de anulação parcial do julgamento, por obscuridade ou insuficiência de respostas à anterior Base Instrutória (actuais temas de prova), e/ou para ampliação da mesma Base Instrutória, o novo julgamento constitui continuação do primeiro (que ficou incompleto ou inacabado). De acordo com princípio da plena assistência do juiz, a conclusão do julgamento antes iniciado deverá ser efectuado pelo Sr. Juiz que o iniciou, ainda que, entretanto, tenha sido transferido ou promovido (…)”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 06-03-2018 (Pº 1610/13.1TVLSB.L1-1, rel. ISABEL FONSECA): “Proferido acórdão pelo Tribunal da Relação que, na sequência da impugnação do julgamento de facto apresentada pelo recorrente, decide pela procedência parcial da apelação, anulando as respostas da primeira instância sobre determinada matéria factual, ordenando a realização de novas diligências instrutórias e mantendo o julgamento da primeira instância relativamente a outros factos, deve o processo prosseguir na primeira instância com vista à continuação da audiência de julgamento, não estando em causa a realização de uma nova audiência; Por isso, a circunstância do Juiz que realizou o julgamento, elaborando a sentença recorrida, ter sido posteriormente promovido a um tribunal superior, não obsta ao prosseguimento daquela audiência, com vista ao cumprimento do acórdão, pelo mesmo magistrado, competindo-lhe ultimá-la, bem como prolatar a nova sentença, atento o princípio da plenitude da assistência do juiz (art.º 605º do C.P.C.)”.
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V. Apreciando o caso concreto:
O Sr. Juiz Desembargador que presidiu à audiência de julgamento entende que não há fundamento legal para a sua intervenção, uma vez que a ampliação da matéria de facto a que se refere o artigo 605.º, n.º 3, do CPC é referente à que decorre da sentença recorrida, e não, à que resulta do incidente de ampliação do pedido.
Por seu turno, o Juiz do juízo onde o processo corre termos, o mesmo sustenta que a produção de prova e prolação da decisão quanto à matéria ainda controversa terá de considerar-se uma continuação do julgamento, cabendo ao juiz que presidiu à audiência final e proferiu a primeira sentença, concluir o julgamento, nos termos do artigo 605.º do CPC.
No presente processo verifica-se que a decisão que indeferiu a ampliação do pedido, veio a ser ulteriormente revertida pelo Tribunal da Relação, determinando - a decisão prolatada no Acórdão de 11-03-2021 – que viesse a ser apreciado o pedido objeto da ampliação, produzindo o efeito de prolação de uma nova sentença que contemplasse o conhecimento de uma tal pretensão.
De facto, conforme deriva do disposto nos artigos 607.º, n.º 2 e 608.º, n.º 2, do CPC, compreende-se no objeto do processo, o conhecimento das questões essenciais submetidas à apreciação/resolução do Tribunal, que o foram através da enunciação dos pedidos deduzidos e das exceções suscitadas pelas partes, ou de que cumpra, ao tribunal, oficiosamente conhecer.
Aliás, previamente aos autos se encontrarem em condições para a prolação de sentença, foram desenvolvidos atos instrutórios junto da 1.ª instância, determinantes ou relevantes para o conhecimento do objeto do processo, em particular, dos pedidos a que respeitava a ampliação.
Assim, não obstante não ter sido interposto recurso da sentença proferida na 1.ª instância, manifesto se torna que, a referida sentença, não poderá subsistir e deverá ser objeto de reformulação, por forma a nela ser contemplada a matéria da ampliação do pedido e a realização do correspondente julgamento sobre tal pretensão.
De facto, neste contexto, o “segundo julgamento” - destinado a apreciar os factos referentes à ampliação do pedido admitida ulteriormente ao primeiro julgamento efetuado - não constitui, nem configura um novo julgamento completamente autónomo e distinto deste, estando em apreciação a mesma causa, na mesma instância e nos moldes que, conformados com o pedido ampliado admitido, formam o objeto do processo a conhecer.
Como refere o Ministério Público, “o segundo julgamento será sempre uma continuação do mesmo julgamento (o primeiro) que ficou inacabado ou incompleto por via da decisão proferida pelo tribunal da relação e que determinou a apreciação de novos factos relacionados com a ampliação do pedido, independentemente da restante matéria de facto poder não ser atingida e permanecer intocada”.
O conhecimento da ampliação insere-se na apreciação do mesmo objeto processual, correspondendo ao conhecimento de um segmento do referido objeto que ficou por conhecer, determinando um julgamento inacabado ou incompleto de toda a pretensão do autor que veio a ser objeto de admissão nos autos.
Compreende-se, pois, que, deva actuar, na íntegra, o princípio da plenitude da assistência do julgador, que começou o julgamento.
Por outro lado, não nos parece possível sustentar que a apreciação da matéria de facto, ainda por efetuar, e referente à matéria da ampliação, seja cindível face à matéria já objeto de julgamento na sentença prolatada, pois, em boa verdade, o disposto no artigo 662.º, n.º 3, al. c) do CPC, admite que possa haver necessidade de proceder à reapreciação da matéria antes julgada para evitar contradições. Trata-se de uma real possibilidade, a qual nos inculca a ideia de que estamos em presença da continuação do primeiro julgamento e, sobretudo, que se apresenta como vantajoso, de um ponto de vista de coerência e de adequação do sistema, que o julgamento seja efetuado, preferencialmente, pelo mesmo juiz , salvo nos casos em que tal se mostre inviável por impossibilidade do juiz que presidiu ao primeiro julgamento.
Conforme se salientou, a propósito desta questão, na decisão da Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães de 11-06-2012 (Pº 54/12.7YRGMR, rel. RAQUEL RÊGO, consultada em: https://www.trg.pt/gallery/9.%2054-12.7yrgmr-ampliacao_mat_fact_juiz_competente.pdf), “(…) se é certo que a matéria a apurar não foi anteriormente quesitada, também não podemos esquecer que a convicção do julgador faz-se no confronto das provas produzidas, que pode sair prejudicada por uma visão parcelar da prova, produzida apenas naquela concreta sessão de julgamento.
Além de que, por força do princípio da aquisição processual, o magistrado que presidiu às outras sessões de julgamento pode ter registado prova útil para a decisão da matéria vertida nos novos quesitos.
E, ainda, tenha-se presente que, de acordo com o estatuído no artº 712º, nº4 [correspondente ao vigente artigo 662.º, n.º 3, al. c)], do Código de Processo Civil, embora a repetição do julgamento não abranja a parte da decisão que não esteja viciada, pode, no entanto, o tribunal ampliar o julgamento de modo a apreciar outros pontos da matéria de facto, com o fim exclusivo de evitar contradições na decisão.
Ora, perguntamos nós, como pode esta prorrogativa ser cabalmente usada se parte da prova está na mente de um julgador e outra parte na de outro?
Que visão do conjunto pode ser acautelada se foram magistrados que, separadamente, a foram valorando por parcelas estanques, feitas em distintos processos mentais?
Não podemos, por isso, acompanhar os que de modo diverso entendem (…)”.
Esta orientação coaduna-se, plenamente, com o disposto no artigo 605.º, n.º 3, do CPC, ao consignar que “o juiz que for transferido, promovido ou aposentado conclui o julgamento” (“exceto se a aposentação tiver por fundamento a incapacidade física, moral ou profissional para o exercício do cargo ou for preferível a repetição dos atos já praticados em julgamento”).
Assim, por princípio, e salvo caso de impossibilidade para o exercício do cargo ou grave dificuldade (que torne preferível a repetição integral dos actos praticados no anterior julgamento), a tarefa do julgamento da matéria de facto, ainda que decorrente do ulterior conhecimento da matéria de facto pertinente para o conhecimento de pedido ampliado e a própria elaboração da sentença (cfr. n.º 4 do art.º 605º) deverão estar concentrados num único juiz: O juiz que iniciou o julgamento com produção (perante si) de meios de prova, deste modo se ganhando mais na eficácia, no mérito e credibilidade da decisão, do que se perde em eventuais constrangimentos de ordem pessoal e até funcional.
“Acresce, ainda, como sinal de clara consagração deste princípio (que será, portanto, transversal ao sistema e não confinado às instâncias superiores), que o próprio artigo 218º do novo CPC, ao consignar que quando o processo volte à Relação ou ao Supremo, seja por via de interposição de apelação de nova sentença proferida em 1ª instância após revogação da primeira pela Relação, nos termos do art.º 662º, n.º 2 al. c)-, seja em consequência da revogação pelo Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, nos termos dos arts. 682º, n.º 3 e 683º, dispôs que não há lugar a nova distribuição, quer na Relação, quer no Supremo, mantendo-se, sempre que possível, o mesmo relator da 1ª decisão” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 06-03-2018 (Pº 1610/13.1TVLSB.L1-1, rel. ISABEL FONSECA).
Assim, a competência para a prolação da sentença a proferir deverá radicar no juiz perante o qual teve lugar a produção probatória e que presidiu à audiência, solução que se conforma e coaduna com o regime resultante do n.º 3 do artigo 605.º do CPC, no que respeita à conclusão do julgamento por parte do juiz que for promovido.
Conclui-se, pois, que a competência para a prolação da sentença nos presentes autos deverá radicar no Sr. Juiz Desembargador, que presidiu à audiência de julgamento realizada, assim se devendo decidir o conflito suscitado.
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VI. Pelo exposto, decido este conflito, declarando competente para a prolação de nova sentença nos presentes autos, tendo em vista o conhecimento do pedido cuja ampliação foi admitida e da correspondente matéria de facto, o Sr. Juiz Desembargador ”B”, que presidiu à audiência de julgamento e prolatou a sentença inicialmente proferida.
Sem custas.
Notifique (cfr. artigo 113.º, n.º 3, do CPC).
Baixem os autos.

Lisboa, 10-12-2024,
Carlos Castelo Branco.
(Vice-Presidente, com poderes delegados – cfr. Despacho 2577/2024, de 16-02-2024, pub. D.R., 2.ª Série, n.º 51/2024, de 12 de março).