NULIDADE PROCESSUAL
INSOLVÊNCIA
LIQUIDAÇÃO DO ACTIVO
ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
PODER DE FISCALIZAÇÃO DO JUIZ
Sumário


I A nulidade processual que só é evidenciada pela prolação do despacho torna a reação do recorrente tempestiva, pois só então o mesmo soube que o Tribunal não adotou determinada conduta prévia que se lhe impunha, ou praticou um ato que a lei não admite. Isto é, estando em causa uma nulidade processual e não uma nulidade do despacho, ocorrida antes de ter sido proferido o mesmo mas que só com a sua prolação é que aquela nulidade se evidenciou, tal torna tempestiva a sua arguição em sede de recurso (cfr. art.º 199º, n.º1, do C.P.C.).
II Proferida uma decisão que aprecia determinada questão processual, não podendo o próprio Tribunal que a deu reapreciá-la, e caso não seja sujeita ao crivo de um Tribunal Superior, a mesma transita em julgado, tendo de ser respeitada/obedecida/cumprida naquele processo.
III Face à atual leitura do CIRE e do Estatuto da Administrador Judicial, ao juiz não cabe a direção da liquidação do ativo, não dispõe da faculdade de instruir o administrador de insolvência sobre o modo de proceder, não pode impedi-lo de atuar, nem o administrador está sujeito a cumprir indicações que, nesse domínio, o juiz (exorbitando as suas competências) lhe dê.

Texto Integral


Acordam os Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I RELATÓRIO (com consulta eletrónica do apenso F - liquidação).

No presente processo em que foi declarada a insolvência de EMP01..., Lda., foi apreendido e sujeito a liquidação o imóvel correspondente ao “prédio urbano composto por terreno para construção urbana destinado a armazéns e atividade industrial, com área total de 10557m2, área de implantação de 1911 m2, área bruta de construção de 3713m2 e área bruta privativa de 3713m2, sito no Lugar ..., ... ..., ..., inscrito na matriz predial urbana da freguesia ..., concelho ... sob o artigo ...20 (anterior ...) e descrito na Conservatória de Registo Predial ... com a descrição ...11, com o valor patrimonial tributário de 695.075,94 euros, determinado no ano de 2022.”
O Administrador de Insolvência (AI) juntou relatório de avaliação do imóvel, que conclui: “… o Valor de Mercado da Propriedade, à data de setembro de 2023, livre e disponível, sem ónus ou encargos, de acordo com a documentação e informação fornecida, bem como dos pressupostos e considerações referidos no corpo do relatório, é de 826.500€ (oitocentos e vinte e seis mil e quinhentos euros).”
Em 19/7/2024 o AI informou que colocou o imóvel apreendido à venda no sistema e-leilões.
Em 18/9/2024 juntou certidão de encerramento do processo de venda no e-leilões, e informou que o imóvel obteve proposta superior ao valor mínimo. Na certidão consta como identificação da melhor proposta: “AA, NIF: ...86, NIC: ...90, E-mail: ..........@....., IBAN: , Morada: Caminho ..., ... ..., CP: ..., Localidade: ..., E. Civil: solteiro”; proposta apresentada em 17/9/2024, às 10.45 h..
Mais consta:


Em 3/10/2024 BB, administradora da insolvente, disse, por intermédio de mandatário constituído, desconhecer o consentimento prestado para a prática do ato, e que a proposta apresentada não satisfaz os interesses da devedora nem dos credores, porquanto decorrido mais de um ano sobre a data da apresentação da avaliação do imóvel, esta está desatualizada, é muito inferior ao valor de mercado, decorrente de todas as alterações que se verificaram no local da sua localização, com melhoria das vias de acesso e circulação, com a implantação de novas unidades industriais; e requereu, por isso, a ineficácia da venda e consequente anulação da proposta.
Em seu nome, apresentou e-mail no processo, onde acrescentou que: nunca foi notificada para se pronunciar quanto à venda dos bens, de nada foi informada e não teve oportunidade de se pronunciar; o período em que o imóvel foi inserido no “e-leilões” - de 19-07-2024 a 17-09-2024 – foi curto e em período de férias; a proposta vencedora foi inserida às 10.45 h quando o termo ocorreu às 10.30 h.; há questões prévias a resolver relativas ao estado do imóvel.
O AI juntou o e-mail da sociedade que apresentou a melhor proposta: EMP02..., Unipessoal, Lda..
Em 22/10/2024 foi proferido o seguinte despacho:
“Tomei conhecimento do processado que antecede.
Com cópia dos requerimentos que antecedem, antes de mais, notifique o Sr.(a) Administrador(a) de Insolvência para se pronunciar e/ou requerer o que tiverem por conveniente, designadamente quanto às apontadas eventuais irregularidades ocorridas com o leilão.”
O AI prestou os seguintes esclarecimentos:
“1º - Quanto ao facto da Administradora vir informar que não teve conhecimento das condições, modalidade e decisão da venda, que lhe permitisse pronunciar sobre a mesma, veja-se que estes argumentos não podem colher, porquanto quando o aqui signatário indicou ao tribunal o n.º da referência do leilão eletrónico, o ilustre tribunal prontamente notificou todos os intervenientes, nele se incluindo a mandatária da Administradora no dia 22.07.2024, conforme requerimento com a referência n.º ...96.
2º - Quanto ao facto de lhe ter “chegado ao seu conhecimento por via de terceiros” que o imóvel havia sido vendido, também não se pode socorrer de tal informação, pois que logo após o encerramento do processo de venda no e-leilões o aqui signatário deu conhecimento da certidão aos presentes autos, sendo que o ilustre tribunal, novamente, notificou a mandatária da administradora, conforme requerimento datado de 19.09.2024 com a referência n.º ...03.
3º - Entrando nas alegadas irregularidades do leilão eletrónico que escandalosamente são mencionadas pela administradora, o aqui signatário presta os seguintes esclarecimentos:
a. O período atribuído para a publicidade do leilão é estabelecido pela própria plataforma e-leilões, pelo que não pode ser considerado manifestamente reduzido – veja-se a este propósito art. 4 n.º 8 das regras de funcionamento da plataforma e-leilões “O termo do leilão é fixado para dia em que, nos termos da lei processual, os tribunais estejam abertos, num período não inferior a 20 dias nem superior aos 60 dias seguintes ao pagamento da taxa de colocação.”
b. Os processos de insolvência, tratando-se de processos urgentes, decorrem mesmo em período de férias judiciais, pelo que o argumento de o processo foi colocado em “período de férias”, também não pode ser aceite, veja-se a este propósito o art. 9 do CIRE.
c. Ora se houve um pedido de visita no dia 10.09.2024, claro que está de ver que, pelo menos desde essa altura, a Sra. Administradora já tinha conhecimento que o imóvel se encontrava à venda, sendo certo ainda que essa data foi agendada diretamente entre o aqui signatário e a Sra. Administradora.
d. Quanto ao argumento da hora da melhor proposta e das várias propostas apresentadas, sendo que a melhor foi apresentada para além da hora do término que ocorreria às 10.30hrs, sempre se terá que recorrer novamente às regras da plataforma e-leilões que indicam, no seu artigo 7 o seguinte: a) Havendo proposta apresentada dentro dos últimos cinco minutos que antecedem a hora limite inicialmente fixada, a hora limite passa a ser a do registo na plataforma da última licitação, acrescida de cinco minutos; b) O ciclo de apresentação de licitações e subsequente diferimento da hora limite, só termina depois de decorridos cinco minutos sobre a apresentação da última licitação. Portanto, também este argumento apresentado pela Administradora deve ser refutado.
e. Contudo, para que dúvidas não restem que não existiu qualquer irregularidade com o presente leilão eletrónico deve ser solicitado ao órgão responsável pela sua gestão, neste caso a OSAE, para que certifique a informação ora prestada pelo signatário.
f. Quanto ao valor da avaliação, veja-se que o mesmo foi notificado a todos os interessados e nenhum deles, em nenhuma fase do processo, veio alegar o que quer que seja, sendo ainda que os argumentos apresentados pela Sra. Administradora, poderiam e deveriam ter sido indicados no período, pelo menos, compreendido entre 10.09.2024 (altura da visita ao imóvel, em que claramente a mesma sabia que o imóvel estava a ser liquidado) e o término do leilão a 17.09.2024, pois, porventura, poder-se-ia ter anulado o leilão eletrónico.
g. Veja-se ainda que a venda do imóvel não é imatura e até foi alvo de sugestão aquando da tentativa de conciliação do processo de Restituição e separação de bens no apenso C, pois até se concluiu que com a venda do presente imóvel poderia ser o bastante para se pagar a todos os credores e extinguir-se aquele apenso, portanto o aqui signatário agiu, como sempre, no cumprimento das suas obrigações legais, tendo prestado todas as informações a todos os intervenientes nos presentes autos, não tendo ocultado nada, nem agido com o intuito de prejudicar nenhum credor ou até a própria empresa insolvente.”
A administradora da insolvente enviou novo e-mail para o processo afirmando desconhecer a sociedade EMP02..., Unipessoal, Lda..
Foi dado conhecimento destes dois últimos requerimentos a todos os intervenientes.
Em 28/11/2024 foi proferido o seguinte despacho: “Previamente à autorização da concretização de qualquer venda esclareça o Sr.(a) Administrador(a) de Insolvência se mantém interesse no ofício a dirigir à OSAE por referência às invocadas irregularidades e, na afirmativa, em que termos.
Prazo: 5 dias.
Mais deve a Representante da Insolvente esclarecer quais as concretas questões que pretende ver esclarecidas e por quem. Prazo: 5 dias.”
O AI informou não ser sua a necessidade de se oficiar à OSAE.
A administradora da insolvente reiterou as suas anteriores posições.

Foi determinada a notificação do AI para se pronunciar sobre as mesmas, o qual disse:
“1 – A data da publicação do anúncio da venda do imóvel na plataforma e-leiloes ocorreu no dia19/07/2024 pelas 00:00:03hrs, tendo o mesmo sido aprovado pela plataforma no dia 18/07/2024 após pagamento do mesmo pelo signatário no dia 15/07/2024 pelas 23.12hrs.
Mais se informa que os processos de insolvência são processos urgentes e não suspendem em período de férias judiciais, pelo que não se entende o alcance que a insolvente pretende obter com essa informação.
2 – As conversações com a sociedade EMP02... tem existido em virtude da proponente AA ter indicado o aqui signatário que teria licitado em nome da mesma, sendo que por lapso não colocou a representação na plataforma. Ora, tal situação não é ocorrência rara e os tribunais judiciais não têm colocado entrave a que as vendas se efetuem na mesma às sociedades representadas.
3 – O signatário não recebeu nenhum valor do proponente porque o signatário informou que seria melhor não se fazer o depósito porquanto havia sido levantada a questão por parte da insolvente da inviabilidade da venda e para não acarretar mais despesas e constrangimentos para a massa o signatário informou o proponente que aguardasse a resolução dessa questão, o mesmo fazendo quanto à celebração da escritura de compra e venda definitiva.
4 – Quanto aos bens móveis nenhuma diligência foi feita porque, como bem sabe a insolvente, está a decorrer um processo de separação e restituição de bens que inviabiliza a mesma pois que, em bom rigor, desconhece-se a titularidade dos bens e ainda mais quando o espaço onde os mesmos se encontram está a ser constantemente assaltado, como tem a insolvente informado os autos. Assim, sem que se defina a titularidade dos mesmos não pode o signatário avançar com a sua venda.
Ainda nesta senda, aquando da sessão de julgamento no apenso da ação atrás mencionada a Sra. Meritíssima informou que nada olvidava à venda do imóvel e que até com a venda do mesmo poderia ocorrer a situação de se proceder ao pagamento dos credores e resolver a situação pendente no processo de restituição e separação de bens.
Feitos os devidos esclarecimentos o aqui signatário solicita que o tribunal não se perca mais em requerimentos dilatórios e que despache no sentido de se avançar ou não com a liquidação do imóvel, sendo que em caso de não aceitação, o aqui signatário colocará o mesmo novamente à venda através da plataforma e-leiloes.
O aqui signatário não tem qualquer interesse direto na venda do aludido imóvel ou dos bens móveis, não alcança com os mesmos qualquer dividendo, o que pretende é que os processos não se eternizem e atitudes destas são bem conhecidas do aqui signatário, pelo que, infelizmente, se antevê um processo que irá durar ad eternum se não se colocar um travão em determinadas posturas.”
Em 20/12/2024 foi proferido o seguinte despacho:
“Requerimento que antecede:
Tomei conhecimento.
Dê conhecimento a todos os demais intervenientes processuais.
Sem prejuízo do que foi expresso nos autos, a fim de ser evitada a arguição de eventuais irregularidades e/ou nulidades, deve o Sr.(a) Administrador(a) de Insolvência proceder a nova diligência de venda no e-leilões e sendo intenção da indicada sociedade licitar/comprar o bem em causa deve aí apresentar as suas propostas.
Notifique.”
Este despacho foi notificado a todos os intervenientes, incluindo a AA.

Esta última apresentou requerimento (em 30/12) do seguinte teor:
“…na qualidade de interessada/adjudicatária do prédio urbano composto por terreno para construção urbana destinado a armazéns e atividade industrial, sito no Lugar ..., ... ... – ..., inscrito na matriz predial urbana da freguesia ..., concelho ..., sob o artigo ...20 (anterior ...) e descrito na Conservatória de Registo Predial ... com a descrição ...11, no âmbito do encerramento do leilão eletrónico com o número ...24 e de todas as questões levantadas quanto à legitimidade da proposta da mesma, vem muito respeitosamente esclarecer o seguinte:
1.º
A aqui adjudicatária, a título singular, apresentou a melhor proposta de compra do imóvel supra identificado, no valor de 868.791,18€.
2.º
A mesma mostrou a sua intenção em adquirir o imóvel, intenção essa que se mantêm. Pelo que, vêm pelo presente requerimento, reiterar a sua intenção em adquirir o imóvel supra identificado, pelo preço proposto em leilão.
3.º
Desta forma, não vê motivo válido para recorrer a um novo leilão, quando a intenção em adquirir o prédio urbano se mantém nos termos, condições e valor apresentado no anterior leilão.
4.º
Assim, a fim de evitar mais delongas neste processo, e pelo facto de ter realmente interesse na aquisição do imóvel, a mesma não apresenta qualquer objeção a que o prédio urbano identificado lhe seja adjudicado a título singular, motivo pelo qual se requer a V/Exa. que autorize o prosseguimento da venda à adjudicatária AA, enquanto pessoa singular, do prédio urbano identificado, no âmbito do encerramento do leilão eletrónico com o número ...24.”
De seguida, foi proferido o seguinte despacho:
“Com cópia do requerimento que antecede, antes de mais, notifique todos os demais intervenientes processuais para querendo se pronunciarem e/ou requererem o que tiverem por conveniente, advertindo-se os mesmos que caso nada digam se presumirá a respectiva aceitação ao proposto/indicado pela interessada/adjudicatária.”
A administradora da insolvente reiterou a sua posição e requereu a anulação da venda.
AA (em 28/01/2025) pugnou pelo indeferimento dessa pretensão, manteve que tem interesse na aquisição do imóvel, e requereu que se autorizasse o prosseguimento da venda à adjudicatária.
Foi determinada a pronúncia do AI, que disse nada ter a opor a que a venda fosse realizada em nome da melhor proponente a título pessoal, tanto mais que a mesma veio informar e dar a sua anuência para que lhe fosse adjudicada diretamente; e considerou que cumpriu com rigor todas as exigências legais e que o processo da venda judicial foi feito nos moldes estipulados, pelo que nada obsta a que a venda seja efetuada.

Em 13/02/2025 foi proferido o seguinte despacho:
“Face ao sucedido quanto à identidade do efectivo proponente, e as invocadas suspeitas por parte da Administradora da Devedora até quanto à hora do fecho do leilão e hora da proposta vencedora, renovo o meu despacho de 20/12/2024, devendo o Sr.(a) Administrador(a) de Insolvência proceder a nova diligência de venda no e-leilões e no âmbito do mesmo deverão ser apresentadas as competentes propostas, designadamente a indicada sociedade.
Notifique, sendo o Sr.(a) Administrador(a) de Insolvência que todas as informações que obtiver e/ou dispuser relativamente ao leilão (data e hora de início e outras) deve de imediato dar conhecimento ao Tribunal e este notifica subsequentemente todos os demais intervenientes processuais para eventual exercício do contraditório.”
Em 25/02 AA arguiu a nulidade do despacho, dizendo que o mesmo ofende matéria que é da exclusiva competência do AI e como tal é nulo, por se tratar da prática de um ato que a lei não admite e que influi na decisão da presente causa, no caso na venda do bem em questão – cfr. artigo 195.º, n.º 1 do Código de Processo Civil. Requereu, por isso, que seja declarada a nulidade do despacho de 13 de fevereiro passado, que determinou a realização da venda do imóvel em questão através de um novo leilão.
Em 04/03 recorreu do mesmo despacho, apresentando as suas alegações que terminam com as seguintes
-CONCLUSÕES - (que se reproduzem)
“1º Decidiu o despacho recorrido determinar que o Sr. Administrador de Insolvência proceda “a uma nova diligência de venda no e-leilões”, por causa do “sucedido quanto à identidade do efectivo proponente e as invocadas suspeitas por parte da Administradora da Devedora até quanto à hora de fecho do leilão e hora da proposta vencedora” no que respeita ao leilão electrónico, realizado na plataforma pública e-leilões, cuja proposta ganhadora foi a da aqui Recorrente.
2º Recaindo sobre o Administrador de Insolvência, em exclusivo, a competência para promover os actos da liquidação da massa insolvente, nos termos do artigo 158.º, n.º 1 do CIRE e para determinar a modalidade da venda, nos termos do artigo 164.º n.º 1 do CIRE, é o despacho recorrido nulo por incidir sobre matéria cuja decisão é reservada, por lei, ao Administrador de Insolvência, cabendo unicamente a este tomar posição sobre o leilão realizado e não já ao Tribunal.
3º A desjudicialização do processo de insolvência, com redução da intervenção do juiz, em especial no domínio da administração e liquidação da massa, traduz-se em retirar ao juiz qualquer poder de decisão a esse propósito e, em paralelo, em reforçar a competência do administrador, eximindo-o à necessidade permanente de obter a aquiescência de outros órgãos para a concretização dos de liquidação da massa insolvente - por contrapartida da expressa responsabilização pessoal perante os credores.
4º Constituindo, assim, o despacho recorrido a prática de um acto que a lei não admite e que influi na decisão da presente causa, no caso na venda do bem em questão, é o mesmo nulo, por força do artigo 195.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.
5º O processo de insolvência busca, antes de mais, assegurar o interesse dos credores, todavia, no presente processo, nenhum credor se manifestou contra o leilão realizado nestes autos, apenas o fez a administradora da sociedade insolvente.
6º O Sr. Administrador de Insolvência procedeu à avaliação do imóvel, a qual comunicou ao Tribunal e, consequentemente, aos credores da Devedora, não existindo qualquer objecção a essa avaliação.
7º Nessa sequência o Sr. Administrador de Insolvência decidiu vendê-lo através da plataforma do e-leilões, plataforma que é recomendada pelo legislador nas execuções judiciais.
8º O Sr. Administrador de Insolvência juntou aos autos a certidão de encerramento do leilão, onde constam todos os elementos necessários para se verificar a regularidade desse leilão; constam aí, nomeadamente, as últimas 10 propostas apresentadas e a identificação completa da Recorrente, incluindo o seu nome, número de contribuinte, morada e estado civil.
9º Decorre desse documento que as últimas 10 propostas foram todas apresentadas após as 10:30, hora de encerramento do leilão, e com intervalos inferiores a 5 minutos, tendo decorrido ainda 5 minutos após a apresentação pela Recorrente da sua proposta.
10º Cumpriu-se assim, na íntegra, o disposto no artigo 7.º, n.º 1, alíneas a) e b) do Despacho n.º 12624/2015, de 9 de Novembro, da Sr.ª Ministra da Justiça que regulamenta a plataforma de leilões electrónicos e-leilões.
11º Não há, assim, razão para o Tribunal recorrido ter dúvidas sobre a regularidade do leilão em que a Recorrente apresentou a proposta mais alta.
12º De todo o modo, se entendia o Tribunal que subsistiam dúvidas, deveria ter tratado de as esclarecer, deitando mão do princípio do inquisitório, o que não fez.”
Pede que seja dado provimento ao presente recurso, sendo revogado o despacho recorrido, devendo o Sr. Administrador de Insolvência proceder à formalização da venda do imóvel à Recorrente, nos termos do leilão realizado.

*
Não foram apresentadas contra-alegações.
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O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, em separado e efeito devolutivo, o que não foi alterado por este Tribunal.

Mais disse o Tribunal recorrido:
“Venerandos Senhores Juízes Desembargadores:
Invoca a Recorrente que a decisão proferida padece de nulidade, porquanto ofende matéria que é da exclusiva competência do Sr. Administrador de Insolvência, trata-se da prática de um acto que a lei não admite e que influi na decisão da presente causa, no caso na venda do bem em questão – cfr. artigo 195.º, n.º 1 do Código de Processo Civil. Refere a Recorrente que dando sem efeito a venda anteriormente promovida pelo Senhor Administrador de Insolvência, como se competisse a este Tribunal determinar o modo como a venda dos bens apreendidos se deve fazer, fosse “avocar” o procedimento da liquidação do activo, ultrapassando a competência atribuída por lei ao Administrador de Insolvência, o despacho em crise por incidir sobre matéria cuja decisão é reservada, por lei, ao Sr. Administrador de Insolvência, cabendo unicamente a este tomar posição sobre o leilão realizado e não já ao Tribunal, esta autonomia do administrador da insolvência para decidir acerca da modalidade da venda é, pois, insindicável por este Tribunal.
Apreciando:
Entendemos não assistir qualquer razão à Recorrente, vejamos porquê:
Em primeiro lugar salienta-se que o despacho em crise de 13/02/2025 limitou-se a renovar o despacho que havia sido proferido a 20/12/2024, que havia determinado que o Sr.(a) Administrador(a) de Insolvência procedesse a nova diligência de venda no e-leilões e no âmbito do qual deveriam ser apresentadas as competentes propostas. O despacho de 20/12 foi notificado à então Ilustre Mandatária da Adjudicatária a 23/12, assim como aos demais intervenientes processuais, sem que aquela (Adjudicatária) tenha reagido ao mesmo, seja invocando a sua nulidade, seja por via da interposição do recurso, tal como fez por referência ao despacho proferido a 13/02, antes requereu (a 30/12) que a adjudicação fosse realizada em seu nome pessoal e já não em nome de um terceiro (sociedade).
Para além do que vai dito o Tribunal não se imiscuiu em qualquer matéria da competência exclusiva do Sr.(a) Administrador(a) de Insolvência, e muito menos a indicada, desde logo porque foi o próprio Sr.(a) Administrador(a) de Insolvência no requerimento com que dá início a este apenso, datado de 11/08/2023, quem referiu ainda não se encontrar na posse do relatório de avaliação do imóvel e logo que se encontre na posse do mesmo e, por conseguinte, do valor base de venda do imóvel, iria colocá-lo à venda, através da plataforma e-leilões, o que fez, efectivamente.
Daqui resulta que a escolha quanto à modalidade da venda assentou exclusivamente numa opção/decisão do Sr.(a) Administrador(a) de Insolvência, sem qualquer interferência por parte do Tribunal.
O Tribunal apenas determinou a sua repetição face aos vícios, vicissitudes que foram apontados ao leilão realizado nos autos e a que também não foi alheia a circunstância da própria Recorrente licitar em nome próprio e depois pretender que a adjudicação ou venda fosse realizada a uma sociedade comercial (cfr. comunicação do Sr.(a) Administrador(a) de Insolvência de 18/12/2024).
A repetição do leilão foi determinada pela primeira vez em Dezembro de 2024 à qual a Adjudicatária Recorrente apenas veio invocar a 30/12 que não via motivo válido para recorrer a um novo leilão, quando a intenção em adquirir o prédio urbano se mantinha nos termos, condições e valor apresentado no anterior leilão, não apresentando qualquer objeção a que o prédio urbano identificado lhe fosse adjudicado a título singular, motivo pelo qual requereu autorização de prosseguimento da venda à adjudicatária AA, enquanto pessoa singular, do prédio urbano identificado, no âmbito do encerramento do leilão eletrónico com o número ...24.
Já a 03/10/2024 a representante legal da insolvente havia pedido a ineficácia da venda, o que reiterou designadamente no requerimento de 21/01/2025 e consequente anulação da proposta.
Em função da aparente litigiosidade expressa nos autos quanto à venda dos bens, a repetição do leilão visou, tal como se deixou expresso no despacho de 20/12, evitar a arguição de eventuais irregularidades e/ou nulidades, face ao sucedido quanto à identidade do efectivo proponente, e as invocadas suspeitas por parte da Administradora da Devedora até quanto à hora do fecho do leilão e hora da proposta vencedora e que deveria ser no âmbito do novo leilão que deveriam ser apresentadas as competentes propostas, designadamente da indicada sociedade.
Assim, em face de todo o exposto, e tendo em conta a decisão proferida e o invocado nos autos, julgamos não ter sido cometida qualquer nulidade que importe a anulação da decisão proferida.
Vossas Excelências, porém, decidindo, farão como sempre melhor JUSTIÇA.”
*
Dispensados os vistos legais, cumpre decidir.
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II QUESTÕES A DECIDIR.

Decorre da conjugação do disposto nos artºs. 608º, nº. 2, 609º, nº. 1, 635º, nº. 4, e 639º, do Código de Processo Civil (C.P.C.) que são as conclusões das alegações de recurso que estabelecem o thema decidendum do mesmo. Impõe-se ainda ao Tribunal ad quem apreciar as questões de conhecimento oficioso que resultem dos autos.
Impõe-se, por isso, no caso concreto e face às elencadas conclusões decidir:
-se o despacho proferido é nulo porque o juiz exorbitou o âmbito da sua competência ao proferi-lo;
-se assim não for, se o despacho não se mostra correto.
***
III MATÉRIA A CONSIDERAR.

A matéria a considerar é a que consta do relatório supra.
***
IV O MÉRITO DO RECURSO.

A nulidade processual decorre da omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, e só produz nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa – art.º 195º, n.º 1, C.P.C.; quando um ato tenha de ser anulado, anulam-se também os termos subsequentes que dele dependam absolutamente – n.º 2. Em causa está uma nulidade secundária, invocável pelo interessado nos termos e prazo legais – art.º 199º, n.º 1, C.P.C..
Mantém atualidade e pertinência o brocardo segundo o qual dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se. Conforme explicava Alberto dos Reis, (“Comentário ao Código de Processo Civil”, 2º Vol., págs. 507 e 508), “…a arguição da nulidade só é admissível quando a infração processual não está ao abrigo de qualquer despacho judicial; se há um despacho a ordenar ou autorizar a prática ou a omissão do ato ou formalidade, o meio próprio para reagir, contra a ilegalidade que se tenha cometido, não é a arguição ou reclamação por nulidade, é a impugnação do respetivo despacho pela interposição do recurso competente.
Eis o que a jurisprudência consagrou nos postulados: dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se.
É fácil justificar esta construção. Desde que um despacho tenha mandado praticar determinado acto, por exemplo, se porventura a lei não admite a prática desse acto é fora de dúvida que a infracção cometida foi efeito do despacho; por outras palavras, estamos em presença dum despacho ilegal, dum despacho que ofendeu a lei do processo. Portanto a reacção contra a ilegalidade traduz-se num ataque ao despacho que a autorizou ou ordenou; ora o meio idóneo para atacar ou impugnar despachos ilegais é a interposição do respectivo recurso (...)”.
Anselmo de Castro (“Direito Processual Civil Declaratório”, III Vol., 1982, pág. 134) afirma que “Tradicionalmente entende-se que a arguição da nulidade só é admissível quando a infracção processual não está, ainda que indirecta ou implicitamente, coberta por qualquer despacho judicial; se há um despacho que pressuponha o acto viciado, diz-se, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade cometida, não é a arguição ou reclamação por nulidade, mas a impugnação do respectivo despacho pela interposição do competente recurso, conforme a máxima tradicional – das nulidades reclama-se, dos despachos recorre-se. A reacção contra a ilegalidade volver-se-á então contra o próprio despacho do juiz; ora o meio idóneo para atacar impugnar despachos ilegais é a interposição do respectivo recurso (…), por força do princípio legal de que, proferida a decisão, fica esgotado o poder jurisdicional do juiz (art. 666.º)”.
Vem-se entendendo que a nulidade processual que só é evidenciada pela prolação do despacho torna a reação do recorrente tempestiva, pois só então o mesmo soube que o Tribunal não adotou determinada conduta prévia que se lhe impunha, ou praticou um ato que a lei não admite. Isto é, estando em causa uma nulidade processual e não uma nulidade do despacho ou sentença (art.º 615º, n.º 1, d), aplicável aos despachos ex vi n.º 3 do art.º 613º, do C.P.C.), ocorrida antes de ter sido proferido o despacho ou sentença, mas que só com a prolação desta decisão é que aquela nulidade se evidenciou, tal torna tempestiva a sua arguição em sede de recurso (cfr. art.º 199º, n.º1, do C.P.C.).
Vide por todos, ao nível das decisões jurisprudenciais, o Ac. da Rel. de Lisboa de 14/7/2020 (processo n.º 574/19.2T8LRS.L1-7, relatado por Diogo Ravara, disponível em www.dgsi.pt, como todos os que se citarão sem indicação de outra fonte).
Admitimos que esta nulidade pode (também) ser invocada como integrando o vício de excesso de pronúncia do art.º 615º, n.º 1, d) -cfr. n.º 4 (Ac. do STJ de 13/10/2022, processo n.º 9337/19.4T8LSB-B.L1.S1, relator Nuno Ataíde das Neves).
De todo o modo, importa ter presente a orientação que resulta do Acórdão desta Relação de 2/03/2023, relatado pelo aqui 1º adjunto José Carlos Pereira Duarte, que, situando a questão no facto de o juiz intervir num domínio, âmbito ou fase, em que o CIRE não prevê a sua intervenção, e por isso extravasa as atribuições que estão cometidas por lei, importa o poder/dever de conhecimento oficioso da mesma por parte da Relação, na medida em que:
“a) é aferida por critérios legais indisponíveis – a intervenção do juiz no processo de insolvência e apensos está definida na lei e não está na disponibilidade dos intervenientes processuais, nomeadamente do juiz;
b) é questão que o próprio tribunal a quo podia suscitar oficiosamente, ou seja, o tribunal a quo pode (e deve) decidir não conhecer dada questão, se a mesma extravasar os limites das suas atribuições (apreciar e decidir questões de cariz estritamente jurisdicional e que, por isso, não estão cometidas aos órgãos da insolvência);
c) é pressuposto da tomada de decisão, inclusive pela Relação, não tendo qualquer cabimento este tribunal apreciar a impugnação de uma dada decisão, quando se verifica que a mesma não cabe no âmbito das atribuições cometidas por lei ao tribunal recorrido.”
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Outra questão que importa ter presente prende-se com a figura do caso julgado formal.
Refere o art.º 613º, n.º 1, C.P.C., que, proferida a sentença ou despacho (n.º 3), fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa.
Este princípio - esgotamento do poder jurisdicional - justifica-se pela necessidade de evitar a insegurança e incerteza que adviriam da possibilidade de a decisão ser alterada pelo próprio tribunal que a proferiu, funcionando como um obstáculo ou travão à possibilidade de serem proferidas decisões discricionárias e arbitrárias.
Assim, uma vez prolatada uma decisão, “…o tribunal não a pode revogar, por perda de poder jurisdicional. Trata-se, pois, de uma regra de proibição do livre arbítrio e discricionariedade na estabilidade das decisões judiciais. (...) Graças a esta regra, antes mesmo do trânsito em julgado, uma decisão adquire com o seu proferimento um primeiro nível de estabilidade interna ou restrita, perante o próprio autor da decisão” (Rui Pinto “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. II, pág. 174).
Também Alberto dos Reis (“Código de Processo Civil Anotado”, Vol. V, pág. 127) associa o princípio do esgotamento do poder jurisdicional a uma razão de ordem doutrinal e a uma razão de ordem pragmática, desde modo: “Razão doutrinal: o juiz, quando decide, cumpre um dever – o dever jurisdicional – que é a contrapartida do direito de acção e de defesa. Cumprido o dever, o magistrado fica em posição jurídica semelhante à do devedor que satisfaz a obrigação. Assim como o pagamento e as outras formas de cumprimento da obrigação exoneram o devedor, também o julgamento exonera o juiz; a obrigação que este tinha de resolver a questão proposta, extinguiu-se pela decisão. E como o poder jurisdicional só existe como instrumento destinado a habilitar o juiz a cumprir o dever que sobre ele impende, segue-se logicamente que, uma vez extinto o dever pelo respectivo cumprimento, o poder extingue-se e esgota-se.
A razão pragmática consiste na necessidade de assegurar a estabilidade da decisão jurisdicional. Que o tribunal superior possa, por via do recurso, alterar ou revogar a sentença ou despacho, é perfeitamente compreensível; que seja lícito ao próprio juiz reconsiderar e dar o dito por não dito, é de todo intolerável, sob pena de se criar a desordem, a incerteza, a confusão”.
Da extinção do poder jurisdicional consequente ao proferimento da decisão decorrem dois efeitos: um positivo, que se traduz na vinculação do tribunal à decisão que proferiu; outro negativo, consistente na insusceptibilidade de o tribunal que proferiu a decisão tomar a iniciativa de a modificar ou revogar -cfr. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, “Código de Processo Civil Anotado”, 2.ª ed., Vol. I, pág. 762.
Da extinção do poder jurisdicional decorre que o juiz não pode, motu proprio, voltar a pronunciar-se sobre a matéria apreciada (cf. Acórdão da Relação de Coimbra, de 17/4/2012, relator Henrique Antunes).
Conforme se concluiu no Acórdão de 2/3/2023 desta Relação (em que a aqui relatora foi adjunta, proferido no processo n.º 120724/15.0YIPRT.1.G1-A, relatado por Rosália Cunha) “Prolatada a decisão, e ressalvados os casos de retificação, reforma ou suprimento de nulidades, por força do esgotamento do poder jurisdicional fica vedada a possibilidade de essa decisão ser alterada pelo próprio tribunal que a proferiu, apenas sendo possível obter a sua alteração através de recurso que dela venha a ser interposto.
(…)
A intangibilidade da decisão proferida é, naturalmente, limitada pelo respetivo objeto no sentido de que a extinção do poder jurisdicional só se verifica relativamente às concretas questões sobre que incidiu a decisão.
Se o tribunal, em desrespeito do comando ínsito no art. 613º, nº 1 (e fora dos ressalvados casos de retificação, reforma ou suprimento de nulidades) proferir outra decisão que incida sobre a mesma matéria que já foi anteriormente apreciada, a nova decisão que padeça de tal vício é juridicamente inexistente e não vale como decisão jurisdicional por ter sido proferida em momento e circunstâncias em que o aludido poder jurisdicional já se tinha esgotado (cf. neste sentido, Acórdão do STJ, de 6.5.2010, relator Álvaro Rodrigues).”
Nesses considerandos assenta o caso julgado formal previsto no art.º 620º, n.º 1, do C.P.C.: “1 - As sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo.”
Antunes Varela (“Manual de Processo Civil”, págs. 307 e 308 da 2ª edição) diz-nos que caso julgado é a alegação de que a mesma questão foi já deduzida num outro processo e nele julgada por decisão de mérito que não admite recurso ordinário. É material o que assenta sobre decisão de mérito proferida em processo anterior; nele a decisão recai sobre a relação material ou substantiva litigada; é formal quando há decisão anterior proferida sobre a relação processual. Ele pressupõe a repetição de qualquer questão sobre a relação processual dentro do mesmo processo. Ambos pressupõem o trânsito em julgado da decisão anterior.
João Castro Mendes (“Direito Processual Civil”, A.A.F.D.L, 1980, III vol., pág. 276) diz-nos que o caso julgado formal traduz a força obrigatória dentro do processo, contrariamente ao caso julgado material, cuja força obrigatória se estende para fora do processo em que a decisão foi proferida.
O caso julgado formal, tal como o caso julgado material, visa evitar a repetição de decisões judiciais sobre a mesma questão, e a contradição de decisões. Pressuposto do caso julgado formal é que uma pretensão já decidida, em contexto meramente processual, e que não foi recorrida, seja objeto de repetida decisão (Ac. do STJ de 8/3/2018, Relator Fonseca Ramos).
Para o efeito, o respetivo despacho ou sentença terá de ter transitado em julgado, ou seja, terá de ser já insuscetível de recurso ordinário, ou, no caso de este não ser admissível, de reclamação (arguição da sua nulidade ou pedido da sua reforma - art.ºs 615º n.º 4 e 616º nº 2 do CPC) – cfr. artº. 628º do C.P.C...
Formado o caso julgado, tal significa que não é mais possível que a decisão proferida seja substituída ou modificada por qualquer tribunal, incluindo aquele que a proferiu.
O art.º 625º do C.P.C. resolve os casos, que podemos considerar anómalos, de haver casos julgados contraditórios, ou de haver decisões que, dentro do mesmo processo, versem sobre a mesma questão concreta da relação processual.
A doutrina e a jurisprudência pronunciam-se muitas e longas vezes sobre o alcance do caso julgado, com particular enfoque no caso julgado material, nas suas duas vertentes, a positiva e a negativa. Remetemos a propósito para o que já dissemos, por exemplo, no Ac. (da mesma relatora) de 6/2/2020 proferido no processo n.º 26/18.8T8MDR.G1, e secundado no processo n.º 5261/15.8T8VNF-K.G1 que integrou este mesmo coletivo.
No entanto, quando somos colocados perante a hipótese de caso julgado formal, temos igualmente de ponderar o seu alcance.
E diríamos então que, tal como se diz a propósito do caso julgado material, e diz Miguel Teixeira de Sousa (“Estudos sobre o Novo Código de Processo Civil”, pág. 579): “…reconhecer que a decisão está abrangida pelo caso julgado não significa que ela valha, com esse valor, por si mesma e independentemente dos respectivos fundamentos. Não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão”.
Rodrigues Bastos (“Notas ao Código de Processo Civil”, 3.°, pág. 253) diz-nos:  “A economia processual, o prestígio das instituições judiciárias, reportando à coerência das decisões que proferem, e o prosseguido fim de estabilidade e certeza das relações jurídicas, são melhor servidas por aquele critério ecléctico, que sem tomar extensiva a eficácia de caso julgado a todos os motivos objectivos da sentença reconhece todavia essa autoridade à decisão daquelas questões preliminares que foram antecedente lógico indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado”.
Se duas decisões incidem sobre a mesma questão processual e com base nos mesmos pressupostos, coloca-se a figura do caso julgado formal, e só assim não será se a segunda se baseia em diferente pressuposto(s) ou circunstância(s), ou diferente previsão legal que autorize a alteração da decisão (Ac. citado do STJ, de 8/3/2018).
Significa isto que, proferida uma decisão que aprecia determinada questão processual, não podendo o próprio Tribunal que a deu reapreciá-la, e caso não seja sujeita ao crivo de um Tribunal Superior, a mesma transita em julgado, tendo de ser respeitada/obedecida/cumprida naquele processo.
Resta salvaguardar que a figura do caso julgado é de conhecimento oficioso do Tribunal –cfr. art.ºs 577º, i), e 578º, do C.P.C..
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No que respeita ao apenso de liquidação e à esfera de competência do AI e do próprio Tribunal, importa tecer algumas considerações.
O n.º 1 do art.º 158º do CIRE dispõe que transitada em julgado a sentença declaratória da insolvência e realizada a assembleia de apreciação do relatório, o administrador da insolvência procede com prontidão à venda de todos os bens apreendidos para a massa insolvente, independentemente da verificação do passivo, na medida a que a tanto não se oponham as deliberações tomadas pelos credores na referida assembleia, apresentando nos autos, para o efeito, no prazo de 10 dias a contar da data de realização da assembleia de apreciação do relatório, um plano de liquidação de venda dos bens, contendo metas temporalmente definidas e a enunciação das diligências concretas a encetar.
Ora, a propósito da delimitação de funções do administrador de insolvência, recorremos ao texto do Ac. desta Relação de 17/3/2022, relatado por Rosália Cunha e em que a aqui relatora foi 1ª adjunta, dado que nos revemos inteiramente no mesmo: “A liquidação do ativo é uma fase do processo de insolvência que se destina a converter todo o património do devedor numa quantia pecuniária a fim de a mesma ser posteriormente distribuída pelos credores.
Como decorre do disposto no art. 2º do Estatuto do Administrador Judicial (aprovado pela Lei 22/2013, de 26.2) o administrador da insolvência é a pessoa incumbida da gestão e liquidação da massa insolvente no âmbito do processo de insolvência, sendo competente para a realização de todos os atos que lhe são cometidos por esse estatuto e pela lei.
No exercício das suas funções e fora delas, o administrador judicial deve considerar-se servidor da justiça e do direito e, no exercício das suas funções, deve atuar com absoluta independência e isenção, devendo orientar sempre a sua conduta para a maximização da satisfação dos interesses dos credores em cada um dos processos em que seja nomeado (art. 12º, nºs 1 e 2, do EAJ).
O administrador da insolvência é um dos órgãos da insolvência (Capítulo II, Secção I, do CIRE).
As suas funções são essencialmente executivas e o mesmo tem a seu cargo as duas operações nucleares do processo de insolvência: a verificação do passivo e a apreensão e a liquidação do ativo (cf. Catarina Serra in Lições de Direito da Insolvência, 2ª ed., pág. 75).
Em consonância com o que consta do EAJ, resulta do CIRE que a liquidação é uma das tarefas legalmente cometidas ao administrador de insolvência que a exerce com a cooperação e sob a fiscalização da comissão de credores, se existir, (art. 55º, nº 1, al. a), e sob a fiscalização do juiz o qual pode, a todo o tempo, exigir ao administrador que preste informações sobre qualquer assunto ou que apresente relatório da atividade desenvolvida e do estado da administração ou liquidação (art. 58º).
A atividade do administrador da insolvência está ainda sujeita a controlo pela entidade responsável pelo acompanhamento, fiscalização e disciplina dos administradores judiciais, podendo ser-lhe aplicadas sanções em caso de incumprimento dos deveres previstos na lei (art. 17º do EAJ).
Não obstante estar sujeito à aludida fiscalização, a liquidação do ativo é da competência do administrador da insolvência ao qual cabe realizar todos os atos necessários à dita conversão do ativo em quantia pecuniária, nos moldes regulados nos arts. 156º a 170º.
O juiz não tem “qualquer poder de direção sobre o administrador da insolvência, apenas controlando a legalidade dos atos praticados e a sua adequação ao fim do processo e ao objetivo de servir a justiça e o direito, como se refere no art. 12º, nº 1, do Estatuto do Administrador Judicial (...).
Neste sentido, Carvalho Fernandes e João Labareda (Código..., op. cit. pág. 268) consideram que o juiz não dispõe ‘da faculdade de instruir o administrador sobre o modo de proceder, não podendo impedi-lo de atuar, nem, por contrapartida, o administrador (...) (está) sujeito a cumprir indicações que, nesses domínios, o juiz seja tentado a dar-lhe” (Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões, in CIRE Anotado, pág. 188).
Compreende-se que assim seja pois “quanto ao juiz e às funções que desempenha, o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas adoptou um novo entendimento. Deu, numa palavra, início ao processo de desjudicialização. O juiz limita-se a intervir nas fases verdadeiramente jurisdicionais, ou seja, nas fases de declaração de insolvência, da homologação do plano de insolvência e da verificação e da graduação de créditos. O que quer dizer que ele não tem uma participação significativa no processo substancial de decisão quanto ao destino do devedor e, designadamente, à alternativa recuperação/liquidação da empresa” (Catarina Serra in ob. cit., pág. 74).”
O Ac. também desta Relação de 2/03/2023 (relator José Carlos Pereira Duarte) supra citado segue idêntica linha. Nesse conclui-se: “Tendo em consideração tudo o exposto impõe-se concluir que no âmbito da liquidação os poderes cometidos ao tribunal estão limitados à apreciação do cumprimento da legalidade e, concretamente, a violação de normas procedimentais.
Concretamente, no âmbito da liquidação e no enquadramento de que o juiz é o garante da legalidade dos actos relacionados com a venda, a jurisprudência mais recente vem admitindo a possibilidade de ser decretada a anulação da venda, à luz do disposto no n.º 1 do art.º 195º do CPC, aplicável ex vi art.º 17º do CIRE, se forem violadas regras procedimentais.
A titulo exemplificativo, cfr. o Ac. do STJ de 04/04/2017, processo 1182/14.0T2AVR-H.P1 e o Ac. do STJ de 15/02/2018, processo 4488/11.6TBLRA-M.C1.S1, ambos consultáveis in www.dgsi.pt/jstj.
Relativamente ao Ac. do STJ citado em último lugar refere-se:
“Na verdade, o que o acórdão do STJ de 04.04.2017, prolatado no processo n.º 1182/14.0T2AVR-H.P1, decidiu foi que o disposto no artigo 163º do CIRE, na interpretação que não permite anular a venda, com o fundamento de que tal excederia os poderes jurisdicionais do juiz titular do processo de insolvência em relação aos actos praticados na liquidação do activo, viola o artigo 20º, nºs 1 e 5, da Constituição da República, na medida em que não assegura, imediatamente no processo, a tutela efectiva para o direito infringido, desconsiderando a possibilidade de pronta intervenção do julgador.
(…)
É, de facto, intolerável a protecção da eficácia dos actos praticados pelo administrador da insolvência, mesmo que produzidos com total desrespeito pelas normas que tutelam as operações da fase de liquidação, sendo indispensável e urgente, a nosso ver, uma intervenção legislativa que corrija este estado de coisas. Na actual situação, o administrador da insolvência pode atropelar as disposições legais, omitir procedimentos essenciais, fazer e desfazer a seu critério, deixando aos que se mostrem lesados com a sua actuação, a possibilidade, no horizonte, de moverem uma acção declarativa em que lhe peçam responsabilidades.
A celeridade e a desjudicialização do processo de insolvência não podem ter esse preço. Como se diz no acórdão deste STJ e desta secção, a que fizemos referência, “a celeridade, a desburocratização, a desjudicialização e os amplos poderes do administrador da insolvência, no incidente de liquidação da massa insolvente, não devem ser interpretados de forma a excluir o papel imparcial e soberano do juiz, relegando-o para um papel secundário de mero controlo, ou no limite, nem sequer lhe consentindo que possa apreciar a irregularidade do negócio em que interveio o administrador da insolvência”. Aceitar tal interpretação seria o mesmo que desistir do princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva para o direito infringido, desconsiderando a possibilidade de imediata actuação do julgador.”
Destarte, o que este Ac. afirma, é apenas e tão só, a possibilidade de ser decretada a anulação da venda, à luz do disposto no n.º 1 do art.º 195º do CPC, aplicável ex vi art.º 17º do CIRE, se forem violadas regras procedimentais e não que o juiz tenha poderes latos de intervenção na liquidação e muito menos que os poderes jurisdicionais do juiz titular do processo de insolvência não têm quaisquer limites.
Ao invés, o administrador judicial tem, no âmbito da insolvência, o poder de praticar todos os actos necessários à gestão da massa insolvente.
Assim, do confronto entre as funções do juiz e a as funções dos órgãos da insolvência, nomeadamente do Administrador de Insolvência, resulta que a intervenção do juiz no processo de insolvência em geral e, em particular, no incidente de liquidação, está limitada ao que estritamente releva do exercício da função jurisdicional e, concretamente, a determinados âmbitos, domínios, fases e a determinados actos.”
Veja-se ainda o decidido no Ac. do STJ de 9/7/2020 (processo n.º 1094/11.9TYLSB-R.L1.S1: “(…) Portanto, não pode haver dúvidas que o legislador do CIRE visou inverter a solução de pretérito, afastando a possibilidade de impugnação dos atos do administrador (substantivos ou de procedimento) diretamente perante o juiz da insolvência. Porém, resulta patente que tal inversão foi pensada unicamente para os credores e o insolvente, e, mesmo assim, apenas “por regra”. É isso que se afigura resultar dos excertos acima transcritos, com destaque para a comparação do texto legal anterior com o texto da lei atual. Em contrapartida, passou-se a conferir expressamente - art. 59.º do CIRE – um direito indemnizatório aos credores e ao devedor (mas não aos terceiros [1]) contra o administrador da insolvência pelos danos causados em decorrência da inobservância culposa dos respetivos deveres funcionais (esse direito indemnizatório do devedor e dos credores é a exercitar, naturalmente, através da competente ação autónoma de processo comum[2]). Pretendeu-se deste modo, sem prejuízo pois para o exercício do direito à reparação do prejuízo a que haja lugar, afastar do âmbito da insolvência tergiversações das partes naturais do processo (devedor e credores) relativamente aos atos do administrador da insolvência. É este o sentido e alcance, cremos, do aludido ponto 10 do Preâmbulo do diploma que aprovou o CIRE.”.
Foi também esta a leitura feita pela aqui relatora no acórdão proferido no processo n.º 563/16.9T8PTL-M.G1, em 19/09/2024, com o seguinte sumário (parcial): “II Precedendo o despacho de encerramento da liquidação do ativo, o juiz, no âmbito do poder/dever de fiscalização que lhe assiste, pode pedir informações ao AI –art.º 61º CIRE-, pode destituir o AI com justa causa –art.º 56º do CIRE-, ou convocar a assembleia de credores –art.º 75º do CIRE.
III Ao juiz não cabe a direção da liquidação do ativo, não dispõe da faculdade de instruir o administrador sobre o modo de proceder, não pode impedi-lo de atuar, nem o administrador está sujeito a cumprir indicações que, nesse domínio, o juiz (exorbitando as suas competências) lhe dê.”
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Importa agora fazer aplicação dos princípios traçados ao caso concreto.
E para tal, impõe-se ponderar conjugadamente dois despachos mencionados no relatório deste acórdão:
O despacho proferido em 20/12/2024:
“Requerimento que antecede:
Tomei conhecimento.
Dê conhecimento a todos os demais intervenientes processuais.
Sem prejuízo do que foi expresso nos autos, a fim de ser evitada a arguição de eventuais irregularidades e/ou nulidades, deve o Sr.(a) Administrador(a) de Insolvência proceder a nova diligência de venda no e-leilões e sendo intenção da indicada sociedade licitar/comprar o bem em causa deve aí apresentar as suas propostas.
Notifique.”
E o despacho recorrido, proferido em 13/02/2025:
“Face ao sucedido quanto à identidade do efectivo proponente, e as invocadas suspeitas por parte da Administradora da Devedora até quanto à hora do fecho do leilão e hora da proposta vencedora, renovo o meu despacho de 20/12/2024, devendo o Sr.(a) Administrador(a) de Insolvência proceder a nova diligência de venda no e-leilões e no âmbito do mesmo deverão ser apresentadas as competentes propostas, designadamente a indicada sociedade.
Notifique, sendo o Sr.(a) Administrador(a) de Insolvência que todas as informações que obtiver e/ou dispuser relativamente ao leilão (data e hora de início e outras) deve de imediato dar conhecimento ao Tribunal e este notifica subsequentemente todos os demais intervenientes processuais para eventual exercício do contraditório.”
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A primeira ilação a tirar, perante a arguição da nulidade do despacho recorrido no presente recurso, é que o imputado vício é cometido através da prolação do despacho recorrido; alegadamente, o mesmo é proferido em violação de norma que lhe veda tal atividade, e por isso é-lhe assacada ilegalidade. Assim sendo, a via recursiva é a adequada à sua invocação pela recorrente, independentemente de o ter feito (também) através de requerimento no processo, o qual, note-se, não foi apreciado. Além disso, como vimos, sempre seria de apreciar a questão levantada como inquinando o despacho de nulidade, na medida em que pudesse estar em causa a extrapolação das competências do juiz face às funções do AI, matéria de conhecimento oficioso desta Relação.
Num segundo passo, impõe-se confrontar os dois despachos. Só podemos apreciar o mérito do segundo se este for inédito no processo. Se for apenas uma repetição do proferido em primeiro lugar, então impõe-se este por força do caso julgado formal. E o mérito (de ambos) não pode discutir-se: um porque transitou, o outro porque é ineficaz.

Cremos que aqui se devem distinguir dois segmentos dos despachos, ou duas ideias presentes nos mesmos:
-a anulação da venda, a decisão de repetição da mesma;
-o motivo dessa anulação.
A primeira decisão repete-se em ambos os despachos. Com isto queremos dizer que se o juiz extravasou as suas competências face ao papel do AI na liquidação, fê-lo logo no primeiro despacho. E, relativamente a essa matéria, a aqui recorrente não reagiu perante aquele primeiro despacho.
Daqui decorre que, tendo o primeiro despacho transitado, e tendo ele ínsito a decisão do juiz de repetir a venda, essa decisão é inatacável. Não podemos, por isso, discutir, por via de recurso do despacho que renova aquele, se efetivamente houve violação de competências, por a isso obstar o caso julgado formal que decorre da primeira decisão e torna ineficaz a segunda. A possibilidade de conhecimento oficioso (do mérito) não se pode sobrepor ao efeito de caso julgado.
Questão diversa é o motivo que fundamenta a decisão. Aqui estamos perante dois fundamentos diferentes: no primeiro despacho invoca-se uma razão de prevenção de irregularidades/nulidades –que não foram nomeadas; no segundo despacho concretiza-se que a manutenção do despacho prende-se com a dúvida quanto à identidade do efetivo proponente, e com as invocadas suspeitas por parte da administradora da devedora quanto à hora do fecho do leilão e à hora de apresentação da proposta vencedora.
Afastada que está a sindicância de se tratar (ou não) de uma questão de cumprimento da legalidade – violação de normas procedimentais - que o juiz pudesse apreciar (ou se extravasou a sua competência), uma vez que, no mais, os pressupostos dos despachos não são os mesmos, o trânsito do primeiro não impedia a nova apreciação feita no segundo. Este segundo tem ínsito o facto de se manterem aquelas concretas dúvidas, de o juiz não se considerar seguro e esclarecido quanto às duas situações em concreto, suscetíveis, na sua ótica, de poder gerar irregularidades/nulidades a apontar à venda. Tem também subjacente a apreciação e a improcedência dos requerimentos da recorrente (de 30/12 e de 28/01) que o antecede. Neste ponto não se coloca a figura do caso julgado formal.
Improcede a primeira questão recursiva que respeita à invocada nulidade do despacho recorrido, dado que não pode ser apreciado o motivo em que se sustentava.
Sempre se adiantará, subsidiariamente e caso assim não fosse, que, a nosso ver, o juiz se situou no âmbito do controle da legalidade do ato, não sindicou a modalidade da venda, o preço ou outras condições da mesma.
Impõe-se, como vimos, apreciar do mérito do despacho recorrido na perspetiva do invocado, e por nós limitado, erro de julgamento.
E para o efeito importa apreciar as duas razões (apenas essas) que são invocadas no despacho para a manutenção/renovação da decisão de repetição da venda: o ocorrido quanto à identidade do proponente; a hora da apresentação da proposta vencedora.
A primeira questão, está, a nosso ver, ultrapassada pelos esclarecimentos prestados ora pelo AI, ora pela postura assumida nos autos pela aqui recorrente; na certidão junta pelo AI consta como proponente da melhor oferta a aqui recorrente AA; o facto de supostamente ter pretendido apresentar a proposta em representação de uma sociedade (que dialogou com o AI), não releva, dado que de facto não foi assim que introduziu no sistema a proposta, e apresentou-se no processo disposta a cumprir a mesma, pedindo a adjudicação do imóvel a título pessoal/singular. Os interesses salvaguardados nos autos não são colocados em causa, sendo esse fator, aliás, irrelevante para os mesmos. Cremos, por isso, que esta razão para a anulação não colhe.
Relativamente à hora a que a proposta vencedora foi apresentada, trata-se de uma situação que já estava esclarecida no processo, através da informação que o AI prestou quanto às regras vigentes na plataforma e-leilões A dúvida resolve-se efetivamente pela aplicação do art.º 7º, n.º 1, a) e b) do Despacho n.º 12624/2015, de 9 de novembro, que rege quanto ao modo de apresentação da proposta: “1 - Qualquer utente inscrito na plataforma pode apresentar proposta sobre os bens que se encontram em leilão, até à data e hora limite, sem prejuízo do disposto nas alíneas seguintes:
a) Havendo proposta apresentada dentro dos últimos cinco minutos que antecedem a hora limite inicialmente fixada, a hora limite passa a ser a do registo na plataforma da última licitação, acrescida de cinco minutos;
b) O ciclo de apresentação de licitações e subsequente diferimento da hora limite, só termina depois de decorridos cinco minutos sobre a apresentação da última licitação.”
Foi o que sucedeu no caso conforme certidão junta aos autos pelo AI, à qual não foi imputada qualquer falsidade. Ninguém questionou que, constando da certidão as 10 melhores propostas (cfr. art.º 8º do despacho, ponto VII), a que as antecedeu (que não consta da certidão) tenha dado entrada necessariamente em momento anterior ao término do leilão (10.30 h); e assim a hora limite passou a ser a dessa proposta, acrescida de 5 minutos, e por aí fora. Ora, a primeira que consta da certidão entrou às 10.32 h.. Aliás, dispõe o art.º 8º (conclusão do leilão) que “1 - O sistema inibe a apresentação de novas licitações logo que seja atingida a data e hora limite, nos termos previstos no artigo anterior.”
De qualquer modo, se dúvidas subsistissem – e, repita-se, face às explicações apresentadas pelo AI elas não voltaram a ser suscitadas -, cabia ao Tribunal a quo ter feito a devida averiguação junto da entidade competente para as prestar, como sugerido pelo AI.
Não vemos, por isso, motivo válido para recusar a efetiva adjudicação do imóvel à recorrente.
Por esse motivo, cabe revogar o despacho aqui recorrido, que determina a nova diligência de venda no e-leilões, face à procedência da apelação. E, consequentemente, deve ser deferida a pretensão da recorrente em ver-lhe adjudicado o imóvel licitado.
***
V DISPOSITIVO.

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação, por maioria, em julgar o recurso totalmente procedente e, em consequência, concedem provimento à apelação, revogando o despacho recorrido e deferindo a adjudicação do imóvel licitado à recorrente AA.
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Custas a cargo da massa insolvente (art.º 527º, n.ºs 1 e 2, do C.P.C.).
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Guimarães, 8 de maio de 2025.
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Os Juízes Desembargadores
Relatora: Lígia Paula Ferreira Sousa Santos Venade
1º Adjunto: José Carlos Pereira Duarte (vota vencido, conforme consta infra)
2ª Adjunta: Maria João Marques Pinto de Matos
Vencido pelos seguintes fundamentos.

A 20/12/2024 foi proferido o seguinte despacho:
“Requerimento que antecede:
Tomei conhecimento.
Dê conhecimento a todos os demais intervenientes processuais.
Sem prejuízo do que foi expresso nos autos, a fim de ser evitada a arguição de eventuais irregularidades e/ou nulidades, deve o Sr.(a) Administrador(a) de Insolvência proceder a nova diligência de venda no e-leilões e sendo intenção da indicada sociedade licitar/comprar o bem em causa deve aí apresentar as suas propostas.
Notifique.”

Este despacho foi notificado a todos os intervenientes, incluindo a AA, ora recorrente.

A 30/12/2024 a última apresentou requerimento com o seguinte teor:
“…na qualidade de interessada/adjudicatária do prédio urbano composto por terreno para construção urbana destinado a armazéns e atividade industrial, sito no Lugar ..., ... ... – ..., inscrito na matriz predial urbana da freguesia ..., concelho ..., sob o artigo ...20 (anterior ...) e descrito na Conservatória de Registo Predial ... com a descrição ...11, no âmbito do encerramento do leilão eletrónico com o número ...24 e de todas as questões levantadas quanto à legitimidade da proposta da mesma, vem muito respeitosamente esclarecer o seguinte:
1.º
A aqui adjudicatária, a título singular, apresentou a melhor proposta de compra do imóvel supra identificado, no valor de 868.791,18€.
2.º
A mesma mostrou a sua intenção em adquirir o imóvel, intenção essa que se mantêm. Pelo que, vêm pelo presente requerimento, reiterar a sua intenção em adquirir o imóvel supra identificado, pelo preço proposto em leilão.
3.º
Desta forma, não vê motivo válido para recorrer a um novo leilão, quando a intenção em adquirir o prédio urbano se mantém nos termos, condições e valor apresentado no anterior leilão.
4.º
Assim, a fim de evitar mais delongas neste processo, e pelo facto de ter realmente interesse na aquisição do imóvel, a mesma não apresenta qualquer objeção a que o prédio urbano identificado lhe seja adjudicado a título singular, motivo pelo qual se requer a V/Exa. que autorize o prosseguimento da venda à adjudicatária AA, enquanto pessoa singular, do prédio urbano identificado, no âmbito do encerramento do leilão eletrónico com o número ...24.”

A 13/02/2025 foi proferido o seguinte despacho:
“Face ao sucedido quanto à identidade do efectivo proponente, e as invocadas suspeitas por parte da Administradora da Devedora até quanto à hora do fecho do leilão e hora da proposta vencedora, renovo o meu despacho de 20/12/2024, devendo o Sr.(a) Administrador(a) de Insolvência proceder a nova diligência de venda no e-leilões e no âmbito do mesmo deverão ser apresentadas as competentes propostas, designadamente a indicada sociedade.
Notifique, sendo o Sr.(a) Administrador(a) de Insolvência que todas as informações que obtiver e/ou dispuser relativamente ao leilão (data e hora de início e outras) deve de imediato dar conhecimento ao Tribunal e este notifica subsequentemente todos os demais intervenientes processuais para eventual exercício do contraditório.”

Dispõe o art.º 613º n.º 1 do CPC, aplicável aos despachos nos termos do n.º 3 do mesmo normativo que proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa.

Afirmava Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, 1984, pág. 126 que o alcance do princípio constante do preceito citado é o seguinte (negrito e sublinhado nosso): “O juiz não pode, por sua iniciativa, alterar a decisão que proferiu; nem a decisão nem os fundamentos em que ela se apoia e que constituem com ela um todo incindível.
Ainda que, logo a seguir ou passado algum tempo, o juiz se arrependa, por adquirir a convicção que errou, não pode emendar o suposto erro. Para ele a decisão fica sendo intangível.”

Esta regra assenta em razões de certeza e segurança jurídica ou, como refere Rui Pinto, in CPC Anotado, Volume II, pág. 174, é “uma regra de proibição do livre arbítrio e discricionariedade na estabilidade das decisões judiciais.” e, mais adiante “[g]raças a esta regra, antes mesmo do trânsito em julgado, uma decisão adquire com o seu proferimento um primeiro nível de estabilidade interna ou restrita, perante o próprio autor da decisão.”
 
Interpretando a expressão “quanto à matéria da causa” referia Alberto dos Reis, in ob. e loc. cit. (negrito e sublinhado nosso):
“Convém atentar nas palavras «quanto à matéria da causa». Estas palavras marcam o sentido do princípio referido. Relativamente à questão ou questões sobre que incidiu a sentença ou despacho, o poder jurisdicional do seu signatário extinguiu-se. Mas isso não obsta, é claro, a que o juiz continue a exercer no processo o seu poder jurisdicional para tudo o que não tenda a alterar ou modificar a decisão proferida.

Também Antunes Varela in Manual de Processo Civil, 2ª edição, pág. 684 escrevia (negrito e sublinhado nosso):
“O esgotamento do poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa significa que lavrada e incorporada nos autos a sentença, o juiz já não pode alterar a decisão da causa, nem modificar os fundamentos dela.
Respeitado, porém, este núcleo fundamental do pronunciamento do tribunal sobre as pretensões das partes, o juiz mantém ainda o exercício do poder jurisdicional para a resolução de algumas questões marginais, acessórias ou secundárias que a sentença pode suscitar entre as partes.”

Vejamos
No despacho proferido a 20/12/2024 foi decidido que o Sr.(a) Administrador(a) de Insolvência devia proceder a nova diligência de venda no e-leilões.

A ora recorrente veio requerer, a 30/12/2024, o prosseguimento da venda à mesma do imóvel.

Esta pretensão era patente e manifestamente contrária e incompatível com o decidido naquele despacho, de tal modo que o seu deferimento implicava a alteração do mesmo: a determinação de realização de novo leilão dava lugar à determinação da prática dos actos em falta para concretizar a venda à ora recorrente.

Destarte e quanto àquela questão, estava esgotado o poder jurisdicional do tribunal e, em consequência, estava vedado ao mesmo pronunciar-se quanto ao mérito daquela pretensão, devendo ter-se limitado a assinalar a incompatibilidade da mesma com o antes decidido, a invocar o esgotamento do poder jurisdicional e a declarar nada mais haver a ordenar.

Tendo-a conhecido, ainda que para renovar o despacho de 20/12/2024 e ainda que com outros fundamentos (o que, conforme a doutrina supra exposta, também lhe estava vedado, pelo que é irrelevante tal alteração), tal decisão é absolutamente ineficaz.

E não tendo a decisão de 20/12/2024 sido tempestivamente impugnada, atingiu o segundo nível de estabilidade, tendo-se formado quanto ela caso julgado formal (art.º 620º do CPC), o que já se verificava na data em que foi proferido o despacho recorrido.

Em face de tudo o exposto entendi que a decisão recorrida devia ser revogada, devendo os autos prosseguir como ordenado e não impugnado tempestivamente a 20/12/2024.
1º Adjunto: José Carlos Pereira Duarte

(A presente peça processual tem assinaturas eletrónicas)