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CONTRA-ORDENAÇÃO LABORAL
ACUSAÇÃO
HIGIENE E SAÚDE NO TRABALHO
Sumário
Sumário: 1. No processo aplicável às contra-ordenações laborais e de segurança social, o acto do Ministério Público de apresentação dos autos ao juiz é que vale como acusação – art. 37.º da Lei n.º 107/2009 – servindo assim de base à acusação o conjunto de actos de investigação e de instrução realizados pela autoridade administrativa. 2. Para os fins do art. 78.º n.º 3 al. c) da Lei n.º 102/2009, o que releva é o desenvolvimento de actividades de risco elevado, que exijam um serviço interno da segurança e saúde no trabalho adaptado às especiais contingências desse risco. 3. Ademais, exige-se a exposição a esse risco elevado por, pelo menos, 30 trabalhadores. 4. O facto da arguida se dedicar ao transporte de doentes em ambulância, quer não urgentes, quer de forma esporádica urgentes em serviços de emergência accionados pelo INEM, não significa necessariamente que os seus trabalhadores estejam sujeitos a um risco elevado de exposição a agentes biológicos dos grupos 3 e 4, com a especificidade definida no art. 4.º do Decreto-Lei n.º 84/97, nomeadamente aqueles que podem causar doenças graves no ser humano e constituir um risco grave para os trabalhadores. 5. Para estar sujeita à obrigação de instituir um serviço interno da segurança e saúde no trabalho, seria necessário demonstrar que a arguida efectuava o transporte de doentes contagiados com esse tipo especial de agentes biológicos, e que empregava mais de 30 trabalhadores no transporte dessa categoria especial de doentes.
Texto Integral
Acordam os Juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora:
No Juízo do Trabalho de Beja, Cruz Vermelha Portuguesa impugnou a decisão da ACT, proferida nos autos de processo de contra-ordenação n.º 042100267, que lhe aplicou a coima de € 12.400,00, pela prática de uma contra-ordenação muito grave, por violação das disposições conjugadas do art. 78.º n.º 3 al. c) e n.º 5, do art. 74.º, do art. 79.º n.ºs 1 e 2 e do art. 15.º n.ºs 10, 11 e 12, todos da Lei n.º 102/2009, de 10 de Setembro, concretizada no facto de não ter instituído um serviço interno de segurança e saúde no trabalho (este serviço encontrava-se instituído na modalidade de serviço externo).
Recebida a impugnação judicial, realizou-se julgamento, após o que foi proferida sentença, julgando a impugnação parcialmente procedente, na medida em que a coima foi reduzida ao montante de € 9.180,00.
A arguida interpôs recurso desta sentença e concluiu:
1. É entendimento doutrinário e jurisprudencial, perfeitamente pacíficos que o dolo e a negligência, enquanto elementos caracterizadores da ilicitude e da culpa, têm de assentar em factos concretos; não se bastando com a mera alusão a valorações subjectivas e/ ou juízos conclusivos, aplicáveis, em abstracto, a qualquer arguido em processo contra-ordenacional.
2. Se atentarmos na sentença em crise, verificamos que não resulta da factualidade provada, qualquer facto concreto que permita sustentar o elemento subjectivo do tipo legal imputado à recorrente, em especial, a negligência que lhe é apontada.
3. O Tribunal a quo na douta sentença em crise, não faz a devida ponderação do elemento subjectivo do tipo legal imputado à recorrente, procedendo à imputação da infracção alegadamente detectadas pela ACT.
4. O Tribunal a quo abstrai-se, por completo, das circunstâncias do caso concreto, nomeadamente, das especificidades da actividade (não lucrativa) exercida pela recorrente, da forma como a mesma está estruturada e dos efeitos práticos decorrentes da organização dos serviços de saúde, na modalidade de serviços internos, ao nível da real protecção dos trabalhadores.
5. A douta decisão em crise é perpassada por uma ideia de responsabilidade objectiva, o que é absolutamente ilegal e não pode deixar de determinar a respectiva nulidade.
6. Por outro lado, o Tribunal a quo, substituindo-se à ACT e de modo a viabilizar a condenação, toma conhecimento de factos novos, a saber, os factos vertidos nos pontos 14. e 26. da factualidade provada e que, atento o modo como a decisão está configurada, revelam-se essenciais para alicerçar o sentido da mesma.
7. A recorrente nunca teve oportunidade de pronunciar especificamente sobre estes factos, nem de produzir prova sobre os mesmos, circunstâncias que atenta contra o princípio do contraditório, que norteia o nosso sistema punitivo.
8. O Tribunal alterou os factos constantes da acusação (decisão final do processo administrativo) e, ao fazê-lo, tomou conhecimento de questões que não podia ter conhecido.
9. A douta sentença em crise é, por essa razão, nula, nos termos conjugado do art. 374º, nº 2 e 379º do CPP.
10. A recorrente tinha, efectivamente, organizados os Serviços de Segurança e Saúde no Trabalho (SST) na modalidade de Serviços Externos, para a delegação de Safara, com a empresa VivaMais – Segurança e Saúde no Trabalho, S.A. (anterior Segurahigiene S.A.) desde 12/07/2018, tendo como responsável na área da medicina do trabalho a Dra. (…) e, na área da segurança a Técnica Superior (…).
11. Apenas estavam afectos à delegação de Safara, 7 trabalhadores.
12. A recorrente faz, essencialmente, transporte de doentes não urgentes.
13. A recorrente tem sede em Lisboa e exerce a sua actividade em todo o território nacional, dispondo de serviços centrais e serviços autónomos, delegações locais e extensões das delegações locais.
14. As delegações locais funcionam de forma autónoma, dispondo de uma estrutura própria, direcção e presidente, a quem compete o exercício das funções e tarefas definidas nos Estatutos.
15. A recorrente já havia tido os serviços de segurança e saúde do trabalho organizados internamente, mas decidiu que a forma mais eficiente de assegurar as actividades de medicina e segurança no trabalho, passava pelo recurso a empresas externas prestadoras deste tipo de serviço, atenta a dispersão geográfica da actividade e, nessa senda, as delegações passaram a contratar os referidos serviços a terceiros.
16. A circunstância dos trabalhadores estarem qualificados como “socorristas” ou “tripulantes de ambulância” não significa, por si, que exerçam actividades de risco elevado, nomeadamente, que estejam efectivamente a expostos a factores biológicos do grupo 3 ou 4.
17. Cabia à ACT fazer prova do tipo de actividades que eram, concretamente, desenvolvidas por estes trabalhadores, em especial, por 30 destes trabalhadores, para que o elemento objectivo do tipo legal fosse preenchido.
18. A ACT não fez prova deste facto e a concreta factualidade apurada, ao contrário do que é preconizado pelo Tribunal, não habilita esse preenchimento.
19. A lógica subjacente à ideia de internalização dos serviços de segurança, assenta na ideia de salvaguarda da segurança e saúde dos trabalhadores.
20. Efectivamente, a lei, ao impor a obrigatoriedade ao empregador de sistema interno de segurança e saúde no trabalho, nas circunstâncias em causa no processo, indicia que tendo em conta a dimensão da actividade da recorrente nesse local ou nesse espaço geográfico tal justifica e exige a organização de uma estrutura própria da empresa empregadora tendo em visto a salvaguarda da segurança e saúde dos seus trabalhadores que aí prestam serviço, e sem que tal represente para a mesma empresa empregadora um custo empresarial excessivo.
21. Mas tal não se verifica se a empresa empregadora tiver os trabalhadores distribuídos por diversos estabelecimentos/locais de trabalho, dispersos e distantes entre si: nesta situação, a obrigatoriedade da existência de um serviço interno de segurança e saúde acarretaria para a empresa custos excessivos em termos empresarias com a deslocação desse serviço interno pelos diversos estabelecimentos do país, ou então com a própria deslocação dos trabalhadores dos diversos estabelecimentos a um local fixo para a realização de exames.
22. É por demais evidente que num local em que laboram 7 pessoas, como é o caso da delegação de Safara, não existem meios suficientes para desenvolver as actividades integradas no funcionamento do serviço interno.
23. Pelo que a organização de serviços externos, é a forma mais ajustada para salvaguardar a saúde e segurança dos trabalhadores da delegação.
24. Por outro lado, funcionando a delegação de forma autónoma, era por referência a esta e não à entidade no seu todo, que os critérios legais deviam ser aferidos, resultando claro dos autos que em Safara, a recorrente não tinha mais de 30 trabalhadores expostos a riscos elevados.
25. A recorrente é uma pessoa colectiva sem fins lucrativos.
26. A recorrente não funciona como uma empresa, não procura o lucro, nem pode, por essa razão, ser qualificada ou tratada como tal.
27. Ao contrário do que preconiza o Tribunal a quo não é verosímil que quando o legislador, alude no art. 554º do Código do Trabalho, ao termo “empresa”, o esteja a fazer em sentido amplo.
28. Aliás, não se entende, atenta a distinta natureza jurídica, como pode o Tribunal preconizar que o conceito de empresa “em sentido amplo”, abrange toda e qualquer pessoa colectiva, nomeadamente, pessoas colectivas sem fins lucrativos.
29. Se o legislador quisesse utilizar o termo amplo, teria recorrido à expressão “pessoa colectiva”, como faz no art. 7º e 17º do RGCO ou no limite à expressão “empregador”.
30. Sendo ainda de frisar que mal se compreende que tenha distinguido no art. 555º do Código Trabalho, entre pessoas singulares com fins e sem fins lucrativos e não o tenha o feito no preceito antecedente.
31. Ora, se o legislador escolheu o termo empresa, tendo em conta as regras estabelecidas no art. 9º do Código do Civil, outra interpretação não pode ser retirada que não seja a de que se quis reportar, em exclusivo, a pessoas colectivas com fins lucrativos.
32. É entendimento doutrinário e jurisprudencial dominante que perante uma lacuna legal (como parece ser o caso) e em matéria sancionatória, está vedada a analogia, sendo apenas admissível a interpretação extensiva, se esta for favorável ao arguido.
33. A interpretação extensiva feita pelo Tribunal é altamente desfavorável à recorrente, pelo que é ilegal e dir-se-á, mesmo, inconstitucional, por violação do art. 13º e 32º da Constituição.
34. Ainda que se concluísse pela possibilidade de aplicação de coima, o que por mera cautela de patrocínio se concebe, sempre será de referir que atentas as circunstâncias do caso concreto, sempre seria possível, nos termos do art. 51º do RGCO, aplicar uma sanção de mera admoestação.
35. Por todo exposto, andou mal o Tribunal a quo.
36. No caso concreto, não estão preenchidos os elementos objectivo e subjectivo do tipo legal cuja violação é imputada à recorrente.
37. A sentença em crise viola, entre outros os arts. 1º, 2º, 8º e 58º do RGCO e os arts. 1º e 32º da CRP.
A resposta sustenta o julgado.
Já nesta Relação, a Digna Magistrada do Ministério Público emitiu o seu parecer, sustentando a manutenção da sentença proferida na primeira instância.
Cumpre-nos decidir.
A matéria de facto foi assim estabelecida na sentença recorrida:
1. A recorrente é uma pessoa colectiva de direito privado e de utilidade pública administrativa, sem fins lucrativos.
2. De acordo com o art. 5.º dos seus Estatutos: “1 — Constitui missão da CVP prestar assistência humanitária e social, em especial aos mais vulneráveis, prevenindo e reparando o sofrimento e contribuindo para a defesa da vida, da saúde e da dignidade humana. 2 — Para a concretização do seu objecto a CVP: a) Fomenta e organiza a colaboração voluntária e desinteressada das pessoas singulares e colectivas, públicas e privadas, nas actividades da instituição, ao serviço do bem comum e em especial em situações de acidente grave ou catástrofe; b) Colabora com outras entidades e organismos que actuem nas áreas de protecção e socorro e da assistência humanitária e social, sendo também, neste âmbito, auxiliar ou complementar dos poderes públicos, sem prejuízo da sua independência e autonomia e assegurando o respeito pelos símbolos, distintivos e emblemas da Cruz, Crescente e Cristal Vermelhos, nos termos das Convenções de Genebra e seus Protocolos Adicionais; c) Colabora com as autoridades de protecção civil em articulação com o sistema integrado de operações de protecção e socorro, de acordo com os princípios e as normas a que se encontra submetida e sem prejuízo da sua independência e autonomia; d) Colabora com os serviços de saúde militar, no âmbito da protecção aos militares feridos, doentes, náufragos, prisioneiros de guerra, às vítimas civis dos conflitos nacionais e internacionais e noutras situações decorrentes de estados de excepção, no quadro da acção do Movimento Internacional da Cruz Vermelha e de acordo com as disposições das Convenções de Genebra e seus protocolos adicionais; e) Colabora com o Movimento Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho na promoção dos direitos humanos, na difusão e ensino do direito internacional humanitário, bem como na difusão e aplicação das suas orientações.”
3. A recorrente exerce “actividades de apoio social com alojamento, n.e.” (CAE 87902) e “actividades de ambulância” (CAE 86902).
4. A arguida tem sede em Jardim 9 de Abril, n.º 1 a 5, 1249-083 Lisboa e local de trabalho sito na Praça 25 de Abril, 5, 7875-053 Safara;
5. No dia 21 de Janeiro de 2021, foi desenvolvida uma acção inspectiva ao local de trabalho supra-referido, a fim de verificar as condições sócio laborais e de Segurança e Saúde dos trabalhadores.
6. Na sequência de comunicação de ocorrência de acidente de viação e de trabalho mortal pela Procuradoria do Juízo do Trabalho de Beja, no dia 17.06.2019, pelas 11:00H, efectuou a Sra. Inspectora Autuante, (…), conjuntamente com a Inspectora (…), visita inspectiva ao local de trabalho sito na Delegação da Cruz Vermelha de Safara e Sobral da Adiça, a fim de averiguar as circunstâncias que levaram à ocorrência do acidente de trabalho ocorrido no dia 07/05/20I9, por volta das 21:50H e que provocou duas vítimas mortais, os trabalhadores (…) e (…), ambos trabalhadores da Arguida e, uma vítima muito grave, o Sr. (…), Socorrista voluntário na Arguida;
7. No local foi interlocutora a Sra. (…), trabalhadora da Arguida na Delegação de Safara com a categoria profissional administrativa;
8. Verificou a Sra. Inspectora Autuante de forma pessoal, directa e, imediata e mediata, no decurso das averiguações efectuadas nos locais supra referidos, que foram vítimas de acidente de trabalho os trabalhadores (…) e (…), assim como o Socorrista voluntário Sr. (…) (ferido grave), tripulantes de ambulância de transporte (Tripulantes Socorristas), e que se deslocavam-se na viatura de matrícula (…), denominada Ambulância, na EN 258, entre as aldeias de Safara e Santo Aleixo da Restauração, no concelho de Moura, distrito de Beja, para prestação de um serviço de emergência médica pré-hospitalar accionado pelo INEM;
9. Os trabalhadores executavam funções relacionadas com a actividade desenvolvida pela Arguida (“Actividades de Ambulâncias” – CAE 86902), e estavam, na Delegação de Safara, no âmbito da organização de trabalho da arguida;
10. No decurso da visita inspectiva foi assumido o procedimento previsto na alínea e) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 102/2000, de 2 de Junho – Notificação para apresentação de documentos;
11. Aquando da análise dos documentos remetidos pela recorrente constatou-se que dois dos trabalhadores sinistrados não tinham sido submetidos a exames médicos de saúde, motivo pelo qual foi levantado o respectivo procedimento contra-ordenacional;
12. A Arguida tinha organizado os Serviços de Segurança e Saúde no Trabalho (SST) na modalidade de Serviços Externos, para aquele local de trabalho, com a empresa VivaMais – Segurança e Saúde no Trabalho, S.A. (anterior Segurahigiene S.A.) desde 12/07/2018, tendo como responsável na área da medicina do trabalho a Dra. (…) e, na área da segurança a Técnica Superior (…).
13. De acordo com os dados constantes no Anexo 0 e A do Relatório Único de 2018, em Dezembro de 2018, a Arguida tinha ao seu serviço cerca de 2.504 trabalhadores adstritos às diferentes estruturas locais, 7 (sete) dos quais afectos à Delegação de Safara;
14. No conjunto de estabelecimentos existentes a nível nacional tinha mais de 30 trabalhadores com as categorias de socorristas e tripulantes de ambulância de transporte, em Dezembro de 2018;
15. A Arguida delegou, em todas as Delegações Regionais/locais, e sob a responsabilidades destas, a organização dos serviços de SST a entidades externas;
16. Arguida não organizou os Serviços de SST na modalidade de Serviços Internos.
17. Em 10/02/2020 foi a Arguida notificada para apresentar autorizações comprovativas da dispensa de serviço interno.
18. Em 12/02/2020 a Arguida informou não ter autorizações de dispensa de serviço interno.
19. Nessa sequência, em 27/02/2020, a ACT notificou a arguida para, no prazo de 60 dias, organizar os Serviços Internos de SST;
20. Em 30/07/2020 a Arguida, via E-mail, na pessoa da Dra. (…), informou a ACT, de forma resumida, sobre os constrangimentos verificados, por motivo da situação pandémica, nas empresas prestadoras dos Serviços de SST no que respeita à elaboração e envio dos relatórios de avaliação de riscos profissionais afectos a cada estrutura local, anexando 13 (treze) relatórios (doc. a fls. 81);
21. Em 03/08/2020 a Sra. Inspectora Autuante, via telefone, contactou com a Dra. (…), dos Recursos Humanos, e informou que não era necessário remeter mais relatórios de avaliação de riscos profissionais, uma vez que não era isso que se pretendia;
22. Em 11/08/2020, via E-mail, a Arguida, na pessoa da Dra. (…), remeteu à ACT “(...) despacho sobre a constituição de grupo de trabalho com o objectivo de dar cumprimento à legislação em vigor sobre a organização dos serviços internos na CVP. (...)”;
23. Até à data, a Arguida não procedeu à organização dos Serviços Internos de SST.
24. A arguida já havia tido os serviços de segurança e saúde do trabalho organizados internamente mas decidiu que a forma mais eficiente de assegurar as actividades de medicina e segurança no trabalho, passava pelo recurso a empresas externas prestadoras deste tipo de serviço, atenta a dispersão geográfica da actividade e, nessa senda, as delegações passaram a contratar os referidos serviços a terceiros.
25. A arguida apresentou volume de negócios de € 55.371.784,00 em 2017.
26. A arguida faz transporte de doentes não urgentes e, adicionalmente, serviços de emergência para o INEM.
27. A recorrente tem sede em Lisboa e exerce a sua actividade em todo o território nacional, dispondo de serviços centrais e serviços autónomos, delegações locais e extensões das delegações locais.
28. As delegações locais funcionam de forma autónoma, dispondo de uma estrutura própria, direcção e presidente, a quem compete o exercício das funções e tarefas definidas nos Estatutos.
Aplicando o Direito Do preenchimento do tipo legal
De acordo com o art. 51.º n.º 1 da Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro, a segunda instância apenas conhece da matéria de direito, ressalvando-se a apreciação de questões de natureza oficiosa, e certo é que não se vislumbra na decisão recorrida qualquer insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, ou contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, ou, sequer, erro notório na apreciação da prova, que imponha o uso dos poderes consignados no art. 410.º n.º 2 do Código de Processo Penal.
Nas suas alegações, a Recorrente afirma que a sentença tomou conhecimento de factos novos, vertidos nos pontos 14 e 26, que não constavam da decisão condenatória da autoridade administrativa, e uma vez que tais factos se revelaram essenciais para alicerçar a condenação, a sentença seria nula nos termos gerais dos arts. 374.º n.º 2 e 379.º do Código de Processo Penal.
No entanto, é preciso recordar que o acto do Ministério Público de apresentação dos autos ao juiz é que vale como acusação – art. 37.º da Lei n.º 107/2009 – servindo assim de base à acusação o conjunto de actos de investigação e de instrução realizados pela autoridade administrativa.[1]
De todo o modo, quanto aos factos vertidos no ponto n.º 14, a decisão condenatória da autoridade administrativa assentava, precisamente, na existência de mais de 30 trabalhadores ao serviço da Recorrente com a categoria de socorrista/tripulante de ambulância, com risco de exposição a agentes biológicos do grupo 3 e 4, e isso mesmo foi vertido no facto n.º 16 daquela decisão. De igual modo, quanto aos factos vertidos no ponto n.º 26, o transporte de doentes não urgentes é algo que resulta da actividade de ambulâncias a que se dedica a Recorrente, e a realização de serviços de emergência para o INEM era precisamente a actividade a que se dedicavam os socorristas acidentados em 17.06.2019, tal como vem descrito na decisão administrativa.
A decisão recorrida considerou que a Recorrente estava sujeita ao dever de instituir um serviço interno da segurança e saúde no trabalho, por deter “estabelecimento ou conjunto de estabelecimentos que desenvolvam actividades de risco elevado (…), a que estejam expostos pelo menos 30 trabalhadores”, sendo tal “risco elevado” o desempenho de “actividades que impliquem a exposição a agentes biológicos do grupo 3 ou 4”, nos termos das disposições conjugadas do art. 78.º n.º 3 al. c) e do art. 79.º al. l) da Lei n.º 102/2009, de 10 de Setembro, utilizando a seguinte argumentação essencial: “Consta da matéria de facto provada que a arguida, em Dezembro de 2018, tinha ao seu serviço cerca de 2.504 trabalhadores adstritos às diferentes estruturas locais, 7 (sete) dos quais afectos à Delegação de Safara e, no total de estabelecimentos existentes a nível nacional, tinha mais de 30 trabalhadores com as categorias de socorristas e tripulantes de ambulância de transporte. Cremos que será óbvia a conclusão de que estes trabalhadores, atenta a sua categoria profissional e na medida em que estão em contacto próximo com doentes (qualquer que seja a doença, ainda que não estejam afectos a transporte urgente), estão potencialmente expostos a agentes biológicos de grupo 3 e 4 (designadamente o vírus da gripe A) constantes do anexo ao D.L. 84/97. Da matéria de facto provada não é possível aferir se algum dos estabelecimentos ou conjunto de estabelecimentos, distanciados até 50km daquele que reúna maior número de trabalhadores, da arguida/recorrente, possui pelo menos 400 trabalhadores. Porém, resultou provado que a recorrente, no conjunto dos estabelecimentos (independentemente da sua localização, porquanto aqui já não vigora a regra da proximidade imposta para aferir do número total de trabalhadores), tinha mais de 30 trabalhadores socorristas e afectos ao transporte de pacientes que estavam potencialmente expostos aos aludidos agentes biológicos de grupo 3 e 4. Assim sendo cumprirá considerar verificados os elementos objectivos da contra-ordenação imputada à arguida.”
Vejamos.
O Decreto-Lei n.º 84/97, de 16 de Abril, estabeleceu as prescrições mínimas de protecção da segurança e da saúde dos trabalhadores contra os riscos da exposição a agentes biológicos durante o trabalho, classificando no seu art. 4.º os agentes biológicos em quatro grupos.
Na redacção original deste DL (o diploma foi entretanto alterado pelos DL’s n.ºs 102-A/2020 e 118/2024), os agentes biológicos eram classificados, conforme o seu nível de risco infeccioso, nos seguintes grupos: “a) Agente biológico do grupo 1 – o agente biológico cuja probabilidade de causar doenças no ser humano é baixa; b) Agente biológico do grupo 2 – o agente biológico que pode causar doenças no ser humano e constituir um perigo para os trabalhadores, sendo escassa a probabilidade de se propagar na colectividade e para o qual existem, em regra, meios eficazes de profilaxia ou tratamento; c) Agente biológico do grupo 3 – o agente biológico que pode causar doenças graves no ser humano e constituir um risco grave para os trabalhadores, sendo susceptível de se propagar na colectividade, mesmo que existam meios eficazes de profilaxia ou de tratamento; d) Agente biológico do grupo 4 – o agente biológico que causa doenças graves no ser humano e constitui um risco grave para os trabalhadores, sendo susceptível de apresentar um elevado nível de propagação na colectividade e para o qual não existem, em regra, meios eficazes de profilaxia ou de tratamento.”
A lista de agentes biológicos classificados dos grupos 2, 3 e 4 consta do anexo V daquele diploma, constando das respectivas notas que ali são incluídos “os agentes biológicos reconhecidamente infecciosos para o ser humano”.
A lista é longa, contém centenas de agentes biológicos que podem causar doenças no ser humano, mas a sentença parte do pressuposto que os tripulantes de ambulância, por estarem em contacto com doentes, “estão potencialmente expostos a agentes biológicos de grupo 3 e 4 (designadamente o vírus da gripe A)”.
Porém, lendo aquela lista, o “vírus da gripe A” apenas está incluído no grupo 2.
No grupo 3 estão outras variantes, como o “vírus da gripe aviária de alta patogenicidade HPAIV (H5), p. ex. H5N1”, o “vírus da gripe aviária de alta patogenicidade HPAIV (H7), p. ex. H7N7 e H7N9”, o “vírus A da gripe A/Nova Iorque/1/18 (H1N1) (gripe espanhola 1918)”, o “vírus A da gripe A/Singapura/1/57 (H2N2)”, e o “vírus da gripe aviária de baixa patogenicidade (GABP) H7N9”.
De todo o modo, o facto da Recorrente se dedicar ao transporte de doentes em ambulância, quer não urgentes, quer de forma esporádica urgentes em serviços de emergência accionados pelo INEM, não significa necessariamente que os seus trabalhadores estejam sujeitos a um risco elevado de exposição aos agentes biológicos dos grupos 3 e 4, com a especificidade definida no art. 4.º do Decreto-Lei n.º 84/97, nomeadamente aqueles que podem causar doenças graves no ser humano e constituir um risco grave para os trabalhadores.
Note-se que a população em geral está exposta a este tipo de agentes biológicos, que não escolhem as pessoas a infectar de acordo com a sua profissão. O que releva, para os fins do art. 78.º n.º 3 al. c) da Lei n.º 102/2009, é o desenvolvimento de actividades de risco elevado, que exijam um serviço interno da segurança e saúde no trabalho adaptado às especiais contingências desse risco.
Ademais, exige-se a exposição a esse risco elevado por, pelo menos, 30 trabalhadores.
Dispunha o art. 6.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 84/97, na sua redacção original, que nas actividades susceptíveis de apresentar um risco de exposição a agentes biológicos, o empregador deve proceder à avaliação dos riscos, mediante a determinação da natureza e do grupo do agente biológico, bem como do tempo de exposição dos trabalhadores a esse agente.
No caso, não está demonstrada qual a avaliação de riscos realizada pela Recorrente (a autoridade administrativa nada apurou a esse respeito), ou sequer se essa avaliação determinou a exposição de trabalhadores a agentes biológicos dos grupos 3 ou 4.
A simples circunstância da Recorrente empregar trabalhadores em transporte de doentes, quer não urgentes, quer urgentes a solicitação do INEM, não significa, apenas por si, a presença de um risco elevado de exposição a agentes biológicos daqueles grupos específicos (3 ou 4).
Na verdade, não está demonstrado que a Recorrente efectue o transporte de doentes contagiados com esse tipo especial de agentes biológicos, e muito menos está demonstrado que empregue mais de 30 trabalhadores no transporte dessa categoria especial de doentes.
O facto de a Recorrente empregar mais de 30 trabalhadores com as categorias de socorristas e tripulantes de ambulância de transporte, não significa, primeiro, que transporte efectivamente doentes contagiados com agentes biológicos dos grupos 3 ou 4, e, segundo, que utilize mais de 30 trabalhadores no transporte de doentes contagiados com agentes biológicos dos referidos grupos.
Como tal, não está demonstrado o requisito essencial que a lei prevê para a instituição de um serviço interno de segurança e saúde no trabalho, pelo que a absolvição se impõe.
Decisão
Destarte, decide-se conceder provimento ao recurso, absolvendo-se a arguida da contra-ordenação que lhe vem imputada.
Sem custas.
Évora, 8 de Maio de 2025 Mário Branco Coelho (relator) Paula do Paço Emília Ramos Costa
__________________________________________________ [1] Vide, neste sentido, o Acórdão da Relação de Coimbra de 07.06.2023 (Proc. 2666/21.1T9LRA.C1), publicado em www.dgsi.pt.