Sumário:
O Dec. Lei 328/90 de 22 de Outubro dispunha no artigo 1º nº 1 “constituir violação do contrato de fornecimento de energia eléctrica qualquer procedimento fraudulento susceptível de falsear a medição da energia eléctrica consumida ou da potência tomada, designadamente a captação de energia a montante do equipamento de medida, a viciação, por qualquer meio, do funcionamento normal dos aparelhos de medida ou de controlo da potência, bem como a alteração dos dispositivos de segurança, levada a cabo através da quebra dos selos ou por violação dos fechos ou fechaduras.
Por sua vez, dispunha o nº 2 do mesmo artigo que qualquer procedimento fraudulento detectado no recinto ou local exclusivamente servido por uma instalação de utilização de energia eléctrica presume-se, salvo prova em contrário, imputável ao respectivo consumidor.
Ao estabelecer que qualquer procedimento fraudulento se presume, salvo prova em contrário, imputável ao respectivo consumidor, a norma não presume que o consumidor foi o autor do procedimento fraudulento, a norma apenas responsabiliza o consumidor que recebe energia através do equipamento falseado perante o distribuidor pelas consequências desse procedimento, excepto se provar que o mesmo não se deve a culpa sua.
Recorrente: ECONOVA-RADIOLOGIA E IMAGIOLOGIA MÉDICA, LDA.
Recorrida: E-REDES - DISTRIBUIÇÃO DE ELETRICIDADE S.A.
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Acordam os Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora,
I. Relatório
E-REDES - DISTRIBUIÇÃO DE ELETRICIDADE S.A. intentou a presente ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra ECONOVA-RADIOLOGIA E IMAGIOLOGIA MÉDICA, LDA., peticionando a condenação desta no pagamento da quantia de 40.007,82€, a título de indemnização por prejuízos causados, acrescida de juros vencidos e vincendos, calculados à taxa legal, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.
Alegou, em suma, que exerce as funções de operador de rede de distribuição de energia elétrica, explorando todas as instalações elétricas que servem essa rede e recolhendo a leitura dos valores registados nos equipamentos de medição, para informação aos comercializadores de energia e emissão, por parte destes, da respetiva faturação e que é proprietária dos fluxos de energia que circulam na rede pública de distribuição, sendo que, no exercício da sua atividade, detetou anomalias no contador afeto ao local de consumo relativo a contrato de fornecimento de energia celebrado com a Ré tendo, após análise, concluído ter havido manipulação do mesmo.
Mais alegou que, por força de tal manipulação do contador, a Ré consumiu energia elétrica não registada, cujo valor, acrescido dos custos da utilização de potência e dos encargos administrativos com a deteção e tratamento da anomalia, ascende a 40.007,82€.
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A Ré apresentou contestação, na qual arguiu a exceção dilatória de nulidade do processo por ineptidão da petição inicial e a exceção perentória de abuso do direito, invocando que a Autora tinha o ónus de medição e leitura dos consumos, de verificação dos equipamentos de medição e de correção de quaisquer anomalias, que não cumpriu, e apenas quando a Ré solicitou os seus serviços, verificou o estado de anomalia do equipamento e que, por ter incumprido tal ónus, deve ser impedida de exercer o seu direito de cobrar os valores não medidos pelo contador.
Mais alegou a Ré que a caixa do contador estava instalada em local de acesso público, sem o seu controlo e fechada à chave, não possuindo a Ré a respetiva chave.
Referiu que a própria Autora não lhe imputa, na petição inicial, a prática de qualquer facto com vista à adulteração da contagem, baseando-se apenas na circunstância de ser titular do contrato de consumo energético associado àquele contador para, de seguida, presumir a sua responsabilidade pelas adulterações encontradas no equipamento.
Terminou pedindo a condenação da Autora em multa e indemnização, como litigante de má-fé.
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Por requerimento de 18-05-2023, a Autora respondeu às exceções invocadas pela Ré na sua contestação e, bem assim, ao seu pedido de condenação como litigante de má-fé.
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Na sequência de despacho para o efeito, a Autora juntou petição inicial aperfeiçoada, em 05-06-2023, na qual concretizou os factos nos quais baseava o pedido de condenação da Ré ao abrigo do instituto da responsabilidade civil extracontratual, tendo a Ré exercido o contraditório acerca desta peça processual por articulado apresentado em 19-06-2023, no qual impugnou todos os factos novos articulados pela Autora e reiterou a invocação da exceção dilatória de nulidade do processo por ineptidão da petição inicial.
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Foi proferido despacho saneador, no qual se julgou improcedente a aludida exceção dilatória, e e que se declarou a instância totalmente regular, e em que se procedeu à fixação do objeto do litígio e à enunciação dos temas de prova.
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Procedeu-se à realização da audiência final, a que se seguiu a prolação de sentença, com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente, por provada, a ação intentada por E-REDES - DISTRIBUIÇÃO DE ELETRICIDADE S.A. contra ECONOVA-RADIOLOGIA E IMAGIOLOGIA MÉDICA, LDA. e, em consequência, decide-se:
a. condenar a R. a pagar à A. a quantia de 39.827,74€ (trinta e nove mil oitocentos e vinte e sete euros e setenta e quatro cêntimos);
b. condenar a R. no pagamento de juros moratórios sobre a referida quantia, a contar da citação (em 23-03-2023) e até efetivo e integral pagamento da aludida quantia, à taxa legal de juros civis sucessivamente em vigor;
c. absolver a R. do demais peticionado.
Mais se decide não condenar a A. como litigante de má-fé.(…)”
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Da sentença veio a Ré, inconformada, interpor recurso, tendo este Tribunal da Relação, por Acórdão de 07.11.2024, julgado o mesmo procedente, considerando prescrito o direito ao recebimento ao preço dos serviços prestados e não pagos em causa nos autos, pela Recorrida à ora Recorrente, absolvendo esta última do pedido.
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Inconformada a Autora, interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, que proferiu o Acórdão de 27.02.2025, com o seguinte dispositivo:
“Nos termos expostos, concede-se provimento à revista, revoga-se o acórdão recorrido – declara-se que pela R. não foi invocada a exceção de prescrição – e determina-se a remessa dos autos à Relação para apreciação das questões suscitadas nas conclusões 9.ª a 62.º da apelação da R..(…)”
Cumpre, pois, em cumprimento de tal decisão, proceder à indicada apreciação.
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É o seguinte o teor das conclusões apresentadas pela Ré na sua apelação:
1. O presente recurso vem interposto da decisão de fls…., proferida a 18-02-2024, com a referência 95066476, nos termos da qual é julgada parcialmente procedente a acção intentada pela Autora E-REDES- Distribuição de Electricidade, S.A. contra a ora Recorrente ECONOVA- Radiologia e Imagiologia Médica, Ldª., sendo, em consequência, decidido condenar a Ré a pagar à Autora a quantia de 39.827,74€ (trinta e nove mil, oitocentos e vinte e sete euros e setenta e quatro cêntimos), acrescida dos juros moratórios sobre a referida quantia, calculados a contar desde a data da citação (23-03-2023) até efectivo e integral pagamento, à taxa legal de juros civis sucessivamente em vigor, absolvendo a Ré do demais peticionado, mais decidindo não condenar a Autora como litigante de má fé.
2. Começa a sentença em causa por decidir, como questão prévia “não invocação da excepção de prescrição pela Ré”, não apreciar na sentença a questão da excepção de prescrição, uma vez que entende não ter sido invocada na contestação e que, quando invocada em requerimento de resposta à petição inicial aperfeiçoada, já se encontrava precludido o direito de invocar tal matéria.
3 . Sucede que não pode a Recorrente concordar com tal entendimento do Tribunal A Quo, desde logo atentando à excepção dilatória de ineptidão invocada na contestação, sendo que, atentando ao teor da petição inicial que deu origem aos presentes, veio a Recorrente, na contestação oportunamente apresentada, invocar a ineptidão da petição inicial, com a consequente nulidade de todo o processo e absolvição da Ré da instância, atenta a falta de causa de pedir, considerando existir falta de alegação de factos essenciais à procedência da acção, referindo não terem sido alegados quaisquer factos que pudessem implicar o preenchimento ou não dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual invocada.
4. Por outro lado, mencionou igualmente na contestação deduzida nos autos que a Autora não indicou, na petição inicial, qual o período em que o equipamento em causa supostamente se encontrou adulterado, não oferecendo qualquer baliza temporal para além da totalidade do período em que o contrato de fornecimento se manteve em vigor (artigo 58º da contestação), mais não indicando quais os períodos a que supostamente dizem respeito os valores reclamados por si na acção interposta (artigo 59º da contestação).
5. Seguidamente, e por despacho pré saneador proferido a 22-05-2023, com a referência 93393289, veio o Tribunal a Quo determinar a notificação da Autora para apresentar petição inicial corrigida, referindo o seguinte “Assim, cumpre referir que recai sobre o Autor o ónus de alegar e provar os factos integrantes da causa de pedir (cfr. artigo 342º, n.º 2 do Código Civil) e ainda que os documentos juntos aos autos não substituem o ónus de alegação dos factos constitutivos do direito que a parte pretende fazer valer”.
6. Após apresentação da petição inicial corrigida, a 05-06-2023, com a referência 9753708, veio a Recorrente exercer o contraditório, mantendo o entendimento da ineptidão da petição inicial e da falta de elementos essenciais, mais referindo, nos artigos 36º e 37º do requerimento de resposta à petição inicial corrigida, datado de 19-06-2023, com a referência 9786440 o seguinte:
(A Autora) “ (...) já não alega quais são os factos concretamente praticados pela R., nem indica o período temporal a que se reporta a alegada manipulação,
37.º O que impossibilita determinar o hipotético valor do bem alegadamente furtado e, por sua vez, a qualificação ou não do alegado crime de furto, o que tem consequências a nível da qualificação do crime e da moldura penal a considerar, nomeadamente para efeitos do prazo de prescrição aplicável in casu, sendo certo que o processo crime que correu termos com o objecto em causa nos presentes autos foi arquivado”.
7 . Assim, e considerando a falta de elementos que dispunha para se pronunciar, na contestação, quanto à prescrição do direito invocado pela Autora, à Recorrente não poderia ser exigido que deduzisse toda a sua defesa na contestação, pelo que não se pode concordar com o Tribunal recorrido, no segmento em que afirma, no 3º parágrafo da página 29 da sentença recorrida, que “ Assim, não tendo a R. invocado a exceção de prescrição na contestação, e não se baseando a sua invocação em qualquer facto novo alegado na petição inicial aperfeiçoada, aquando da apresentação de tal resposta, já se mostrava precludido o seu direito de invocar tal matéria (...)”, sendo que tal entendimento, e salvo o devido respeito, contraria não só o disposto no artigo 573º do Código de Processo Civil, e no artigo 660º, n.º 2 do CPC, como também põe em causa o exercício do direito ao contraditório que assiste à Ré e que se encontra consagrado no artigo 3º, n.º 3 do CPC.
8. Mais, e ao não apreciar a matéria em causa, o Tribunal recorrido não se pronunciou quanto à questão que deveria ter sido apreciada, o que, nos termos do artigo 615º, n.º 1, alínea d) do CPC, constitui fundamento de nulidade da sentença e que aqui se argui para os devidos efeitos legais.
9. Sem prejuízo, e por outro lado, verifica-se que a sentença recorrida é, também, nula por condenar em quantidade superior e em objecto diverso do pedido, ao abrigo do disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 615º do CPC, senão vejamos: resulta peticionado pela Autora, no âmbito dos presentes autos, a condenação da Ré no pagamento de uma indemnização pelos prejuízos causados, no montante de 40.007,82€, acrescida de juros vencidos e vincendos, sendo o montante peticionado, a título de responsabilidade civil extracontratual (artigo 483º e seguintes do Código Civil), referente ao valor da energia eléctrica indevidamente utilizada pela Ré, acrescida da utilização de potência e dos encargos administrativos com a detecção e tratamento da anomalia, elencando a Autora, no artigo 31º da petição inicial, os valores apurados, em termos da diferença de valores registados, o que o Tribunal A Quo considerou devidamente provado, nos pontos 17, 18 e 19 dos factos provados.
10. Entende o Douto Tribunal A Quo que os factos em apreço encontram enquadramento legal no regime da responsabilidade civil extracontratual pela prática de factos ilícitos, considerando estarem preenchidos os respectivos pressupostos, a saber: i) facto voluntário; ii) ilícito; iii) culposo; iv) existência de um dano; v) nexo de causalidade entre o facto e o dano.
11 . Contudo, não pode a Recorrente concordar com o preenchimento dos pressupostos acima elencados, sendo que a falta dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual sempre deveriam conduzir à improcedência da acção, sendo que, ademais, entende que nem tão pouco foram os mesmos devidamente alegados em sede de petição inicial, conforme impõe a lei, nomeadamente no seu artigo 552º, n.º 1, alínea d) do CPC.
12. Em primeiro lugar, importa referir que o Tribunal A Quo refere, no ponto 2.3. da sentença recorrida, sob a epígrafe “D a responsabilidade civil extracontratual da R. (verificação de consumos fraudulentos e sua imputação” estarem preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, fundamentando todo o seu entender quanto ao requisito da culpa.
13. Contudo, não se pronuncia o Tribunal A Quo sobre os demais requisitos da responsabilidade civil extracontratual previstos no artigo 483º do Código Civil, carecendo a sentença recorrida, em consequência e no entender da ora Recorrente, de fundamentação.
14. Na verdade, dispõe o artigo 607º, n.ºs 3 e 4 do CPC que, na sentença:
“3 - Seguem-se os fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final.
4 - Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.”
15. Sendo que, nos termos do artigo 615 º, n.º 1 , alínea b) do CPC, é nula a sentença quando “Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.
16. Assim, e ao não especificar concretamente os fundamentos em que baseia a condenação da Ré no pagamento à Autora da quantia em causa nos autos, a sentença recorrida é nula, o que argui para os devidos efeitos legais.
17. Por outro lado, à Autora incumbia o ónus de alegar os factos essenciais em que fundamenta a sua pretensão, que constituem a causa de pedir, formulando o respectivo pedido, nos termos do artigo 552º, n.º 1, alíneas d) e e) do CPC. Quanto a este ponto, entende a Recorrente que a Autora não alegou, quer na petição inicial apresentada quer na petição corrigida, os factos essenciais que permitissem concluir pela aplicação, ao caso dos autos do regime da responsabilidade civil extracontratual, nomeadamente quanto ao regime da culpa e respectivo nexo de causalidade, mais entendendo, conforme acima mencionado, que a Autora não alegou qual o período em que o contador em causa supostamente se encontrou adulterado, não oferecendo qualquer baliza temporal para além da totalidade do período em que o contrato de fornecimento se manteve em vigor, mais não indicando quais os períodos a que supostamente dizem respeito os valores reclamados por si na acção interposta, referindo, somente, ter existido uma deslocação ao local e a data em que se procedeu à substituição do contador, a 3 de abril de 2018.
18. Ora, pese embora a existência de uma presunção, nos termos do artigo 1º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 328/90, de 22 de outubro, a qual, conforme infra se irá expor, não se entende ser de aplicar aos caso dos autos, a verdade é que sempre caberia à Autora alegar e provar os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, nos termos do disposto no artigo 342º, n.º 1 do Código Civil, pelo que, não se verificando alegados ou provados os factos essenciais que fundamentam o regime da responsabilidade civil extracontratual de que se quer fazer valer a Autora com a acção interposta, e ao decidir como resulta da sentença recorrida, violou o Tribunal A Quo o disposto no artigo 342º, n.º 1 do Código Civil, devendo a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que conclua pela improcedência da acção interposta pela Recorrida.
19. Por outro lado, incumbia também à Autora alegar e provar, para além do período de tempo em que durou o procedimento fraudulento, os restantes factos que permitissem calcular o valor do consumo irregular de energia eléctrica que existiu em decorrência daquele, para além do que, no que respeita aos concretos prejuízos existentes- enquanto dano, que constitui pressuposto da responsabilidade civil extracontratual, devendo, em consequência, ser alegado e provado pela Autora-, limitou-se a Autora a elencar matéria conclusiva, ao referir, no artigo 31º da petição inicial e reproduzido no artigo 45º da petição inicial corrigida, os valores por si apurados, sem que, contudo, alegue e comprove devidamente os prejuízos elencados.
20. No entanto, e muito embora não o alegue a Autora, o Tribunal A Quo dá como provado, nomeadamente nos pontos 10 a 19, factos que se entendem consubstanciarem factos sujeitos a alegação por parte da Autora, sendo que, incumprindo a Autora tal ónus de alegar os factos essenciais que sobre si impendia, nos termos do artigo 5º, n.º 1 do CPC, e ainda o ónus de provar os factos alegados, nos termos do artigo 342º, n.º 1 do Código Civil, deveria a acção interposta ser considerada totalmente improcedente, com a consequente absolvição da Ré.
21. Ora, a acrescer ao já acima referido, e no que respeita ao cálculo a efectuar para a determinação do montante referente ao consumo irregularmente feito, nos termos do disposto no artigo 3º, n.º 1, alínea b) e artigo 6º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 328/90, de 22 de outubro, resulta deste que “Para a determinação do valor do consumo irregularmente feito ter-se-á em conta o tarifário aplicável, bem como todos os factos relevantes para a estimativa do consumo real durante o período em que o acto fraudulento se manteve, designadamente as características da instalação de utilização, o seu regime de funcionamento, as leituras antecedentes, se as houver, e as leituras posteriores, sempre que necessário.”
22. Assim, e conforme decidido pelo Tribunal da Relação do Porto, por acórdão datado de 12-01-2023, proferido no âmbito do processo n.º 5011/21.0T8PRT.P1, disponível em www.dgsi.pt , incumbia à Autora, “ fazer a prova do período de tempo em que durou o procedimento fraudulento, tendo que alegar os respectivos factos na petição inicial, devendo verificar (factos sempre a alegar como complemento do facto principal do período de tempo) a eventual ocorrência de variações abruptas no perfil de consumo da instalação e a data da última deslocação à instalação, com acesso ao equipamento de medição ”, assim como competia à Autora “verificar a existência de registos fiáveis nos equipamentos de medição e alegar esse facto, bem como alegar os factos respeitantes ao tarifário aplicável e restantes factos relevantes para se poder proceder à estimativa do consumo real, como sejam as características da instalação de utilização, o seu regime de funcionamento, as leituras antecedentes e as posteriores.”
23 . Verifica-se, pois, e na senda do que tem vindo a ser referido pela Ré, que a Autora não alegou tais factos que lhe permitia alegar e que eram essenciais para que o Tribunal A Quo procedesse ao cálculo da indemnização devida nos autos, limitando-se a indicar os cálculos que efetuou, sem inclusivamente mencionar que foram obtidos a título de estimativa, resultando dos factos provados na sentença, nos pontos 18 e 19, a expressão “Partindo dos consumos que estimou (referidos em 17)”, pelo que sempre se dirá que a sentença recorrida é nula, por conhecer de questões de que não podia tomar conhecimento, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 615º do CPC, mais sendo nula por condenar em quantidade superior e em objecto diverso do requerido, nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 615º do CPC.
24. De notar que o Tribunal A Quo refere, no último parágrafo da página 54 da sentença recorrida que “(...) conquanto a A. não tenha alegado explicitamente na petição inicial a data de adulteração do contador e o período de tempo que considerou para efeitos do cálculo de energia consumida e não faturada que plasmou no artigo 45.º da petição inicial aperfeiçoada, não só este último resulta do documento 5 junto com aquela peça processual (para o qual a A. remete no artigo 46.º daquele articulado), onde se identifica clara e explicitamente o período relevante como sendo entre 04-04-2015 e 03-04-2018, como o primeiro foi apurado e contraditado em audiência final e, enquanto facto concretizador (e não essencial) da causa de pedir da A., foi considerado no elenco dos factos provados ao abrigo do disposto no artigo 5.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Civil. “,
25. Sendo que, salvo o devido respeito, viola o Tribunal A Quo, com tal entendimento, o disposto no artigo 342º, n.º 1 do Código Civil e no artigo 5º, n.º 1 do CPC, sendo certo que já no despacho pré saneador, proferido a 22-05-2023, com a referência 93393289, veio o Tribunal a Quo referir que “recai sobre o Autor o ónus de alegar e provar os factos integrantes da causa de pedir (cfr. artigo 342º, n.º 1 do Código Civil) e ainda que os documentos juntos aos autos não substituem o ónus de alegação dos factos constitutivos do direito que a parte pretende fazer valer ”, entendendo a Recorrente que os mencionados factos sempre terão de ser considerados constitutivos do direito que a Autora pretende fazer valer nos autos,
26. Pelo que na senda do supra citado acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, a 12-01-2023, no âmbito do processo n.º 5011/21.0T8PRT.P1, disponível em www.dgsi.pt , deveriam tais factos ter sido alegados desde logo, não bastando a junção de documentação da qual resultem tais factos.
27 . Ademais, entende o Tribunal A Quo que “a prova produzida revelou outrossim a conexão entre o alegado no artigo 29.º e no artigo 45.º da petição inicial aperfeiçoada, tendo permitido ao Tribunal validar os elementos aos quais a A. recorreu para calcular a energia consumida sem medição (cf. facto provado n.º 17).”, que a Autora “considerou um período de utilização ilícita compreendido entre 04- 04-2015 e 03-04-2018 (correspondente ao período máximo de 36 meses previsto na Diretiva 5/2016, da ERSE) “, e que “os valores computados pela A. foram-no com base, por um lado, nas características do contador e no modo como se encontrava a funcionar quando manipulado (com utilização de resistências de menor valor óhmico, que importavam um erro de menos 35,5%, por comparação com a leitura de um contador no seu estado original), e, por outro lado, nos consumos registados efetivamente pelo contador. Aplicando a correção do desvio aos valores efetivamente registados, chegou a A. aos consumos presumivelmente reais, no período de 3 anos que considerou”,
28. Sendo que, novamente, tal factualidade não resulta alegada pela Autora, não podendo, em consequência, ser considerada provada e servir de base à condenação da Ré na obrigação de indemnizar a Autora.
29 . Caso assim não se entenda, e por mera cautela de patrocínio, sempre se dirá que, no que tange ao teor da sentença recorrida quanto aos requisitos da responsabilidade civil, e no que respeita ao requisito da culpa, é a Ré condenada no pagamento de indemnização à Autora com base na presunção estabelecida no artigo 1º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 328/90, de 22 de Outubro, aplicável ao caso dos autos.
30. Assim, e desde logo, na petição inicial, para além de não ser alegado qualquer facto em concreto, referente à Ré, que possa consubstanciar a prática do referido facto ilícito voluntário e culposo, não resulta alegada qualquer presunção, limitando-se a Autora a referir, na petição inicial que deu origem aos presentes autos, que, no âmbito de deslocação de técnico da Autora ao local de consumo, foi detectado que “os selos da tampa superior do contador não estavam como os de fábrica, que as medições feitas na baixada eram superiores à registada no contador e que as ordens de fases não estavam correctas”, e que, em face dessas irregularidades, procederam à substituição do contador e remeteram-no para análise, significando isso, no entender da Autora, que a Ré “esteve a beneficiar do consumo da energia eléctrica não registada, logo não paga, sem o consentimento e contra a vontade da aqui Autora”.
31. Da petição inicial aperfeiçoada também não resulta qualquer facto adicional essencial a este respeito, uma vez que se limita a Autora a acrescentar que tal se deveu a “facto ilícito que lhe é imputável” (leia-se, à Autora).
32. Refere, neste momento, que “tendo havido apropriação de forma ilícita por parte da Ré, de energia eléctrica, através da manipulação do equipamento de contagem, está preenchido o pressuposto da ilicitude”, bem como que “A Ré age quanto aos factos com dolo, com o propósito conseguido de se apropriar indevidamente de energia elétrica da rede de distribuição pública, impedido, através de manipulação ilícita, que electricidade consumida indevidamente lhe fosse cobrada (...).”
33. Assim, e muito embora a Autora impute à Ré o conceito jurídico subjacente, não discrimina quais os factos praticados pela Autora que possam consubstanciar a prática dessa manipulação ilícita, pelo que, desde logo, e salvo o devido respeito, nunca poderia a Ré ser condenada ao pagamento à Autora de qualquer quantia, em face da falta de elementos alegados em sede de petição inicial e, consequentemente, na petição inicial corrigida.
34. Veja-se que a Ré, no requerimento de resposta à petição inicial apresentada, consegue demonstrar, artigo por artigo, os factos que foram acrescentados pela Autora nesta petição inicial aperfeiçoada, com referência à que já havia sido apresentada inicialmente, demonstrando, desde logo, que a falta de concretização e a insuficiência da causa de pedir invocada pela Ré na contestação- e comprovada pelo despacho de aperfeiçoamento proferido- não foi sanada, mantendo-se essa insuficiência ao longo de todo o processo, o que sempre deveria conduzir à não condenação da Ré em qualquer pagamento.
35. Caso assim não se entenda, e considerando o que resulta da sentença ora recorrida, entende o Tribunal A Quo que, muito embora não se tenha provado que tivesse sido a Ré, ou alguém a seu mando, a autoria das provadas manipulações ao contador, a lei dispensou a prova dessa autoria nos termos do artigo 1º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 328/90, aplicando o Tribunal A Quo, ao caso dos autos, a presunção aí estabelecida, a qual entende não ter sido ilidida pela Ré, considerando, em consequência, a Ré como responsável, perante a Autora, pelo pagamento do valor do consumo irregularmente feito.
36. Entende, contudo, a Recorrente não ser de aplicar qualquer presunção, desde logo em face do próprio texto da norma em causa. Na verdade, dispõe o aludido artigo 1º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 328/90, de 22 de outubro, que “Qualquer procedimento fraudulento detectado no recinto ou local exclusivamente servido por uma instalação de utilização de energia eléctrica presume-se, salvo prova em contrário, imputável ao respectivo consumidor.” ( sublinhado nosso) .
37. Assim, importa atentar ao espírito do legislador ao estabelecer tal presunção, sendo que, no entender do Recorrente, a expressão “exclusivamente” utilizada na norma pretende atribuir à presunção em causa uma função mais garantística dos direitos dos consumidores, considerando, desse modo, que nas situações em que o local de consumo seja servido exclusivamente por uma instalação de utilização de energia eléctrica se presuma que, qualquer fraude ali detectada, seja imputável ao respectivo consumidor, salvo prova em contrário.
38. Ora, não nos parece que o caso em sub judice possa ser enquadrado na previsão da norma invocada pela sentença recorrida para considerar a Ré como responsável pelo pagamento à Autora de qualquer quantia, desde logo face ao que resulta provado nos pontos 22 e 23 dos factos provados da sentença recorrida que ora se transcreve:
“22. O local onde funciona a clínica da A. é um edifício com duas entradas por lados opostos, onde estão instaladas, para além da clínica da A., uma casa paroquial, salão paroquial e residência do pároco, e onde esteve instalado, até 2022, um núcleo do Sporting.
23. A caixa de montagem onde se encontrava o contador referido em 7, encontra-se instalada no edifício referido em 22, junto a outras caixas, numa rua pública, junto à entrada para a clínica da A..”
39. Assim, e de acordo com o ponto 23 dos factos provados, a caixa de montagem onde se encontrava o contador encontra-se instalado junto a outras caixas, numa rua pública , o que, ademais, resulta demonstrado nas fotografias juntas sob o Doc. n.º 1 da contestação apresentada pela Ré/ Recorrente, pelo que, no entender da Recorrente, o Tribunal A Quo , ao decidir aplicar ao caso dos autos a presunção estabelecida no artigo 1 º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 328/90, de 22 de outubro, labora em erro de julgamento de direito, implicando, ademais, uma contradição entre a decisão proferida e a matéria de facto provada.
40. Ao invés, deveria o Tribunal A Quo não ter considerado a existência de qualquer presunção legal aplicável, cabendo, em consequência, à Autora a prova de que a fraude praticada é imputável à Ré, tendo em consideração que, de acordo com o que resulta do artigo 3º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 328/90, de 22 de outubro, o distribuidor só tem direito a ser ressarcido do valor do consumo irregularmente feito e das despesas inerentes à verificação e eliminação da fraude “Se da inspecção referida no artigo anterior se concluir pela existência de violação do contrato de fornecimento de energia eléctrica por fraude imputável ao consumidor”.
41. Ainda que assim não se entenda, e salvo o devido respeito, o elenco dos factos provados também não permitiria ao Tribunal A Quo aplicar a presunção em causa, uma vez que não resulta provado em qualquer momento- resultando provado o inverso, no entender da Recorrente- qualquer facto que permita concluir que o local de consumo em causa nos autos era “exclusivamente servido por uma instalação de utilização de energia eléctrica”.
42. Não se provando, no caso dos autos, que a fraude detectada seria imputável ao consumidor, e não sendo de aplicar a presunção constante do artigo 1º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 328/90, de 22 de outubro, deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que decida pela improcedência da acção interposta pela Autora.
43. Por mera cautela de patrocínio, e caso se entenda ser de aplicar ao caso dos autos a referida presunção, o que não se concebe, sempre se dirá que resulta manifestamente excessivo e desproporcional fazer impor à Ré a prova de quem foi a autoria da fraude detectada, considerando, ademais, ter decorrido investigação criminal, no âmbito de processo crime instaurado pela Autora que correu termos junto do Ministério Público- Procuradoria da República da Comarca de Santarém- DIAP- Secção de Torres Novas, sob o n.º 46/19.5..., a cargo de entidades competentes para o efeito, como o são os órgãos de polícia criminal,
44 . Investigação essa que findou com a prolação de despacho de arquivamento, que foi junto sob o Doc. n.º 1 da petição inicial, do qual resulta, em suma, o seguinte:
“ Compulsada a prova produzida entendemos não resultar provado nos autos que a Econova tenha desenvolvido qualquer procedimento suscetível de falsear ou viciar, por qualquer meio, o funcionamento normal ou a leitura do referido equipamento de contador de consumo de eletricidade. Acresce que resulta dos autos que a arguida sempre pagou pontualmente os valores que lhe foram faturados pelo consumo de eletricidade verificado durante o referido período. Além do mais, resulta dos autos que a caixa de contagem se encontra instalada em local de acesso público, sem controlo da Econova e encontra-se fechada à chave, não possuindo a Econova a chave que permita o acesso à mesma Por outro lado, o auto de vistoria lavrado pelos funcionários da EDP, não faz qualquer referência a sinais de violação de fechadura da caixa onde se encontra o contador de consumo de eletricidade. Acresce que, sendo a EDP Distribuição a entidade responsável pela leitura direta do mencionado contador, não se percebe que apenas ao fim de cerca de seis anos seja detetada a alegada utilização irregular de energia Além do mais, a leitura direta do consumo de eletricidade prevalece sempre sobre qualquei estimativa e a responsabilidade pela leitura direta recai sobre a EDP Distribuição, que, na eventualidade de não ver facultado o seu acesso ao contador por mais de seis meses consecutivos, deve promover a realização de leituras extraordinárias”,
45. Concluindo, no final da página 9 do referido Doc. n.º 1 junto à petição inicial, “(...) não ser possível imputar a alteração no contador referido na queixa aos denunciados, pois que a mesma pode até dever-se a ações de funcionários da queixosa, quando da instalação ou em posteriores deslocações ao local. Até porque não resulta da prova produzida que os denunciados tenham acesso ao contador ou que a fechadura da caixa onde o mesmo se encontra tenha sido violada”.
46. Assim, considerar que à Ré caberia provar que foi terceiro a executar os actos dado como provados nos pontos 11, 12 e 14 da matéria de facto provada é, salvo o devido respeito, atribuir à Ré uma obrigação que, desde logo, não lhe compete- a investigação criminal, de modo a descobrir e recolher provas do autor dos factos fraudulentos ocorridos com o contador em causa, sendo que a Ré colaborou de forma activa no âmbito do processo crime que decorreu termos, pretendendo obter a identificação do autor dos referidos actos ilícitos, sem que, contudo, tal tivesse sido possível, conforme resulta do despacho de arquivamento proferido e que consta junto à petição inicial como Doc. n.º 1.
47. Assim, e sem prejuízo de se considerar não ser de aplicar ao caso dos autos a presunção constante do artigo 1º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 328/90, de 22 de outubro, entende a Recorrente que a sentença recorrida viola, face ao supra exposto, o disposto na lei penal quanto às atribuições do Ministério Público, particularmente previstas nos artigos 48º e 50º, n.º 2, alínea b) do Código de Processo Penal, bem como o disposto no artigo 3º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 328/90 de 22 de outubro, ao considerar que a Ré não logrou ilidir a presunção legal em causa.
48. Quanto a este ponto, importa referir que a Ré, na contestação que apresentou nos autos, fez menção ao processo crime em causa, no artigo 45º que se transcreve: “ Nunca foi adotada pela R. qualquer conduta ilícita, e muito menos criminosa, como de resto ficou provado no proc. n.º 46/19.5..., que correu junto da Secção de Torres Novas do Departamento de Investigação e Ação Penal do Ministério Público, Procuradoria da República da Comarca de Santarém, no qual foi proferido o devido Despacho de Arquivamento, já junto aos autos como Doc. 1 da Petição Inicial ”.
49. Também a Autora, no seu articulado inicial, nomeadamente nos artigos 4º, 5º, 6º e 8º da petição inicial, vem aludir ao processo crime em causa e aos crimes investigados contra a Ré, ora Recorrente, bem como ao respectivo arquivamento, referindo:
“4.º A Autora intentou a respetiva queixa crime em 2018, que correu termos sob o n.º8748/18.7....
5.º Do referido processo foi extraída uma certidão, que esteve na origem do processo que correu termos sob o n.º 46 /19.5T9TNV, da Secção de Torres Novas, do Departamento de Investigação e Ação Penal, Ministério Público, Procuradoria da República da Comarca de Santarém, conforme documento que se junta, e dá, como os demais, como reproduzido para todos os efeitos legais, DOC. 1
6 .º Em causa naqueles autos estava a eventual prática, por parte da ali participada, aqui Ré, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo artigo 204.º, n.º 2, al. a), de falsificação de notação técnica, p e p. pelo artigo 258.º, n.º 1 e 2 e de quebra de marcas e de selos, p e p. pelo artigo 356.º, todos do Código Penal. (...)
8.º Sucede que no âmbito do processo crime supra identificado, veio o a ser proferido em 28 de janeiro de 2022, Despacho de Arquivamento, cf. DOC. 1 “,
50. Sendo, ademais, junto aos autos pela própria Autora, na petição inicial e sob o Doc. n.º 1, o referido despacho de arquivamento.
51. Ora, não resulta da matéria de facto provada qualquer facto alusivo a tal processo crime, considerando a Ré tal matéria essencial, dada a imputação de responsabilidade que lhe é assacada na sentença recorrida e que foi investigada e objecto de arquivamento no âmbito do processo criminal que decorreu termos, pelo que vem a Recorrente impugnar a decisão sobre a matéria de facto, entendendo que o Tribunal A Quo deveria ter valorado, com base no alegado pela Ré na sua contestação, pela Autora na petição inicial, e no Doc. n.º 1 junto com a petição inicial- meio de prova que impunha uma decisão diversa da proferida quanto à matéria de facto provada-, e considerado como provado os seguintes factos, que deverão ser aditados ao elenco dos factos provados, sob o pontos 27, 28 e 29:
“ 27. Relativamente aos factos referidos em 11, 12 e 14, a Autora intentou a respectiva queixa crime em 2018, tendo sido extraída certidão que originou o processo que correu termos sob o n.º 46/19.5..., junto da Secção de Torres Novas do Departamento de Investigação e Ação Penal do Ministério Público, Procuradoria da República da Comarca de Santarém.
28. No âmbito do referido processo crime foi investigada a conduta ilícita referida em 11, 12 e 14 , estando em causa naqueles autos de inquérito a eventual prática, por parte da Ré, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo artigo 204º, n.º 2, alínea a), de falsificação de notação técnica, p. e p. pelo artigo 258º, n.ºs 1 e 2 e quebra de marcas e de selos, p. e p. pelo artigo 356 º todos do código Penal.
29 . Tendo, a final, sido proferido o devido Despacho de Arquivamento, por não existirem indícios suficientes que permitissem acusar a Ré em relação aos crimes denunciados, concluindo o investigador não ser possível imputar a alteração do contador referido na queixa à Ré.”
52. De igual modo, e considerando a factualidade acima alegada e constante do despacho de arquivamento junto aos presentes autos, também não deveria o facto g) dos factos não provados- “ Não foi a R. que executou ou promoveu a execução do referido em 11, 12 e 14 dos factos provados ” constar desse elenco, devendo tal facto do ponto g) dos factos não provados, em face da prova produzida nos autos- nomeadamente do Doc. n.º 1 junto à petição inicial, conjugada com a demais prova que permitiu concluir que o contador se encontrava em local público, acessível por terceiros (pontos 22 e 23 dos factos provados)- e dos factos a aditar nos termos supra sob os pontos 27, 28 e 29, constar dos factos considerados provados, sendo que, muito embora resulte do ponto 24 dos factos provados que a caixa em causa se encontrava fechada, mas que abria rodando com uma chave plástica, o certo é que, de acordo com o que resulta da motivação da matéria de facto quanto ao ponto g) dos factos não provados, nomeadamente na página 27 da sentença recorrida, “(...) a caixa onde se encontrava o contador em causa não necessitava de uma chave específica (contrariamente às outras caixas ali existentes) abrindo com uma chave plástica”.
53. Insurge-se, também, a Recorrente com a decisão proferida pelo Tribunal A Quo no ponto “2.4. Das condições/requisitos procedimentais a observar pela A. para exigir o pagamento dos consumos não contabilizados à R. “ da sentença recorrida, entendendo o Tribunal A Quo que, para além de tal excepção não ter sido invocada na contestação apresentada e, consequentemente, do seu conhecimento estar vedado ao Tribunal, também não seria de aplicar ao caso dos autos obrigações de informação a cargo da Autora.
54. Sucede que, em primeiro lugar, a Ré arguiu, desde logo na contestação, e pese embora a arguição da excepção de ineptidão da petição inicial, o incumprimento dos deveres a que a Autora se encontrava adstrita, referindo, no artigo 19º, que: “ Fá-lo num quadro legislativo que lhe imputa também deveres, deveres esses que protegem os consu midores de situações como a que encontra plasmada nos presentes autos e que a A. não cumpriu ou não se encontraria na posição que alega estar.”
55. Por outro lado, e considerando não só a ratio a lei em causa, que visa prevenir situações de fraude, mas também a protecção que deverá ser dada à Ré enquanto consumidora do serviço prestado pela Autora mediante o pagamento de um preço, sempre será de concluir que deve a Autora pautar-se, na relação com a Ré, por critérios de transparência e segurança, pelo que não pode a Recorrente crer que fosse intenção do legislador dar a possibilidade da Autora exigir o pagamento de valores à Ré, por condutas fraudulentas, sem que lhe fossem atribuídos alguns deveres, principalmente o dever de informar adequada e atempadamente o utente/ consumidor da situação ocorrida e dos direitos e possibilidades que lhe assistiam, direito fundamental dos consumidores,
56. Desde logo, e primordialmente, o direito constante do artigo 5º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 328/90 de 22 de outubro, isto é, de requerer à Direcção-Geral de Energia a vistoria da instalação eléctrica sobre a qual surgisse a suspeita de fraude, sendo certo que, ao não informar a Ré adequadamente de tal prerrogativa, impediu a Autora que a Ré pudesse exercer os seus direitos e, de forma segura, saber se o que resulta da vistoria realizada a mando da Autora se encontrava em conformidade com a realidade.
57. Assim, considerando a seriedade do assunto em questão, como bem denota a sentença recorrida, e os valores em causa, avultados, a ser peticionados à Ré, entende a Recorrente, ao contrário do douto Tribunal A Quo, que deveria a Autora ter diligenciado pelo cumprimento de todos os deveres de informação cabal à Ré para que esta pudesse, no momento oportuno, utilizar os meios existentes para a sua eventual defesa.
58. Nestes termos, pugna a Recorrente por se considerar que incumbia à Autora a prestação de informações cabais à Ré, no que respeita ao contador e possibilidades de verificação do mesmo, em caso de imputação de conduta fraudulenta, na senda do também decidido pelo
Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão proferido a 10-05-2016, no âmbito do processo n.º 1929/13.1 TBPVZ.P1.S1.
59 . Ainda para mais nas situações em que o local de consumo não é utilizado, em exclusivo, pela consumidora e se pretenda fazer uso de uma presunção legal que lhe atribua a responsabilidade pelo pagamento dos montantes em causa no artigo 3º, n.º 1, alínea b) do Decreto-Lei n.º 328/90 de 22 de outubro.
60. Além do mais, resulta do artigo 2º, n.ºs 1, 2 e 3 do Decreto-Lei n.º 328/90, de 22 de outubro, que “1. Sempre que haja indícios ou se suspeite da prática de qualquer procedimento fraudulento, o distribuidor poderá proceder à inspecção da respectiva instalação eléctrica, por meio de um técnico seu, entre as 10 e as 18 horas, o qual poderá, quando o julgar conveniente, solicitar a presença da autoridade policial competente. 2 - Da inspecção será lavrado auto, onde, sendo caso disso, se fará a descrição sumária do procedimento fraudulento detectado, bem como de quaisquer outros elementos que possam interessar à imputação da correspondente responsabilidade. 3 - O auto de vistoria será lavrado, sempre que possível, em presença do consumidor ou de quem no local o represente, designadamente um seu familiar ou empregado, e deverá ser instruído com os elementos de prova eventualmente recolhidos; deste auto será deixada cópia ao consumidor.”
61. Ora, compulsada a factualidade considerada como provada na sentença recorrida, não resulta em qualquer momento provada a elaboração do devido auto de vistoria, com os elementos legalmente impostos, assim como não resultando provado que tenha sido deixada cópia à Autora de qualquer auto de vistoria elaborado, sendo que tal constitui obrigação basilar a cargo da Autora, para que possa comprovar e peticionar qualquer procedimento fraudulento, e, a ser incumprida e não resultando dos autos a sua existência, põe desde logo em causa, e salvo o devido respeito, a ocorrência do procedimento fraudulento em causa, não se verificando, uma vez mais, um dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual em causa, a saber: o do facto ilícito, e, consequentemente, extingue o direito da Autora em ser ressarcida dos consumos irregularmente efectuados, nos termos do disposto na alínea b) do n.º1 do artigo 3º do Decreto-Lei n.º 328/90, de 22 de outubro, por inexistência de fraude apurada nos termos da inspecção referida no artigo 2º, cuja violação se imputa à Autora.
62 . Assim, e ao condenar a Ré na obrigação de indemnizar a Autora, viola a sentença recorrida o disposto quer nos artigos 2º, n.ºs 2 e 3 e 3º, n.º 1, alínea b) do Decreto-Lei n.º 328/90 de 22 de outubro, bem como o disposto no artigo 483º do Código Civil, devendo, por essa razão, ser revogada.
Nestes Termos e nos Melhores de Direito , dado que seja por V.Exªs., Venerandos Desembargadores, o V. douto suprimento, deve ser concedido provimento ao presente Recurso e, em consequência, ser a douta sentença ora recorrida revogada, com o que se fará a desejada JUSTIÇA!”
*
A Recorrida contra-alegou, apresentando as seguintes conclusões:
1. A sentença recorrida fez uma boa apreciação da prova junta aos autos e da produzida em audiência de julgamento, está bem fundamentada, preenche os requisitos legais e não merece reparo, pelo que deverá ser mantida.
2. Resultou provado que a Ré beneficiou de consumo ilícito de energia elétrica, por ter procedido à manipulação do equipamento de contagem de eletricidade, com esse fim, pelo que bem andou a sentença ao condenar a Ré, ora Recorrente, nos termos em que o fez.
3. O pedido formulado pela Autora nos autos é claro e consiste na condenação da Ré ao pagamento da indemnização devida pelo consumo ilícito de energia elétrica. O pedido da Autora preencheu todos os requisitos e pressupostos legais, o que resultou da petição inicial e da petição inicial aperfeiçoada, que a Autora veio a apresentar, na sequência de convite para tal do tribunal nos termos do artigo 590.º n.º 3 do Código de Processo Civil. Tendo então prosseguidos os autos e vindo a ser proferida sentença, a qual, também por esta razão, deverá ser mantida.
4. Entendeu e bem a sentença recorrida, que foi feita pela ora Recorrida a devida prova dos prejuízos que reclama nos autos. De facto a Autora apresentou em sede própria os valores de energia e de potência pedidos nos autos, correspondentes ao consumo fraudulento de que a Recorrente beneficiou, tendo procedido ao cálculo do valor da indemnização com base em critérios objetivos, que resultaram da aplicação de fórmulas específicas, cuja fundamentação consta dos autos e de que também foi feita prova em audiência de discussão e julgamento, por testemunha com eles confrontada, que então prestou ao tribunal e às partes todos os esclarecimentos pedidos. Tal permitiu ao tribunal fixar o valor da indemnização devida à ora Recorrida, pelo que a sentença recorrida, também neste ponto, não merece reparo.
5. A circunstância do contador elétrico dos autos poder estar instalado junto a outras caixas, virado para uma via pública, como é atualmente norma por forma a facilitar as leituras dos consumos elétricos, tal não obsta, como bem entendeu a sentença recorrida, a que a Recorrente tenha promovido a adulteração do contador elétrico por forma a, por meios criminosos, passar a pagar menos eletricidade do que aquela que efetivamente consumiu.
Não cabe no raciocínio logico de ninguém, e menos ainda do julgador, que alguém alheio aos interesses da sociedade Ré e dos seus sócios, sem qualquer interesse próprio, ou benefício, praticando atos criminosos, com risco da própria vida, decida adulterar o contador elétrico dos autos em benefício de terceiros. Bem entendeu também aqui a sentença recorrida, não merece reparo.
6. O consumo elétrico ilícito em resultado da adulteração do contador elétrico foi detetado na instalação elétrica dos autos, que é da exclusiva responsabilidade, e apenas serve, a Ré, sendo o benefício da energia consumida e não paga unicamente da Ré, ora Recorrente. Para além da prova produzida, e não contrariada pela Recorrente, presume-se a sua responsabilidade, nos termos do disposto no artigo 1.º n.º 2 do DL n.º328/90, de 22 de outubro. Também por esta razão a sentença recorrida deverá ser mantida.
7. A ora Recorrida cumpriu nos autos todos os deveres a que está adstrita enquanto concessionária do serviço público de distribuição de eletricidade. Cumpriu nomeadamente o dever de informação, tendo o Auto de Vistoria elaborado pela equipa técnica da Autora sido assinado por um trabalhador da Ré, ora Recorrente. Assim entendeu e bem a sentença recorrida, que, para além do mais, entendeu que:
“Como é bom de ver, o alegado incumprimento, pela A. de eventuais condições legais para a exigência à R. do pagamento de energia consumida e não faturada, não influi no resultado das análises realizadas ao contador nem infirma a prova produzida acerca do desvio verificado na contagem de energia, sendo matéria a apreciar na fundamentação de Direito da presente sentença.”
…
“Nas situações em que o distribuidor do serviço opte por não exercer o seu direito a interromper o fornecimento de energia, não lhe é exigível proceder à notificação ao consumidor, por escrito, do valor presumido do consumo irregularmente feito e de o informar dos seus direitos, nomeadamente do direito de requerer à Direcção-Geral de Energia a vistoria prevista no artigo 5.º do Decreto-lei n.º 328/90.”
8. A Autora cumpriu as suas obrigações legais quanto às inspeções periódicas levadas a capo, tendo cumprido no caso das inspeções dos autos. No caso dos autos, por se tratar de uma ligação de baixa tensão, as inspeções podem legalmente ser efetuadas apenas a cada 15 anos, obedecendo as ligações de média tensão a outras regras, nos termos do ponto 21.3 da Diretiva 5/2016 da ERSE.
9. Conforme as presentes conclusões resulta que a sentença recorrida não merece reparo e que deverá ser mantida nos precisos termos, o que se conclui e requere.
Termos em que, e nos mais de Direito, deverá improceder o recurso, mantendo-se a decisão recorrida nos precisos termos em que foi proferida, com que se fará JUSTIÇA e cumprirá o DIREITO.
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No despacho de admissão do recurso, o Tribunal Recorrido pronunciou-se pela improcedência das arguidas nulidades de sentença.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II. QUESTÕES A DECIDIR.
Perante o teor das conclusões formuladas pela parte recorrente – as quais definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso, nos termos do disposto nos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil em vigor (doravante, também CPC), importa apreciar e decidir:
1. Das demais invocadas nulidades da sentença, prevista no artigo 615º, n.º 1, al. e) do Código de Processo Civil;
2. Da alteração da matéria de facto;
3. Se estão verificados os pressupostos do de procedência do pedido em face do regime decorrente do Decreto Lei n.º 328/90, de 22-10.
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III. FUNDAMENTAÇÃO.
III.1. O Tribunal Recorrido considerou provados, com interesse para a boa decisão da causa, os seguintes factos:
1. Para o local de consumo com o n.º 11500206, que corresponde à instalação de Baixa Tensão Especial, sita na Rua de Cides, 20, 2350-766 Torres Novas, existiram, desde 22-09-2010, vários contratos de fornecimento de energia elétrica entre empresas comercializadoras de eletricidade e a R..
2. Em 01-06-2013, foi celebrado um contrato de fornecimento de energia elétrica em baixa tensão entre o comercializador NATURGY IBERIA, S.A. e a R., para o local de consumo referido em 1.
3. O contrato referido em 2 estava em vigor em 03-04-2018.
4. A A. gerou, em 21-03-2018, a ordem de serviço n.º 200000482194, para a realização de “Revisão de Equipamento Telecontagem BTE”.
5. A ordem de serviço referida em 4 foi executada no dia 03-04- 2018, aquando da deslocação do piquete técnico da A. ao local de consumo mencionado em 1.
6. Na vistoria realizada na data referida em 4, o técnico detetou que os selos da tampa superior do contador não se encontravam como originalmente vieram de fábrica, que as medições feitas na baixada eram superiores às registadas no contador e que a ordem de fases não estava correta.
7. Detetadas as irregularidades referidas em 6, os técnicos ao serviço da A. procederam à substituição do contador trifásico da marca Actaris, com o número de série: 50067216, que ali se encontrava.
8. O referido contador de eletricidade foi enviado à empresa LABELEC, Estudos, Desenvolvimentos e Actividades Laboratoriais, S.A..
9. O contador de eletricidade referido em 7, que estava instalado no local de consumo referido em 1, era do modelo ACE6000, do ano de 2010, tinha a data e hora corretas, estava programado com tarifário CD4T e com a relação de transformação: RTi= 300/5.
10. O contador referido em 7 apresentava um erro de menos 35,5% na leitura de energia elétrica, por comparação a um contador em normal funcionamento.
11. Os selos metrológicos de fábrica do contador referido em 7 estavam colocados, mas apresentavam sinais de manipulação, principalmente nas zonas de inserção dos arames de selagem nos cunhos, pois ambos os cunhos estavam colocados ao contrário, com as inscrições para trás.
12. O contador de eletricidade referido em 7 revelava adulteração no circuito de medição das suas correntes de entrada, tendo as resistências originais sido trocadas por outras com um valor óhmico diferente.
13. Por força do referido em 12, o valor de corrente de entrada assumido pelo contador era menor do que o valor real e, consequentemente, a energia contabilizada pelo contador referido em 7 era inferior à energia consumida.
14. Pelas 00:43 do dia 17-10-2012, pessoa não concretamente apurada abriu o contador referido em 7, manipulando-o nos moldes referidos em 12, para que a energia elétrica consumida não fosse contada na totalidade.
15. Os consumos elétricos registados após a colocação do novo contador elétrico no ponto de consumo referido em 1 foram superiores aos registados entre 28-09-2015 e 03-04-2018 (período em que o contador de eletricidade instalado era o referido em 7).
16. Da aplicação de um fator de correção de 1,55 (fator de compensação de um valor de desvio de -35,5%) aos valores da energia elétrica registada pelo contador, no período referido em 15, resultam valores idênticos aos registados após a colocação de novo contador.
17. Com base nos resultados referidos em 10, 13, 15 e 16, a A. considerou que a anomalia referida em 12 provocou uma diminuição de contagem de 35,5% da energia elétrica consumida pela A., e, através da aplicação de um fator de correção de 1,55 sobre a energia elétrica efetivamente contabilizada e faturada à R. entre 04-04-2015 e 03-04-2018, a A. estimou que a energia elétrica que a R. consumiu nesse período e que não foi contabilizada por força do referido em 12, correspondeu a:
1. 33.532 kWh de energia ativa consumida em super vazio, valorizada segundo a tarifa média vigente em 2018 (0,08€/kWh), no valor de 2.682,08€;
2. 49.873 kWh de energia ativa consumida em vazio, valorizada segundo a tarifa média vigente em 2018 (0,0912€/kWh), no valor de 4.548,45€;
3. 46.653 kWh de energia consumida em ponta, valorizada segundo a tarifa média vigente em 2018 (0,22€/kWh), no valor de 10.263,60€;
4. 118.938 kWh de energia consumida em cheias, valorizada segundo a tarifa média vigente em 2018 (0,1308€/kWh), no valor de 15.557,29€;
5. 69.999 KwH de energia reativa consumida fora de vazio, valorizada segundo a tarifa média vigente em 2018, no valor de 340,23€.
18. Partindo dos consumos que estimou (referidos em 17), a A. calculou os períodos em que o local de consumo identificado em 1 excedeu a potência contratada, concluindo que a R. usou potência, além da contratada e faturada, no valor de 405,04€.
19. Partindo dos consumos que estimou (referidos em 17), a A. calculou os períodos em que o local de consumo identificado em 1 consumiu potência em hora de ponta, concluindo que a R. usou potência em hora de ponta não faturada no valor de 6.031,05€.
20. A A. teve encargos administrativos com a deteção e tratamento da anomalia.
21. A R. não fazia leitura de consumos e nunca procedeu ao envio de qualquer leitura.
22. O local onde funciona a clínica da A. é um edifício com duas entradas por lados opostos, onde estão instaladas, para além da clínica da A., uma casa paroquial, com salão paroquial e residência do pároco, e onde esteve instalado, até 2022, um núcleo do Sporting.
23. A caixa de montagem onde se encontrava o contador referido em 7, encontra-se instalada no edifício referido em 22, junto a outras caixas, numa rua pública, junto à entrada para a clínica da A..
24. A caixa referida em 23 estava fechada, mas abria rodando com uma chave plástica.
25. AA, funcionário da R., foi chamado pelos funcionários da A. para verificar o estado do contador.
26. Entre 17-10-2012 e 03-04-2018, a A. não fez verificações in loco do contador referido em 7.
***
III.2. O Tribunal Recorrido considerou que com relevância para a decisão da causa, não se provaram os seguintes factos:
a. A A. é proprietária dos fluxos de energia que circulam na rede pública de distribuição.
b. Foi a R. que, por si, ou recorrendo a um eletricista, manipulou as resistências elétricas do contador de eletricidade, nos termos referidos em 12.
c. A R. atuou nos moldes referidos em b) com o objetivo de consumir energia elétrica sem a pagar na sua totalidade.
d. A substituição do contador referida em 7 dos factos provados teve o custo de 107,98€.
e. Os custos incorridos pela A. e referidos em 20 foram no montante de 72,10€.
f. A vistoria levada a cabo pela A., no dia 03-04-2018, não ocorreu na sequência de qualquer suspeita de fraude, mas porque a R. solicitou uma ordem de serviços, com vista à realização de “Revisão de Equipamento Telecontagem, BTE”.
g. Não foi a R. que executou ou promoveu a execução do referido em 11, 12 e 14 dos factos provados.
h. A R. desconhecia qual dos contadores existentes no edifício onde se situa a sua clínica lhe pertencia.
i. A R. não tinha chaves de acesso ao contador, quer na pessoa do seu legal representante, quer na pessoa de outro funcionário.
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III.3. Da nulidade da sentença.
Entende a Recorrente que sentença enferma de nulidade por não especificar os fundamentos em que baseia a condenação da Ré no pagamento à Autora da quantia em causa nos autos, nos termos do artigo 615º, n.º 1, alínea b), e que a mesma é ainda nula porquanto entende que não tendo a Autora alegado factos essenciais para que o Tribunal proceda ao cálculo da indemnização, a sentença, ao condenar a Ré, fá-lo em quantidade superior e em objeto diverso do requerido, sendo pois, também nula, nos termos da al. e) do citado preceito legal.
Vejamos.
Qualquer acto jurisdicional, nomeadamente uma sentença ou mesmo um despacho, pode atentar contra as regras próprias da sua elaboração e estruturação ou contra o conteúdo e limites do poder à sombra do qual é decretado e, então, torna-se passível de nulidade, nos termos do artigo 615.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.
A este respeito, estipula-se no apontado normativo, sob a epígrafe de “Causas de nulidade da sentença” que:
“1 - É nula a sentença:
a) (…);
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) (…)
d) Quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) Quando condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.”
Deixa-se desde já consignado que “os vícios da decisão da matéria de facto não constituem, em caso algum, causa de nulidade da sentença”, já que “a decisão da matéria de facto está sujeita a um regime diferenciado de valores negativos - a deficiência, a obscuridade ou contradição dessa decisão ou a falta da sua motivação - a que corresponde um modo diferente de controlo e de impugnação: qualquer destes vícios não é causa de nulidade da sentença, antes é suscetível de dar lugar à atuação pela Relação dos seus poderes de rescisão ou de cassação da decisão da matéria de facto da 1ª instância (art.º 662.º, n.º 2, c) e d) do CPC).”.
De acordo com a alínea b) é nula a sentença que não especifique os fundamentos de facto e direito que justificam a decisão.
A nível jurisprudencial, desde há muito que os tribunais superiores, pacificamente, têm considerado que a nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, apenas se verifica quando o tribunal julga procedente ou improcedente um pedido mas não especifica quais os fundamentos de facto ou de direito que foram relevantes para essa decisão, isto é, apenas se verifica quando haja falta absoluta de fundamentos e não quando a fundamentação se mostra deficiente, errada ou incompleta.
Perfilhando este tribunal o referido entendimento, desde já se adianta que a sentença proferida não se encontra atingida pelo alegado vício da nulidade, uma vez que o tribunal de 1.ª instância observou o dever de fundamentação que se lhe impunha no âmbito do processo.
Na verdade, da sentença constam os factos provados e não provados, a motivação da convicção e a fundamentação de direito.
Por conseguinte, consideramos que a obrigação de fundamentação da sentença foi cumprida.
Em consequência, não se verifica a situação prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil.
*
Por seu turno, a nulidade prevista na al. d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC reconduz-se a um vício de conteúdo , ou seja, vício que atinge a própria decisão judicial em si, nos fundamentos, na decisão, ou nos raciocínios lógicos que os ligam, verificando-se quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento e terá de ser aferida, tendo em consideração o disposto no art.º 608.º, n.º 2 do CPC.
A causa da nulidade a que se refere este preceito relaciona-se com a inobservância do disposto na segunda parte do n.º 2 do art.º 608.º do mesmo diploma e visa sancionar o desrespeito, pelo julgador, do comando contido na parte final deste normativo, nos termos da qual o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, com exceção daquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, não podendo ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
A nulidade por omissão de pronúncia prevista na alínea d) do n.º 1 do preceito em referência, sancionando a violação do estatuído no nº 2 do artigo 608.º do CPC, apenas se verifica quando o tribunal deixe de conhecer questões temáticas centrais, importando não confundir questões com factos, argumentos, razões ou considerações - neste âmbito, não se deverá confundir questões com razões ou argumentos invocados pelos litigantes em defesa do seu ponto de vista, pois apenas a falta de conhecimento daquelas e não destes geram a nulidade da sentença.
Expostas estas considerações estamos em condições de concluir que a sentença não enferma da nulidade em apreço, pois que na sentença recorrida apreciaram-se os pressupostos de que dependia a procedência da ação, as objeções da Ré à respetiva procedência, tendo-se decidido em conformidade com o raciocínio lógico que ali se verteu, sem, portanto, qualquer contradição.
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Por fim, invoca a apelante a nulidade prevista na al. e) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
A alegada nulidade da sentença recorrida por condenação além do pedido e em objeto diverso do pedido (art.º 615.º, n.º 1, al. e), do CPC), a verificar-se, resultará do desrespeito pelo princípio do n.º 1, do art.º 609.º, do CPC, segundo o qual a sentença não pode exceder os limites quantitativos e qualitativos do pedido.
Com efeito, a sentença não pode exceder os limites quantitativos e qualitativos do pedido (n.º 1 do art.º 609.º do CPC), a que corresponde o brocado latino “ne eat iudex ultra vel extra petita partium”. Daí que, fora dos casos legalmente previstos (de que é exemplo o disposto no n.º 3 do art.º 609.º do CPC), não seja processualmente admissível condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido (n.º 1 do mesmo preceito), pois, ao infringir esse comando, o Tribunal ultrapassa o limite imposto por lei ao seu poder de jurisdição.
A nulidade em causa deriva, assim, da conformidade com o princípio da coincidência entre o teor da sentença e o objeto do litígio, o qual, por sua vez, constitui um corolário do princípio do dispositivo (art.º 3.º, n.º 1 do CPC) .
Por força desta regra, o juiz não pode, na sentença, extravasar os pedidos formulados pelas partes, encontrando-se limitado por eles.
A sentença deve, pois, manter-se quanto ao seu conteúdo, dentro dos limites definidos pelas pretensões, não podendo o juiz proferir sentença que transponha os limites do pedido, quer no que respeita à quantidade, quer quanto ao seu próprio objeto, não podendo, assim, o juiz extravasar dos pedidos formulados pelas partes, nem conhecer de causas de pedir não invocadas, sob pena de cometer nulidade.
Ou seja, as partes, através do pedido (art.º 3.º, n.º 1 do CPC), circunscrevem o thema decidendum, indicam a providência requerida, não tendo o juiz que cuidar de saber se perante a real situação conviria, ou não, providência diversa.
No caso dos autos, como vimos, e atenta a natureza dos presentes autos, não se verifica a arguida nulidade, porquanto, o Tribunal entendeu que os factos alegados e provados permitiam a formulação de um juízo de procedência parcial do pedido formulado pela Autora, como expôs na sentença.
Acrescente-se que não assiste razão à Recorrente quando entende que a Autora não alegou os factos essenciais que permitissem concluir pela aplicação, ao caso dos autos, do regime da responsabilidade civil extracontratual, “nomeadamente quanto ao regime da culpa e respetivo nexo de causalidade” ou ao “período em que o contador se encontrou adulterado, não oferecendo qualquer baliza temporal para além da totalidade do período em que o contrato de fornecimento se manteve em vigor, não indicando quais os períodos a que dizem respeito os valores reclamados”, ou “os restantes factos que permitissem calcular o valor do consumo irregular de energia elétrica”.
Para assim concluir atentemos desde logo no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido no âmbito destes autos, e no qual pode ler-se:
“(…)A A., quer na primitiva PI quer na PI aperfeiçoada (quase idêntica à “primitiva), começa justamente com um capítulo que designa como “da tempestividade da presente ação”, tendo alegado, no que aqui interessa:
“ (…)
O pedido que a Autora vem formular na presente ação tem como fundamento a responsabilidade civil da Ré, relativa a factos ocorridos em 3 de abril de 2018.”
Ora, nos termos do disposto no n.º 1 do art.º 498.º do Código Civil, o direito de indemnização da Autora prescreve no prazo de três anos a contar da data em que este teve conhecimento dos factos que fundamentam o seu direito.
Determina ainda o n.º 3 daquela mesma disposição legal, que se o facto ilícito constituir crime para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo, é este o prazo aplicável.
A Autora intentou a respetiva queixa crime em 2018, que correu termos sob o n.º8748/18.7...
Do referido processo foi extraída uma certidão, que esteve na origem do processo que correu termos sob o n.º 46/19.5..., da Secção de ..., do Departamento de Investigação e Ação Penal, Ministério Público, Procuradoria da República da Comarca de Santarém, conforme documento que se junta, e dá, como os demais, como reproduzido para todos os efeitos legais,
Em causa naqueles autos estava a eventual prática, por parte da ali participada, aqui Ré, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo artigo 204.º, n.º 2, al. a), de falsificação de notação técnica, p e p. pelo artigo 258.º, n.º 1 e 2 e de quebra de marcas e de selos, p e p. pelo artigo 356.º, todos do Código Penal.
Das disposições legais acima mencionadas, resulta que da conjugação dos crimes em causa seria possível aplicar em abstrato uma pena de prisão até 8 anos.
Sucede que no âmbito do processo crime supra identificado, veio o a ser proferido em 28 de janeiro de 2022, Despacho de Arquivamento,
Tendo a aqui Autora sido notificada do mesmo em data posterior a 31 de janeiro de 2022,
Ora, a apresentação da queixa crime pelo lesado interrompe o prazo prescricional previsto quer no n.º 1, quer no n.º 3, do art.º 498.º do Código Civil.
O prazo assim interrompido reinicia-se com o trânsito em julgado do despacho de arquivamento.
Do exposto resulta por demais evidente que a presente ação é apresentada em devido tempo.
(…)
Acontece que,
A Autora gerou em 21 de março de 2018 a ordem de serviço n.º ..........94, para a realização de “Revisão de Equipamento Telecontagem BTE”. DOC. 3
A ordem de serviço foi executada no dia 3 de abril de 2018, aquando da deslocação do piquete técnico da Autora ao local de consumo. cf. DOC 3
Chegado ao local, o técnico verificou que os selos da tampa superior do contador não estavam como de fábrica, que as medições feitas na baixada eram superiores à registada no contador e que as ordens de fases não estavam corretas, pelo que foi lavrado o auto de vistoria, no dia e local mencionados. DOC. 4
Detetadas as irregularidades supra referidas, os técnicos ao serviço da Autora procederam à correção das mesmas, tendo sido substituído o contador com posterior envio do mesmo à empresa L..., S.A., a qual elaborou relatório de análise de contador estático trifásico com indícios de manipulação e relatório de Ensaio ao Contador Estático Trifásico. DOCs. 5 e 6
Significa assim que a Ré esteve a beneficiar do consumo da energia elétrica não registada, logo não paga, sem o consentimento e contra a vontade da aqui Autora.
Esta conduta ilícita, perpetrada no tempo pela Ré, configura a realização de um prejuízo económico para a Autora, legítima proprietária dos fluxos de energia que circulam na rede pública de distribuição.
(…)
Dada a factualidade supra descrita, encontram-se cumpridos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual (cf. art.º 483 e seguintes do Código Civil) e subsidiariamente do enriquecimento sem causa (cf. art.º 473.º e seguintes do Código Civil), originando a obrigação da Ré indemnizar a Autora no referido montante correspondente aos prejuízos causados, acrescido dos juros vincendos até ao integral e efetivo pagamento.
(…)”
E a primeira observação a fazer é a de que, tendo em vista saber/dizer se a R. tinha ou não todos os elementos para invocar a exceção de prescrição do crédito da A., não releva apreciar da bondade das considerações jurídicas efetuadas pela A. sobre o prazo de prescrição aplicável e sobre o modo de o mesmo ser contado.
O que aqui releva é que resulta, do articulado inicial da A., que esta alegou que teve conhecimento, em 03/04/2018, da factualidade que imputa à R.: manipulação do contador/equipamento de medição da energia elétrica fornecida à R..
Certamente por isto – estando a intentar uma ação, com fundamento em tal factualidade, “apenas” em 17/03/2023 – sentiu-se a A. interpelada a não omitir pronúncia sobre a questão da possível prescrição do seu crédito, explanando/antecipando, na PI, o raciocínio transcrito a favor da não verificação da prescrição.
E, repete-se, não interessa, atenta a questão sob revista, analisar da bondade do raciocínio jurídico explanado (sobre o prazo prescricional aplicável e sobre o modo de proceder à sua contagem), importando tão só acentuar – é o que releva para a questão sob revista – que, em face do alegado pela A., a R. tinha todos os elementos para invocar a prescrição: a A. alegou a data em que tomou conhecimento da factualidade que imputou à R., a data em que apresentou queixa crime, a data em que esta foi arquivada, sendo que, a partir daqui e com a data de entrada da PI, estava a R. na posse de todos elementos factuais relevantes e indispensáveis para invocar, querendo, a exceção de prescrição do crédito da A..
Em vez disso, o que é que a R. fez/invocou?
Segundo a própria R., como diz, tendo em vista justificar ser de apreciar a exceção da prescrição, na sua apelação:
“(…)
mencionou [a R.] igualmente na contestação deduzida nos autos que a Autora não indicou, na petição inicial, qual o período em que o equipamento em causa supostamente se encontrou adulterado, não oferecendo qualquer baliza temporal para além da totalidade do período em que o contrato de fornecimento se manteve em vigor (artigo 58º da contestação), mas não indicando quais os períodos a que supostamente dizem respeito os valores reclamados por si na ação interposta (artigo 59º da contestação).
(…)
Após apresentação da petição inicial corrigida (…), veio a Recorrente exercer o contraditório, mantendo o entendimento da ineptidão da petição inicial e da falta de elementos essenciais, mais referindo, nos artigos 36º e 37º do requerimento de resposta à petição inicial corrigida, datado de 19-06-2023, (…) o seguinte:
(A Autora) “ (...) já não alega quais são os factos concretamente praticados pela R., nem indica o período temporal a que se reporta a alegada manipulação,
37.º O que impossibilita determinar o hipotético valor do bem alegadamente furtado e, por sua vez, a qualificação ou não do alegado crime de furto, o que tem consequências a nível da qualificação do crime e da moldura penal a considerar, nomeadamente para efeitos do prazo de prescrição aplicável in casu, sendo certo que o processo crime que correu termos com o objeto em causa nos presentes autos foi arquivado”.
Assim, e considerando a falta de elementos que dispunha para se pronunciar, na contestação, quanto à prescrição do direito invocado pela Autora, à Recorrente não poderia ser exigido que deduzisse toda a sua defesa na contestação
(…)”
Porém, ao contrário do que a R. alegou na sua apelação, a PI é completa e elucidativa sobre a data em que terminou a manipulação do contador/equipamento de medição da energia elétrica: é a mesma data em que a A. alegou ter tomado conhecimento de tal manipulação, ou seja, o dia 3 de abril de 2018, dia em que, de acordo com o alegado pela A., o técnico “detetadas as irregularidades (…) procedeu à correção, tendo sido substituído o contador com posterior envio do mesmo à empresa L..., S.A., a qual elaborou relatório de análise de contador estático trifásico com indícios de manipulação e relatório de Ensaio ao Contador Estático Trifásico”
E esta “baliza temporal” (03/04/2018) era suficiente para a R. efetuar os atinentes raciocínios sobre a verificação da prescrição e, conforme os mesmos, invocá-la ou não.(…)”
Por outro lado, não há falta de alegação do período temporal em que o consumo irregular se verificou – da conjugação da petição inicial, com a petição aperfeiçoada e com os documentos juntos, retira-se que o contador adulterado apresentava erro de contagem da ordem dos -35%, o que se concluiu da comparação com o período pós substituição, que a anomalia ocorreu entre 17.10.2012 e 03.04.2018, sendo que o período tomado em consideração para cálculo dos prejuízos, abril de 2015 a 22.02.2018 se situa dentro do lapso temporal em que a Autora alega que ocorreu a anomalia (cf os documentos 5 e 8 da petição aperfeiçoada), sendo que neste ultimo documento se esclarece o motivo pelo qual “embora o período de anomalia seja mais extenso, o período a corrigir será apenas de 04.04.2015 às 00.15 a 03.04.2018 às 10.00h (3 anos)”, não vindo invocada qualquer nulidade por violação do contraditório previsto no artigo 5º, n.º 2 do Código de Processo Civil.
Apurar se os factos provados permitem considerar procedente a pretensão da Autora de responsabilizar a Ré pelo valor peticionado consubstancia já apreciação do mérito da sentença, a realizar de seguida, e não da respetiva regularidade formal.
Em suma: Lida e interpretada a decisão apelada, é manifesto que nenhum dos invocados vícios se verifica.
Ora, como tem sido uniformemente decidido pela jurisprudência dos tribunais superiores com aplauso da doutrina, a discordância quanto ao mérito da decisão não é reconduzível às causas de nulidade invocadas (ou a quaisquer outras), já que as mesmas se referem unicamente a vícios formais daquela.
Improcede a arguição das nulidades da sentença.
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III.4. Da impugnação da matéria de facto.
Embora de forma algo vaga, ao longo das alegações, a Apelante insurge-se contra a decisão recorrida por considerar que ali são omitidos factos que permitem afastar a sua responsabilidade pela prática dos factos em causa nos autos.
Concretiza, depois, nos pontos 51. a 52. das conclusões os factos em causa, e que aqui se recordam:
“ 27. Relativamente aos factos referidos em 11, 12 e 14, a Autora intentou a respectiva queixa crime em 2018, tendo sido extraída certidão que originou o processo que correu termos sob o n.º 46/19.5..., junto da Secção de Torres Novas do Departamento de Investigação e Ação Penal do Ministério Público, Procuradoria da República da Comarca de Santarém.
28. No âmbito do referido processo crime foi investigada a conduta ilícita referida em 11, 12 e 14, estando em causa naqueles autos de inquérito a eventual prática, por parte da Ré, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo artigo 204º, n.º 2, alínea a), de falsificação de notação técnica, p. e p. pelo artigo 258º, n.ºs 1 e 2 e quebra de marcas e de selos, p. e p. pelo artigo 356º todos do código Penal.
29. Tendo, a final, sido proferido o devido Despacho de Arquivamento, por não existirem indícios suficientes que permitissem acusar a Ré em relação aos crimes denunciados, concluindo o investigador não ser possível imputar a alteração do contador referido na queixa à Ré.”.
Refere ainda que, considerando tal factualidade, “também não deveria o facto g) dos factos não provados- “Não foi a R. que executou ou promoveu a execução do referido em 11, 12 e 14 dos factos provados ” constar desse elenco, devendo tal facto em face da prova produzida nos autos- nomeadamente do Doc. n.º 1 junto à petição inicial, conjugada com a demais prova que permitiu concluir que o contador se encontrava em local público, acessível por terceiros (pontos 22 e 23 dos factos provados)- e dos factos a aditar nos termos supra sob os pontos 27, 28 e 29, constar dos factos considerados provados.
Foi observado o ónus de impugnação previsto no artigo 640.º do Código de Processo Civil, pelo que nada obsta ao conhecimento da impugnação.
Cabe desde logo referir que os meios de prova indicados pela Recorrente não impõem decisão diversa da proferida pelo Tribunal Recorrido.
Na verdade, os factos relativos ao processo crime a que a Recorrente se refere constam do documento junto com o n.º 1 à petição inicial, do qual consta o respetivo despacho de arquivamento e consequentemente, o mesmo deve ser considerado nos termos do disposto no artigo 607º, n.º 4, ultima parte, do Código de Processo Civil, sem que para tanto tenha de constar do elenco dos factos provados.
Por outro lado, do teor do referido despacho apenas se retira, de relevo para o caso dos autos, que ali se entendeu “não resultar provado nos autos que a Econova tenha desenvolvido qualquer procedimento suscetível de falsear ou viciar, por qualquer meio, o funcionamento normal ou a leitura do referido equipamento de contador de consumo de eletricidade”, ali se explicando, depois, os motivos pelos quais assim se concluiu.
Sucede que a circunstância um facto não ter sido ali provado, não permite inferir que o facto oposto se provou, ou seja, o facto de ali não se ter demonstrado que a ora Ré foi responsável por qualquer dos aludidos procedimentos, não permite concluir que não foi a Ré que praticou tais factos.
Deste modo, improcede totalmente a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
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III.5. Da reapreciação jurídica da causa.
A Autora fundou o seu pedido numa atuação ilícita decorrente da adulteração e manipulação do equipamento de contagem que lhe permitia um consumo elétrico superior ao registado e, consequentemente, não pago.
À data dos factos, como adequadamente se explicitou na decisão recorrida, regia a este propósito o Dec. Lei 328/90 de 22 de Outubro, a cujo enquadramento o Tribunal Recorrido procedeu em termos que não merecem qualquer reparo, e que dispunha no artigo 1º nº 1 “constituir violação do contrato de fornecimento de energia eléctrica qualquer procedimento fraudulento susceptível de falsear a medição da energia eléctrica consumida ou da potência tomada, designadamente a captação de energia a montante do equipamento de medida, a viciação, por qualquer meio, do funcionamento normal dos aparelhos de medida ou de controlo da potência, bem como a alteração dos dispositivos de segurança, levada a cabo através da quebra dos selos ou por violação dos fechos ou fechaduras.
Por sua vez, dispunha o nº 2 do mesmo artigo que qualquer procedimento fraudulento detetado no recinto ou local exclusivamente servido por uma instalação de utilização de energia elétrica presume-se, salvo prova em contrário, imputável ao respetivo consumidor.”
Ao estabelecer que qualquer procedimento fraudulento se presume, salvo prova em contrário, imputável ao respetivo consumidor, a norma não presume que o consumidor foi o autor do procedimento fraudulento - a norma responsabiliza o consumidor que recebe energia através do equipamento falseado perante o distribuidor pelas consequências desse procedimento, exceto se provar que o mesmo não se deve a culpa sua1.
No recente Acórdão da Relação de Coimbra de 10.09.20242 discutiu-se a constitucionalidade de tal presunção, que na prática, faz recair sobre o consumidor uma prova negativa, que é quase impossível, designadamente em casos como o dos autos, em que o contador se encontra inserido num prédio com diversos habitantes e com acesso pela rua, pois que situado no exterior (pontos 22 e 23 dos factos provados).
Ali pode ler-se:
“(…)No âmbito da presunção em apreço, o fornecedor de energia elétrica terá de demonstrar “a existência de procedimento fraudulento suscetível de falsear a medição da energia elétrica consumida ou da potencia tomada, designadamente a captação de energia a montante do equipamento de medida, a viciação, por qualquer meio, do funcionamento normal dos aparelhos de medida ou de controlo da potência, bem como a alteração dos dispositivos de segurança, levada através da quebra dos selos ou por violação dos fechos ou fechaduras”.
Provada essa viciação suscetível de falsear a medição da energia elétrica, presume-se que essa viciação é imputável ao consumidor, cabendo a este, sendo caso disso, a prova de que tal viciação foi efetuada por terceiro ou se deveu a causa de força maior.
A presunção de responsabilidade assenta no raciocínio de que o consumidor é quem tem o controlo das instalações, sendo ele quem tem livre acesso as mesmas, incumbindo-lhe a respetiva vigilância, pelo que, o que lá acontecer é da sua responsabilidade, presunção que é comum em várias outras áreas (ex. presunção no exercício de atividades perigosas, nos termos do art. 493º, nº2, CC, e relativamente ao detentor do veículo, nº 1 do artigo 503º).
Não acompanhamos, assim, a afirmação da Apelante, de que tal presunção, protege claramente a autora em relação à ré, violando o principio da igualdade, consagrado no artigo 13º da CRP ou o acesso à tutela jurisdicional efetiva consagrado no artigo 20º da CRP.
A norma em apreço faz uma distribuição dos factos a provar, contendo uma presunção relativa que faz recair a prova de determinados factos sobre a autora – a existência de vício suscetível de alterar a medição da energia elétrica – e outros sobre a Ré – que, a existir vício é imputável a terceiro ou força maior –, partindo dos interesses em causa, do fornecedor de energia, por um lado, e do consumidor, por outro lado, dos meios que cada um pode controlar e da facilidade de acesso a meios de prova.
De qualquer modo, também a invocada inconstitucionalidade é irrelevante para a situação em apreço, uma vez que a autora não faz assentar o seu pedido de restituição dos valores consumidos na circunstância de ter sido a Ré a autora da intervenção fraudulenta (ainda que por falta de elisão de tal presunção), para efeitos de a responsabilizar pelos prejuízos causados à distribuidora nos termos do artigo 3º nº1, fundamentando o pedido restituição do consumo irregularmente feito pelo consumido no artigo 3º, nº2, direito que é atribuído ao distribuidor “quando o consumidor não seja o autor do procedimento fraudulento ou por ele responsável”.
Pedro Falcão, in “O Contrato de fornecimento de energia eléctrica”, Petrony Editora (2019), pág. 112, apesar de reconhecer que a lei estabelece esta presunção, critica a solução legal considerando que:
“não nos parece razoável que a lei presuma, sem mais, imputável ao utente, v. g. a adulteração do contador que, embora associado exclusivamente à sua instalação de utilização, não é exclusivamente acedido por esse mesmo utente. Sendo certo que uma hipotética adulteração só se justifica, em princípio, em seu benefício, não se afigura justo que sobre ele impenda o ónus de realizar a prova, praticamente impossível, da não realização desse comportamento, se for esse o caso … Seria porventura adequada a revogação da mencionada norma, deixando a eventual presunção para o tribunal, em face do caso concreto”.
Porém, no recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 22.02.2025 no âmbito do citado processo n.º 2465/19.8T8LRA.C1.S1, em sede de revista excecional admitida pela considerada relevância jurídica e social das questões colocadas - (i) “dever de informação aos clientes no âmbito de vistorias promovidas pela entidade distribuidora de eletricidade”; (ii) - “ónus da prova de eventuais adulterações aos aparelhos de medição dos respetivos consumos, especialmente quando tais aparelhos (contadores) são instalados e objeto de manutenção por parte das próprias empresas distribuidoras”; (iii) “a interpretação das normas contidas no referido DL 328/90, de 22 de Outubro (recentemente revogado pelo Decreto-Lei n.º 15/2022 de 14 de Janeiro, o qual, atenta a data da sua entrada em vigor, não se aplica à situação dos autos), que estabelece diversas medidas tendentes a evitar o consumo fraudulento de energia elétrica, diploma que deve ser conjugado com a Lei n.º 23/96, de 26 de Julho que criou no nosso ordenamento jurídico alguns mecanismos destinados a proteger o utente de serviços públicos essenciais, nos quais se inclui o fornecimento de energia elétrica e que também prevê deveres de informação a cargo do prestador do serviço e regras de repartição do ónus da prova, além das regras gerais previstas no Código Civil”; (iv) “a aferição da conformidade à Constituição de algumas normas do referido DL 328/90, de 22 de Outubro, de acordo com a interpretação seguida pelas instâncias”; afastou-se tal entendimento.
Ali pode ler-se, efetivamente, o seguinte acerca de tais questões, que aqui reproduzimos atenta a relevância para a solução do caso dos autos:
“(…)1.1. No presente caso, as instâncias consideraram, de modo convergente, existir fundamento para responsabilizar a Ré perante a Autora, na qualidade de Operador de Rede de Distribuição, pelo ressarcimento dos valores correspondentes ao consumo de energia eléctrica não regulamente contabilizado, em virtude da existência de desconformidades detectadas no equipamento de medição e contagem (“contador”) existente nas instalações da Ré consumidora, na sequência de “vistoria técnica” ao respectivo local de consumo – cfr. factos provados 1. a 11. e 15. a 20.
A Ré e Recorrente alega que este entendimento é incompatível com o facto de recair sobre a Autora distribuidora o dever de informar previamente a Ré consumidora-cliente da faculdade de requerer à Direcção-Geral de Energia uma outra vistoria de natureza técnica ao “contador”, o que, não tendo sido cumprido, não permitiria, por impossibilidade de produção de contraprova por parte da Ré e Recorrente, ser dada como provada a adulteração do “contador”, o consequente vício nos consumos da energia eléctrica e dados como preenchidos os pressupostos da obrigação de indemnizar a Autora (v. Conclusões 2.ª, 3.ª, 13.ª a 22.ª, 31.ª).
Vejamos.(…)
1.3. O DL 328/90, de 22 de Outubro, foi introduzido no nosso ordenamento jurídico tendo em vista evitar o consumo fraudulento de energia eléctrica e erradicar “práticas fraudulentas assaz generalizadas a nível internacional, visando a redução dos valores faturados, com a consequente fuga ao pagamento dos consumos reais”, conferindo aos distribuidores a possibilidade de se ressarcirem “do valor dos consumos verificados durante a existência da fraude e das despesas dela emergentes” (entretanto revogado pelo DL 15/2022, de 14 de Janeiro, art. 305º, a); v. arts. 250º e ss).
No seu art. 1º, previa-se: (…)3
Depois, o regime legal dispunha que o distribuidor pudesse realizar a inspecção da respectiva instalação eléctrica em caso de existência de indícios da prática de qualquer procedimento fraudulento (art. 2.º); nos seguintes termos:
«1 – Sempre que haja indícios ou se suspeite da prática de qualquer procedimento fraudulento, o distribuidor poderá proceder à inspecção da respectiva instalação eléctrica, por meio de um técnico seu, entre as 10 e as 18 horas, o qual poderá, quando o julgar conveniente, solicitar a presença da autoridade policial competente.
2 – Da inspecção será lavrado auto, onde, sendo caso disso, se fará a descrição sumária do procedimento fraudulento detectado, bem como de quaisquer outros elementos que possam interessar à imputação da correspondente responsabilidade.
3 – O auto de vistoria será lavrado, sempre que possível, em presença do consumidor ou de quem no local o represente, designadamente um seu familiar ou empregado, e deverá ser instruído com os elementos de prova eventualmente recolhidos; deste auto será deixada cópia ao consumidor.
4 – No caso de o consumidor não permitir que o distribuidor proceda à inspecção referida no n.º 1, este poderá interromper de imediato o fornecimento de energia eléctrica, participando tal facto à Direcção-Geral de Energia.
Em função do resultado dessa inspecção, os arts. 3º e 4º do diploma em análise estatuíam:
«Artigo 3.º
1 – Se da inspecção referida no artigo anterior se concluir pela existência de violação do contrato de fornecimento de energia eléctrica por fraude imputável ao consumidor, o distribuidor goza dos seguintes direitos: a) Interromper o fornecimento de energia eléctrica, selando a respectiva entrada; b) Ser ressarcido do valor do consumo irregularmente feito e das despesas inerentes à verificação e eliminação da fraude e dos juros que estiverem estabelecidos para as dívidas activas do distribuidor.
2 – Quando o consumidor não seja o autor do procedimento fraudulento ou por ele responsável, o distribuidor tem apenas direito a ser ressarcido do valor do consumo irregularmente feito pelo consumidor.»
«Artigo 4.º
1 – O direito consagrado na alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º só pode ser exercido depois de o distribuidor ter notificado, por escrito, o consumidor do valor presumido do consumo irregularmente feito e de o ter informado dos seus direitos, nomeadamente o de poder requerer à Direcção-Geral de Energia a vistoria prevista no artigo seguinte.
2 – O consumidor pode obstar à interrupção do fornecimento, assumindo, por escrito, perante o distribuidor a responsabilidade pelo pagamento, no prazo que, na falta de acordo, este estabelecer, das verbas que lhe forem devidas nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 3.º.
3 – Se o consumidor não efectuar, no prazo estabelecido ou acordado, o pagamento das verbas referidas no número anterior, o distribuidor retoma o direito de interromper o fornecimento.»
Na sequência, tínhamos o art. 5º a dispor:
«1 – Sempre que o distribuidor use do direito de interromper o fornecimento de energia eléctrica, participará de imediato o facto à Direcção-Geral de Energia, juntando cópia do auto referido no n.º 2 do artigo 2.º, bem como toda a correspondência trocada com o consumidor.
2 – Sempre que o consumidor entenda não ter cometido qualquer fraude, poderá requerer à Direcção-Geral de Energia, sem prejuízo do direito de recorrer aos tribunais, a vistoria da instalação eléctrica, a qual será sempre realizada no prazo máximo de 48 horas.
3 – Se, em virtude da vistoria referida no número anterior, a Direcção-Geral de Energia concluir pela inexistência de qualquer procedimento fraudulento, ordenará ao distribuidor o imediato restabelecimento do fornecimento de energia eléctrica, tendo, neste caso, o distribuidor o dever de indemnizar o consumidor pelos prejuízos causados.
4 – Pela vistoria referida no n.º 2, a Direcção-Geral de Energia cobrará ao consumidor ou ao distribuidor, conforme verificar ou não a existência da fraude, uma quantia a estabelecer por portaria do Ministro da Indústria e Energia, que constituirá receita daquela Direcção-Geral.»
1.4. O art. 4º, 1, do DL 328/90 consagrava, por isso, um dever legal específico de informação do consumidor sobre a faculdade de requerimento de vistoria à Direcção-Geral de Energia, que obrigava o distribuidor na exacta configuração objectiva desse dever.
Na verdade.
Sobre o âmbito de aplicação deste dever, a sentença proferida em 1.ª instância, mobilizando os arts. 3º, 1 e 2, e 4º, 1, do diploma aplicável, argumentou:
“(…) tal dever de informação não impendia sobre a autora como resulta das disposições conjugadas dos arts. 3º e 4º daquele diploma legal, pelo que a factualidade dada por provada em 23 não assume qualquer relevância.
(…)
Significa isto que o dever de informação que a ré alega não ter sido cumprido, apenas se impunha à autora, caso esta tivesse interrompido o fornecimento de energia eléctrica, nos termos do art. 3º nº 1 al. a), o que não fez”.
Reapreciando o fundamento recursivo da Ré, o acórdão recorrido considerou:
“(…) apenas o exercício do direito do distribuidor previsto na al. a) do nº1 do art. 3º – interromper o fornecimento de energia elétrica – se encontra dependente da prévia notificação do consumo irregularmente feito e da informação sobre os seus direitos.
Tal dever de informação prévia só se encontra previsto para o caso de, efetuada a inspeção à respetiva instalação elétrica, o distribuidor dela concluir ter havido violação do contrato de fornecimento de energia por fraude imputável ao consumidor e pretenda exercer o direito à interrupção do fornecimento da energia elétrica, previsto no artigo 3º, nº1 al. a).
Daí que, no nº2 do artigo 5º, para o qual remete o nº1 do artigo 4, se dispõe que “sempre que o consumidor entenda não ter cometido qualquer fraude, poderá requerer à Direção-Geral de Energia, sem prejuízo do direito de recorrer aos tribunais, a vistoria da instalação elétrica, a qual será sempre realizada no prazo máximo de 48 horas”.
Sendo a energia elétrica um bem essencial, cuja distribuição é considerada um serviço público, tal imposição vai de encontro ao disposto no artigo 5º ns. 1 a 3, da Lei nº 23/96, de 26 de julho – diploma que cria alguns mecanismos destinados a proteger o utente de serviços públicos essenciais –, que dispõe que a prestação de um serviço publico não pode ser suspensa sem pré-aviso adequado, salvo caso fortuito ou de força maior, devendo o utente ser advertido do motivo da suspensão, informado dos meios que tem ao seu dispor para evitar a suspensão do serviço e, bem assim, para a retoma do mesmo, sem prejuízo de poder fazer valer os direitos que lhe assistam nos termos gerais.
No caso em apreço, não invocando a autora que da inspeção à energia elétrica se tenha concluído pela existência de violação do contrato de fornecimento de energia elétrica por fraude imputável ao consumidor e não tendo procedido à interrupção do fornecimento da energia elétrica, não impendia sobre a autora o cumprimento do dever de informação a que se reporta o nº1 do artigo 4º”.
É um entendimento que deve ser sufragado3, aderindo-se por isso à sua argumentação.
Vejamos.
1.5. A devida interpretação sistemática das normas em causa – em concreto, a expressa remissão que é feita para a alínea a) do art. 3º, 1, pela 1.ª parte do art. 4º, 1, do DL 328/90 – indica manifestamente que o direito à informação do consumidor quanto a “segunda vistoria” (prevista no art. 5º, 2) apenas se constitui se o distribuidor do serviço, confrontado com a ilicitude decorrente da “inspecção” realizada, acrescida da imediata verificação de a fraude ser imputável ao consumidor, tomar a opção consequente da interrupção do fornecimento de energia. Assim é uma vez que a veiculação de tal informação é legalmente configurada como um pressuposto para o exercício do direito de interrupção de fornecimento da energia eléctrica, na hipótese de se ter tomado conhecimento imediato de factos que preencham a hipótese de «fraude imputável ao consumidor».
Esta vistoria da instalação eléctrica a realizar pela Direção-Geral de Energia (hoje Direção-Geral de Energia e Geologia) surge, na arquitectura do regime legal, como um procedimento, de carácter urgente, destinado a averiguar da regularidade da interrupção do fornecimento de energia eléctrica em caso de imputação da fraude ao consumidor. Está em causa um comportamento do utente de censurabilidade qualificada, que justifica a cessação da prestação a cargo do distribuidor de um serviço público essencial, como é a energia eléctrica (art. 1.º, 2, b), da Lei 23/96, de 26 de Julho), cujo fornecimento não pode ser suspenso sem pré-aviso adequado, salvo caso fortuito ou de força maior (art. 5º, 1, da Lei 23/96).
Vista a natureza da opção pela interrupção de um bem de carácter essencial, a lei, para além de consagrar a obrigatoriedade da participação directa da interrupção à Direcção-Geral de Energia (art. 5º, 1, DL 328/90), coloca um procedimento expedito à disposição do utente que entenda «não ter cometido qualquer fraude», determinando que a Direção-Geral de Energia ordene o imediato restabelecimento do fornecimento de energia no caso de «concluir pela inexistência de qualquer procedimento fraudulento» (art. 5º, 3, DL 328/90).
A realização desta vistoria – que tão-só não apresentará custos para o consumidor se se concluir pela inexistência de procedimento fraudulento (art. 5º, 4, DL 328/90) – visa conferir ao consumidor prejudicado, considerando não ter cometido fraude (art. 5º, 2, DL 328/90), a possibilidade de suscitar a verificação da regularidade da interrupção de um serviço público essencial, infirmando a conclusão alcançada pela primeira inspecção realizada pelo distribuidor de energia eléctrica.
Esta (verdadeiramente vista como uma) contravistoria é cometida a uma entidade, dotada de autonomia, competência técnica e imparcialidade, que constitui um serviço central da administração directa do Estado, a quem compete a fiscalização do cumprimento das obrigações das concessionárias, no âmbito dos contratos de distribuição de electricidade – v. arts. 1º, 2º, 2, aa), do DL 130/2014, de 29 de Agosto.
Deste modo, não é de todo compreensível que o dever de informação se constitua no caso de a distribuidora não interromper “ab initio” o fornecimento de energia eléctrica, optando tão-só por exigir o pagamento do consumo de energia facturado. Na verdade, tal dever não se mostra necessário e conveniente – tendo em conta justamente que não foi cessada a prestação de um serviço público essencial – à tutela do consumidor enquanto parte contratualmente mais débil. De todo o modo, sempre se diga que, no caso presente, não há que ponderar essa tutela como critério interpretativo, tendo em conta que a Ré utilizava a energia eléctrica para uso profissional (art. 2º, 1, a contrario sensu, da Lei 24/96).
Assim sendo.
Ao exigir do consumidor unicamente o valor do consumo irregularmente feito, o distribuidor opta por obter o ressarcimento pelo dano patrimonial sofrido, prescindindo de lançar mão da interrupção do fornecimento da energia elétrica, medida à qual se poderá adscrever uma finalidade profiláctica (de evitar a manutenção e repetição da situação fraudulenta). Neste caso, o utente não é privado de um bem de carácter essencial, não se justificando que lhe seja dada a possibilidade de requerer uma vistoria independente – e, em decorrência, de sobre a mesma ser previamente informado –, vistoria essa que está predisposta à finalidade do restabelecimento do fornecimento da energia elétrica, de acordo com o art. 5º, 3, 2.ª parte, do DL 328/90.
O arco normativo aplicável permite concluir que o direito de informação invocado pela Ré e Recorrente se encontra teleologicamente orientado à ocorrência da situação mais gravosa de corte de energia pelo distribuidor4, direito esse que, por sua vez, só poderá ser exercido em caso de censura qualificada ao comportamento ilícito do consumidor. (…)
Logo, a aqui Autora não exerceu o seu direito de interrupção do fornecimento de energia eléctrica, pelo que não se encontram verificados os pressupostos normativos constantes dos arts. 3º, 1, a), e 4º, 1, do DL 328/90; na esfera da Ré e Recorrente não se constituiu o direito à informação da possibilidade de requerer uma vistoria.
De todo o modo, sempre se diga que, ainda que se reconhecesse que esse direito à informação se havia constituído sem a interrupção de fornecimento de energia elétrica, é, no mínimo, discutível que se pudesse estabelecer uma causalidade legítima e produtora de efeitos entre a violação de tal direito pela distribuidora e um dano, que a recorrente faz corresponder à quantia em cujo pagamento foi condenada nos autos, pela perda de “oportunidade” ou da “chance” de requerer uma vistoria que, na sua óptica, lhe permitiria demonstrar a inexactidão dos valores de consumo apurados, uma vez que teria sido privado da possibilidade de evitar certo prejuízo com essa disponibilidade de informação: quod erat demonstradum.
Em suma e sem mais: improcede a revista com este fundamento.
2. Violação da regra de direito probatório material contida no art. 344º, 2, do CCiv. (inversão do ónus da prova)
2.1. Invoca a Ré e Recorrente que, por não ter sido informada pela Autora da possibilidade de solicitar a vistoria junto da Direção-Geral de Energia, foi impedida de produzir contraprova de que não existiu adulteração do “contador”. Para este efeito, considera que “não foi cumprido o dever de informação prévia, com o que a Recorrida culposamente impediu a recorrente de fazer a contra prova de que não existiu adulteração do contador, e por isso verificam-se os pressupostos do artigo 344º do Código Civil para que exista inversão de prova e seja considerado que não existe uma prova segura de que de facto existiu adulteração do contador e por consequência não se verificam os pressupostos da obrigação de indemnizar por parte da Recorrente e por isso tem a mesma que ser absolvida do pedido” (v. Conclusões 2.ª, 25.ª, 26.ª e 29.ª).
Vejamos agora esta frente de impugnação, aceite pela Formação que admitiu a revista, e que resulta ainda (para efeitos de questão recursiva) da reapreciação feita no acordão recorrido à interpretação do art. 1º, 1 e 2, do DL 328/905 e à inconstitucionalidade imputada à interpretação do art. 1º, 2, em particular, conduzindo o acórdão recorrido à ponderação das regras de ónus probatório e de inversão probatória em caso de presunção legal (no caso, determinada justamente pelo art. 1º, 2).
2.2. Tendo em conta esse normativo, resulta adquirido nos autos que o “contador” de aferição do fornecimento da energia eléctrica foi objecto de um procedimento fraudulento – factos provados 10., 11., 15. e 16. (em especial, pela “substituição das resistências originais por outras com um valor óhmico diferente, o que provoca uma variação da corrente lida pelo contador e consequentemente da energia medida”).
Perante este quadro factual, o acórdão recorrido salienta que, à luz do n.º 2 do art. 1º do DL 328/90, a Ré é responsável pelo pagamento do valor da energia consumida e não paga, independentemente de ter sido ela, ou não, a autora do procedimento fraudulento.
Acrescenta, como vimos, que, no caso, tal circunstância acaba por perder relevância, uma vez que “a ré não logrou a prova de que não podia ter sido ela a autora da adulteração por não ter acesso ao local onde se encontrava o contador (al. g) dos factos dados como não provados), tendo sido julgada improcedente a impugnação por si deduzida contra a decisão proferida relativamente a tal matéria.”
A Recorrente invoca, neste plano de argumentação, ter existido violação da regra de direito probatório material contida no n.º 2 do art. 344º do CCiv., pelo facto de o acórdão recorrido não ter recorrido àquele mecanismo de inversão do ónus probatório, nomeadamente para considerar não provada a adulteração do contador, alegando-se que a Autora, ao ter omitido a informação acerca da possibilidade de realização de uma vistoria, culposamente tornara impossível a realização de tal “contraprova” (assim se refere) sobre a não adulteração fraudulenta do equipamento de leitura e medição dos consumos.
2.3. O controlo da observância do direito probatório material, onde se integra a disciplina contida no CCiv. quanto ao “ónus da prova” (arts. 342º e ss do CCiv.)6, enquanto fiscalização de “erro de direito”, está no âmbito dos poderes cognitivos do STJ em sede de recurso de revista (art. 674º, 1, a), do CPC)7.
Como sublinhou o acórdão do STJ de 12/4/2018, em especial, “[i]nscreve-se no âmbito do recurso de revista a apreciação do modo como as instâncias interpretaram e aplicaram a norma de direito probatório material prevista no art. 344.º, n.º 2, do CC, na medida em que a inversão do ónus da prova é susceptível de influir no conteúdo da decisão do tribunal que aprecia as provas produzidas”8.
Assim, quid juris?
2.4. Dispõe o art. 344º do CCiv.:
«1 – As regras dos artigos anteriores invertem-se, quando haja presunção legal, dispensa ou liberação do ónus da prova, ou convenção válida nesse sentido, e, de um modo geral, sempre que a lei o determine.
2 – Há também inversão do ónus da prova, quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado, sem prejuízo das sanções que a lei de processo mande especialmente aplicar à desobediência ou às falsas declarações.»
2.5. A inversão do ónus probatório contemplada pelo art. 344º, 2, do CPC – o fundamento recursivo da Recorrente – constitui uma sanção civil à violação do dever de cooperação para a descoberta da verdade, previsto no n.º 1 do art. 417º do CPC, que se impõe a todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, “quando essa falta de colaboração vai ao ponto de tornar impossível ou particularmente difícil a produção de prova ao sujeito processual onerado com o ónus da prova nos termos gerais e seja culposa, no sentido de que a parte recusante podia e devia agir de outro modo” – assim determinou, uma vez mais, o citado Ac. do STJ de 12/4/20189.
Neste contexto, a doutrina refere que o fundamento da inversão do ónus da prova previsto no n.º 2 do art. 344º do CCiv., alterando-se o ónus da prova atribuído à parte que não o teria de acordo com as regras gerais, reside na justa distribuição de tal ónus: “[o] n.º 2 tem como pressupostos: uma conduta ilícita e culposa da contraparte; um resultado de impossibilidade de prova para a parte onerada; um nexo de causalidade entre a conduta ilícita e culposa e entre a impossibilidade”10; explicitando-se que “a conduta da contraparte inviabilizadora da prova ao onerado tanto pode assentar em dolo como em negligência (“culposamente”), como deflui da conjugação sistemática deste art. 344º com o art. 431º, nº 2, do CPC”11.
2.6. A inversão do ónus da prova ocorre, na formulação de MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “quando não é sobre a parte normalmente onerada com a prova do facto que recai o ónus de o demonstrar, mas sobre a contraparte que incide o ónus de provar o facto contrário. Assim, a inversão do ónus da prova implica igualmente uma modificação do thema probandum, pois que a prova exígivel a cada uma das partes é a contrária daquela que pode ser imposta à contraparte”12.
Na situação em apreço, ainda que se realizasse um juízo de prognose positiva acerca da possibilidade de o resultado da segunda vistoria, objecto do dever de informação, vir a ser utilizada como meio de prova, sempre ficaria por demonstrar, atenta a factualidade adquirida, que tal omissão da Autora, no cumprimento de tal dever informativo, tivesse sido culposa, um requisito de que depende a inversão do ónus da prova prevista no art. 344º, 2, do CCiv.
Por outro lado – e este é um ponto nevrálgico –, carece de sentido defender a inversão do ónus da prova em benefício da Recorrente – onerada desde logo com o princípio geral do art. 342º, 2, do CCiv. na “actividade probatória”13, assim como com a contraprova em face da factualidade constitutiva do direito invocado pela Autora ou, se fosse o caso, da prova do contrário (arts. 346º e 347º do CCiv.)14 – quanto a um facto, atinente à não existência de um procedimento fraudulento, cuja demonstração positiva sempre incumbe, segundo as regras gerais, e enquanto tal incumbe, à própria Autora distribuidora (arts. 1º, 1, DL 328/90, 342º, 1, CCiv) e não ao cliente. De resto, ainda que se concluísse que a Autora obstaculizara culposamente a prova contrária ou a contraprova do facto consistente na adulteração («procedimento fraudulento») do contador, tal não significaria, como parece decorrer da argumentação da Recorrente, que o mesmo facto fosse considerado não provado, devendo tal actuação ser valorada, em termos integrados, pelas instâncias, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova.
De qualquer modo – e este é um ponto letal para a pretensão da Recorrente –, não se constituiu na esfera da Ré e aqui Recorrente qualquer direito à informação da faculdade de requerer uma vistoria como correspectivo de um dever cujo cumprimento tivesse sido ilicitamente omitido pela Autora, fazendo cair qualquer argumento sequencial quanto às regras de distribuição do ónus probatório das partes, nomeadamente este decorrente da alegada convocação do art. 344º, 2, do CCiv.
Improcede também, por isso, esta alegação do recurso.
3. Inconstitucionalidade da interpretação do art. 1º, 2, do DL 328/90
3.1. Por fim, invoca a Recorrente, sendo tal admitido pelo acórdão proferido pela Formação deste STJ, que “a interpretação feita pelo Tribunal a quo do disposto no n.º 2 do Artigo 1.º do D.L. n.º 328/90 de 22.10, de que a prova de que não foi cometido qualquer procedimento fraudulento cabe ao consumidor da energia, é inconstitucional”, sustentando que a mesma “cria uma clara proteção da Recorrida, em relação à Recorrente”, configurando-se assim “uma clara violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição da Républica Portuguesa bem como do princípio do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva consagrado no artigo 20º da Constituição da Républica Portuguesa” (Conclusões 32.ª a 35.ª, 37.ª e 38.ª).
3.2. O tribunal “a quo” afastou esta alegação, fazendo notar:
“A norma em apreço faz uma distribuição dos factos a provar, contendo uma presunção relativa que faz recair a prova de determinados factos sobre a autora – a existência de vício suscetível de alterar a medição da energia elétrica – e outros sobre a Ré – que, a existir vício[,] é imputável a terceiro ou força maior –, partindo dos interesses em causa, do fornecedor de energia, por um lado, e do consumidor, por outro lado, dos meios que cada um pode controlar e da facilidade de acesso a meios de prova.
De qualquer modo, também a invocada inconstitucionalidade é irrelevante para a situação em apreço, uma vez que a autora não faz assentar o seu pedido de restituição dos valores consumidos na circunstância de ter sido a Ré a autora da intervenção fraudulenta (ainda que por falta de elisão de tal presunção), para efeitos de a responsabilizar pelos prejuízos causados à distribuidora nos termos do artigo 3º nº1, fundamentando o pedido [de] restituição do consumo irregularmente feito pelo consumido no artigo 3º, nº2, direito que é atribuído ao distribuidor “quando o consumidor não seja o autor do procedimento fraudulento ou por ele responsável”.”
Independentemente de a mera invocação genérica de direitos constitucionais, como a feita pela recorrente, não configurar uma suscitação processualmente adequada de uma questão de inconstitucionalidade normativa e de a norma cuja inconstitucionalidade é arguida pela Ré não integrar, em rigor, a “ratio decidendi” do acórdão impugnado, vemos que se alega a interpretação que o tribunal recorrido fez da norma prevista no n.º 2 do art. 1º do DL 328/90, de acordo com a qual, como já se deixou expresso, «qualquer procedimento fraudulento detectado no recinto ou local exclusivamente servido por uma instalação de utilização de energia elétrica presume-se, salvo prova em contrário, imputável ao respetivo consumidor».
3.3. É consabido que as regras gerais atinentes ao ónus da prova previstas nos arts. 342º e 343º do CCiv. se invertem quando exista presunção legal (art. 344º, 1, do CCiv), que isenta o seu beneficiário de provar o facto a que ela conduz (art. 350º, 1, do CCiv).
O n.º 2 do art. 1.º do DL 328/90, como é inequívoco, consagra uma presunção legal, de imputação (para efeitos de responsabilidade pelo dano causado) ao agente consumidor do procedimento fraudulento (não necessariamente de autoria: v. art. 2º, 2), depois de caber à distribuidora o ónus da prova do procedimento fraudulento em si mesmo; trata-se de uma presunção “iuris tantum”, ilidível, baseada num juízo de probabilidade e não de certeza, que admite a produção de prova do contrário do facto presumido.
Efectivamente, enquadrando, como assinala RITA LYNCE DE FARIA, “as presunções legais funcionam de forma automática. A inversão probatória operada pelas presunções legais ocorre na medida em que a parte onerada pelo ónus da prova, nos termos das regras gerais, se possa limitar a provar o facto base da presunção, ficando desonerada da prova do facto presumido. Será eventualmente à contraparte que caberá o ónus da prova do contrafacto presumido, o que corresponderá à ilisão da presunção, quando esta seja ilidível (…) Em rigor, pode afirmar-se que as presunções legais não operam uma verdadeira inversão do ónus da prova. O que ocorre é uma deslocação do ónus da prova para um facto tendencialmente mais fácil de demonstrar. Mas o ónus da prova mantém-se na parte inicialmente onerada. Apenas em parte existe uma inversão, relativamente ao facto presumido”15.
3.4. A presunção em análise, como, de modo exacto e rigoroso, notou o acórdão recorrido, “assenta no raciocínio de que o consumidor é quem tem o controlo das instalações, sendo ele quem tem livre acesso as mesmas, incumbindo-lhe a respetiva vigilância, pelo que, o que lá acontecer é da sua responsabilidade, presunção que é comum em várias outras áreas (ex. presunção no exercício de atividades perigosas, nos termos do art. 493º, nº2, CC (…)).”
A aplicação da presunção legal sob escrutínio, nos termos em que foi entendida pelo tribunal recorrido, não significou a eliminação da atividade probatória a cargo da Autora, tão-só permite que fique facilitada, onerando-a com a prova do facto base consistente na existência de um procedimento fraudulento detectado no recinto ou local exclusivamente servido por uma instalação de utilização de energia elétrica.
Inversamente, ficou a Ré onerada com a prova do contrafacto presumido, cabendo-lhe ilidir a presunção através da prova de que tal procedimento não se ficou a dever a responsabilidade sua (porque, por exemplo, houve uma intromissão de terceiros no contador sem a sua autorização ou conhecimento ou ocorreu caso de força maior). É naturalmente a Ré que, dispondo do domínio de facto do bem que contabiliza a electricidade consumida, pela facilidade de acesso aos respectivos meios de prova, se encontra em melhores condições para demonstrar a ocorrência de alguma irregularidade, até porque é responsável pela vigilância do equipamento.
Apelando a presunção legal “sempre a regras da experiência que, atendido o elevado grau de probabilidade ou verosimilhança da ligação concreta entre o facto que constitui base da presunção e o facto presumido, permitem dar este por assente quando o primeiro é provado”16, o que se verifica – se bem vemos – é que, tendo em vista a presunção legal que constitui o objecto da nossa análise, a ligação subjacente ao facto base da presunção e ao facto presumido se mostra alinhada com as diretrizes estabelecidas pelas regras da experiência.
A desigualdade de tratamento probatório que resulta da aplicação da presunção legal afigura-se, assim, materialmente fundada, de carácter objectivo, não arbitrário, consubstanciando uma repartição equitativa do “onus probandi” e congruente com o princípio de distribuição exigível da prova17.
Não se detecta, por isso, qualquer violação do princípio da igualdade na aplicação do direito ou do princípio da igualdade na criação do direito, enquanto dimensões básicas do princípio da igualdade constitucionalmente garantido (art. 13º, 1, CRP)18.
De igual modo, não se vê como da aplicação da presunção legal referida possa ter resultado a violação do direito da Ré de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva (art. 20º, 1 e 4, CRP), já que a mencionada repartição do ónus probatório não implicou qualquer obstáculo no acesso à via judicial, nem criou uma situação de “desigualdade de armas” ou de limitação do direito de defesa no que toca ao “direito à prova” da recorrente, limitando-se a estabelecer uma ordenação da posição das partes no processo, sob o ponto de vista do seu encargo probatório, de acordo com um princípio de equitatividade19.
É o suficiente para se considerar insusceptível de acolhimento a última pretensão impugnatória da Recorrente a analisar em revista.(…)”
A decisão recorrida considerou verificados os pressupostos que permitem considerar a Ré responsável, perante a Autora, pelo pagamento do «valor do consumo irregularmente feito e das despesas inerentes à verificação e eliminação da fraude e dos juros que estiverem estabelecidos para as dívidas ativas do distribuidor» (cf. artigo 3.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-lei n.º 328/90.
Considerou-se que tendo-se demonstrado procedimento fraudulento sobre o contador, que teve por consequência que a Ré se apoderasse ilicitamente de energia elétrica, dúvidas não restam que ocorreu um dano patrimonial, pelo qual a Autora tem o direito de ser compensada, verificando-se assim o preenchimento deste pressuposto da responsabilidade civil.
A Apelante insurge-se contra tal entendimento, alegando que a Autora não demonstrou factos que permitam dessa forma concluir.
Mas não lhe assiste razão.
Em face das decisões proferidas sobre a prescrição, as nulidades, a falta de alegação e a impugnação da matéria de facto, é de acordo com os factos provados que tem de proceder-se à apreciação jurídica do recurso.
E deles resulta que com a vistoria a que se refere o artigo 2.º do referido diploma legal, a que a Recorrida procedeu, foi identificada a anomalia no equipamento de contagem de eletricidade que serve a instalação da ora Recorrente, sendo esse equipamento da inteira responsabilidade desta e que apenas a Ré serve, não relevando a circunstância de no local, acessível pela rua, existirem outras instalações, pois que a que está em causa, apenas a Ré servia (cf. artigo 23. dos factos provados).
E que em consequência da adulteração contador elétrico foi detetado na instalação elétrica que, reitera-se, é da exclusiva responsabilidade, e apenas serve, a Ré, foi consumida mais energia elétrica do que a medida, faturada e paga, sendo o benefício da energia consumida e não paga unicamente seu.
Como se referiu, a responsabilidade da ora Recorrente presume-se, nos termos do artigo 1., n.º 2 do DL n.º 328/90, de 22 de outubro, já que a ora Ré não demonstrou que o procedimento fraudulento se deveu a qualquer causa que não lhe seja imputável, designadamente a conduta de terceiro.
O auto de vistoria elaborado pela equipa técnica da Autora foi assinado por um trabalhador da Ré, tendo esta dele tido conhecimento.
O alegado incumprimento, pela Autora de eventuais condições legais para a exigência à Ré do pagamento de energia consumida e não faturada, não influi no resultado das análises realizadas ao contador nem infirma a prova produzida acerca do desvio verificado na contagem de energia, sendo que, como se entendeu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça citado, as situações em que o distribuidor do serviço opte por não exercer o seu direito a interromper o fornecimento de energia, não lhe é exigível proceder à notificação ao consumidor, por escrito, do valor presumido do consumo irregularmente feito e de o informar dos seus direitos, nomeadamente do direito de requerer à Direcção-Geral de Energia a vistoria prevista no artigo 5.º do Decreto-lei n.º 328/90.
No caso dos autos, por se tratar de uma ligação de baixa tensão, as inspeções podem legalmente ser efetuadas apenas a cada 15 anos, obedecendo as ligações de média tensão a outras regras, nos termos do ponto 21.3 da Diretiva 5/2016 da ERSE.
Quanto ao valor do consumo de energia não contada, como se referiu na decisão recorrida, não se provou o concreto consumo não contado. Porém:
“(…) antecipando esta impossibilidade de quantificação direta da energia elétrica apropriada e consumida sem medição e faturação, o artigo 6.º do Decreto-lei n.º 328/90 regula tal questão, prevendo que «Para a determinação do valor do consumo irregularmente feito ter-se-á em conta o tarifário aplicável, bem como todos os factos relevantes para a estimativa do consumo real durante o período em que o ato fraudulento se manteve, designadamente as características da instalação de utilização, o seu regime de funcionamento, as leituras antecedentes, se as houver, e as leituras posteriores, sempre que necessário.» (cf. n.º 1).
Trata-se, como é bom de ver, de « … um valor presumido, cujo cálculo é efectuado segundo os parâmetros definidos na lei (artº 6º, nº 1 do DL que vimos analisando), nem poderia ser de outra forma, pois que não existem registos de consumo.» (cf. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 11-05-2006, disponível em www.dgsi.pt, processo n.º 0632168).
Ora, como resulta claro da letra do artigo 6.º, n.º 1, os elementos aí elencados para efeitos de determinação do valor do consumo irregular, não integram uma enumeração taxativa (como o espelha o advérbio «designadamente»), mas antes formas possíveis de densificação da expressão legal «todos os factos relevantes para a estimativa do consumo real».
No (mais recente) Guia de Medição, Leitura e Disponibilização de Dados de energia elétrica em Portugal continental (aprovado pela Diretiva 5/2016, da ERSE), embora se remeta, em primeira linha, para este Decreto-lei n.º 328/90 («A verificação do procedimento fraudulento e o apuramento do período temporal, da potência e da energia que lhe possam estar associados compete ao operador da rede a cuja rede a instalação em fraude esteja ligada e obedecem às regras constantes da legislação específica aplicável…» - cf. ponto 31.1 do Guia), estabelecem-se também algumas linhas orientadoras da determinação do consumo de energia associado a procedimento fraudulento.
Assim:
1) compete ao ORD fazer prova do período de tempo durante o qual o procedimento fraudulento teve lugar, devendo verificar, entre outras situações, a eventual ocorrência de variações abruptas no perfil de consumo da instalação e a data da última deslocação à instalação, com acesso ao equipamento de medição, ficando o período apurado sempre condicionado pela data de início do contrato do titular a quem for imputada a responsabilidade pela prática de procedimento fraudulento, não podendo, em qualquer caso, ser superior a 36 meses (cf. ponto 31.2.1 do Guia);
2) quanto ao consumo de energia:
a. quando existirem evidências claras e registos fiáveis nos equipamentos de medição da energia elétrica consumida associada ao procedimento fraudulento, serão considerados os dados assim apurados e o respetivo histórico;
b. se existirem registos da recolha remota do diagrama de carga e dos diagramas vetoriais de tensão e corrente do equipamento de medição da instalação de consumo, deverão os mesmos ser também considerados;
c. quando não existirem tais evidências claras e registos fiáveis o valor será estimado com base no consumo anual por escalão de potência contratada, nos termos do ponto 33.1.2, adicionado do respetivo desvio padrão.
3) Quanto à potência:
a. se o dispositivo de controlo de potência não tiver sido manipulado, considera-se a potência que estiver regulada nesse dispositivo;
b. quando o DCP tenha sido manipulado, considera-se a potência máxima permitida pela ligação da instalação à rede de distribuição ou à instalação coletiva considerando os fatores aí elencados.
*
Volvendo ao caso sub judice, caberá começar por salientar que, conquanto a A. não tenha alegado explicitamente na petição inicial a data de adulteração do contador e o período de tempo que considerou para efeitos do cálculo de energia consumida e não faturada que plasmou no artigo 45.º da petição inicial aperfeiçoada, não só este último resulta do documento 5 junto com aquela peça processual (para o qual a A. remete no artigo 46.º daquele articulado), onde se identifica clara e explicitamente o período relevante como sendo entre 04-04-2015 e 03-04-2018, como o primeiro foi apurado e contraditado em audiência final e, enquanto facto concretizador (e não essencial) da causa de pedir da A., foi considerado no elenco dos factos provados ao abrigo do disposto no artigo 5.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Civil.
Por outro lado, a prova produzida revelou outrossim a conexão entre o alegado no artigo 29.º e no artigo 45.º da petição inicial aperfeiçoada, tendo permitido ao Tribunal validar os elementos aos quais a A. recorreu para calcular a energia consumida sem medição (cf. facto provado n.º 17).
Verifica-se, assim, que a A. considerou um período de utilização ilícita compreendido entre 04-04-2015 e 03-04-2018 (correspondente ao período máximo de 36 meses previsto na Diretiva 5/2016, da ERSE) e que este período se situa após a data em que o contador foi comprovadamente manipulado (cf. ponto 14 dos factos provados)
Acresce que, para tal cálculo, fez a A. apelo a um critério ainda mais objetivo do que as leituras antecedentes, que são exemplificativamente elencadas no artigo 6.º, n.º 1, do Decreto-lei n.º 328/90.
Com efeito, os valores computados pela A. foram-no com base, por um lado, nas características do contador e no modo como se encontrava a funcionar quando manipulado (com utilização de resistências de menor valor óhmico, que importavam um erro de menos 35,5%, por comparação com a leitura de um contador no seu estado original), e, por outro lado, nos consumos registados efetivamente pelo contador.
Aplicando a correção do desvio aos valores efetivamente registados, chegou a A. aos consumos presumivelmente reais, no período de 3 anos que considerou (e que é inferior ao período de duração da fraude, que se apurou) - cf. factos provados n.ºs 10 e 17.
Adicionalmente, a A. submeteu ainda este resultado a um segundo teste, plasmado nos pontos 15 e 16 da matéria de facto provada, desta feita tendo por premissa as leituras posteriores à substituição do contador (um dos critérios elencados no artigo 6.º, n.º 1 do Decreto-lei n.º 328/90), que comparou com os consumos anteriores, majorados com o mesmo fator de correção. O resultado deste «teste» (que mostrou que as ordens de grandeza de uns e outros consumos eram idênticas) reforça a fiabilidade do método de cálculo utilizado.
Temos, assim, por fiável o dano computado pela A. a título de energia elétrica consumida e não paga pela R., num total de 33.391,65€.
No que concerne à potência utilizada e não computada (cf. factos provados n.ºs 18 e 19), afigura-se igualmente idónea a estimativa realizada pela A. (em direta ligação com a estimativa de consumos de energia que se acaba de ajuizar), a qual é conforme com as normas legais e regulamentares aplicáveis, que acima se analisaram, pelo que se julga verificado o dano de 6.436,09€ correspondente à potência utilizada e não faturada.
No que tange aos encargos administrativos com a deteção da anomalia e custo de substituição de contador, peticionados pela A., rege o disposto no artigo 6.º, n.º 2, do Decreto-lei n.º 328/90, nos termos do qual, «Para a determinação das despesas inerentes à verificação e eliminação da fraude, designadamente à reparação ou substituição dos aparelhos danificados, ter-se-ão em conta os respectivos custos directos associados à operação, acrescidos dos gastos gerais correspondentes.».
Resulta das regras de experiência comum que a deteção e tratamento de anomalias associadas a fraudes em contadores tem um custo. Todavia, não logrou a A. provar os custos efetivamente incorridos, no caso concreto, com a deslocação dos seus funcionários ao local para deteção da anomalia e com a substituição do contador (cf. alíneas d) e e) da matéria de facto não provada) – prova que, de resto, estaria ao seu alcance produzir -, pelo que não é de indemnizar este concreto dano. (…)”
Subscrevemos integralmente este juízo relativo ao computo dos danos a indemnizar, e que determinou a procedência parcial da ação.
Improcedem pois, todas as conclusões do recurso, não restando senão confirmar a decisão recorrida.
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IV. Decisão
Pelo exposto, acordam em julgar improcedente a apelação, e consequentemente, em manter a decisão recorrida.
Custas pela Apelante (cfr. artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
Registe e notifique.
Évora, 08.05.2025
Ana Pessoa
José António Moita
Manuel Bargado
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1. Cf. Acórdão da Relação do Porto de 13.07.2022, proferido no âmbito do processo n.º 4630/21.9T8VNG.P1↩︎
2. Proferido no âmbito do processo n.º 2465/19.8T8LRA.C1.↩︎
3. Cf. a redação do artigo já supra reproduzida.↩︎