Sumário:
I. A Recorrente apenas especificou expressamente com clareza nas suas conclusões qual a decisão de facto que em seu entender deveria ser considerada, no entanto, desta última indicação conjugada com o corpo das alegações depreende-se quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e os meios de prova em causa, verificando-se assim minimamente os pressupostos exigidos para apreciação da impugnação da decisão de facto.
II. Os factos que não foram oportunamente alegados pela Recorrente na sua Petição Inicial são factos novos, não podem ser tidos em conta em sede de recurso, rejeitando-se nesta parte a sua apreciação.
III. Em acção de responsabilidade civil interposta por escola de condução contra o instrutor imputando-lhe a responsabilidade na obrigação de indemnização dos danos causados por acidente no âmbito de uma aula prática de condução, considerando que “Nos acidentes ocorridos no âmbito de uma aula prática de condução, o risco acrescido do condutor do veículo ser ainda inexperiente e pouco habilidoso está compreendido no risco comum de circulação dos veículos usados no âmbito do processo de aprendizagem dos alunos das escolas de condução” e tendo em conta que no caso concreto em apreciação não ficou provado que o Réu, na qualidade de instrutor, tivesse incumprido os seus deveres objectivos de cuidado em geral e os resultantes da Lei 14/2014 de 18/03, não pode ser responsabilizado pelo acidente.
Apelação n.º 1291/22.1T8TMR.E1
(1.ª Secção Cível)
Relator: Filipe César Osório
1.º Adjunto: Filipe Aveiro Marques
2.º Adjunto: Susana Ferrão da Costa Cabral
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ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
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I. RELATÓRIO
Ação Declarativa, Processo Comum
1. As partes:
Autora/Recorrente – TMRDRIVE - ESCOLA DE CONDUÇÃO UNIPESSOAL LDA.
Réu/Recorrido – AA
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2. Objecto do litígio:
– A Autora pede a condenação do Réu a pagar-lhe a quantia de €7.911,04 (sete mil, novecentos e onze euros e quatro cêntimos), sendo €1.000, a título de danos não patrimoniais, e €6.911,04, a título de danos patrimoniais, acrescido dos respetivos juros legais que se vencerem desde a citação até integral e efetivo pagamento, porquanto, alegou essencialmente que no dia 20/04/2021 o Réu, na qualidade de instrutor de condução, contratado pela Autora, quando ministrava uma primeira aula prática de condução a uma instruenda, sendo ele instrutor e supervisor da aula, bateu com o carro contra um muro, do qual resultaram estragos no veículo, prejuízo para o bom nome da escola de condução e diversas quantias despendidas, inerentes à resolução da situação; que o instrutor tinha ordens expressas do Diretor da Escola para que, na primeira aula de condução se limitasse a treinar apenas o chamado “para/arranca” explicando para que servem e como se utilizam os comandos do veículo, sendo que o veículo era um ligeiro de passageiros, marca Citroen - C3, de 2010, o qual dispunha apenas de seguro contra terceiros, pelo que o Ré omitiu assim o dever de vigilância sobre a condução da instruenda, como estava obrigado e o dever de obediência às instruções que lhe foram dadas pelo Diretor da Escola, tornando-se responsável pelo pagamento dos danos causados à Autora na sequência do acidente de viação em causa.
– O Réu contestou, invocando a exceção de ilegitimidade passiva, pois que trabalhava, como instrutor de condução, sob ordens e orientação da autora, tratando-se, pois, de responsabilidade pelo risco, impugnou os factos alegados, defendendo não ter tido qualquer culpa na produção do acidente, uma vez que fez o que estava ao seu alcance para evitar o acidente que não logrou conseguir, pois era a primeira vez que a instruenda conduzia um veículo automóvel e requereu a condenação da Autora como litigante de má-fé.
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3. Dispositivo da Sentença em Primeira Instância:
«Por tudo o exposto, julgo a presente ação totalmente improcedente, e, em consequência, decide-se:
a) absolver o réu AA de tudo o peticionado;
b) absolver a autora TMRDRIVE - Escola de Condução Unipessoal Ldª. do pedido de condenação como litigante de má fé.
Custas a cargo da autora (artigo 527.º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil).
Registe e notifique.».
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4. Objecto do recurso de apelação.
A Recorrente/Autora interpôs recurso de apelação da sentença pedindo o seguinte:
«- Alterar-se a matéria de facto dada como provada e como não provada, nos termos supra expostos, e
- Revogar-se a decisão proferida, na parte em que absolve o R. de pagar à A. o valor indemnizatório por esta peticionado, substituindo-se por outra que, julgando a acção procedente, por provada, condene o R. a pagar à A.:
A quantia de € 7.911,04 (sete mil, novecentos e onze euros e quatro cêntimos), a título de danos patrimoniais e não patrimoniais;
Acrescendo a todas estas quantias os juros moratórios, à taxa legal, a contar da data de vencimento das prestações até efectivo e integral pagamento;».
E formulou as seguintes conclusões [transcrição]:
«1º
Dever-se-ão aditar aos factos provados os seguintes factos dados pelo Tribunal a quo como não provados:
“Nas circunstâncias descritas em 3, o Réu bateu com o carro contra um muro.”;
“Do embate resultaram danos de 15 dias de imobilização a 100€ por dia.”;
“Do embate resultaram conversas noutras escolas de condução da cidade sobre a reputação da escola autora.”;
“O veículo, após o acidente, ficou desvalorizado em €500.”; e ainda,
“O R podia ter assegurado a não ocorrência do sinistro, se se tivesse mantido atento no desempenho da função, de forma a prever e a evitar o acidente.”
2º
Para além disso, entendemos que os factos dados como provados no n.º 3 e no n.º 6 devem ser alterados, passando dos mesmos a constar o seguinte:
“No dia 20/07/2021, pelas 14:40 horas, na Estrada do ..., n.º 2, quando o Réu ministrava uma primeira aula prática de condução à instruenda BB, sendo ele instrutor e supervisor da aula, ocorreu um embate do veículo (ligeiro de passageiros de marca Citroen, matrícula ..-ZZ-.., de 2020, propriedade da A.) contra um muro.”;
e:
“O veículo era um ligeiro de passageiros, marca Citroen – C3, de 2020, o qual dispunha apenas de seguro contra terceiros.”
3º
Entendemos, também, que se deve aditar aos factos provados o seguinte_facto:
“O réu/instrutor tinha ordens expressas do Director da Escola para que, na primeira aula de condução, se limitasse a treinar apenas o chamado para/arranca, explicando para que servem e como se utilizam os comandos do veículo, sem sair do parque de estacionamento localizado por baixo da escola de condução.”
4º
Por fim, de acordo com toda a exposição feita, entendemos que dever-se-ão aditar aos factos não provados os seguintes factos dados pelo Tribunal a quo como provados:
“Tendo a instruenda, ao descrever a mencionada curva, agarrado com força o volante, provocando um balanço no carro, ao que o Réu reagiu de imediato (travou e desviou a direcção do veículo), sendo que o veículo embateu no passeio e, consequentemente, no pilar da moradia, que se encontrava junto ao mesmo.”;
e
“O veículo seguia a uma velocidade não superior a 10 km/h.”
5º
Resulta de toda a prova produzida nos autos que o Director da Escola A. deu ordens ao R. para apenas ensinar, na primeira aula de condução, o para-arranca e as funcionalidades do veículo.
6º
E resulta, da mesma forma, que esse mesmo director da escola deu ordens a todos os instrutores para que nessa primeira aula de condução nunca saíssem do parque de estacionamento sito abaixo da escola de condução;
7º
O director da escola deu especifica e individualmente essas ordens ao R.;
8º
Várias testemunhas assistiram e confirmam que assim foi.
9º
O R. desobedeceu a essas ordens e, na primeira aula com a instruenda BB, que estava sob a sua alçada e supervisão, levou-a, ao fim de cinco/dez minutos, para fora do parque, com ela ao volante.
10º
Na sequência e durante essa saída prematura, a aluna, após fazer uma curva, acelerou, confundida por uma ordem do instrutor, atingindo o veículo uma tal velocidade que ficou desgovernado.
11º
Foi o mesmo embater num pilar e muro de uma moradia sito na Estrada do ..., n.º 2, em ....
12º
O R. pouco ou nada fez para evitar esse acidente, não obstante a curva distar cerca de 8 metros do pilar onde se deu o embate.
13º
O R. não agiu com observância aos deveres objectivos de cuidado a que estava adstrito no exercício da sua profissão e não conseguiu antever o perigo, que estava mesmo à espreita.
14º
Como tal, não segurou antecipadamente no volante da instruenda nem colocou eficazmente os pés nos pedais de forma a impedir qualquer surpresa, que infelizmente se veio a verificar.
15º
Mesmo após a instruenda acelerar em demasia, o R. não agiu com a prontidão e eficácia que lhe eram exigidos para travar a marcha do veículo, uma vez que tinha espaço suficiente para o efeito.
16º
Do acidente, que se verificou por culpa do R., resultaram avultados danos materiais e não patrimoniais.
17º
Para além dos danos elencados no n.º 4 dos factos dados como provados, resultaram ainda outros danos, como os decorrentes dos 15 dias de imobilização do veículo, que se estimam em € 100 (cem euros) diários.
18º
E ainda os danos resultantes da desvalorização da viatura acidentada, que se computam em € 500 (quinhentos euros).
19º
Para além disso, resultaram ainda danos não patrimoniais em virtude da reputação da escola A. ter caído em virtude do acidente ter sido público e comentado na cidade, que se computam em € 1.000 (mil euros).
20.º
Pelo que deverá sempre o R. ser condenado a pagar à A. a quantia peticionada de €7.911,04 (sete mil, novecentos e onze euros e quatro cêntimos).
21º
Mostra-se violado na douta sentença em recurso o disposto nos artigos em que a mesma se fundamentou, e ainda os artigos 35.º, n.º 1, al. a) e 52.º, n.º 1, al. c) do Regime Jurídico do Ensino da Condução, bem como os artigos 24.º, n.º 1, 135.º, n.º 3 e 5, todos do Código da Estrada; e ainda os artigos 483.º, 487.º, n.º 2 e 798.º, todos do Código Civil.».
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5. Resposta
O Recorrido/Réu apresentou contra-alegações defendendo a improcedência do recurso e a manutenção do decidido.
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6. Questões a decidir:
6.1. Impugnação da decisão da matéria de facto
6.2. Reapreciação jurídica da causa
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II. FUNDAMENTAÇÃO
A. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
7. É o seguinte o teor da decisão de facto constante da sentença recorrida, destacando-se os factos objecto de dissenso da Recorrente/Autora:
«3. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
3.1 Factos provados
1. A A. é uma empresa que se dedica ao ensino de Condução Automóvel em Tomar há cerca de 3 anos.
2. Para o exercício dessa atividade, contratou o R., em 03.08.2020, pelo período de 3 meses, renovável, para desempenhar as funções inerentes à categoria profissional de “instrutor de condução”.
3. No dia 20/04/2021, pelas 14:40 horas, na Estrada do ..., n.º 2, quando o Réu ministrava uma primeira aula prática de condução à instruenda BB, sendo ele instrutor e supervisor da aula, ocorreu um embate do veículo (ligeiro de passageiros de marca Citroen, C-3, matricula ..-..-.., de 2019, propriedade da A.) contra um muro.
4. Do embate resultaram danos:
a) Da reparação da viatura --------------------------------- 4.352,58€
b) Da pintura --------------------------- ----------------------- 268,53€
c) Necessidade de inspeção extraordinária -----------------109,93€
d) Carregamento do ar condicionado --------------------------- 123€
5. O réu/instrutor tinha ordens expressas do Diretor da Escola para que, na primeira aula de condução se limitasse a treinar apenas o chamado “para/arranca”, explicando para que servem e como se utilizam os comandos do veículo.
6. O veículo era um ligeiro de passageiros, marca Citroen - C3, de 2019, o qual dispunha apenas de seguro contra terceiros.
7. A via onde ocorreu o embate é de sentido único e, na altura, o estado do tempo era bom.
8. A via tem a largura de 4,80m.
Da contestação:
9. À data do acidente, o Réu tinha um contrato de trabalho celebrado com a A., contrato de trabalho a termo certo, pelo período de três meses, com início em 03/08/2020 e términus em 03/11/2020, para, sob as suas ordens, direção e fiscalização, exercer as funções inerentes à categoria profissional de instrutor de condução.
10. Com um horário de 40 horas semanais, distribuídas por seis dias por semana, de segunda feira a sábado.
11. No âmbito das funções exercidas pelo Réu, era a A. que lhe ordenava que ministrasse o ensino automóvel.
12. Sendo o Réu titular da Licença de Instrutor com o número ... emitida a 19/10/2020 e válida até 08/05/2023.
13. A A., pagava ao Réu uma retribuição mensal de €783, acrescida do subsídio de alimentação no montante de €4,10 por cada dia de trabalho efetivamente prestado.
14. No âmbito das funções exercidas pelo Réu, era a A. quem pré-definia o serviço que aquele tinha de efetuar, os instrumentos que lhe cabiam, os horários das respetivas aulas que ministrava.
15. O Réu trabalhava sob as ordens e no interesse da A., que era quem tomava as decisões relacionadas com a sua atividade.
16. Entre as quais a viatura matrícula ..-ZZ-.., instrumento de trabalho do Réu, à data dos factos.
17. A Rua por onde circulavam – Estrada do ... - era uma via de sentido único.
18. Sendo que, àquela hora, não circulavam outros veículos.
19. O veículo seguia a uma velocidade não superior a 10km/h.
20. Apresentando-se uma curva à direita relativamente aberta, com casas junto à via por onde circulavam.
21. Tendo a instruenda, ao descrever a mencionada curva, agarrado com força o volante, provocando um balanço no carro, ao que o Réu reagiu de imediato (travou e desviou a direção do veículo), sendo que o veículo embateu no passeio e, consequentemente, no pilar da moradia, que se encontrava junto ao mesmo.
22. O pilar onde o portão encaixa encontra-se à face da rua.
23. Sendo que a distância que separa o pilar da berma é apenas o lancil, com cerca de 10 a 15cm.
24. E a altura do passeio é de 2 ou 3 cm.
25. Tanto o Réu como a aluna, BB, foram submetidos ao teste do álcool, tendo acusado 0,00gr/l.
26. O Réu possui carta de condução desde 1985, sendo instrutor de condução automóvel desde 2005, não tendo registado a ocorrência de quaisquer outros acidentes.
FACTOS NÃO PROVADOS
Nada mais se provou, com interesse para a decisão da causa, designadamente que:
I. Nas circunstâncias descritas em 3, o Réu bateu com o carro contra um muro.
II. Do embate resultaram danos de 15 dias de imobilização a 100€ por dia.
III. Do embate resultaram conversas noutras escolas de condução da cidade sobre a reputação da escola autora.
IV. O veículo, após o acidente, ficou desvalorizado em 500€.
V. O R podia ter assegurado a não ocorrência do sinistro, se se tivesse mantido atento no desempenho da função, de forma a prever e a evitar o acidente.».
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B. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
8. Impugnação da decisão da matéria de facto:
8.1. A impugnação da decisão sobre a matéria de facto está sujeita a determinadas regras ou ónus sob pena de rejeição e o incumprimento destas regras também deve ser oficiosamente conhecido.
Dispõe o art. 640.º, do CPC, sob a epígrafe “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”, o seguinte:
1 – Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 – No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 – O disposto nos 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do no 2 do artigo 636.º.
Então, daqui resulta desde logo que o recorrente tem de especificar obrigatoriamente, sob pena de rejeição:
1.º - Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
2.º - Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
3.º - A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas;
4.º - E quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
A previsão destes ónus tem razão de ser, quer para garantia do contraditório, quer para efeito de rigorosa delimitação do objeto do recurso, até porque o sistema consagrado não admite recursos genéricos contra a decisão da matéria de facto, não é compreensível que a verificação do cumprimento de tais ónus se transforme num exercício meramente burocrático1.
Já foi objecto de debate saber se os requisitos do ónus impugnatório devem figurar apenas no corpo das alegações ou se também devem ser levados às conclusões sob pena da rejeição do recurso. A este propósito o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 12/2023 (processo n.º 8344/17.6T8STB.E1-A.S1)2 uniformizou a jurisprudência do seguinte modo: «Nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa.».
No caso concreto em apreciação a ora Recorrente apenas especificou expressamente com clareza nas suas conclusões qual a decisão de facto que em seu entender deveria ser considerada, no entanto, desta última indicação conjugada com o corpo das alegações depreende-se quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e os meios de prova em causa, verificando-se assim minimamente os pressupostos exigidos para o efeito3.
Então, a Recorrente considera incorrectamente julgados os pontos 3, 6, 19, 21 dos factos provados e todos os factos considerados não provados, bem como, entende ainda deverem ser aditados os seguintes factos não considerados na decisão de facto:
“O réu/instrutor tinha ordens expressas do Director da Escola para que, na primeira aula de condução, se limitasse a treinar apenas o chamado para/arranca, explicando para que servem e como se utilizam os comandos do veículo, sem sair do parque de estacionamento localizado por baixo da escola de condução.”.
É preciso notar que os factos ““O réu/instrutor tinha ordens expressas do Director da Escola para que, na primeira aula de condução, se limitasse a treinar apenas o chamado para/arranca, explicando para que servem e como se utilizam os comandos do veículo” já constam do ponto 5 dos factos provados da sentença (com correspondência ao art. 20.º, da P.I.).
Demais factos (“sem sair do parque de estacionamento localizado por baixo da escola de condução”) são factos novos que não foram oportunamente alegados pela Recorrente na sua Petição Inicial, não o podendo fazer em sede de recurso, rejeitando-se nesta parte a sua apreciação4.
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8.2. Análise da impugnação da decisão da matéria de facto propriamente dita
O art. 607.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, consagra o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção, segundo o qual o Tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização, e fixa a matéria de facto em sintonia com a sua prudente convicção firmada acerca de cada facto controvertido.
O princípio da prova livre significa que a prova é apreciado em inteira liberdade pelo julgador, sem obediência a uma tabela ditada externamente, mas apreciada em conformidade racional com essa prova e com as regras da lógica e as máximas da experiência5.
O uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1.ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser concretizado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados, nomeadamente por os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, imporem uma conclusão diferente – Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 19/12/20236.
Assim, este Tribunal tem o dever de sindicar o iter da formação da convicção do julgador, naquilo que se referir à existência de um processo lógico e objectivado de raciocínio, ou à observância das regras de direito probatório material ou ao respeito das regras do ónus da prova subjacentes à matéria de facto e, fazendo-o, pode concluir em sentido (parcial ou integralmente) concordante ou diverso, contanto que haja prova materializada, densificada e consistente para o efeito, o que encontra amparo no citado art. 662.º, n.º 1.
Então, como mencionado no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10/07/20247 impõe-se, “por um lado, analisar os fundamentos da motivação que conduziu a primeira instância a julgar um facto como provado ou como não provado e, por outro, averiguar, em função da sua própria e autónoma convicção, formada através da análise crítica dos meios de prova disponíveis e à luz das mesmas regras de direito probatório, se na elaboração dessa decisão e na sua motivação ocorre, por exemplo, alguma contradição, uma desconsideração de qualquer um dos meios de prova ou uma violação das regras da experiência comum, da lógica ou da ciência – elaboração, diga-se, que deve ser feita à luz de um cidadão de normal formação e capacidade intelectual, de um cidadão comum na sociedade em questão – sem prejuízo de, independentemente do antes dito, poder chegar a uma decisão de facto diferente em função da valoração concretamente efetuada em sede de recurso.”
Importa ainda atentar que a decisão da matéria de facto pode apresentar patologias que não correspondem verdadeiramente a erros de apreciação ou de julgamento. Umas poderão e deverão ser solucionadas de imediato pela Relação; outras poderão determinar a anulação total ou parcial do julgamento.
A este propósito, com pertinência, nas palavras de Abrantes Geraldes8, «Assim, desde que não existam motivos para rejeitar o recurso de impugnação da decisão da matéria de facto (…) e, sem embargo das situações em que à Relação são atribuídos amplos poderes no sentido de eliminar efeitos que decorrem de erros de direito mo que concerne à atribuição ou negação do valor probatório pleno de determinados meios de prova, os objectivos projectados pelo legislador no que concerne ao duplo grau de jurisdição são os seguintes:
a) Reapreciação dos meios de prova especificados pelo Recorrente (…).
b) Conjugação desses meios de prova com outros indicados pelo recorrido ou que se mostrem acessíveis (…).
c) Renovação de algum ou alguns depoimentos cuja audição suscite dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente, ou mesmo produção de novos meios de prova que potenciem a superação das dúvidas sérias sobre a prova anteriormente produzida.
d) Formação da convicção autónoma em relação à matéria de facto impugnada, introduzindo na decisão modificações que forem consideradas pertinentes.
e) Sem embargo da ponderação das circunstâncias que rodeiam o julgamento da matéria de facto, a Relação goza no exercício desta função dos mesmos poderes atribuídos ao tribunal a quo, sem exclusão dos que decorrem do princípio da livre apreciação genericamente consagrado no art. 607.º, n.º 5, (…).
f) Consequentemente está afastada, em definitivo, a defesa de que a modificação da matéria de facto apenas deve operar em casos de “erros manifestos” de reapreciação, assim como é insuficiente que na apreciação do recurso de apelação, na parte que envolva a decisão da matéria de facto, a Relação se limite a aludira eventuais dificuldades decorrentes do princípio da imediação, da oralidade e da livre apreciação das provas, sem efectiva ponderação dos meios de prova que foram produzidos e que se mostram acessíveis.
Sem embargo dos naturais condicionalismos que rodeiam a tarefa de reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, desde que a Relação, no quadro da aplicação do art. 662.º, acabe por formar uma diversa convicção sobre os pontos de facto impugnados, deve refletir em nova decisão esse resultado.».
No caso concreto em apreciação, a ora Recorrente alegou que foram incorrectamente julgados os factos acima mencionados essencialmente porque entende conferir uma diversa valoração da prova documental e testemunhal produzida, em contraponto, o Recorrido discorda desse entendimento.
Na motivação de facto da sentença consta o seguinte [transcrição]:
«Para fundamentar a resposta à matéria de facto provada analisaram-se os documentos juntos aos autos e o depoimento das testemunhas inquiridas em sede de audiência de julgamento, assim como o teor das declarações de parte.
Com efeito, teve-se em consideração o contrato de trabalho celebrado entre a A e o R, fotografias do local do embate, participação de acidente, fatura e recibos de reparação automóvel, fatura e recibo de pintura automóvel, fatura/recibo de inspeção automóvel, fatura de recarga de ar condicionado, recibo de pagamento da certidão da participação de acidente de viação, fotografias do veículo automóvel em causa, certificado de matrícula do veículo em causa, recibo de remunerações.
Quanto à dinâmica do acidente, o mesmo apenas foi presenciado pelo réu e pela instruenda, a testemunha BB, que descreveram, de forma coincidente e objetiva, o sucedido, designadamente o modo de agir de ambos na ocasião do embate. Ambos depuseram de forma serena e pormenorizada, de acordo com as regras da lógica e da experiencia comum, pelo que mereceram a credibilidade do tribunal.
Foi considerado também o depoimento da testemunha CC, agente da PSP, que elaborou a participação e confirmou o correspondente conteúdo e autoria, sendo certo que a nada assistiu do embate, tendo elaborado o documento com base no que lhe foi transmitido pelos intervenientes supra referidos.
As testemunhas DD, bate chapas, e EE, pintor auto, que prestam serviços à A, esclareceram os serviços prestados no referido veículo em consequência do acidente e respetivos valores, o que fizeram de forma coincidente com os documentos supra referidos (faturas/recibos), merecendo credibilidade.
O representante legal da autora FF, assim como as testemunhas GG, motorista, que trabalha para a autora, HH, instrutor de condução e diretor da autora, e II, instrutor de condução na autora desde novembro de 2022, limitaram-se a elencar as instruções dadas, de forma abstrata, a todos os instrutores que trabalham na escola autora, sem terem conhecimento direto dos factos em análise nos autos. Acrescentaram os danos verificados na viatura, esses com conhecimento direto pois visualizaram a mesma apos o embate, sendo que a testemunha HH e FF procederam ao pagamento das mesmas.
As testemunhas indicadas pelo réu JJ, antigo colega do réu e também instrutor de condução e KK, filho do réu, nenhum conhecimento tinham dos factos, limitando-se a descrever a experiência eu o réu tem na qualidade de instrutor de condução e a ausência de acidentes sofridos.».
Para fundamentar a sua impugnação da decisão da matéria de facto, no corpo das alegações a Recorrente tece diversas considerações sobre a sua visão da prova, contudo, a maioria dessas considerações tem por base factos que não foram oportunamente alegados na sua Petição Inicial mas apenas em sede de recurso (e que nem sequer requereu o seu aditamento aos factos provados), senão vejamos:
A Recorrente alegou que “- Para além disso, foi o instrutor avisado pelo Director da Escola, sendo norma interna e de conhecimento de todos os trabalhadores da instituição, que essa referida primeira aula é sempre dada no parque de estacionamento da escola, não saindo o veículo dali” – esta factualidade é nova não pode ser tida em conta na decisão, por isso, fica de igual modo prejudicada a análise dos depoimentos das testemunhas CC, GG, HH e II e ainda das declarações do declarações prestadas pelo legal representante da Autora FF no que toca à factualidade não oportunamente alegada pela Recorrente na sua Petição Inicial.
A Recorrente alegou ainda que “- O veículo seguia, aquando do embate, a uma velocidade aproximada de 60 / 70 km/h, acima do limite legal permitido dentro das localidades”; “- A instruenda acelerou em demasia após o R. lhe ter comunicado que avançasse, sendo que este não teve o cuidado de antever e fazer os possíveis para evitar tal situação de perigo em que, aliás, se colocou a si e à instruenda de forma desnecessária”.
Esta factualidade atinente à dinâmica do acidente também não foi alegada oportunamente nos articulados, no entanto, poderá ainda vir a considerar-se aquela que eventualmente consubstancie factualidade complementar ou instrumental.
Então, o acidente apenas foi presenciado pelo Réu e pela instruenda, a testemunha BB, que descreveram, de forma essencialmente coincidente como se desenrolou o mesmo, designadamente o modo de agir de ambos na ocasião do embate.
Com efeito, ouvidas as declarações de parte do Réu AA julgamos que as mesmas não são titubeantes como alega a Recorrente, antes pelo contrário, tentou explicar todas as questões que lhe foram colocadas, de modo sereno e pormenorizado, sem hesitações, confirmando a factualidade provada.
Importa atentar que a testemunha BB e o Réu AA relatam factos do seu conhecimento que presenciaram, mas estes não são peritos, não têm conhecimentos especializados sobre acidentes, para se lhes poder exigir extrapolações, ilações ou conclusões e fornecerem explicações sobre o resultado das manobras do acidente enquanto processo dinâmico dependente de leis da física.
Conjugando o depoimento da instruenda e as declarações do Ré (únicas pessoas que presenciaram o acidente) é possível surpreender que o embate enquanto processo dinâmico se desenrolou de modo algo mais completo e detalhado do que consta da sentença, sem perder de vista que enquanto acontecimento traumático pode gerar na memória dos depoentes visões exageradas ou diminuídas, por isso, deve ser atendido o que resultou evidente de tal prova.
Além disso, apesar de tal factualidade não ter sido alegada deve ser tida em conta por se tratar de factualidade complementar ou instrumental:
Num primeiro momento o veículo seguiria “muito devagarinho”, sendo plausível por isso a velocidade não superior a 10Km/h.
E apenas depois da curva que se apresentava à direita, com casas junto à via por onde circulavam, é que a instruenda, ao descrever a mencionada curva, colocou inadvertidamente o pé com força no pedal do acelerador o que provocou uma repentina aceleração do veículo, que nesse momento alcançou velocidade não apurada (nesse instante não temos elementos seguros de que velocidade foi alcançada em tão curto intervalo de tempo), agarrou com força o volante, provocando um balanço no carro, ao que o Réu reagiu de imediato (travou e desviou a direção do veículo, mas não foi possível evitar que o veículo embatesse no passeio e, consequentemente, no pilar da moradia, que se encontrava junto ao mesmo.
Além disso, a matrícula do veículo deve ser retificada (..-ZZ-..) bem com o ano do veículo (2020) que devem corresponder ao teor da “Participação de Acidente” (doc. 5 da P.I.), e certificado de matrícula (doc. 13 da P.I).
Quanto aos factos não provados:
No ponto I. dos factos não provados consta que não se provou que «Nas circunstâncias descritas em 3, o Réu bateu com o carro contra um muro», contudo, a circunstância do veículo ter embatido “contra um muro” já consta do ponto 3 dos factos provados, por isso, tal deve ser interpretado no sentido de que não se provou que foi o próprio Réu que bateu com o carro contra um muro, porque tal como consta do ponto 3 dos factos provados, este era apenas “supervisor da aula” de condução.
No que concerne aos alegados danos sofridos (factos não provados II, III e IV):
A Recorrente entende essencialmente que “resulta claramente provado que a viatura esteve inutilizada para a prática do ensino da condução pelo menos durante quinze dias. E que a escola de condução, com três instrutores ao serviço, tinha apenas dois carros para as respectivas aulas. Tais danos estimam-se num valor médio de € 100 por dia. E a esses danos somam-se, necessariamente, os decorrentes da desvalorização do veículo, estimada em € 500. É de conhecimento comum que um carro acidentado perde valor. Os € 500 que se estimam a este título, estimam-se claramente por baixo, uma vez que estamos a falar de uma viatura de 2020, praticamente nova à data do acidente. Para além disso, as testemunhas não tiveram dúvidas em afirmar que a reputação da escola de condução ficou abalada com o acidente e que no período que se seguiu tiveram muito menos inscrições de alunos.”
Ouvidos o depoimento da testemunha HH e as declarações de parte do legal representante da Ré FF, em conjugação com os recibos da reparação do veículo (juntos com o Requerimento de 27/10/2022), deles resulta o período de 15 dias de imobilização do veículo, passando a factos provados apenas que “em consequência do embate o veículo ficou imobilizado durante 15 dias”.
Contudo, não se apurou um concreto dano resultante dessa imobilização, nem se apurou a demais factualidade invocada quanto a danos sofridos (factos não provados III e IV), porque a este propósito o depoimento da já referida testemunha e as declarações de parte do legal representante da Autora foram vagas e genéricas, não tendo a virtualidade de comprovar essa factualidade, mantendo-se assim a decisão de facto relativa aos factos considerados como não provados.
Acresce ainda que para prova da factualidade relativa a danos não teria sido difícil à Autora (cujo ónus de prova lhe competia) juntar aos autos documentos contabilísticos ou outros relativos aos proveitos obtidos antes e depois do evento danoso para se poder apurar a diferença entre aqueles momentos temporais, contudo, a Autora não juntou qualquer documento.
Finalmente, o facto não provado constante do ponto V. deve ser eliminado por encerrar factualidade conclusiva.
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9.3. Em suma, na sequência da parcial procedência da impugnação, os factos a ter em conta devem passar a ser os seguintes:
FACTOS PROVADOS
1. A A. é uma empresa que se dedica ao ensino de Condução Automóvel em Tomar há cerca de 3 anos.
2. Para o exercício dessa atividade, contratou o R., em 03.08.2020, pelo período de 3 meses, renovável, para desempenhar as funções inerentes à categoria profissional de “instrutor de condução”.
3. No dia 20/04/2021, pelas 14:40 horas, na Estrada do ..., n.º 2, quando o Réu ministrava uma primeira aula prática de condução à instruenda BB, sendo ele instrutor e supervisor da aula, ocorreu um embate do veículo (ligeiro de passageiros de marca Citroen, C-3, matricula ..-ZZ-.., de 2020, propriedade da A.) contra um muro.
4. Do embate resultaram danos:
a) Da reparação da viatura --------------------------------- 4.352,58€
b) Da pintura --------------------------- ----------------------- 268,53€
c) Necessidade de inspeção extraordinária -----------------109,93€
d) Carregamento do ar condicionado --------------------------- 123€
5. O réu/instrutor tinha ordens expressas do Diretor da Escola para que, na primeira aula de condução se limitasse a treinar apenas o chamado “para/arranca”, explicando para que servem e como se utilizam os comandos do veículo.
6. O veículo era um ligeiro de passageiros, marca Citroen - C3, de 2020, o qual dispunha apenas de seguro contra terceiros.
7. A via onde ocorreu o embate é de sentido único e, na altura, o estado do tempo era bom.
8. A via tem a largura de 4,80m.
Da contestação:
9. À data do acidente, o Réu tinha um contrato de trabalho celebrado com a A., contrato de trabalho a termo certo, pelo período de três meses, com início em 03/08/2020 e términus em 03/11/2020, para, sob as suas ordens, direção e fiscalização, exercer as funções inerentes à categoria profissional de instrutor de condução.
10. Com um horário de 40 horas semanais, distribuídas por seis dias por semana, de segunda feira a sábado.
11. No âmbito das funções exercidas pelo Réu, era a A. que lhe ordenava que ministrasse o ensino automóvel.
12. Sendo o Réu titular da Licença de Instrutor com o número ... emitida a 19/10/2020 e válida até 08/05/2023.
13. A A., pagava ao Réu uma retribuição mensal de €783, acrescida do subsídio de alimentação no montante de €4,10 por cada dia de trabalho efetivamente prestado.
14. No âmbito das funções exercidas pelo Réu, era a A. quem pré-definia o serviço que aquele tinha de efetuar, os instrumentos que lhe cabiam, os horários das respetivas aulas que ministrava.
15. O Réu trabalhava sob as ordens e no interesse da A., que era quem tomava as decisões relacionadas com a sua atividade.
16. Entre as quais a viatura matrícula ..-ZZ-.., instrumento de trabalho do Réu, à data dos factos.
17. A Rua por onde circulavam – Estrada do ... - era uma via de sentido único.
18. Sendo que, àquela hora, não circulavam outros veículos.
19. Num primeiro momento, o veículo seguia a uma velocidade não superior a 10km/h.
20. Apresentando-se uma curva à direita relativamente aberta, com casas junto à via por onde circulavam.
21. A instruenda, ao descrever a mencionada curva, colocou inadvertidamente o pé com força no pedal do acelerador o que provocou uma repentina aceleração do veículo (que nesse momento alcançou velocidade não apurada), agarrou com força o volante provocando um balanço no carro, ao que o Réu travou e desviou a direção do veículo, mas não foi possível evitar que o veículo embatesse no passeio e, consequentemente, no pilar da moradia, que se encontrava junto ao mesmo.
22. O pilar onde o portão encaixa encontra-se à face da rua.
23. Sendo que a distância que separa o pilar da berma é apenas o lancil, com cerca de 10 a 15cm.
24. E a altura do passeio é de 2 ou 3 cm.
25. Tanto o Réu como a aluna, BB, foram submetidos ao teste do álcool, tendo acusado 0,00gr/l.
26. O Réu possui carta de condução desde 1985, sendo instrutor de condução automóvel desde 2005, não tendo registado a ocorrência de quaisquer outros acidentes.
27. Em consequência do embate o veículo ficou imobilizado durante 15 dias.
FACTOS NÃO PROVADOS
Nada mais se provou, com interesse para a decisão da causa, designadamente que:
I. Nas circunstâncias descritas em 3, o Réu bateu com o carro contra um muro.
II. [eliminado].
III. Do embate resultaram conversas noutras escolas de condução da cidade sobre a reputação da escola autora.
IV. O veículo, após o acidente, ficou desvalorizado em 500€.
V. [eliminado].
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10. – Da reapreciação jurídica da causa:
A Recorrente insurge-se contra a decisão relativamente à matéria de direito alegando para o efeito essencialmente o que dispõe o Regime Jurídico do Ensino da Condução em diversas normas que citou, em especial, a velocidade excessiva a que seguia o veículo em causa e a desobediência a ordens e instruções dadas pela Autora.
Por sua vez, a Recorrente alega ainda que “a jurisprudência que existe sobre o tema compreende o peso da responsabilidade que recai sobre os instrutores do ensino de condução durante a prática da sua profissão e exige-lhes uma conduta de extremo profissionalismo que se coadune com a severidade adjacente à sua posição.”, contudo, não indicou qualquer concreta jurisprudência para estribar a sua posição jurídica sobre a questão.
Nesta sequência, para saber se o Réu, na qualidade de instrutor de escola de condução, agiu, ou não, em conformidade com os seus deveres, importa atentar que o direito de indemnização invocado pela Autora funda-se na responsabilidade civil por factos ilícitos, cujos pressupostos legais se encontram fixados pelo artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil.
Ora, resulta do regime da Lei 14/2014 de 18/03, no seu Capítulo IV, relativo aos Instrutores de Condução, no seu artigo 35.º os deveres a que o instrutor se encontra adstrito, sendo eles: a) Cumprir as disposições legais e regulamentares aplicáveis ao ensino e exames de condução; b) Ministrar o ensino da condução das categorias em que se encontra habilitado; c) Aplicar os conteúdos programáticos em vigor, utilizando os métodos e técnicas pedagógicas e o equipamento pedagógico adequados; d) Informar o diretor da escola de condução sobre a evolução da aprendizagem do candidato a condutor; e) Comportar-se com urbanidade nas suas relações com os candidatos a condutor, examinadores e agentes de fiscalização; f) Contribuir para o bom funcionamento da escola de condução, informando o diretor de qualquer ocorrência relevante; g) Não perturbar a realização dos exames de condução; h) Colaborar com o IMT, I. P., no exercício da sua atividade de fiscalização e de acompanhamento, bem como comparecer no mesmo instituto sempre que notificado para o efeito.
Como se considerou na decisão recorrida, “Esta norma consagra deveres objetivos de cuidado que se impõem aos instrutores, sendo que o Código da Estrada se impõe aos condutores que circulem nas vias públicas, de forma a manter a circulação automóvel, que é uma actividade intrinsecamente perigosa, dentro de limites de risco de ocorrência de acidentes socialmente toleráveis.”.
Ora, já vimos que improcedeu a impugnação da matéria de facto quanto à invocada desobediência do instrutor a ordens dadas, ficando assim arredada da análise esta questão.
E quanto à dinâmica do acidente ficou provado de relevo o seguinte:
“19. Num primeiro momento, o veículo seguia a uma velocidade não superior a 10km/h.
20. Apresentando-se uma curva à direita relativamente aberta, com casas junto à via por onde circulavam.
21. A instruenda, ao descrever a mencionada curva, colocou inadvertidamente o pé com força no pedal do acelerador o que provocou uma repentina aceleração do veículo (que nesse momento alcançou velocidade não apurada), agarrou com força o volante provocando um balanço no carro, ao que o Réu travou e desviou a direção do veículo, mas não foi possível evitar que o veículo embatesse no passeio e, consequentemente, no pilar da moradia, que se encontrava junto ao mesmo.”.
Em face da dinâmica apontada, não se vislumbra que deveres objetivos de cuidado tivessem sido incumpridos pelo Réu na sua qualidade de instrutor de condução.
Com efeito, a certo momento da aula, a instruenda “colocou inadvertidamente o pé com força no pedal do acelerador o que provocou uma repentina aceleração do veículo (que nesse momento alcançou velocidade não apurada), agarrou com força o volante provocando um balanço no carro, ao que o Réu travou e desviou a direção do veículo, mas não foi possível evitar que o veículo embatesse no passeio e, consequentemente, no pilar da moradia, que se encontrava junto ao mesmo.”.
Contudo, por um lado não resultou provada a invocada desobediência do instrutor a ordens do director da escola de condução e, por outro lado, como consta da sentença recorrida, o réu/instrutor, à semelhança de um instrutor médio - «bonus pater familias» (artigo 487.º, n.º 1 do Código Civil - quando colocado no mesmo circunstancialismo em que em aquele se encontrava, não podia ter optado por outra atitude, tendo feito o que estava ao seu alcance para evitar o acidente, não o logrando fazer, pelo que entendemos que não agiu culposamente.
Nestes termos, não pode o réu ser responsabilizado pelos danos ocorridos por forçado acidente.
Assim, considerando que “Nos acidentes ocorridos no âmbito de uma aula prática de condução, o risco acrescido do condutor do veículo ser ainda inexperiente e pouco habilidoso está compreendido no risco comum de circulação dos veículos usados no âmbito do processo de aprendizagem dos alunos das escolas de condução”9 e tendo em conta que no caso concreto em apreciação não ficou provado que o Réu, na qualidade de instrutor, tivesse incumprido os seus deveres objectivos de cuidado em geral e os resultantes da Lei 14/2014 de 18/03, não se verificam os pressupostos da obrigação de indemnização, como consta da sentença recorrida.
Como não se verifica a obrigação de indemnização, fica prejudicada a apreciação das demais questões.
Deste modo, em suma, impõe-se julgar totalmente improcedente o recurso interposto e, em consequência, confirmar a sentença.
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11. Responsabilidade Tributária
As custas do recurso de Apelação são a cargo da Recorrente/Autora.
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III. DISPOSITIVO
Nos termos e fundamentos expostos,
1. Acordam os Juízes da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar totalmente improcedente o recurso de apelação interposto pela Recorrente/Autora e, em consequência confirmar a sentença.
2. Custas do recurso de Apelação são a cargo da Recorrente/Autora.
3. Registe e notifique.
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Évora, data e assinaturas certificadas
Relator: Filipe César Osório
1.º Adjunto: Filipe Aveiro Marques
2.º Adjunto: Susana Ferrão da Costa Cabral
1. António Abrantes Geraldes e outros, CPC Anotado, Vol. I, Almedina, 2022, pág. 831.↩︎
2. https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao-supremo-tribunal-justica/12-2023-224203164↩︎
3. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/06/2021 (Ricardo Costa, proc. n.º 10300/18.8T8SNT.L1.S1, www.dgsi.pt)↩︎
4. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10/01/2022 (Fátima Andrade, proc. n.º 725/17.1T8VNG.P1, www.dgsi.pt)↩︎
5. Alberto dos Reis in, Código de Processo Civil Anotado, Volume III, 3.ª edição, p. 245.↩︎
6. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 19/12/2023 (Maria João Matos, proc. n.º 1526/22.0T8VRL.G1, www.dgsi.pt).↩︎
7. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10/07/2024 (Jorge Martins Ribeiro, Proc. n.º 99/22.9T8GDM.P1, www.dgsi.pt)↩︎
8. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 8.ª ed., Almedina, pág. 399-401↩︎
9. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22/11/2022 (Silvia Pires, proc. n.º 421/20.2T8CTB.C1, www.dgsi.pt)↩︎